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Delito de Opinião

Xenofobia, misoginia, animalismo

Pedro Correia, 01.07.19

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Nietzsche e o Cavalo, quadro de Eric Drass

 

Em 1889, Nietzsche vivia na praça Carlos Alberto, na cidade italiana de Turim. Nesse ano, viu ali um cocheiro a chicotear sem piedade um cavalo. Saiu em defesa do animal, abraçando-se a ele e beijando-o com fervor. O episódio, segundo rezam as crónicas, terá servido para atestar a propalada loucura do filósofo, pondo fim ao seu percurso público: a partir daí, e até à morte, ficou confinado aos muros de uma clínica para tratamento psiquiátrico, em Basileia.

Os tempos são outros: hoje ninguém considera louco quem possa beijar um bicho, até na boca, com as prováveis excepções de tarântulas ou jibóias. Mas sair em defesa de um animal maltratado pode custar uma carreira política, ainda que incipiente. Que o diga uma deputada municipal do PAN na Moita, forçada a resignar por ter feito esta observação no exercício das suas funções autárquicas: «Verifica-se que existe uma etnia que se multiplicou e que todos os dias se passeia pela Moita e arredores, [com os elementos] empilhados em cima de carroças puxadas por um único cavalo subnutrido, espancado, a desfazer-se em diarreias por não ser abeberado e alimentado sequer e que, por vezes, [cai] na via pública, não suportando mais.» Isto numa moção em que recomendava a identificação dos «detentores dos cavalos que se encontram abandonados, amarrados e sem alimento, no sentido de sensibilizar os mesmos para estes actos cruéis que levam os animais a situações de doença, exaustão e morte».

De nada lhe valeu o amor ao bicho vergastado, comprovando o seu zelo militante. Nem ter omitido o vocábulo "cigano". Aquelas palavras bastaram para configurar delito de opinião: foi acusada de xenofobia e viu o PAN retirar-lhe a confiança política num comunicado da Comissão Política Permanente que lamenta «profundamente a situação» e pede desculpa a todos os que se possam ter sentido «discriminados ou desidentificados com esta referência imprópria». Noutro contexto, talvez não faltassem acusações de sexismo e misogonia ao afastamento da senhora, que vê abortada a sua fugaz carreira política. Felizmente sem necessidade de internamento psiquiátrico.

Do animal escravizado e flagelado nunca mais ninguém falou - ao contrário do cavalo de Nietzsche, ainda lembrado 130 anos depois. «Até para se ser animal é preciso ter sorte», como dizia a minha avó. Jamais imaginando que haveria de existir um partido animalista em Portugal.

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