Viagem ao Egipto (3).
Depois do Cairo Islâmico, convém conhecer o Cairo cristão, entrando no bairro copta. Dez por cento da população do Egipto é cristã, tendo o cristianismo aqui sido difundido pela primeira vez pelo evangelista São Marcos, mas o país tem uma igreja nacional, a Ortodoxa Copta, que não deve obediência a qualquer outra Igreja, possuindo por isso um sínodo de bispos próprio, liderado pelo seu primaz, o Papa Tawadros II de Alexandria. O Egipto tem-se caracterizado por uma convivência pacífica entre religiões, pelo que causou estupefacção no país o atentado do passado dia 11 de Dezembro contra a Igreja de São Pedro e São Paulo no Cairo, que causou 25 mortos.
Não visitei essa Igreja, uma vez que no bairro copta existe uma Igreja bastante mais interessante, a Igreja de São Sérgio e São Baco, dedicada a estes dois antigos oficiais do imperador romano Galério que foram martirizados no início do Séc. IV por se terem convertido ao cristianismo, recusando-se por isso a fazer oferendas a Júpiter. Construída no final desse século, a Igreja adquire, no entanto, relevo especial por se acreditar que foi construída sobre a cripta onde a Sagrada Família se refugiou após a fuga para o Egipto, para escapar ao massacre dos inocentes decretado por Herodes. A cripta é por isso objecto de peregrinação e muito visitada, exibindo a Igreja ainda vários manuscritos do início da era cristã, escritos em alfabeto copta, muito semelhante ao grego. Lamentavelmente não é possível tirar fotografias do seu interior.
O episódio da fuga da Sagrada Família para o Egipto é dos mais controversos dos evangelhos, aparecendo apenas em Mateus 2, 13-18: "Depois de partirem, o anjo do Senhor apareceu em sonhos a José e disse-lhe: «Levanta-te, toma o menino e sua mãe, foge para o Egipto e fica lá até que eu te avise, pois Herodes procurará o menino para o matar.» E ele levantou-se de noite, tomou o menino e sua mãe e partiu para o Egipto, permanecendo ali até à morte de Herodes. Assim se cumpriu o que o Senhor anunciou pelo profeta: «Do Egipto chamei o meu filho» [Oseias, 11,1]. Então Herodes, ao ver que tinha sido enganado pelos magos, ficou muito irado e mandou matar todos os meninos de Belém e de todo o seu território, da idade de dois anos para baixo, conforme o tempo que, diligentemente, tinha inquirido dos magos. Cumpriu-se, então, o que o profeta Jeremias dissera: «Ouviu-se uma voz em Ramá, uma lamentação e um grande pranto: É Raquel que chora os seus filhos e não quer ser consolada, porque já não existem» [Jeremias, 31,15]”
Apesar da beleza e do dramatismo deste texto, a sua historicidade tem sido muito questionada. Existindo imensos registos históricos sobre Herodes, nenhum menciona o massacre dos inocentes, sendo que um infanticídio dessa dimensão dificilmente poderia passar sem referência. E o episódio também não se encontra descrito em mais nenhum dos evangelhos, sabendo-se que os três evangelhos sinópticos partem de uma única fonte, o manuscrito Q, pelo que, se esse episódio lá constasse, seria de esperar que aparecesse nalgum dos outros evangelhos. Para além disso, o percurso de Belém para o Egipto (e o subsequente regresso a Nazaré) tem uma extensão de mais de 500 km através do deserto, muito difícil de fazer com um recém-nascido.
Em qualquer caso, e apesar do cepticismo acima descrito, é impossível não sentir dentro desta Igreja, ao olhar para a cripta, um sentimento de profunda espiritualidade, ao se imaginar a Sagrada Família ali recolhida, colocando o menino a salvo dos assassinos. E é especialmente simbólico nestes tempos conturbados, onde tantos refugiados procuram igualmente colocar os seus filhos a salvo das perseguições.