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Delito de Opinião

Vinhetas (12)

José Meireles Graça, 15.08.24

Revolução

Da população actual, pouco mais de 6% tinha 18 anos ou mais em 1975, o ano em que se acentuou a derrapagem para um regime comunista. Foi evitado pelo 25 de Novembro do mesmo ano e é razoável dizer que as eleições de 1976, que esmagaram a esquerda à esquerda do PS (o PCP não foi além de 15%, a UDP, hoje integrada no Bloco, e os restantes grupúsculos mais ou menos dementes, 5%), não teriam tido lugar ou teriam mas sem partidos “reaccionários, fascistas, ao serviço do imperialismo americano”, no palavreado então moeda corrente.

É por isso que é bizarra a recente polémica em torno do 25 de Novembro, sobre uma data que evidentemente merece comemoração, que só não existiu com a dignidade devida porque o PS traiu o seu papel naquela época, que quer esquecer porque não lhe dá jeito para os arranjos actuais e futuros. A isso eu chamo oportunismo, para não usar palavra mais severa e rigorosa.

As gerações mais recentes, que nasceram e viveram em democracia, têm daqueles tempos uma visão romântica, soprada pela maior parte da Academia e a quase totalidade da comunicação social.

Porém, ainda vivos há muitos emigrantes forçados, presos políticos (isto é, por delito de opinião), espoliados, saneados e j’en passe. Mas também não há falta, na comoção geral da época, de pequenos e anónimos resistentes que não compraram o ar do tempo e não acreditavam nas trombetas da comunicação social nem nos atropelos ao Estado de Direito a benefício de risonhas sociedades futuras. Uma pequena (em todos os sentidos) história:

Na câmara municipal fez-se uma comissão de trabalhadores porque um local de trabalho sem semelhante associação não era concebível. Nesta havia um representante de cada departamento e a secretaria elegeu um moço muito moço, suspeito por ser desassombrado e claramente reaccionário: não defendia saneamentos sem processos disciplinares com todas as garantias de defesa, não achava que a Comissão Administrativa tivesse de atender às recomendações da de Trabalhadores em questões que nada tinham a ver com condições de trabalho, não entendia que o Código Administrativo e restantes leis fosse ignorado e via mal que a hierarquia fosse subvertida a benefício de broncos eleitos sumariamente.

Elegeu-se o presidente e, como o moço lesse e escrevesse com desembaraço,  ficou como secretário. Erro fatal: que, logo na primeira reunião, fez uma proposta para um voto de censura a dois elementos da Comissão Administrativa Municipal que, numa deslocação a Lisboa, tinham apresentado uma conta de uma refeição opípara que incluía vários quilos de marisco. A proposta foi derrotada mas o secretário, com grande fidelidade à sua função, transcreveu-a na acta e afixou-a no átrio.

No dia seguinte havia um pequeno ajuntamento a ler o importante papel: uma barrigada de riso nuns, uma virtuosa indignação noutros.

Isto não engraçou o atrevido junto daquele prestigioso órgão de topo do Município, e talvez por isso o respectivo presidente tivesse intimado o recalcitrante a entregar a chave da porta principal, que utilizava desde a administração anterior por ter o hábito anómalo de trabalhar a desoras. Por “falta de confiança”, disse com solenidade o advogado que desempenhava aquelas funções, para elas nomeado por ter sólidas credenciais de esquerda.

Um tempo passado o rapaz, que trabalhava na Contabilidade, foi increpado por um “camarada” trabalhador sobre por que motivo não havia ainda sido processado não sei que pagamento. E respondeu que não fosse aquele “bando de gatunos” lhe ter subtraído a tal chave e o assunto já estaria resolvido.

O que foi dizer. Que dali o ansioso disparou para um vereador, denunciando a séria acusação.

A Comissão reuniu e deliberou que o caso era grave, justificando um processo disciplinar.

Não havia testemunhas e portanto o vereador nomeado para liderar as investigações, antecipando um diz-que-disse espinhoso, começou, acolitado por dois colegas e um escrivão, por chamar o alegado criminoso, em diligência rodeada da maior solenidade.

Não teria valido a pena. Porque o indiciado confirmou serenamente que sim senhor, tinha dito que a Comissão Administrativa Municipal era um bando de gatunos, era-o efectivamente, não tinha nada a corrigir e se nisso vissem ofensa conviria irem consultar um dicionário e ver o significado das palavras: bando era um grupo de pessoas com um fim comum e gatunos por serem ladrões da sua dignidade porque sem razão lhe tinham retirado a chave, além de outras ofensas gratuitas. Isto e outros perépépés, perante o silêncio abananado dos ilustres, apenas perturbado pelo matraquear da máquina do escrivão.

Veio a sentença: suspensão do vencimento de exercício (isto é, 1/6 do vencimento sem dispensa de trabalho) por 30 dias. O inconformado foi expulso da Comissão de Trabalhadores e num plenário futuro, lugar de celebrações revolucionárias, reagindo ao começo do discurso do presidente que se dirigia à assembleia por “meus amigos”, pediu a palavra para esclarecer que não era amigo dele, nem de nenhum dos membros da mesa.

Barafunda total. Sob uma chuva de impropérios, alguns trabalhadores rodearam-no e um deles, um motorista, disse-lhe à boca pequena: não se aflija sr. Fulano que não lhe acontece mal nenhum (entreabrindo o casaco e mostrando uma corrente de bicicleta).

Pena muito leve, é certo. Parece que levaram em linha de conta não ter o insolente outros meios de subsistência senão o trabalho, por ser desde há poucos anos órfão de pai.

De modo que revolução houve, tendo havido muitos que não tiveram, nas agruras que passaram, nem leniência nem aspectos cómicos. Alguns sim. Deve ter sido por causa daquela coisa dos brandos costumes.

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