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Delito de Opinião

Vasco Pulido Valente e a Covid

José Meireles Graça, 23.02.21

Passou-me isto. Tenho desculpa, que agora que as neves nas minhas fontes se acumulam, como ao conselheiro Acácio, o tempo passa muito depressa.

Se perguntado, diria que foi aí há uns quatro ou cinco meses que VPV morreu. Mas não. E se houve época, desde há muitos anos, em que faz falta a sua maneira única de ver o mundo e nós nele, é esta – morreu pouco antes de um vento de loucura começar a soprar, no ano que passou.

A loucura consiste nisto:

Há uma pandemia benigna, excepto para os muito velhos, originada segundo tudo leva a crer na China. Os internamentos levam semanas e podem exigir tratamento em unidades especializadas, com o risco de entrarem em ruptura. O contágio pode dar-se, parece, também por infectados que não sabem que o estão por não terem sintomas.

Mas: O vírus requer condições para se transmitir, e um bom texto sobre que condições são essas, com base nos conhecimentos actuais, e as políticas públicas a seguir para manter a doença dentro de limites aceitáveis (isto é, sem que ninguém morra por falta de assistência), poupando os danos demenciais que têm sido infligidos à economia, é por exemplo este.

Não faltam cientistas com as mais diversas formações (a maior parte das quais, aliás, irrelevantes para abarcar na sua totalidade o fenómeno na sua dimensão patogénica), a ignorar quase sempre as consequências, inclusive de saúde pública, da sua fixação mórbida na Covid, soprando portanto insensatamente as brasas do pânico; e muitos outros com a mesma categoria académica e prática a tentar parar o estouro da boiada. Mas os primeiros ocupam a quase totalidade do espaço mediático, aqui e em toda a parte. E isto levou a que o poder político fizesse, e continue a fazer, tudo e o seu contrário para sossegar o eleitorado, confiante em que isso lhe reforça a popularidade; e que, quando a pesada factura do desemprego, da pobreza, da miséria, das falências, das mortes por outras patologias não tratadas (que vão de metade a mais do que as mortes por Covid, dependendo de quem faz os cálculos), até mesmo dos suicídios e danos na formação de crianças e jovens, chegar, a desculpa da necessidade das medidas para combater um mal maior fará esquecer a irresponsabilidade de quem tomou uma litania de decisões nefastas.

Entre nós, há quem sustente há muito uma guerra sem quartel à maluqueira instalada, e com bons argumentos. Mas como o medo se generalizou, e vários mandarins da opinião o cavalgam com larga audiência; como os danos ao tecido económico ainda não afectam a maior parte da população, que vive à sombra do Estado ou de empresas que este ajuda quando põem os trabalhadores em casa, como se toda a dívida daí resultante não fosse para pagar; como os vencidos são para já os mais mal pagos, por estarem em sectores mais duramente atingidos: as medidas, por irracionais que sejam, têm apoio maioritário.

Chega de Covid, excepto para lembrar o seguinte: Anteontem, a notícia era que os EUA tinham ultrapassado os 500.000 mortos, credo. Pois tinham: 0,154% da população, menos que a Bélgica, o recordista (0,188%), o Reino Unido (0,177%), a Itália (0,159%) e… Portugal (0,157%). Mas 500.000 é um número redondo, bom para atirar para a fogueira das descontextualizações, antes do anúncio dos detergentes.

Voltando ao princípio: Que diria Vasco Pulido Valente de tudo isto? Não era pessoa para emprenhar pelos ouvidos, mas era dono de uma memória prodigiosa e um leitor voraz – ao ponto de, anos a fio, ler aí umas 5 ou 6 horas por dia. Clássicos da literatura e da história, além de ensaios, revistas e jornais, tanto portugueses como ingleses, autores contemporâneos, pesquisa… Disto me pude aperceber nos anos, infelizmente poucos, em que pude conhecê-lo e ao seu feitio condescendente e bem-educado à moda antiga, sem  vestígio do sarcasmo corrosivo com que toda a vida cobriu os podres e insuficiências do país e dos seus contemporâneos de relevo e que, no trato, reservava apenas para idiotas.

A viúva, minha amiga desde 2011, que me perdoe este exercício, em boa parte abusivo, de querer associar a minha insignificância ao merecido prestígio de quem já cá não está, pondo-lhe na cabeça ideias que talvez não viesse a ter.

É que duvido que lhe escapasse a imensidão de testemunhos e opiniões cépticas sobre o bem-fundado da maré confinamentista e do seu corolário de medidas avulsas, mais irracionais umas do que outras. E imagino que com a sua intuição, de que não deixou herdeiros, fundada numa vasta cultura histórica, não deixaria de encontrar paralelismos e contrastes com outras epidemias, outras loucuras colectivas e outros desenlaces dramáticos.

Disse eu, no dia em que morreu, que não iríamos pensar melhor. Pois não, mas temos de tentar. E se não podemos ter a mesma cultura, e ainda menos a mesma lucidez, ao menos alguns de nós não hesitam em afastar-se do cortejo maria-vai-com-as-outras. Ele nunca hesitou.

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