Woody Allen: o meu aplauso agradecido
Tive a imensa alegria de ver ao vivo várias estrelas do cinema, hoje quase lendárias, como Sophia Loren, Jerry Lewis e Peter Ustinov. Ontem à noite senti o mesmo, como espectador no Campo Pequeno, ao observar no palco um dos meus heróis do cinema: o pequeno-grande Woody Allen, na sua versão de músico. Com quase 88 anos, mostrou-se em excelente forma no seu clarinete e em óptima companhia: a New Orleans Jazz Band. Há cerca de 40 anos que tocam juntos. É evidente a atmosfera de cumplicidade e camaradagem entre eles. Contagiando a plateia, que não lhe regateou aplausos vibrantes ao longo de todo o concerto.
Decorrida quase hora e meia, Woody anunciou que iriam retirar-se por se sentirem «cansados». Era uma piada. Tocaram para nós mais meia hora, fazendo-nos recuar um século, à era das jazz band com fusão de estilos e ritmos: jazz, soul, blues, ragtime, fox, quickstep... Sempre em crescendo, em atmosfera festiva. Verdadeiro património musical norte-americano, património musical da humanidade. Um hino à vida.
Enquanto os escutava, ia pensando no primeiro filme que vi de (e com) Woody Allen. Foi em 1975: O Inimigo Público, comédia já com os traços gerais a que nos foi habituando na parte inicial da sua extensa obra cinematográfica. Pensei também numa viagem que fiz a Nova Iorque, em 1996: fui de propósito ao Michael's Pub, onde ele costumava actuar com o seu clarinete uma vez por semana. Mas daquela vez não estava lá.
Valeu a pena esperar. Tal como vale a pena esperar pelo novo filme dele, que já teve antestreia no Festival de Veneza e será exibido em Portugal a partir do próximo mês: Golpe de Sorte. O 50.º filme do mestre Woody - e o primeiro falado em francês. Por ele estar impedido de trabalhar no seu país natal, na sua cidade natal que exibiu com tanto orgulho e tanto carinho ao mundo. O último que lá rodou, em 2017, foi Um Dia de Chuva em Nova Iorque, que esteve cerca de dois anos sem exibidor norte-americano, acabando por estrear-se na Europa.
Porquê? Porque o autor de Annie Hall continua perseguido por "crimes" supostamente cometidos há 30 anos e desenterrados pelo fanatismo mais rasteiro do movimento #MeToo - nova caça às bruxas, autêntico maccartismo sexual que arruína vidas e carreiras (aconteceu o mesmo com Kevin Spacey). "Crimes" que Allen sempre negou categoricamente.
Foi tudo investigado com minúcia por peritos policiais, procuradores, psicólogos e jornalistas: o cineasta nem chegou a ser incriminado - muito menos acusado, muito menos condenado.
«Todas as provas me apoiam, todas as investigações me ilibaram», declarou. É uma evidência.
Mesmo assim nunca faltam enxames de gente histérica a recebê-lo com urros desvairados, vá ele para onde for, condenando-o à morte civil. Aconteceu no início do mês, em Veneza. Voltou a acontecer ontem, no exterior do Campo Pequeno: alguns imbecis - certamente com alma imaculada mas nula razão jurídica e factual - exibiram uma tarja a chamar-lhe «pedófilo». A presunção de inocência, para esta escumalha, não existe. E o Estado de Direito também não.
Felizmente quase ninguém lhes ligou. Lá dentro, onde ele actuava, escutou o que merece: ovações vibrantes, calorosas, agradecidas.
Trocou-me as voltas em 1996, mas não agora. Tive o privilégio e a honra de também lhe prestar tributo.