Viagem até Bissau - 1
A partida
Comecei a escrever este texto, sobre uma viagem que fiz com um grupo de amigos entre Abril e Maio de 2013 à Guiné Bissau, para meu arquivo pessoal e memória futura. Só mais tarde decidi dividi-lo em vários postais, que aqui passo a publicar.
É habitual dizer-se que a preparação de uma viagem é uma viagem em si mesmo. Realizá-la é já a sua segunda versão e notei agora que escrever sobre ela é como acrescentar-lhe uma terceira camada. Gostei de o fazer.
A coisa vestiu-se, desde o início, de missão humanitária. Acondicionados dentro dessa embalagem, conseguimos combinar a descoberta da Guiné-Bissau – um país a que estamos e estaremos sempre ligados – com a vontade de partilhar, contribuindo na ajuda que ali é prestada por voluntários, apenas motivados pelo que de melhor o ser humano pode ter, e que é a generosidade para com desconhecidos.
Alguém do grupo conhecia alguém, que por sua vez conhecia outra pessoa ligada à Casa do Oeste - Fundação João XXIII sediada em Ribamar e que se dedica, entre outras coisas, a ajudar guineenses e que mantém uma presença contínua no país. Seguindo essa cadeia de dominó, acabámos por contactar a Fundação, onde fomos recebidos de braços abertos. Além de nos disponibilizarmos para transportar livros e alguns materiais escolares, contribuiríamos na forma da oferta dos nossos veículos a quem a Fundação entendesse serem úteis. Depois de uma ou duas reuniões e algumas horas de conversa, durante as quais recebemos uma enxurrada de detalhes operacionais para a viagem, começámos a preparar os carros e marcámos uma data.
Quase sem darmos por isso à volta de uma ideia surgida numa mesa de café, entre uma bica e uma imperial, tinha-se reunido um grupo de dezasseis pessoas que se distribuíram por sete viaturas. Os carros já tinham alguns anos e foram escolhidos pela sua fiabilidade, usando o critério de “quanto mais analógico melhor”. O material escolar que reunimos foi doado pelos alunos da creche e da escola primária da nossa freguesia. No dia da partida, as aulas foram interrompidas para que todos pudessem tirar uma foto com a expedição que partia e que ia levar cadernos, lápis e livros em língua portuguesa para tão longe. Foi uma festa. O primeiro momento mágico de muitos que se seguiriam.
Foto Nuno Rebocho
Uma road trip só se torna real depois da partida. Antes do último preparativo, da última verificação da lista que foi crescendo durante semanas, até que se feche a porta de casa, e depois a do carro, tudo não passa de um projecto, de uma ideia. Mas de repente, após todos esses momentos, só importa o que irá acontecer ao longo daquela faixa, mais ou menos escura, mais ou menos recta, mais ou menos regular. Uma road trip numa caravana de sete carros exige a cada condutor uma atenção especial. As normas dentro do colectivo obedecem a uma lógica que visa manter o grupo coeso e em segurança. Ninguém pode ficar para trás e por isso o andamento de cada carro nunca pode levar a que se perca o contacto visual com o carro anterior. Se cada condutor apenas se preocupar em não perder de vista o que vai à sua frente, à menor contrariedade o grupo dispersa-se e isso equivale, no mínimo, a um desperdício de tempo. Por isso, a regra principal é muito simples, nunca perder o carro de trás de vista.
Foto Nuno Rebocho
Uma parte significativa das dezasseis pessoas da caravana não eram mais do que recém-conhecidos, tendo estado juntos apenas num piquenique uma semana antes do grande dia, a que chamamos “a falsa partida”. O espírito de equipa formou-se rápida e naturalmente. Dia após dia, quilómetro após quilómetro, fronteira após fronteira, todos nos sentimos cada vez mais próximos.
Este não é um tipo de viagem que se possa descrever como férias, pois exige uma entrega permanente, em que não se podem regatear energias nem atenção. A cada instante é necessário avaliar o que nos rodeia, sem nunca esquecer que temos de saborear e viver cada momento. Tudo pode mudar de repente. Um buraco, um parafuso, uma fronteira, ou apenas a picadela de um mosquito. Qualquer uma destas coisas juntas ou mesmo isoladamente pode mudar radicalmente o rumo da viagem. Essa possibilidade é o que de mais metafórico com a vida, uma road trip deste tipo pode ter.
Na primeira noite dormimos num parque de campismo em Tarifa, de onde saímos quando ainda estava escuro, para apanhar o primeiro ferry para Tânger. A noite seguinte já foi passada em Marraquexe, que exige sempre uma passagem nocturna pela única e inigualável praça dos mortos, Djamena el Fna. Quem conhece este rectângulo sabe bem do que falo.
Foto Nuno Rebocho
Marrocos é todo um programa, que alguns de nós já conheciam. As paisagens, especialmente as que ficam longe do alcatrão, são de encher as medidas, e por isso foi com pena que vimos o Atlas a ficar para trás sem que lhe prestássemos a devida atenção.
Foto Paulo Sousa