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Delito de Opinião

Vinhetas (9)

José Meireles Graça, 12.08.24

Olimpíadas no Ave

Sair à francesa toda a gente sabe o que é. Por estes dias também ficamos a saber o que é organizar à francesa. Les bleus têm dado grandes barrigadas de riso, e interessantes polémicas, aos espectadores de todo o mundo, com atletas que talvez sejam homens, ou nem por isso, a competir com mulheres, outros que suam as estopinhas porque, em nome da defesa do planeta, não há ar condicionado nas instalações, menus de peixe que incluem minhocas (decerto porque os saborosos animais foram pescados à linha), e infecções gástricas e intestinais para os que, desgraçadamente, praticam desportos que implicam terem de mergulhar nas românticas águas do Sena.

Esta última inconveniência trouxe-me à memória que há muitos anos um amigo desportista falava incansavelmente de descidas de rios em canoa. Aquilo era uma excitação, sobretudo se havia correntezas fortes e quedas de água. E como tais proezas não atraíam por demais os adolescentes mais virados para desportos motorizados, bilhares e cartas, que nós éramos, combinamos com entusiasmo uma descida do Ave – alguém alvitrou que da Trofa até à foz em Vila do Conde era um remanso mais adequado a gente naturalmente prudente.

Lá fomos. Eu levava um barquito insuflável que me havia dado grandes alegrias na praia, em formato de rectângulo com os dois lados mais pequenos arredondados, outro uma longa canoa insuflável, outros ainda vários tipos de embarcações experimentadas em ondas de beira-mar, o amigo atleta uma canoa de fibra e o respectivo remo adequados para o efeito. A toilette consistia em fatos de mergulho, um ou dois de propriedade própria e a maioria emprestados.

Começaram aqui os problemas porque vestir um fato daqueles, para quem nunca o fez, é um empreendimento de considerável dificuldade, além do mais porque havia quem, por se imaginar mais magro, não o conseguisse fechar inteiramente, ou a quem o fato sobrasse por faltarem as rotundidades que o retesassem.

Tudo a postos, uma desagradável contrariedade assinalou o começo. Foi o caso que um particularmente desastrado (viria a morrer cedo, mas com tempo para se transformar num brilhante advogado) conseguiu, na tal canoa insuflável, soltar-lhe a válvula com o dedão do pé, de tal modo que a embarcação, a dois metros da margem, começou a dobrar-se e afundar pelo meio, enquanto os dois tripulantes praguejavam remando furiosamente, a água já pela cintura. Como não houvesse nenhuma bomba de insuflar, porque ninguém trouxe, fomos arregimentados para soprar à vez, tudo acompanhado de uma chuva de palavrões em uso na região, susceptíveis de fazer corar a dra. Ana Gomes.

Aí fomos rio abaixo, até à primeira levada, o atleta liderando o comboio, que aliás se ia espraiando e perdendo o alinhamento. O meu barco embarrou numa qualquer pedra mesmo no ponto em que havia a parede que as águas venciam para se precipitarem um metro abaixo, e as manobras para ultrapassar o obstáculo levaram a que o fundo começasse a descolar pela frente.

Não fazia mal, pensei, isto funciona na mesma, o que garante a flutuação é o aro cheio de ar, não o fundo. Mas como entrasse água e a progressão se tornasse demasiado lenta concluí que o melhor era, com os pés, forçar o resto do fundo a descolar de vez, operação coroada de sucesso – suponho que aquele fundo de barco ainda esteja poluindo águas ignotas porque o plástico, dizem os entendidos, leva mais de 200 anos a decompor-se.

Rapidamente descobri, porém, que sem fundo era praticamente impossível impedir que o aro, qualquer que fosse a parte dele em que me colocasse, levantasse do outro lado ao menor movimento, despejando o passageiro na água. Nada de dramático, excepto pelo facto de naquele ponto aquela ter à superfície uma espuma suspeita, um cheiro nauseabundo e o que me pareceu ser uma raposa afogada (vim a ser informado, por quem lá passou com menos aflição, que era um cão). Repetida a operação duas ou três vezes nadei para a margem empurrando o estorvo, com a perspectiva de o carregar pelos campos até à próxima praia fluvial, aí uns 3 km do ponto de partida inicial.

Lá esperavam algumas namoradas, que conduziam os carros e ali parariam para nos ver passar e dizer adeus. Estavam na companhia do líder da expedição e dois outros aventureiros, todos há muito esperando. E pudemos assistir à chegada dos dois outros desportistas em falta, também a pé porque o bote que os carregava havia igualmente perdido a sua navegabilidade, ainda antes do meu, não sei por que bulas.

Após breve conferência, o passeio morreu ali e combinamos um jantar retemperador.

É por isso que daqui vai o meu silencioso aplauso não para medalhados, nem sequer para os que recebem diplomas, mas para os intrépidos que fazem desporto, mesmo que sem experiência, nem jeito, nem equipamento.

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