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Delito de Opinião

Vestidos de noite, saltos altos, quedas e rasteiras - mas ninguém é perfeito

José António Abreu, 22.03.14

A cerimónia dos Óscares já foi há quase três semanas mas gostava de voltar às quedas de Jennifer Lawrence (para distraídos: uma no ano passado, quando subia ao palco para receber o prémio, outra este ano, ao sair do carro no exterior do edifício). Claramente, a rapariga não sabe conjugar vestidos de noite com sapatos de salto alto mas isso só a torna (ainda) mais simpática aos meus olhos. Numa classificação tão aleatória como estas classificações tendem a ser, para mim há três tipos de actrizes em Hollywood: as que assumem a imagem de estrelas e planam ligeiramente acima de todos os restantes mortais, incluindo os colegas de profissão (Charlize Theron e Angelina Jolie são os exemplos possíveis, nesta época tão afastada do star system de há seis ou sete décadas); as que se definem pelo trabalho e, até mesmo quando enfiadas em vestidos de gala, permanecem ligadas à Terra (Julia Roberts, Meryl Streep, Amy Adams, Jessica Chastain); as que gostariam de atingir uma das duas primeiras categorias mas enfrentam dificuldades em escapar de um nível onde são encaradas com alguma condescendência (Jennifer Anniston, Reese Witherspoon - não obstante Walk the Line -, Jessica Biel, Kristen Stewart). Jennifer Lawrence, claro, é um caso típico do segundo grupo, apesar de muita gente andar a tentar metê-la no primeiro (demasiado nova; dêem-lhe pelo menos dez ou quinze anos para perder espontaneidade e aprender a equilibrar-se nos saltos altos). As suas quedas funcionam como aqueles detalhes que os grandes actores acrescentam aos papéis. Algo que, parecendo acessório, acaba por fazer a diferença na forma como os recordamos. Em parte devido às quedas, Lawrence já é das pessoas mais memoráveis da cerimónia.

 

Mas não comecei a escrever isto apenas por causa de Jennifer Lawrence. Fi-lo também por sentir que a cerimónia dos Óscares necessita de mais quedas e, em particular, de quedas com mais significado. Quedas que desfaçam as poses politicamente correctas. Como (quase) sucedeu na cerimónia de 1945. Double Indemnity, de Billy Wilder, era candidato a sete Óscares. O filme merecia-os, sendo uma obra-prima do film noir cujo argumento (adaptando um livro de James M. Cain) saíra de uma colaboração particularmente tempestuosa entre Wilder e um tal Raymond Chandler (a experiência foi tão traumatizante para Wilder que, segundo se diz, o alcoólico interpretado por Ray Milland que protagonizava The Lost Weekend, o seu filme seguinte, era inspirado em Chandler*). Apesar das qualidades de Double Indemnity, os Óscares foram sendo entregues a Going My Way, um musical de Leo McCarey com Bing Crosby. Quando McCarey se dirigiu para o palco para receber o Óscar de melhor realizador, Wilder não aguentou mais: estendeu o pé e passou-lhe uma rasteira. Infelizmente para a lógica deste post (daí o «quase» entre parêntesis um pouco mais acima), McCarey, que não estaria a usar vestido de noite nem sapatos de salto alto, conseguiu evitar cair. O acto de Wilder pode - justamente - ser considerado imaturo e pouco educado, mas, para mim, tratou-se de uma refrescante (porque sincera e inesperada) manifestação de frustração e sentimento de injustiça. Admitamos: sentados nos nossos respectivos sofás defronte dos nossos respectivos televisores, procuramos tanto verificar a alegria dos vitoriosos como detectar indícios de frustração nos derrotados. Por norma, estes afivelam um sorriso e batem palmas, numa intensidade que varia entre as exigências mínimas da boa educação e o entusiasmo tão pouco credível que, no caso de actores e actrizes, fica mais do que justificada a não atribuição do Óscar. No meio de todo este fingimento, tenho pena de não existirem mais Billy Wilders. De não ver Scorsese resmungar entredentes «Damn, not again», Cuarón estranhar os saltos em palco de McQueen («Que pása? El mejor director soy yo, verdad?») ou DiCaprio murmurar «Fuck, I knew I should have lost weight». Na cerimónia de 2014, o mais perto que estivemos disto foi o aplauso relutante de Bruce Dern, sentindo não apenas a perda do prémio deste ano mas o peso de todos os papéis que Hollywood lhe recusou ao longo de décadas. Muito pouco. Em 1945, depois de rasteirar McCarey, saindo de mãos a abanar (Double Indemnity não venceu qualquer Óscar), Wilder ainda fez questão de proclamar, enquanto esperava pelo automóvel: «O que diabo significa um Prémio da Academia, por amor de Deus? Afinal, Luise Rainer** ganhou-o duas vezes. Duas vezes!» Tinha razão e basta analisar a lista de premiados - nem sequer é necessário ir à parte da melhor canção - para verificar que ainda tem. Seja como for, não consta que, em 1946, 1950 ou 1960, tenha recusado qualquer dos Óscares que a Academia lhe deu por, respectivamente, The Lost Weekend, Sunset Boulevard e The Apartment. Nem que alguém tenha procurado fazê-lo cair quando se dirigia para o palco. É pena, no entanto. Wilder merecia o gesto - e, como o seu epitáfio, aproveitando a imortal última frase de Some Like It Hot, sugere, provavelmente tê-lo-ia compreendido.

* Que, ainda assim, ganhou um cameo pouco conhecido em Double Indemnity.

** Actriz de ascendência alemã premiada em 1936 e 1937.

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