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Delito de Opinião

Príncipe, a outra ilha

Ana CB, 21.04.25

Chamar caminhos de cabras aos trilhos que dão acesso às melhores praias da ilha do Príncipe é ser simpática. Até a sport wagon com pneus tamanho XL conduzida pelo Vado, um dos guias mais experientes da ilha, tem dificuldade em percorrer os poucos quilómetros de piso meio lamacento, cheio de buracos e com pedras gigantes a despontarem do solo que leva à praia Boi. Curto em distância mas longo em minutos, o percurso mói os ossos e os músculos, chocalhados sem piedade e ininterruptamente até ao final, e só o facto de ser feito dentro de uma floresta magnífica mitiga um pouco o incómodo: os olhos vão entretidos a admirar árvores desconhecidas, tão altas que apenas deixam passar uns ténues raios de sol. Isso e a praia no final do caminho. Areia fina e clara debruada a palmeiras, deserta; mar tranquilo em dégradé de azuis; sol brilhante, água morna. Perfeita!

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Tal como para as suas praias, o mote para a ilha do Príncipe podia ser este: não é fácil lá chegar, mas vale muito a pena. É preciso estar no Aeroporto de São Tomé tão cedo como se fôssemos para uma viagem internacional, não é possível levar mais do que 15 kg de bagagem de porão, e a viagem total de 40 minutos (dos quais apenas 25 em voo) é feita numa avioneta que só leva 19 passageiros, com pouco espaço, pouco insonorizada e pouco fresca. Ainda assim, a procura é tanta que actualmente estão a ser feitos três voos diários, operados pela companhia portuguesa Sevenair, e vão sempre cheios.

À chegada, meras dezenas de metros nos separam do pequeno edifício do aeródromo, pintado de amarelo-vivo. Depois aguardamos a chegada das malas numa saleta com porta aberta para o exterior, a fazer lembrar as salas de espera de antigamente das estações de comboio. Contrariando o frenesim da cidade de São Tomé que deixámos pouco antes, há uma atmosfera geral de tranquilidade, e até os ruídos do exterior soam abafados. Estranha-se esta calma, que contudo não é surpreendente se pensarmos que a ilha tem pouco mais de 9 mil habitantes (em contraste com os 80 mil da capital do país).

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Lá fora, uma mão cheia de guias aguarda a nossa saída, cada um com o nome do seu cliente escrito numa folha branca. Os turistas que chegam desta vez são poucos, a maioria dos passageiros são gente da terra. Sorridente, o Vado dá-nos as boas vindas e leva-nos ao carro. A estrada até Santo António, capital do Príncipe, é asfaltada e está em bom estado, e em coisa de 10 minutos estamos no restaurante da Residencial Mira Rio para matar a fome em frente a uma omelete – um lanche reforçado para substituir o almoço que estava em falta por causa da viagem de avião. Fazendo jus ao nome, o restaurante tem varanda e vista sobre o rio Papagaio, que nasce no pico homónimo, um dos mais altos da ilha.

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A cidade

 

Santo António é cidade com dimensão de vila e ambiente de aldeia. Fundada em inícios do século XVI, chegou a ser capital da colónia portuguesa de São Tomé e Príncipe, entre 1753 e 1852, antes de a cana-de-açúcar como produção principal ter sido substituída pela de cacau e café. Com ruas arejadas e rectilíneas na área junto à baía, onde ainda se mantêm de pé vários edifícios da época colonial, em diversos estados de conservação, o casario vai-se tornando mais miúdo e irregular à medida que seguimos para sul. Nas casas baixas de cores pastel, a alvenaria alterna com a madeira e a chapa ondulada, e quando deixamos o centro da cidade os passeios são aos poucos substituídos por meras bermas, que a vegetação tenta engolir. Há palmeiras gigantescas e muitas outras árvores e arbustos, a darem uma impressão visual de frescura mesmo quando o mercúrio sobe nos termómetros. Não há qualquer sintoma de aridez nesta ilha e a água nunca falta. Além disso, garante o Vado, toda a água da cidade é tratada e potável, pode por isso ser bebida directamente da torneira. Ainda assim, cingimo-nos à água engarrafada – vale mais prevenir, que o nosso sistema digestivo europeu já se sente sobrecarregado quanto baste pelos temperos generosos da comida local.

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Se a água não falta, o mesmo não se pode dizer do combustível. Além de ter subido a níveis estratosféricos nas últimas semanas (aqui também se sentem as consequências da guerra na Ucrânia), todo o combustível vem de São Tomé por barco, em fornecimentos irregulares que por vezes deixam a ilha do Príncipe à míngua de gasolina, gasóleo e petróleo. As gasolineiras estão vazias, e para honrar o seu compromisso connosco o Vado terá de pedir combustível a um amigo – pagando-o acima do preço habitualmente cobrado nas bombas de gasolina. No Príncipe como em São Tomé, todas as oportunidades são boas para fazer negócio.

 

Não se pode dizer que Santo António tenha uma arquitectura extraordinária. Nota-se, isso sim, alguma preocupação em manter a cidade limpa (até há caixotes destinados à separação de lixos para reciclagem) e cuidada. Olhando para algumas casas, com varandas em ferro forjado, cornijas sobre as janelas e beirais nos telhados, podemos até pensar que estamos em Portugal. No centro da cidade há meia dúzia de edifícios que se destacam, seja pelo aspecto recente, como o edifício do BISTP (o principal Banco do país); pela cor, como a casa colonial que abriga a capitania, pintada de azul céu e com um friso de bóias e âncoras, ou o edifício que ostenta o emblema do Sporting Clube de Portugal, sem vidros nem finalidade aparente, mas primorosamente pintado de verde e branco; ou pela beleza dos seus elementos decorativos, como a casa oficial da presidência, e que é sem dúvida o edifício mais bonito de todos: exterior em ripas de madeira pintadas de cinza-claro, um alpendre em toda a volta, friso de metal trabalhado a rematar o telhado, e com uma magnífica palmeira-do-viajante plantada num dos vértices, a fazer as vezes de sentinela.

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Blogue da semana

Ana CB, 20.04.25

Em 1921, como parte de uma campanha publicitária para promover a utilização de imagens em anúncios, o jornalista norte-americano Fred R. Barnard usou a frase “Uma imagem vale mais do que mil palavras”.

O slogan pegou e continua a ser usado até hoje no contexto mais abrangente da fotografia em geral, reflexo de uma verdade universal sobre o poder das imagens na comunicação.

Não negando a premissa que lhe está subjacente, a verdade é que não concordo totalmente com ela. Se há fotografias que não precisam de palavras, e palavras que não precisam de fotografia, há casos em que imagem e palavra se complementam e trabalham em conjunto, sem se atrapalharem mutuamente, para nos darem uma visão do mundo – o que nos rodeia e o que está dentro de nós. Não pensasse eu assim, que razão teria para ter criado um blogue de viagens?

Ainda assim, há dias em que me apetece mais olhar do que ler. E há na blogosfera boas opções para esses dias. O Raw Traveller é um deles – tem palavras, mas ali o que importa mesmo é ver a beleza das imagens.

É a minha escolha para blogue da semana.

O culpado

Ana CB, 21.03.25

Parto do princípio que entre os leitores fiéis deste blogue há quem goste muito de viajar, e não devo andar longe da verdade. E agora eu pergunto: porquê? Porque é que gostam (gostamos) de viajar? Nem toda a gente é como nós. Conheço várias pessoas (até na minha família próxima) que preferem não sair da sua zona de conforto, contentam-se em ver o mundo em fotografias ou na televisão e não têm curiosidade em ir pessoalmente àqueles lugares, por mais maravilhosos que pareçam. Não se trata de terem medo de andar de carro, ou barco ou avião; também não é por não saberem o que é viajar, porque já o fizeram numa ou noutra ocasião, e até nem desgostaram de todo; é simplesmente por falta de vontade, de interesse.

Então porque é que umas pessoas têm o bichinho das viagens e outras não? Será uma questão genética? Terá a ver com a educação? Porque a primeira vez que viajaram foi tão boa que procuram repetir a experiência uma e outra vez? Para colmatar uma carência, uma necessidade?

Bom, lamento dizer-vos que não sei qual é a resposta. Se calhar nem existe uma resposta, provavelmente cada um terá a sua… Mas no meu caso sei, conheço perfeitamente uma das razões pelas quais tenho desde muito nova uma grande paixão por viajar.

Senhoras e senhores, apresento-vos o culpado do meu desassossego:

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Sim, é um livro. Chama-se precisamente “O Grande Livro de Viagens” e foi editado pelas Selecções do Reader’s Digest em 1970.

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Entrou em minha casa pelas mãos do meu pai, a pessoa de quem terei certamente herdado um gene de viajante, se houver alguma influência hereditária no caso (da minha mãe não foi, que ela pertencia mais ao género de viajar no sofá). Eu era miúda, e este livro foi para mim uma revelação.

Antes que comecem a achar que sou um bicho estranho, estou a falar de uma época em que só tínhamos televisão (a preto e branco, claro) durante algumas horas por dia e tudo o que líamos – jornais, revistas, livros – ou víamos em casa ou no cinema era cuidadosamente filtrado e censurado. E obviamente que coisas como vídeos, computadores ou internet não existiam nem nos nossos sonhos. A quantidade de informação que nos chegava era muito reduzida e vinha a conta-gotas, às vezes com grande atraso. Outros tempos.

Não é por isso de admirar (acho eu) que abrir este livro tenha sido para mim um bocado como abrir a caixa de Pandora – mas sem a parte dos males, só a do mundo. Fiquei fascinada pelas fotografias que me mostravam lugares que eu nem sequer imaginava, e à medida que fui lendo os textos mais fascinada ainda fiquei. São cinquenta textos, cada um sobre o seu local ou país, todos escritos por autores diferentes. Textos que vão muito para lá do básico e são verdadeiras histórias de viagens, daquelas que dá gosto ler. É claro que no meu imaginário não sedimentaram todos eles de igual modo – ler sobre o mercado de queijo na Holanda (eu, que detesto queijo…), sobre um casamento marroquino ou sobre os lutadores de Sumo, só para citar alguns exemplos, não despertou em mim qualquer interesse especial. Mas a verdade é que muitos (grande parte) dos lugares que ainda estão na minha lista de desejos, aqueles que eu me lembro de querer visitar desde sempre, se encontram neste livro – e estão nessa lista sobretudo por causa dele.

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Quando há uns anos quis “revisitá-lo”, descobri que na casa dos meus pais terá ido parar a parte incerta, escondido provavelmente atrás ou debaixo de alguns dos muitos livros que eles tinham. Por sorte, consegui descobri-lo (e barato!) num alfarrabista, e agora sou a feliz proprietária de um exemplar. Está meio desbotado, tem as folhas amarelecidas e cheira a mofo, mas ainda está em bastante bom estado. Pode parecer um disparate, mas fiquei felicíssima no dia em que o recebi. “Trauma” de infância, certamente…

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Também é claro que é um livro bastante datado. Muito do que ali está escrito hoje já é diferente, e nos nossos dias qualquer smartphone baratucho tira fotografias melhores do que as que ele tem. Mas esse acaba por ser outro dos seus motivos de interesse, ver como alguns lugares mudaram tanto em cinquenta anos, e outros mudaram tão pouco. Um dos exemplos de maior mudança é precisamente o nosso país. O texto que fala de Portugal, escrito por André Visson e que tem o (óbvio!) título de “Jardim da Europa à beira-mar plantado”, mostra-nos um país de pescadores, varinas e apanhadores de uvas descalços, onde “ninguém terá dúvida de que (…) reina o homem. Nas estradas da província, por exemplo, vêem-se mulheres com toda a espécie de volumes à cabeça (…) enquanto os homens seguem montados em burros, ou as acompanham a pé, com as mãos nos bolsos”. Um país de que já estamos um bocado longe – embora muito do que aqui se diz sobre Portugal e os portugueses continue a ser verdade.

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Passados estes anos todos, ainda só estive em talvez uma dúzia dos locais de que este livro fala. Continuam por cumprir muitos dos meus desejos de viagem, embora já tenha realizado vários outros que surgiram entretanto e foram mais fáceis de concretizar. A alguns deles planeio ir mais ou menos a curto ou médio prazo, outros continuarão mais tempo na lista, e outros ainda surgirão entretanto. Ao contrário dos livros, e sobretudo os de viagens, que são estáticos e congelam os lugares no tempo, nós, as pessoas, estamos sempre a procurar, a descobrir, a aprender, a conhecer novos lugares – e este é, afinal, um dos maiores prazeres da vida.

(Adaptado de um post do blogue Viajar Porque Sim)

Outras formas de turismo: repensar o acto de viajar

Ana CB, 11.02.25

Em 2008, planeei pela primeira vez uma viagem totalmente com recurso à Internet. É certo que nos anos imediatamente anteriores me socorria de uma agência de viagens online (que não era portuguesa). Mas só quando quis ir fazer uma viagem pela Costa Rica e não encontrei nenhum programa de operador turístico que me levasse aonde eu queria e durante o tempo que eu queria é que me decidi a organizar tudo por minha conta e risco. E, com uma pequena excepção, não voltei a viajar de outro modo.

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Olhando para trás, no que toca a viagens, tenho feito um percurso inverso ao que seria mais provável hoje em dia. Quando comecei a viajar com regularidade para fora de Portugal, nos já idos anos 90, não era concebível reservar uma viagem de avião sem ser através de uma agência de viagens. É certo que de carro ou comboio podíamos partir à aventura sem nada marcado, mapa na mão e procurando alojamento nos sítios em que decidíamos parar. Foram várias as viagens que fiz em Espanha e França com pouco mais do que uma vaga ideia de querer ir ver isto ou aquilo. E corriam geralmente bem – uma avaria ocasional que nos atrasava os planos, ter de passar uma noite no carro ou num alojamento menos confortável por não encontrar outro melhor. Nada que me estragasse o prazer de viajar.

Mas se queríamos ir para destinos mais longínquos, e a não ser que tivéssemos todo o tempo do mundo para partir à descoberta e nenhumas responsabilidades a prenderem-nos para voltar, então tínhamos mesmo de recorrer às agências de viagem e conformar-nos com o que elas nos ofereciam. Hoje, numa altura da vida em que já seria compreensível (e talvez expectável) querer sopas e descanso e embarcar em cruzeiros, ou ir para resorts, ou que me fizessem a papinha toda e apresentassem viagens prontas a consumir, estou quase completamente no espectro oposto. Não virei mochileira (embora ande muitas vezes de mochila às costas), mas só vou aonde quero e da forma que quero, fugindo das viagens estereotipadas e, dentro do possível, das épocas mais pressionadas pelo turismo. Não é que não vá, ou não queira ir, àqueles lugares de que toda a gente gosta. Mas não aprecio confusões, e portanto tento evitá-las. Se há tanto para conhecer por esse mundo fora, porque é que havemos de ir todos para o mesmo sítio ao mesmo tempo?

Nos últimos 60 anos, as viagens “democratizaram-se”. O que antes só era acessível para quem ou fosse muito endinheirado, ou tivesse uma alma hippie, hoje em dia é mais ou menos alcançável para uma boa fatia da população mundial. Por um lado, as plataformas online tornaram possível a muita gente, como eu, viajar com mais facilidade; por outro, a maior oferta de alojamentos de vários tipos e de transporte (sobretudo na aviação) fez reduzir os custos das viagens, de um modo geral. As redes sociais encarregaram-se de alimentar e acelerar as vontades (por vezes apenas latentes) de ir mais longe, mais alto, mais fundo – ou simplesmente de ir passar férias num sítio que não o do costume, de preferência num daqueles em que é possível tirar belas fotos sem grande esforço nem sapiência.

Fonte (por vezes principal) de rendimento, emprego e desenvolvimento em muitos países, esta revolução no turismo trouxe também problemas evidentes: os destinos cheios de resorts uniformizados, a proliferação de pacotes de “tudo incluído” e a febre dos locais “instagramáveis” dominam o sector. Para muitos, viajar deixou de ser uma forma de descoberta cultural e pessoal para se tornar num acto performativo, mais voltado para acumular carimbos no passaporte ou quantidades de países visitados do que para viver experiências autênticas.

O turismo de massas tem vindo a exacerbar, a nível mundial, várias questões ambientais e sociais. Do ponto de vista do ambiente, não podemos ignorar a poluição causada pelo transporte aéreo e marítimo, a sobrecarga de ecossistemas frágeis, o desperdício de recursos naturais como água e energia, ou o aumento da produção de resíduos. Socialmente, contribui para a sobrecarga de infra-estruturas em cidades icónicas, a gentrificação de bairros históricos, o aumento do custo de vida para as populações locais, a exploração laboral no sector do turismo e a degradação da autenticidade cultural devido à excessiva comercialização. Além disso, ao comprometer a qualidade de vida em destinos muito procurados, a afluência descontrolada de turistas pode gerar (e tem gerado) tensões com as comunidades locais.

E eu encontro-me agora, com este meu grande apetite por viajar, num dilema: uma vez que faço parte do problema, como posso também fazer parte da solução? Como posso conciliar a minha paixão por conhecer o mundo (enfim, parte dele, pelo menos) com o meu desejo de contribuir o mínimo possível para piorar situações que são já por si insustentáveis? Sei que não sou a única a preocupar-me com estas questões, e não tenho qualquer pejo em defender que está na altura de repensar o que queremos quando viajamos, e qual a melhor maneira de o fazer. Há vida para lá dos formatos padronizados de viagem, e outras formas de turismo que podem ser igualmente (ou ainda mais) recompensadoras.

 

Turismo sustentável: uma responsabilidade colectiva

O turismo sustentável é uma abordagem que visa equilibrar a satisfação dos viajantes com a protecção do meio ambiente e o bem-estar das comunidades locais. O conceito surgiu como resposta primeira e directa aos efeitos negativos do turismo de massas. Através de práticas conscientes, é possível minimizar a pegada ecológica e maximizar o impacto positivo nos destinos visitados.

Por exemplo, optar por transportes menos poluentes, como os comboios, é uma forma de reduzir as emissões de carbono associadas às viagens de avião. A escolha de alojamentos amigos do ambiente, que recorrem a energias renováveis e têm programas de reciclagem, é outra medida concreta. Para além disso, a consciência ambiental deve estender-se ao consumo local: privilegiar mercados, restaurantes e lojas geridos por comunidades locais fortalece as economias locais sem explorar os recursos naturais de forma excessiva. Já falei mais em detalhe sobre esta questão aqui.

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Muitos destinos também estão já a adaptar-se a estes cânones. Exemplos como as Galápagos ou o Butão, que limitam o número de turistas anuais, demonstram que é possível preservar ecossistemas sensíveis ao mesmo tempo que se oferece uma experiência única e com qualidade. Esta limitação e qualidade envolvem custos – o que, por sua vez, dá origem a outro tipo de questões: num mundo que deveria ser cada vez mais democrático e acessível, é justo vedar certos destinos a quem tem menos posses, mesmo que com base em motivos nobres? Nesta como noutras áreas, não é fácil encontrar um equilíbrio.

 

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Bilhete-postal do fim do mundo: Ushuaia

Ana CB, 31.12.24

Foi com um sorriso aberto e um “Hola chicas!” que Ada nos abriu a porta do Los Calafates B&B, que gere com o filho Hernán. A quase 12 mil quilómetros de distância de Portugal e depois de várias horas de viagem desde Buenos Aires – autocarro, avião, táxi – esta recepção calorosa e familiar fez-me sentir como se chegasse a casa. O frio patagónico ficava lá fora e o fim do mundo já não me parecia assim tão distante do nosso rectângulo do outro lado do Atlântico. Intuindo que estaríamos cansadas, Ada não nos maçou com grandes pormenores e deixou para mais tarde os protocolos burocráticos habituais: deu algumas informações básicas e levou-nos de imediato ao nosso quarto. Uma amostra da informalidade e simpatia que iria ser o mote quase generalizado dos dias que passámos em Ushuaia.

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Conquistada pelo estômago e pela simpatia

Na Primavera austral o céu mantém-se claro até tarde, o que ajudou a ajustar o nosso relógio interno para as 4 horas de diferença daquelas longitudes. Se estivéssemos por cá, jantar quase à uma da manhã seria inconcebível para nós. Só que em Ushuaia ainda não eram 10 da noite, e o almoço já era uma vaga recordação. A pizaria Dieguito – uma sugestão da nossa anfitriã – estava à cunha, mas assim que entrámos o dono saudou-nos com uma alegria tal que parecia que nos conhecia há anos. De imediato arranjou uma mesa para as “chicas”, e enquanto nos acomodou bombardeou-nos com as habituais perguntas de quem percebe que está a receber forasteiros de terras longínquas – o que, de resto, em Ushuaia não é difícil, atendendo a que a cidade está distante de tudo, mesmo se só pensarmos na Argentina. Suspeito também que o nosso espanhol mal-amanhado e com sotaque europeu tenha contribuído para essa conclusão…

 

A atmosfera estava tão abafada que tivemos de ficar só de t-shirt – tal como toda a gente, de resto. Tirando o calor quase excessivo, o ambiente podia ser o de uma cervejaria portuguesa sem pretensões. Mesas e cadeiras simples, de madeira escura envernizada; caixas de cerveja local (com a marca “Beagle”, como o canal que banha a cidade) empilhadas a um canto; paredes e tecto com fotografias várias, cartazes e t-shirts de clubes de futebol, a condizer com o jogo que passava no ecrã de televisão, e uns quantos troféus expostos sobre uma estante. No meio da aparente agitação, a comida foi servida rapidamente, estava saborosa, e o serviço esbanjou simpatia.

Gostámos tanto que no dia seguinte voltámos lá ao almoço, desta vez para provar aquele que é um dos petiscos gastronómicos mais populares em toda a Argentina: as empanadas. Receita herdada da colonização espanhola, no século XVI, foram adaptadas aos ingredientes locais, e cada província da Argentina desenvolveu sua própria fórmula, criando uma variedade infindável de recheios e formas de preparação. A empanada tornou-se especialmente popular entre os trabalhadores rurais, pois era fácil de transportar e consumir em qualquer lugar. Embora parentes das empadas ibéricas, as argentinas são maiores e de formato semicircular ou oval. Têm geralmente uma massa mais fina e flexível, e mais recheio, o que as torna menos pesadas e muito ao meu gosto. Em Ushuaia, as do Dieguito são assadas no forno de barro onde cozinham as pizas e entraram directamente para a lista das minhas delícias favoritas no mundo, seguidas de perto pelas de marisco do quase vizinho restaurante Doña Lupita.

 

Entre a montanha e o mar

Na língua do povo yámane (ou yagán), que habitou a parte sul da Terra do Fogo durante mais de 10 mil anos, Ushuaia significa “baía ao fundo”. Para mim, o nome soava-me a vastidão do mar, vento agreste e solidão, mas não podia estar mais enganada. Quando a vi de longe, Ushuaia pareceu-me uma pequena cidade alpina, encaixada entre as montanhas pintadas de branco e a água parada do Canal Beagle. Mais perto, apercebi-me da cacofonia arquitectónica generalizada, como se tivessem decidido fazer dela um mostruário de todos os tipos de edifícios que é possível construir, em todos os estilos e com todos os materiais. Há de tudo, desde o modernismo geométrico com betão e vidro ao utilitário nórdico de chapa ondulada, passando pelos chalés em madeira e os prédios “pintados” de pedra ou tijolo, iguais a tantos outros que vemos por aí.

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Na zona mais plana e movimentada da cidade, as ruas formam um quadriculado perfeito, que se vai deformando à medida que a área urbanizada se afasta do mar e trepa pela encosta. A amálgama de estilos contagiou o comércio e abundam os letreiros com letras garrafais e os anúncios garridos, entre o folclórico e o kitsch, aqui e ali uma loja mais sóbria ou um café com uma decoração mais clean. É a Europa nórdica desconjuntada pelo “jogo de cintura” sul-americano e apimentada pelo sangue quente da herança espanhola. Ushuaia pode estar no fim do mundo, mas a verdade é que vivem ali quase 80 mil almas, número que engrossa substancialmente durante os meses da época alta do turismo.

A avenida que acompanha a curvatura da baía ao longo da cidade é rota de passeio agradável, mesmo sob um céu a ameaçar chuva. Não é que haja muito para ver… Deixando para trás as casinhas dos operadores turísticos e os nada atraentes barracões e contentores armazenados no porto, sobra a vista sobre o Onashaga (o nome do Canal Beagle na língua nativa), imperturbável como um lago, mimetizando a cor cinza da atmosfera. Há veleiros de recreio espalhados pela baía, entre outras embarcações coloridas, e um navio de cruzeiro mais ao fundo. Encostado a uma espécie de dique de cascalho, meio adernado, o rebocador Saint Christopher já viu melhores dias, e parece recordar com nostalgia a sua época de glória, quando se chamava HMS Justice e participou no Dia “D” da Segunda Grande Guerra, desembarcando tropas aliadas na Normandia. Abandonado há quase 70 anos após uma avaria, já faz parte da paisagem, e em todo este tempo a cidade decerto mudou muito mais do que ele.

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Para lá da água, estendem-se até ao infinito montanhas negras marcadas por dedos de neve, cumes brancos entrelaçados num manto de nuvens baixas. São uma bela moldura e por isso, turismo oblige, a palavra Ushuaia em letras garrafais não podia faltar, completando o enquadramento ideal para as fotos da praxe.

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Uma via pedestre de cimento pintado com formas coloridas encaminha-nos para o local a que chamam Paseo de los Antiguos Pobladores. Estão ali algumas das construções mais antigas da cidade, agora convertidas em espaços culturais e institucionais. A Casa Pena, pintada de amarelo e verde, é hoje o Museu da Cidade, onde uma exposição etnográfica conta a história de Ushuaia desde a sua origem. Na Casa Torres foi instalado o museu “Pensar Malvinas”, que expõe informação sobre a guerra que, em 1982, agitou a opinião pública em todo o mundo e terminou com o Reino Unido a manter a soberania (detida desde 1833) sobre o arquipélago do Atlântico Sul, situado perto da costa argentina, a que os britânicos chamam Falklands. A Câmara de Turismo da Terra do Fogo funciona na discreta e bonita Casa de Lisardo García, revestida de chapa ondulada cinzenta embelezada com madeiras pintadas de branco. Mas o edifício que mais chama a atenção, pela sua arquitectura extravagante, é a antiga Casa Bebán, que agora é centro cultural e de exposições. Num arroubo de excentricidade, o primeiro dono, Tomás Bebán, mandou vir da Suécia toda a estrutura da sua futura casa de família, cuja montagem ficou terminada em 1913.

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Depois há que ir ao melhor miradouro da cidade, o Paseo del Centenario. Uma escadaria moderna, com formato irregular e vários pontos de paragem, coroada por um monumento que homenageia as várias correntes migratórias que deram origem a Ushuaia. Renovado em 2021, e apesar do pedido de cuidado feito pelo Intendente Walter Vuoto aquando da reinauguração, já apresenta infelizmente alguns sinais do vandalismo que desfigura, cada vez mais, as zonas urbanas: tags (a que incorrectamente é hábito chamar grafitis) pulverizadas sobre as “espigas” de cimento que fazem parte da estrutura da escadaria. Nem as terras do fim do mundo escapam à falta de civismo e de respeito, e só mesmo a vastidão e serenidade da paisagem que se nos oferece a partir do miradouro conseguiu apaziguar o meu espírito.

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Um banco com vista: Caneiras

Ana CB, 27.11.24

Manhã quente de Verão. O rio leva pouca água. Aqui e ali nota-se a sombra clara da areia por baixo do azul líquido, ou revela-se um tronco preso no leito, que a fraca corrente não consegue arrastar; até os mouchões mais rasos estão visíveis e pujantes de erva verde. Sob a copa larga de um salgueiro, o banco de madeira sem encosto é repousa-pés ideal para quem precisa de matar o tempo até à hora de almoço, pese embora o assento escolhido não seja o banco mas sim uma cadeira de campismo. É domingo, e para quem aqui vive pouco mais haverá para fazer do que contemplar a paisagem e aproveitar a sombra para fugir do calor.

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O rio é o Tejo e ao lugar deram-lhe o nome de Caneiras. Fica a uns curtos cinco quilómetros a sul de Santarém e é o aglomerado sobrevivente e ampliado da aldeia avieira ali fundada há mais de um século. O assentamento original terá sido destruído pelas cheias de 1941, e grande parte das construções que vemos hoje também já sofreram a adulteração intrínseca à “modernidade”; mas ainda se notam muitas características das antigas casas avieiras, e continua a ser habitada por alguns pescadores que não desistem do seu modo de vida: sair para o rio em busca da fataça (tainha), do sável ou da quase desaparecida lampreia.

 

Os nómadas do rio Tejo

 

Não há datas certas, mas estima-se que foi a partir de meados do século XIX (e sobretudo na primeira metade do século XX) que famílias de pescadores da zona de Vieira de Leiria começaram a deslocar-se para as áreas ribeirinhas do Tejo entre Abrantes e a Póvoa de Santa Iria, fugindo aos rigores do Inverno que não lhes permitia procurarem o seu sustento no mar. Trocavam os barcos de mar que usavam na arte xávega por embarcações de traça semelhante, mas bastante mais pequenas – as bateiras, a que os avieiros chamam simplesmente “barco” – fazendo delas a sua casa temporária. Era na bateira que pescavam, comiam e dormiam, usando um simples toldo para se abrigarem. O homem lançava as redes e a mulher remava, além de organizar toda a vida da família e ir vender o peixe às localidades vizinhas, transpondo para o ambiente do Tejo os papéis que cada um desempenhava na sua terra de origem. Era também na bateira que os filhos iam sendo criados e aprendiam as lides da pesca de rio, que lhes garantiria a sobrevivência no futuro, num tempo em que a vida era muito diferente. A embarcação é de tal modo característica e assumiu uma (óbvia) importância tão grande para estas comunidades que, em 2016, a sua construção e uso foram inscritos no Inventário Nacional do Património Cultural Imaterial, com a indicação da necessidade de salvaguarda urgente.

Inicialmente, estas deslocações eram sazonais, e os pescadores voltavam à Praia da Vieira quando o tempo melhorava. Com o crescimento da família e o cansaço dessas idas e vindas, e porque o Tejo (e também o Sado) lhes proporcionavam peixe o ano inteiro, acabaram por se ir fixando nas margens destes rios – primeiro em simples palhotas feitas de caniço, que crescia à beira de água e era material leve e fácil de encontrar, e depois em casas de madeira, assentes sobre estacas, para evitarem ser inundadas quando o rio transbordava as suas margens. Nasciam as aldeias avieiras (de que já falei no meu blogue).

 

A aldeia das Caneiras

 

A partir dos trabalhos de levantamento feitos até à data, foram identificados cerca de 40 assentamentos de avieiros nas margens do Tejo, a maioria deles já desaparecidos ou completamente em ruínas, como é o caso do Patacão, perto de Alpiarça, que tem dois núcleos ainda visíveis mas já em rápido declínio, apesar das tentativas de preservação que foram feitas até há alguns anos. Entre as aldeias que sobrevivem contam-se o Escaroupim, assumido como ex libris turístico da cultura avieira, Porto da Palha (Lezirão) e Palhota, esta última trazida para a ribalta no romance “Avieiros”, de Alves Redol. O aldeamento das Caneiras, talvez por estar muito perto de Santarém, também tem resistido ao desaparecimento, pese embora a descaracterização e a construção desregulada das últimas décadas.

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A aldeia é um rectângulo com uma espécie de rua principal que desemboca em nenhures, encaixada entre o rio e a estrada de acesso ao mundo exterior. É ao longo desta estrada que se vêem as construções mais modernas, moradias concebidas com mais ou menos gosto, rodeadas de hortas e pequenos pomares. O núcleo mais antigo das Caneiras está bem escondido por trás destas casas vulgares, e até parece que o espírito recatado e quase impenetrável dos antigos pescadores ainda paira por ali – as comunidades avieiras eram muito fechadas, assentes no núcleo familiar e segregadas tanto por vontade própria como por animosidade da população rural, mantendo ao longo dos tempos algum secretismo sobre o seu modo de vida e as suas artes piscatórias.

 

A miscelânea arquitectónica das Caneiras tem tanto de surpreendente como de fascinante. As antigas palhotas palafíticas têm vindo a ser transformadas cada uma à sua maneira. Nas que ainda permanecem elevadas em relação ao solo, as estacas de madeira foram substituídas por pilares de alvenaria. As tradicionais varandas de acesso ao piso superior já quase desapareceram, e poucas construções as mantêm – a maioria das pessoas prefere espaço interior em detrimento do espaço de socialização, uma das funções principais das varandas das casas avieiras. A madeira ainda está bastante presente, em versões de cor escura e variados estados de conservação; são, para mim, as construções mais bonitas da aldeia, algumas realçadas com pormenores em branco ou cores vivas. É nelas que se notam os pontos de contacto com as casas típicas da região de origem dos avieiros, sobretudo as da Praia da Tocha e, mais tenuemente, as da Costa Nova.

Não faltam também os atentados arquitectónicos ao carácter original da aldeia, em que a alvenaria substituiu os materiais anteriormente utilizados, a ponto de agora não passarem de vulgares paralelepípedos com telhado, quase sempre pintados de branco e com as faixas azuis ou amarelas que voltaram a ser, em tempos recentes, populares na construção que se quer fazer parecer tradicional, mesmo quando completamente deslocadas do contexto. Deste mal enferma igualmente a Capela dedicada ao Sagrado Coração de Maria, um edifício desenxabido cuja única desculpa talvez seja o facto de datar de 2006 (embora tenha ares de reconversão de algum edifício anterior).

Num arroubo de imaginação e quiçá influência forasteira, alguém resolveu forrar o exterior de uma das casas com chapa ondulada e juntar-lhe um pormenor americanizado. Não é que seja feio – é só descabido. Prefiro a tinta a descascar e o telhado arqueado de uma outra casa, com a sua chaminé periclitante (as chaminés também são um acrescento moderno nas casas avieiras).

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Na rua principal há também um banco, mas este não tem nada a ver com o da beira-rio. É tosco e torto, tal como o casinhoto que está ao lado, uma espécie de telheiro abrigado para acumular tralhas diversas. Tento imaginar o que terá levado alguém a colocá-lo ali. Talvez para apanhar sol nos dias frios de Inverno? Para conversar com quem passa? Alguém que não tinha nada para fazer e decidiu construí-lo? As questões ficam sem resposta, porque por aqueles lados não se vê vivalma.

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Ao entrar numa espécie de beco, surge a casa que de imediato elejo como o supra-sumo do kitsch da aldeia. Uma manta de retalhos com metade em madeira escura e a outra em chapa ondulada, o rés-do-chão pintado de azul Chefchaouen, aparelho de climatização e antena parabólica bem visíveis, à mistura com cabos vários, uns trepando pelas paredes, outros cruzando o ar. Ao pé da porta, mais um banco de jardim, este bem harmonioso, em madeira e ferro forjado, tendo por companhia duas cadeiras plásticas rosa-bombom saídas directamente do mundo da Barbie. Com os seus anacronismos, parece-me ilustrar bem o espírito geral desta aldeia que tem crescido ao sabor do acaso, um pé na tradição e preservação cultural e outro na vontade de se modernizar.

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De volta ao carro, passo outra vez pela área junto ao rio, que se nota ter sido alvo de arranjo há não muitos anos: deck amplo em madeira, delimitado por postes baixos ligados com corda grossa, intercalados com painéis que exibem fotos da actividade piscatória dos avieiros. Árvores frondosas, bem cuidadas, e uma zona de merendas ao fundo, ao lado do parque de estacionamento. O banco foi abandonado, mas a cadeira de campismo colorida ainda lá está, sossegada, à espera do seu ocupante habitual. Tal como a aldeia, suspensa no limbo de decisões por tomar e herdeira de um passado que em breve será considerado obsoleto, decerto para dar lugar a mais um destino “típico” a explorar turisticamente.

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Fonte usada para pesquisa: http://www.e-atlasavieiro.org/

 

Sugestões de leitura:

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Lisboa, tão minha e tão estranha

Ana CB, 03.10.24

Sou lisboeta. Talvez não de gema, porque os meus pais vieram de outras regiões do país; mas nem eles nem os meus avós tinham casas “na terra”, por isso criaram raízes na capital. Lisboa é a cidade onde tenho passado grande parte da minha vida e reclamo-a como minha, mesmo que sem exclusividade. Sou magnânima, não me importo de a partilhar com os outros.

A minha infância foi essencialmente passada num bairro periférico relativamente moderno para a época, onde os meus pais tinham uma loja de dimensão razoável com uma ampla zona privada, que nos permitia fazer ali a nossa vida diária e só regressarmos a casa, nos subúrbios, à noite. Estando na cidade, era quase como se vivesse numa aldeia em que todos se conheciam. O segundo pequeno-almoço era tomado sempre na mesma leitaria, os livros e as revistas comprados na única papelaria que existia naquela rua (ainda tenho exemplares da revista Tintin dessa época), o pão e os bolos na grande padaria com fabrico próprio quase ao lado da nossa loja, as fotografias tipo passe sempre tiradas pelo mesmo fotógrafo. Havia uma loja para cada coisa, e os donos e empregados eram uma espécie de círculo familiar alargado. E quando íamos à Baixa, ou a qualquer outro sítio que fosse mais no centro da cidade, dizíamos que íamos “a Lisboa”. Outros tempos e outros hábitos.

No final da minha pré-adolescência, a minha mãe decidiu regressar à sua profissão anterior e passou a trabalhar no centro de Lisboa. Também eu já mais autónoma, a minha área de vivência citadina começou a alargar-se: a Avenida da Liberdade era a meca dos cinemas, o Chiado (pré-incêndio) a zona preferida para as compras. Em São Bento visitava umas primas do lado materno, geralmente depois das aulas no Instituto Britânico. Cada ano e nova experiência acrescentaram bairros à minha vida lisboeta. Os cafés eram o ponto de encontro para os convívios, cada grupo de amigos tinha o seu local favorito. Vagueei do Calvário a Campo de Ourique, da Praça de Londres à de Alvalade, da Rua do Ouro às Avenidas Novas, da Cidade Universitária a Benfica, e mais tarde pela obrigatória vida nocturna do Bairro Alto – já então muito diferente do primeiro contacto que com ele tinha tido numa tarde de Verão, modorrento e intimidante, com personagens ocasionais que olhavam fixamente (ou assim me parecia) a adolescente meio perdida que ia fazer um exame ao Colégio dos Inglesinhos. Lisboa ia mudando aos poucos.

A vida profissional manteve-me em Lisboa, primeiro de forma intermitente, depois com constância. Aportei ao Chiado há mais de 20 anos, tempo suficiente para assistir à metamorfose contínua do bairro. Se um gato tem sete vidas, o Chiado faz-lhe concorrência, que eu já lhe conheço pelo menos três ou quatro. O Chiado dos meus tempos de adolescente tinha o Grandella e os Armazéns que davam nome ao bairro, com os seus elevadores emblemáticos, e a Jerónimo Martins ainda era só Casa, não Grupo. A loja da Ana Salazar era o supra-sumo da modernidade, com as suas montras minimalistas onde pairavam modelos sempre arrojados para a época. Na Brasileira ainda não havia a escultura do Pessoa. O poeta Chiado estava sozinho no meio do largo, sem a companhia da boca do Metro. Os carros passavam livremente pela Rua do Carmo, e o elevador de Santa Justa era operado pela Carris como qualquer outro equipamento – o passe era válido para subir e descer a qualquer hora, raramente havia filas, e qualquer um podia ir ver Lisboa da sua varanda. Era a maneira mais rápida e cómoda de ir da Baixa ao Largo do Carmo. Num dia de Agosto, ao passar de manhã a pé pela Rua da Prata, o fumo escurecia o céu. Só soube o que tinha sucedido quando cheguei ao escritório onde trabalhava na altura, na Praça da Figueira. Foi o início de um longo período negro para o Chiado, que ficou deserto durante anos. Por vezes passava por lá, a caminho de qualquer outro sítio, e era como se estivesse num filme pós-apocalíptico. O cenário era desolador: paredes negras, prédios vazios, lojas fechadas, apenas uma ou outra pessoa de passagem, como eu. Mesmo as áreas que tinham ficado a salvo do fogo se ressentiram. O bairro parecia ter perdido a sua alma: as pessoas em movimento.

Anos e anos em obras que pareciam não ter fim, os edifícios esventrados do Chiado foram sendo recompostos a pouco e pouco. Mais modernaços, com um ar mais “clean”, e na sua maioria com outros negócios. Ainda assim, a vida demorou a voltar. Durante muito tempo, o Chiado foi quase só de quem lá trabalhava ou morava. Ao cair da noite esvaziava-se, ficava tranquilo; só no Natal, com as iluminações e os mirones, o sossego nocturno era quebrado. As lojas, as que já existiam e outras que foram abrindo, mantiveram-se inalteradas durante vários anos. Nessa altura deixei praticamente de ir fazer compras aos centros comerciais dos arredores. Não precisava, ali tinha quase tudo. À hora de almoço passeava, ia vendo as montras, entrava quando estava à procura de alguma coisa em concreto, comprava se fosse caso disso. Sem pressas. Nas ruas secundárias havia sempre algum prédio em obras, às vezes mais do que um, e era obrigada a percorrer a rua aos ziguezagues, atravessando de um passeio para o outro, como se sofresse de uma crónica indecisão de não saber para onde ir. Se fosse uma remodelação total, os andaimes e tapumes ficavam a fazer parte da paisagem durante largos meses, até anos. O Chiado era um microcosmos da transformação que se alastrava pela cidade.

Distraída na minha vida, demorou algum tempo até perceber que Lisboa estava a tornar-se numa Meca turística. Primeiro foram as hordas de espanhóis na altura da Páscoa; depois o aumento de gente em calções e sandálias assim que o tempo aquecia, e das palavras em línguas desconhecidas ditas por quem passava por mim na rua; até que comecei a ter dificuldade em andar nos passeios ao meu ritmo normal, travada por grupos de turistas caminhando a passo de caracol ou parados a tirar a obrigatória selfie. Esta popularidade súbita criou em mim sentimentos mistos: orgulhosa por perceber que a “minha” cidade (e Portugal, na generalidade) estava finalmente a ter o reconhecimento que merecia, e ao mesmo tempo irritada pela apropriação meio selvática que dela estava a ser feita.

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Há seis anos mudei-me para a “província”. São só 65 quilómetros de distância até Lisboa, 50 minutos em auto-estrada; mas neste nosso minúsculo rectângulo encaixado entre Espanha e o Atlântico isso é mais do que suficiente para ser considerado “província”. Continuei a trabalhar em Lisboa, para onde ia todos os dias até que a mudança de hábitos derivante da pandemia me permitiu trabalhar a partir de casa durante a maior parte do tempo. Se naqueles dois anos houve algum sossego na capital, para bem de uns e mal de muitos outros, o regresso à “normalidade” veio exacerbar a tendência pré-2020 de aumento do turismo. E as consequentes mudanças no ambiente da cidade. De repente, tudo me parece estranho. A proliferação de tuk-tuks e motoretas para entrega de comida, a música por todo o lado, as esplanadas cheias a qualquer hora do dia (e às vezes da noite), as ruas a abarrotar de gente, mesmo nos meses de Inverno, as filas intermináveis para as bilheteiras do metro e do comboio, o eléctrico 28 que agora virou coqueluche dos turistas e vai sempre apinhado, com tarifa de bordo a condizer. No Cais do Sodré já não ouço a chilreada dos estorninhos ao entardecer, não sei se por causa do aumento de outros ruídos, ou por terem debandado para algures, afugentados pela agitação humana. As obras “de fundo” multiplicam-se, todas para durarem anos, com tapumes brancos a estenderem-se aqui e acolá por centenas de metros, tapando indiferentemente o que é feio e também o que merece ser visto. As mudanças são tantas e tão rápidas que quando passo por algum sítio aonde já não ia há algum tempo, às vezes mal o reconheço. Habituada ao maior sossego de outras paragens, talvez a estranha agora seja eu.

Só que isto de amar uma cidade é um pouco como amar uma pessoa, com os seus encantos e os seus defeitos, nos dias bons e nos menos bons, quando nos faz feliz ou nos irrita, ou nos desilude. Quando vejo o roxo dos jacarandás em flor e sinto o seu perfume, e o céu se tinge de rosa e laranja ao fim da tarde, quando passo na Praça do Comércio de manhã cedo, ou desço uma rua e o azul brilhante do Tejo espreita lá ao fundo, entre as casas, a zanga esfuma-se e penso na sorte que tenho em estar ali, naquele instante. Lisboa continua a ser a “minha” cidade.

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Blogue da semana

Ana CB, 29.09.24

Foi uma viagem que os juntou, e as viagens continuam a ser uma parte importante na sua vida a dois. A Vera e o Marcelo são um dos casais mais simpáticos da blogosfera portuguesa de viagens, e criaram o blogue Ir em Viagem para partilharem as suas aventuras e experiências:

Através da escrita e da fotografia pretendemos inspirar as pessoas a viajar mais e, através de dicas e sugestões, ajudá-las a preparar as suas viagens.”

São caminhantes infatigáveis, e por isso de vez em quando organizam passeios nos trilhos mais bonitos do nosso país. Falam-nos das suas viagens, dentro e fora de Portugal, com muita sensibilidade (de uma forma quase poética) mas sem esquecerem os pormenores práticos, sempre úteis para quem lê. E como se isto não fosse suficiente, todos os artigos são ilustrados com fotografias de mestre.

O Ir em Viagem é a minha escolha para blogue da semana.

Gozo, o prazer de ter vagar

Ana CB, 30.08.24

São quase sete da tarde quando o autocarro me deixa em Sannat, num pequeno largo marcado ao centro por uma escultura em metal oxidado que representa três lavradores – uma das muitas esculturas que estão espalhadas pela ilha de Gozo, fruto de um concurso de arte pública lançado há uns anos pelo Ministério que governa a ilha. Mas não foi isto que me trouxe aqui. Meto pés a caminho do meu objectivo por uma estrada de terra batida. Do lado esquerdo, o vale de Hanżira e a vizinha vila de ix-Xewkija, a sua magnífica Basílica de São João Baptista bem destacada no meio do casario branco e ocre. Sannat fica num planalto 120 metros acima do mar, com vistas soberbas sobre grande parte da ilha, a norte, e sobre o Mediterrâneo a sul. É por este ponto cardeal que me oriento pelo trilho aberto no garrigue, que me leva ao meu destino final: a falésia de Ta’ Ċenċ.

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Cheguei mesmo na hora certa. O sol já desce rapidamente no horizonte, exactamente sobre o extremo da linha irregular que separa a água dos rochedos. Os raios de luz atravessam as nuvens trazidas pela brisa marinha do final de tarde, e o céu divide-se entre o azul brilhante e o dourado suave, que se se transforma aos poucos em laranja, rosa e púrpura. A sombra dos rochedos escurece o mar, que reflecte mais ao longe as cores mornas do pôr-do-sol. Foi este o lugar que escolhi para terminar o meu primeiro dia em Gozo, apreciando a tranquilidade do momento – e foi este o espírito dominante nos dias que passei na ilha.

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Entre as três ilhas habitadas do arquipélago de Malta, Gozo (ou Għawdex, em maltês) é a irmã do meio em tamanho, mas não em status. A ilha de Malta é aquela a que os visitantes por norma dedicam mais tempo: é a maior e mais famosa, rica em história, cultura e atracções, com uma capital vibrante e apelativa para o turismo. Comino é a estrela brilhante do arquipélago, o bilhete-postal que serve de chamariz para quem gosta de águas mornas e transparentes. Já Gozo acaba por ser sempre relegada para segundo plano e geralmente é apenas merecedora de um magro dia de visita, quando não totalmente ignorada. O que é – desculpem-me a franqueza – um erro tremendo, porque merece muito mais do que uma visita feita a correr.

 

Sucede com os lugares tal como sucede com as pessoas: mesmo que mais tarde venhamos a corrigir a nossa avaliação, as primeiras impressões têm muita importância. E a primeira impressão que tive de Gozo, quando o ferry se aproximava do porto de Mġarr, foi positiva. É certo que a encosta escarpada que rodeia o porto está cravejada de edifícios, alguns com nítido ar de hotel, e que a profusão de guindastes augura mais uns quantos a nascerem. Mas pelo menos não há arranha-céus, e as cores das casas mantêm-se entre o branco e os tons neutros ou terrosos, nada que ofenda particularmente a visão. O que salta mesmo à vista são as igrejas, várias, bem em evidência pelo contraste das suas formas caprichosas com a sobriedade poliédrica do casario. Na altura não fazia ideia, mas uma delas – a mais majestosa – iria ser o meu cenário de várias refeições nos dias seguintes.

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Nada tenho contra os hotéis, mas sempre que posso escolho alojamentos locais, e a minha estadia em Gozo não foi uma excepção. Em vez de optar por Victoria ou por uma zona de praia, decidi ficar perto de Mġarr, na pequena localidade de Għajnsielem (pronuncia-se mais ou menos como iain-siê-lem), que se traduz por “nascente tranquila”. E tranquilidade não faltou, nem no alojamento, nem nas redondezas. Apesar da proximidade do porto e de ter um amplo miradouro sobre Mġarr e as ilhas de Comino, Cominotto e Malta, o local está fora das rotas turísticas habituais da ilha. Sorte minha, tem tudo aquilo de que eu mais precisava: autocarros, para me deslocar por Gozo, e um sítio bom para tomar o pequeno-almoço ou petiscar.

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As associações musicais têm um papel único na cultura social maltesa. As bandas participam activamente na preparação e gestão das festas locais, e são um dos motivos de orgulho de cada vila ou aldeia. As suas instalações funcionam também como ponto de encontro para os habitantes e assumem um papel fulcral na comunicação e socialização a nível local. Għajnsielem não é excepção. A Għaqda Mużikali San Ġużepp (Associação Musical de São José) foi fundada em 1928 sob a égide do Instituto de São José, um orfanato, e continua em actividade até hoje. Além de ter um belíssimo salão de snooker profissional, o bar funciona como bistro e serve refeições ligeiras. Bem localizado, ao lado de uma simpática praceta ajardinada, foi na sua enorme esplanada que fiz boa parte das refeições durante a minha estadia, em modo de relaxamento total, por vezes com vista para uma nesga de mar no horizonte, outras com os olhos na grandiosa igreja-santuário de Għajnsielem, do lado oposto da estrada.

 

As evidências da fé

Għajnsielem é mais conhecida pelo evento que ali se realiza anualmente em Dezembro no campo de Ta’ Passi: a recriação ao vivo de um presépio e a sua aldeia, a que dão o nome de “Bethlehem f'Għajnsielem”. Numa área de 20.000 m2, cerca de 150 actores e alguns animais levam os visitantes a recuar no tempo até à Judeia de há 2.000 anos. Há moinhos e grutas, pastores e artesãos, e actividades condizentes com a época para miúdos e graúdos. Mas fora da quadra natalícia é apenas uma terrinha sossegada que vive à sombra da bela e imponente igreja-santuário neogótica. Dedicada a Nossa Senhora do Loreto, demorou mais de 50 anos a ser edificada, entre 1922 e finais da década de 70, e é um excelente exemplo de quão magnífica é a arquitectura religiosa mais recente das ilhas maltesas.

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Apenas a uma ruela de distância, na Pjazza Indipendenza, ainda se encontra orgulhosamente de pé a antiga igreja paroquial, também dedicada à mesma santa mas muito mais sóbria em aparência. Esta igreja mais antiga, construída no século XIX, sucedeu a uma capela erguida para celebrar uma aparição mariana ocorrida em data desconhecida a um pastor, de seu nome Anglu Grech, que levava regularmente as suas cabras e ovelhas a beberem água da fonte de Għajnsielem. A visão do pastor deu origem a uma estátua, depois colocada num nicho, à volta do qual os habitantes da localidade se reuniam diariamente para rezar o terço. Existem ainda outras duas igrejas e oito nichos com uma variedade de estátuas de santos (a título de curiosidade, dois deles são dedicados a Santo António, tal como uma das igrejas). Esta profusão de símbolos religiosos numa área tão reduzida não é exclusiva de Għajnsielem. Em toda a ilha de Gozo (tal como em Malta, na generalidade), há uma vertente que permanece dominante e tão destacada que é impossível de ignorar: o catolicismo.

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As ilhas maltesas têm uma longa história de fé cristã. Segundo a tradição, o apóstolo S. Paulo naufragou em Malta no ano 60 d.C., e este acontecimento é considerado um momento fundamental para a difusão do cristianismo na região. Outro momento fulcral ocorreu no século XVI, quando os Cavaleiros de S. João, também conhecidos como Cavaleiros Hospitalários, se estabeleceram nas ilhas. Deixaram um legado duradouro de magníficas igrejas, catedrais e fortificações, muitas das quais ainda hoje se mantêm de pé. A fé católica não tem sido apenas uma força religiosa, mas também cultural e social, marcando indelevelmente a identidade destas ilhas e do seu povo. Os festivais religiosos, as procissões e os rituais fazem parte integrante do modo de vida maltês.

 

A Basílica do Santuário da Virgem de Ta’ Pinu é outro exemplo sonante desta ligação religiosa. Isolado numa zona árida onde não se passa nada (a aldeia mais próxima fica a meio quilómetro de distância), a magnificência deste santuário destoa e ao mesmo tempo surpreende como uma gema brilhante engastada em metal pobre. É um edifício colossal, que me impressionou tanto pela imponência como pela beleza. Foi construído em inícios do século XX no estilo neo-românico, em pedra rosada e ocre, com um recorte complexo em vários volumes e níveis, e é encimado por uma cúpula. O campanário está separado, ao estilo italiano, destacando-se com os seus 60 metros de altura. O interior é uma mistura bem conseguida de elementos arquitectónicos clássicos com arabescos e pormenores bizantinos – espelho das várias influências que a cultura maltesa agrega. A penumbra e a serenidade da atmosfera convidam à reflexão. Ainda assim, há pouca gente a visitar a basílica, e todos são turistas como eu. Um painel à entrada pede decoro, respeito e silêncio. E silenciosa é a devoção dos fiéis, materializada nos inúmeros ex-votos que enchem as paredes da sacristia, agradecimentos mudos mas eloquentes pela concretização dos desejos de quem deposita grande fé na padroeira do local.

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Criado no lugar onde já existia uma capela de origens imprecisas (anterior ao século XVI), o santuário deve a sua popularidade a uma lenda local. Em 1883, uma camponesa da vizinha aldeia de Għarb disse ter ouvido, ao passar pela capela, uma voz que lhe pediu para entrar e recitar três ave-marias. À ocorrência de vários supostos milagres em anos seguintes atribuiu-se a graça de Nossa Senhora da Assunção, a quem a capela estava dedicada. Foi o bastante para começar a atrair peregrinos e ser oficializada como santuário mariano, com a consequente construção da basílica. A capela antiga foi incorporada no novo edifício, por trás do altar. Lá dentro mantém-se o quadro da Assunção de Nossa Senhora ao Céu, pintado em 1619 por Amadeo Perugino, de onde se diz que a voz falou a Karmni Grima – a aldeã que deu origem à lenda, e que se encontra ali sepultada. A fé da mais simples das pessoas pode não mover montanhas, mas não há dúvida de que tem criado muitos santuários.

 

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Desaparecida, mas não esquecida

Até 2017, a razão principal pela qual a maioria dos visitantes ia a Gozo era uma formação rochosa a que deram o nome de Janela Azul: um arco de calcário perto da baía de Dwejra, com 28 metros de altura, desenhado pela erosão do vento e do mar ao longo de 500 anos. Estrela de filmes, anúncios e do turismo, incluída numa área de conservação especial, sucumbiu à violência do mar e desabou completamente na manhã de 8 de Março daquele ano fatídico, após vários dias de tempestades. Dela ficaram a memória, muitas fotos, e o nome num restaurante. Perdida a atracção maior, o local passou a capitalizar outras actividades: os mergulhos no Blue Hole, uma espécie de piscina de águas azuis límpidas, entre rochas, com um arco natural submerso a fazer de “porta de entrada” para o mar aberto; e os passeios de barco a partir do Mar Interior, uma lagoa semicircular de águas pouco profundas rodeada de falésias rochosas.

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A antiga vocação piscatória do lugar é bem visível. No lado que não está ocupado pela escarpa, o Mar Interior é limitado por uma espécie de praia, uma faixa estreita de pedrinha arenosa, à volta da qual se acotovelam construções cúbicas exíguas de pedra maciça, sem janelas e com portas coloridas. Algumas têm toldos que avançam sobre plataformas cimentadas, e painéis solares nas açoteias. Rampas de betão entram pela água parada, onde flutuam várias pequenas embarcações simples, umas mais modernas, outras mais coloridas. Há pessoas a nadar, outras a apanhar sol, outras ainda apenas sentadas em cadeiras plásticas instaladas à porta dos casinhotos, observando o movimento na lagoa.

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Os pescadores converteram-se em guias turísticos e há um corrupio de barquitos que entram e saem da lagoa. A comunicação com o Mediterrâneo é feita através de um longo túnel, que fura o penhasco ao longo de mais de 80 metros. É um passeio cénico e tranquilo, agradável mesmo com o céu meio encoberto. A água desdobra-se em cores que vão do verde-esmeralda ao azul mais profundo. As escarpas abruptas, de rocha porosa manchada pelo tempo e pelos sedimentos, escondem enseadas e grutas por onde o barco ziguezagueia. Passamos da claridade à penumbra, depois saímos novamente para a luz, num vaivém que dura uns escassos 15 minutos mas parece ainda mais curto – e que, como não podia deixar de ser, passa pelo local onde em tempos esteve a Janela Azul, em homenagem devidamente assinalada pelo guia-condutor. A excêntrica formação natural pode ter sucumbido ao abraço do mar, mas a sua memória está bem viva, um testemunho de como a natureza é ao mesmo tempo grandiosa e frágil.

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O domínio da pedra

A agitação de Victoria é o contraponto à atmosfera serena do resto da ilha. A capital, a que os locais continuam a chamar Ir-Rabat, é o centro nevrálgico de Gozo. Tudo parece passar por ali. Eu própria, nas minhas deambulações de autocarro entre os vários sítios que fui visitar, acabei por ter de lá ir todos os dias, à falta de transporte directo de Għajnsielem para alguns desses lugares. Victoria divide-se em dois planos, separados pela avenida principal. A Triq ir-Repubblika é o coração comercial da cidade, onde as casas com as tradicionais varandas maltesas coabitam com lojas, bancos e teatros, e os carros se misturam com motas, carrinhas e mini comboios turísticos, numa cacofonia pouco habitual na ilha.

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Para norte cresce a colina onde foi erguida a Cidadela, o bastião fortificado que há 3500 anos protege Ir-Rabat, o seu subúrbio. Para sul da avenida, a Praça da Independência alberga a Banca Giuratale, sede do município, e é a porta de entrada para o dédalo de ruas pedonais sinuosas que formam a parte antiga da cidade. Nestas ruelas estreitas, as varandas quase se tocam, e por vezes nem o sol do meio-dia consegue iluminá-las. As casas são de pedra e têm portas em arco, varandas em ferro forjado ou de madeira, pintadas com cores alegres, e emblemas religiosos cravados nas paredes, feitos em cerâmica. Há becos com vasos de flores e trepadeiras, esquinas com estatuetas religiosas colocadas sobre pedestais altos, gatos que aproveitam uma sombra para dormir ou apenas estarem ali, naquela sua pose descontraída de quem está de bem com a vida.

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No centro da cidade velha fica a basílica dedicada a São Jorge, numa praça rodeada de esplanadas e lojas para turistas. Construída no último quarto do século XVII e totalmente revestida de mármore, é a igreja barroca mais exuberante da ilha, no que toca à decoração interior. A cúpula e as abóbadas estão pintadas com cenas religiosas e decoradas com frisos dourados, e o dossel com quatro colunas sobre o altar-mor é uma peça colossal em bronze e ouro. O contraste com outras igrejas que visitei é flagrante.

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Sugestivamente apelidada de “Coroa de Gozo”, há indícios de que a Cidadela de Victoria já fosse habitada há 7000 anos. Mas as robustas muralhas defensivas que hoje a definem foram construídas pelos Cavaleiros Hospitalários em finais do século XVI. A cota a que se encontra faz dela um miradouro fabuloso sobre praticamente toda a ilha. Passei várias horas a percorrer o interior das muralhas, onde está bem visível um extenso trabalho de restauração ainda em curso. A pedra é omnipresente, às vezes mais rugosa ou manchada, marcada pelo tempo, outras mais clara e suave, prova de uma renovação mais recente. É na Cidadela que estão a Catedral de Gozo e o Tribunal – os templos máximos da fé e da lei partilham o mesmo adro. Nesta espécie de caverna de Ali Babá a céu aberto há de tudo um pouco: museus vários, a rua de um bairro judeu medieval, um palácio seiscentista com a sua capela, a antiga prisão, o paiol da pólvora, canhões da bateria e um abrigo anti-bomba, silos e cisternas, as obrigatórias lojas para turistas, e pelo menos um restaurante: o Ta’ Rikardu, onde nem o dia quente me dissuadiu de provar a sopa de peixe preparada à maneira local.

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Tradição centenária

A maior parte das praias de Gozo ficam na costa norte, mas não são de todo o melhor que a ilha tem. A excepção é Ir-Ramla, onde a maravilhosa tepidez das águas mediterrânicas se une a um areal generoso, numa combinação ideal para umas horas em modo de lagarto ao sol. Curiosamente, não há quaisquer infra-estruturas hoteleiras nas imediações desta praia, o que provavelmente explica o fenómeno de ainda ser possível encontrar um lugar para estender a toalha com vários metros de areia desimpedida à volta.

Também no norte da ilha, e pese embora a sua praia esteja muitos furos abaixo de Ir-Ramla, a localidade de Marsalforn já adquiriu o estatuto de estância balnear. No entanto, não é essa a razão da minha visita. Umas centenas de metros mais à frente, junto à costa, espalhando-se ao longo de mais de um quilómetro num padrão de xadrez irregular e orgânico, as salinas artesanais de Xwejni são um testemunho admirável da longa tradição da ilha de colher sal do mar.

 

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A história destas salinas remonta possivelmente ao tempo dos fenícios, que se sabe terem-se estabelecido na região por volta de 700 a.C. Estes primeiros colonos reconheceram a abundância de água salgada na zona e o clima favorável à evaporação do sal – Gozo tem uma média de mais de 300 dias de sol por ano. Com o passar do tempo, a habilidade na produção de sal foi transmitida de geração em geração e as salinas tornaram-se uma indústria vital para a economia da ilha. Maravilha da engenharia antiga, consistem numa série de tanques rasos, rectangulares, definidos por muretes feitos de pedra local e aproveitando as irregularidades do solo rochoso onde foram criadas. Estão ligadas por um sistema de canais por onde é encaminhada a água do mar, e à medida que esta água se evapora sob o sol mediterrânico, vai deixando para trás uma camada cristalina de sal. Este sal é cuidadosamente recolhido utilizando ferramentas tradicionais, como ancinhos e cestos de madeira, e é depois deixado a secar antes de ser preparado para venda ou consumo local.

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Por tradição, estas salinas foram exploradas ao longo dos tempos como labor familiar, com o conhecimento técnico a passar de geração em geração. No entanto, como em tantas outras actividades quase artesanais, o número de pessoas que a ela se dedicam tem vindo a diminuir nas últimas décadas. A produção de sal ocorre habitualmente de Maio a Setembro, mas no meu passeio de uma hora pelas imediações não vejo ninguém a trabalhar. A prova de que as salinas continuam em funcionamento resume-se aos painéis que proíbem o acesso a pessoas estranhas, em particular mergulhadores e banhistas, e às portas coloridas que marcam, na falésia do lado oposto da estrada, as entradas dos armazéns (escavados na rocha) de apoio às salinas.

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Com a última tarde da minha estadia em Gozo a chegar ao fim e a hora do autocarro para Għajnsielem ainda longe, sentei-me numa esplanada meio escondida de Marsalforn e aproveitei para jantar. Tal como tantas outras facetas da cultura maltesa, a gastronomia destas ilhas é uma mistura muito bem conseguida entre a Itália e o norte de África, com pitadas de Inglaterra, Grécia, e até mesmo Turquia. E é deliciosa, mais ainda quando apreciada ao crepúsculo, com um suave marulhar de água como som de fundo, numa atmosfera tépida e sem vento. Em Gozo, há uma sensação quase constante de serenidade que impregna o ar e nos puxa a saborear cada momento, cada local, com o vagar merecido – é a facilidade dos dias tranquilos que escorrem sem pressas.

 

(Post já publicado no blogue Viajar Porque Sim)

Livros de cabeceira (4) – série II

Ana CB, 17.08.24

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Longe vão os dias em que só lia um livro de cada vez, e de uma ponta à outra. Quando por acaso não tinha leituras novas, relia algum de que já não recordasse bem a história (porque não me agrada ler um livro de que já sei o final, salvo raras e honrosas excepções). Nessa altura tinha menos livros e mais tempo, o inverso do que possuo actualmente: os livros vão aumentando em número, e o tempo parece cada vez mais fugidio.

Para meu grande desgosto, tornei-me uma leitora errática. Tanto sou capaz de ler um livro em dois dias como arrastar uma leitura ao longo de meses, e aos solavancos. Horror dos horrores, há livros que leio até certo ponto e depois simplesmente desisto e abandono-os – alguns na esperança de mais tarde conseguir pegar-lhes, outros já a saber que não vale a pena insistir, não consigo digeri-los com um mínimo de prazer. E leitura que não me dá prazer, não vale a pena (só se for por razões profissionais). Há por aí muitos livros à espera que eu os descubra e goste deles.

Na minha mesa-de-cabeceira os livros demoram-se, e por várias razões. A principal é porque para ler um livro físico à noite preciso de ter a luz acesa, e o gesto de fechar o livro, pousá-lo e depois desligar o candeeiro tira-me daquela agradável sonolência em que as pálpebras pesam e o cérebro já está meio desligado. A outra é porque há livros que não são para ler de uma só vez.

É o caso de “Tal como és”, de Ryōkan, com tradução de Marta Morais a partir do japonês. Haiku é um dos meus géneros preferidos de poesia. Saborear estes pequenos poemas, frequentemente deliciosos, é relaxante e predispõe-me para uma noite tranquila. Veio substituir na minha mesa-de-cabeceira um outro, que muito aprecio, de poesia Tanka dos séculos IX-XI (uma forma de poesia essencialmente feminina, precursora do Haiku).

Um híbrido de poesia e conto é o livro de Aline Bei, “O peso do pássaro morto”. A escrita original desta autora brasileira é maravilhosa e tem a capacidade de evocar, com poucas palavras, imagens em que a dor é protagonista, sempre associada ao amor nas suas várias versões. Com uma sensibilidade tocante.

Writing down the bones”, de Natalie Goldberg, é uma inspiração para escrever melhor. E também o oposto de um livro chato e absolutista sobre o acto da escrita. Gosto de ler um ou dois dos seus capítulos leves e bem-humorados, sobretudo ao fim-de-semana de manhã, depois de acordar. Fico com vontade de desatar a escrever.

Quanto aos livros de Virginia Woolf e Olga Tokarczuk, o título é o mesmo, “Viagens”, mas o conteúdo muito diferente. Enquanto a escritora inglesa descreve, em cartas e no seu diário, partes do que foi vendo nas suas viagens pela Europa, entrelaçadas com considerações sobre ela própria, os outros e o mundo, Olga Tokarczuk conta pequenas histórias – ficcionadas ou não, frequentemente estranhas, intercaladas com pequenos apontamentos – sobre pessoas em viagem, ou simplesmente a deslocarem-se de um ponto para outro; personagens com motivações várias, em épocas várias, um caldeirão humano onde cabe tudo, e sem ordem aparente. Em comum entre as duas escritoras, o facto de as viagens conduzirem à reflexão.

Invisíveis na fotografia mas presentes no smartphone que a tirou, dois outros livros que leio actualmente em formato de ebook. A obra de grande fôlego de Simon Sebag Montefiore “O mundo - Uma história da humanidade”, que degusto em doses homeopáticas e me tem vindo a mostrar que afinal não sei nada de História. E o recente livro de Carmen Posadas, escrito a meias com o seu irmão Gervasio, cujo título revelador é “Hoje caviar, amanhã sardinhas”. Num tom divertido, os irmãos uruguaios desfiam as memórias da sua vida nos vários locais para onde o pai, um diplomata, ia sendo enviado.

Viagens ao vivo e a cores, viagens através dos livros, viagens interiores. De uma maneira ou outra, mesmo recostada na cama ou no sofá, acabo por estar sempre a viajar.

Blogue da semana

Ana CB, 14.07.24

A Inês não gosta de estar quieta. Seja por prazer ou por obrigação profissional, está sempre a pensar na próxima viagem – e ela viaja muito! Tantas viagens e a vontade de as partilhar só poderiam resultar num blogue cheios de histórias, de boas sugestões, e até de humor.

Já são 67 os países que a Inês visitou, e sobre a maioria deles tem sempre algo a dizer. Além de boas fotos para mostrar.

O blogue Sempre Entre Viagens é a minha sugestão para esta semana.

Patagónia, terra de contrastes - parte 2

Ana CB, 08.07.24

Em linha recta, o hiperfamoso glaciar Perito Moreno dista apenas cerca de 60 km do Parque Torres del Paine, mas na prática há todo um mundo de montanhas e uma fronteira terrestre a separá-los. Situado no lado argentino dos Andes e inserido no Parque Nacional Los Glaciares, o Perito Moreno tem como cidade mais próxima El Calafate, 80 km a leste.

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Chegar a esta cidade desde Puerto Natales implica, de autocarro, mais uma viagem de quase seis horas para cobrir 350 km de estrada, com a obrigatória demora no posto de fronteira de Dorotea e mais tarde o desvio para uma curta paragem em Esperanza.

 

Uma cidade virada para o turismo

 

Entrando em El Calafate, senti mais uma vez o choque da diferença em relação ao ambiente em que tinha passado os dias anteriores. Muito colorida e europeizada, a sua rusticidade é apenas aparente e disfarça uma sofisticação de lugar claramente devotado ao turismo. E no entanto, gostei da cidade. El Calafate é extensa e substancialmente plana, com o movimento a concentrar-se ao longo e em torno da Avenida del Libertador – um trecho da Ruta 11, que atravessa a cidade de leste para oeste. É aqui que estão os melhores restaurantes, as grandes lojas de artesanato sofisticado, os operadores turísticos, o casino, o Mirador de la Ciudad – estrutura metálica de onde temos uma vista abrangente sobre El Calafate – e a Intendencia do Parque Nacional Los Glaciares: um centro interpretativo num edifício histórico, rodeado por um belo jardim com percursos explicativos sobre a fauna e flora do Parque, máquinas e equipamentos antigos utilizados pelos trabalhadores, e cenas esculpidas em homenagem a exploradores da região, como Charles Darwin e Francisco Moreno.

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A Avenida del Libertador tem um ambiente algo hippie chic, e reflecte bem os dois tipos de visitantes que parecem ser mais habituais na Patagónia: jovens mochileiros, que vêm à procura de aventura antes de serem engolidos pelo mundo do trabalho e das responsabilidades familiares; e viajantes de meia-idade, ou já para lá dela, cujo desafogo económico lhes permite atravessar uma parte do planeta para irem conhecer uma das regiões mais inóspitas do planeta. Embora fazendo parte deste segundo grupo, apreciei muito mais a atmosfera cool do Bar Borges & Alvarez (o meu apelido é só coincidência, mas confesso que o facto de se intitular “Librobar” me agradou sobremaneira) e do La Oveja Negra, do que do classicismo de restaurantes como o La Tablita. No capítulo das compras, e como localidade focada no turismo, o artesanato é de perder a cabeça, seja ele o mais genuíno, vendido em barraquinhas, ou o mais requintado, exibido em enormes estabelecimentos onde apetece comprar tudo. Fui salva pela falta de espaço na bagagem: uma mala de cabine e uma mochila para três semanas não deixam lugar para compras volumosas. Mas não consegui resistir a comprar um livro com um título sugestivo: “Patagonia a Sangre Fría”, de Gerardo Bartolomé, um livrinho de contos à la Edgar Allan Poe, entre o mistério e o terror. Uma boa escolha.

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O nosso alojamento também ficava nesta avenida, mas numa zona mais tranquila, rodeado de árvores e casas com jardins. O Hotel Glaciar é um chalé de madeira que parece saído dos Alpes, despretensioso mas confortável, com quartos virados para um corredor interior ao ar livre e uma sala de pequenos-almoços com tecto e mesas de madeira clara, toalhas aos quadrados vermelhos e brancos, e muitas janelas com vista para o exterior. Um dos meus maiores prazeres em viagem é ter a possibilidade de tomar o pequeno-almoço, com calma, num local agradável – parece-me sempre um bom prenúncio para o resto do dia.

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Colada à margem do Lago Argentino, a Reserva Natural Laguna Nimez é outra das boas surpresas de El Calafate. Criada em 1986 por determinação municipal, é uma zona pantanosa muito rica em biodiversidade, onde estão representados vários ambientes naturais da Patagónia. O trilho interpretativo de 3 km que percorre a Reserva levou-nos à volta das lagoas Nimez e Escondida onde, entre as 137 (!) espécies de aves já ali observadas (acima de 10% da avifauna argentina), os flamingos são incontestáveis vedetas, com os seus tons de rosa-salmão a destacarem-se no prateado imóvel da água. No percurso há observatórios de aves e miradouros sobre o Lago Argentino, sobrevoado pelos omnipresentes gansos-de-magalhães e por cisnes-de-pescoço-preto. Na tarde tépida do nosso passeio, o vento aplainava as ervas típicas da estepe e fazia dançar os arbustos floridos e os canaviais. Ao longe, para oeste, as montanhas andinas mostravam os seus chapéus de neve, em jeito de provocação, atazanando-nos o espírito pela antecipação do que iríamos ver no dia seguinte.

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O deslumbramento dos glaciares

 

O autocarro da Cal-Tur foi buscar-nos ao hotel por volta das 9 da manhã, mas demorámos mais de duas horas até finalmente termos um vislumbre do Perito Moreno: houve paragens para ir buscar outros turistas, e em miradouros estratégicos sobre o Lago Argentino e as montanhas que o rodeiam. A paisagem e as explicações da guia fizeram com que a viagem fosse menos monótona e parecesse mais curta.

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Os glaciares ocupam 10% da superfície do nosso planeta e contêm 90% da água potável disponível em todo o mundo. Os maiores estão na Antártida e na Gronelândia, mas o Campo de Gelo do Sul da Patagónia, com quase 17.000 km2, é a terceira maior extensão de gelo continental da Terra, e é nele que se insere o Perito Moreno. Com cerca de 250 quilómetros quadrados (uma área superior à da cidade de Buenos Aires), é um glaciar notável tanto pela vastidão como pela sua dinâmica única. A maior parte dos glaciares que existem no nosso planeta estão a regredir, mas o Perito Moreno é um dos poucos que mantém um equilíbrio notável: avança cerca de dois metros por dia, mas perde também diariamente uma quantidade de massa proporcional, o que mantém a sua estabilidade.

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Na encosta do Parque Nacional Los Glaciares com vista para o Perito Moreno foi criado um conjunto de passarelas com cinco percursos distintos (um deles acessível a pessoas com mobilidade reduzida) e vários miradouros, de onde podemos observar o glaciar de diferentes ângulos. Qualquer que seja a perspectiva de que o vemos, é um fenómeno geológico magnífico. Tem mais de quatro quilómetros de largura e ergue-se até 78 metros acima do nível das águas do Lago Argentino. Mais impressionante ainda, a massa invisível que fica debaixo de água pode chegar aos 700 metros de profundidade.

O que todos estes números não traduzem é o deslumbramento que senti perante este gigante gelado. Vê-lo em fotografia é fascinante, mas ao vivo é toda uma outra emoção. Sente-se o frio que trepa pela encosta, mesmo não havendo vento, e que faz arder o nariz e as faces. Ouvem-se os gemidos do gelo, que se dilata e contrai, e de vez em quando se despenha ruidosamente no lago, formando círculos leitosos na água parada, opaca, pintada em tons de jade e brilhante mesmo quando o céu ameaça chuva. O vermelho-vivo das flores da árvore de fogo chilena (Embothrium coccineum; “notro”, na linguagem local) destaca-se no fundo verde-escuro e azul da paisagem. Um caracará (Carcara plancus) posa para as fotografias, e depois decide abrir asas e partir para longe das atenções. O Perito Moreno faz parte de um ecossistema vivo, um habitat vital para diversas espécies de fauna e flora adaptadas às condições únicas do ambiente glacial; estar ali, sentir a magnitude daquela maravilha da natureza, foi uma experiência que transcendeu a mera contemplação visual e fez crescer ainda mais o meu respeito pelo planeta em que vivemos.

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Descemos ao lago para um passeio de barco nas águas onde flutuam pequenos blocos de gelo, alguns deles já translúcidos, prestes a derreter. A embarcação não se aproxima a menos de três ou quatro centenas de metros do glaciar, mas mesmo assim o efeito é avassalador. À nossa frente ergue-se uma muralha de gelo irregular e agreste, mais alta do que um edifício de 20 andares, larga a perder de vista, de um azul entre o turquesa profundo e o quase branco, cruzado por veios escuros. De repente, um grande estrondo e um murmúrio de admiração que se alastra pelos ocupantes do barco: uma torre de gelo desprendeu-se do glaciar mesmo à nossa frente – gelo que se formou há cerca de 400 ou 500 anos, um tempo muito superior ao de qualquer vida humana.

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Paraíso do trekking

 

Como cada vez gosto mais de caminhar, a minha viagem à Patagónia tinha obrigatoriamente de incluir El Chaltén – que se autodenomina “capital argentina do trekking”. É com base nesta vocação que a localidade tem crescido, pese embora a sua finalidade inicial tenha sido política. Na verdade, El Chaltén foi fundada em 1985 como parte de um esforço para estabelecer presença humana e reforçar a soberania argentina sobre a região da Patagónia. Mas a sua localização, na base das montanhas andinas Fitz Roy e Cerro Torre e muito perto do Lago Viedma, atraiu aventureiros de todos os pontos do globo, e tornou-se um destino popular para os amantes do montanhismo e do alpinismo. Integrada no Parque Nacional Los Glaciares, nota-se um foco significativo na preservação ambiental e na promoção do turismo sustentável. A localidade mantém uma atmosfera simples e acolhedora, embora ofereça uma variedade de serviços virados para o turismo, e é um ponto de partida estratégico para quem gosta de aventura e de actividades ao ar livre.

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Os 220 km de estrada que separam El Calafate de El Chaltén foram mais uma vez transpostos em autocarro. Três horas de viagem bem instalada no piso superior do veículo, à frente de uma janela panorâmica. Não que houvesse muito para ver: a paisagem entre as duas localidades resume-se a terra deserta, com uma ocasional sugestão de montanhas muito ao longe, e às extensões de água azul dos lagos. Quase no final da viagem, a atmosfera passou de soalheira a enevoada, e quando finalmente parámos no terminal rodoviário de El Chaltén o mau tempo tinha-se instalado, com chuva e vento forte. No quilómetro que tivemos de andar até ao alojamento, a impressão com que fiquei foi a de uma “cidade” com um desolador ar de acampamento pouco mais que provisório, semi-deserta, desenxabida e pouco acolhedora.

 

Com a minha sorte habitual, o tempo mudou passadas umas horas, e os dias seguintes encarregaram-se de também mudar a minha opinião. Por trás do aspecto incipiente das suas casas e ruas, El Chaltén revelou ter um ambiente jovem, simpático e hospitaleiro, onde fomos recebidas com sorrisos e respostas a todas as nossas perguntas. Cafés e restaurantes com ambiente intimista e comida excelente, conversas animadas – o empregado de mesa do “La Esquina”, onde tomámos várias refeições, até falava connosco em português do Brasil – e um interesse genuíno no nosso bem-estar, a par de alguma curiosidade sobre nós e o nosso país. Deu para perceber que não passam por ali muitos portugueses.

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Depois foram dois dias intensos de caminhadas, que tiveram tanto de cansativas quanto de memoráveis. Mesmo os trilhos mais curtos envolvem subidas contínuas durante vários quilómetros, e implicam algum esforço e várias paragens para descansar. Por vezes até tive vontade de desistir. Mas valeu bem a pena todo o “sacrifício”. Há qualquer coisa de mágico naquelas montanhas. De cada vez que olhava para o Fitz Roy – que em El Chaltén é bem visível de qualquer parte – dava por mim a sorrir. Percorrer aqueles trilhos que me mostravam várias perspectivas destes picos foi um privilégio que nunca vou esquecer.

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Dos quatro percursos que fizemos, o mais desafiante foi também o meu preferido, não por ser difícil (que o é bastante, uma ascensão de 350 metros ao longo de 3 km) mas pelo entorno. O trilho que sobe até à Laguna Capri passa pelo miradouro do rio de las Vueltas (aqui quase ia ficando sem gorro, tal era a violência do vento), de onde se avistam muitos quilómetros da Cordilheira Andina e do vale em que o rio vai serpenteando. Depois entramos numa maravilhosa zona de bosque onde predomina a faia-antárctica (Nothofagus antarctica; “ñirre”, em espanhol), e mais ou menos a meio entre o terceiro e o quarto quilómetro começamos a ver o contorno das montanhas por entre as árvores. Até que chegamos finalmente à Laguna Capri, um extenso tapete de água transparente que reflecte as cores do céu e da vegetação que o rodeia, com o Cerro Torre, o Fitz Roy e o glaciar Piedras Blancas lá ao fundo. É a recompensa pelo esforço da subida.

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Para aproveitar ainda mais aquele maravilhoso ambiente, prolongámos o passeio pela vereda que acompanha a margem do lago e depois inflecte até ao ponto a que dão o nome de Miradouro do Fitz Roy, num percurso circular que desemboca no trilho da Laguna de Los Tres e se une mais abaixo ao caminho que nos levou à lagoa.

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No extremo sul de El Chaltén, depois de passarmos uma ponte, fica o Centro de Visitantes do Parque Nacional, que marca também o início de outros trilhos. Os mais curtos levam-nos a dois miradouros com nomes de aves habituais nesta região: o Mirador de los Cóndores e o Mirador de las Águilas. O primeiro é curto mas tirou-me o fôlego, e de duas maneiras: pela subida acentuada, que me deixou os músculos das pernas a reclamar descanso (nesse dia já tinha caminhado 16 km), e por oferecer a melhor vista sobre El Chaltén – que, deste sítio, parece feita de casinhas do Monopólio. O segundo partilha um troço da subida do primeiro, mas depois torna-se misericordiosamente quase plano até chegarmos ao miradouro, um promontório rochoso com um panorama excepcional, que inclui o Lago Viedma e a extensa planície que o acompanha. O regresso, nesta área de vegetação rasteira que exibia os verdes e vermelhos de uma Primavera avançada e com o sol já a descer na direcção das montanhas, foi a parte que mais apreciei e fiz com asas nos pés, por ter sempre no horizonte o perfil do Fitz Roy e outros picos nevados dos Andes. El Chaltén tem uma atmosfera verdadeiramente especial.

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O apelo da natureza

 

No imaginário das minhas viagens sonhadas, a Patagónia era um misto de lugar desértico com paisagens arrebatadoras e pequenos povoados tranquilos varridos pelo vento. A realidade encarregou-se de me mostrar que, em grande parte do território que visitei (sobretudo no lado argentino), há mais aridez e monotonia do que eu imaginava, e os locais habitados são bastante mais movimentados e menos românticos do que estava à espera.

 

Ainda assim, as vastas extensões semi-selvagens, a sua biodiversidade e a imponência das montanhas e dos glaciares fazem da Patagónia uma região particularmente apelativa para quem procura conhecer lugares menos adulterados pelo Homem. Ao longo dos tempos, vários filósofos tentaram explicar esta atracção que a natureza exerce sobre nós, seja como fonte de autenticidade, utilidade ou inspiração espiritual. Para mim, no entanto, a única perspectiva com a qual consigo identificar-me é a do valor intrínseco da natureza, exterior e independente a qualquer potencial utilidade para o ser humano. Nós existimos porque fazemos parte dela, e arrogarmo-nos o direito de usar e abusar dela é pura estupidez.

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A parte final desta viagem implicou o regresso de autocarro a El Calafate, de onde apanhámos depois o avião para Buenos Aires. Para esta estadia de uma única noite escolhemos um alojamento mais modesto, numa rua tranquila perto do centro da cidade. À frente da casa estavam plantados alguns calafates que, a um mês de distância do Verão austral, já tinham substituído as suas típicas flores amarelo-vivo por bagas arroxeadas. O calafate (Berberis microphylla) é um arbusto espinhoso endémico da Patagónia, cujo fruto comestível é aproveitado desde a pré-história como alimento, pelo seu grande valor nutritivo, e também usado para fins medicinais. Sabe-se actualmente que tem uma das mais altas actividades químicas antioxidantes presentes em frutos comestíveis do planeta, sendo considerado um superalimento. As flores são amarelas, mas as bagas são de um azul quase negro, parecidas com os mirtilos. Esta foi a única oportunidade que tive de as ver, ainda verdes, mas já as tinha provado em forma de doce, por sinal delicioso.

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De tão popular que é, existem muitas lendas associadas ao calafate. Mas a mais promissora é a que diz que quem come este fruto, garante o seu regresso à Patagónia. Parece-me um bom presságio.

 

(Também publicado no blogue Viajar Porque Sim)

Patagónia, terra de contrastes - parte 1

Ana CB, 04.07.24

É longa a viagem até ao fim do mundo. Em linha recta seriam menos de 12 mil quilómetros, mas na vida real o percurso entre o nosso pequeno rectângulo europeu e o extremo sul do continente americano implica três voos e muitas, muitas horas. Quando – finalmente! – o avião que nos trazia de Buenos Aires reduziu a altitude para aterrar em Ushuaia, sobrevoando montanhas coroadas de neve e ilhas que mais pareciam borrões de tinta sobre água azul-chumbo, sentia-me ao mesmo tempo aliviada por chegar, expectante pelo que antevia, e assombrada com o que já estava a ver. Era o início de uma viagem pelo sul da Patagónia, e tinha decidido começá-la na cidade que se autodenomina “fim do mundo”.

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Onde a terra acaba

 

Ushuaia é cidade argentina e fica na Ilha Grande da Terra do Fogo, à beira do Canal Beagle, onde a fronteira com o Chile faz um ângulo abrupto de 90 graus para norte, prolongando-se em linha absolutamente recta até à costa setentrional da ilha. Este limite artificial, estabelecido pelo Tratado de 1881 entre os dois países vizinhos, isolou a Terra do Fogo argentina do resto do país: é impossível lá chegar por via rodoviária sem passar pelo Chile, e é por isso que grande parte dos visitantes da cidade chega e parte de avião. No nosso caso, aplicava-se apenas a primeira parte. A saída ia ser de autocarro, e este iria continuar a ser o nosso modo de locomoção durante o resto da viagem até à hora de regressar a Buenos Aires para depois voltar a casa.

 

Começar em Ushuaia um périplo de quase três semanas pelo sul da Patagónia revelou-se uma boa decisão. Cidade mestiça, cruzamento de aldeia alpina com localidade nórdica, temperada com pitadas de tropicalidade sul-americana, a sua atmosfera meio sonolenta foi ideal para me acostumar à temperatura (baixa, mesmo na Primavera), ao castelhano em que o “ll” soa a “g” ou “ch”, mas nunca a “lh”, ao câmbio de milhares de pesos traduzidos em poucos euros. Percebi que sermos cumprimentadas com um “Hola chicas!” é sinal seguro de simpatia, e que por aqueles lados as tradicionais empanadas foram elevadas à categoria de delícia de comer e chorar por mais. Passeámos com vagar pela avenida marginal e pelas ruas geometricamente desenhadas, onde o kitsch comercial predomina e harmonia arquitectónica é conceito desconhecido: cada edifício tem o seu estilo, muitos a penderem para o vanguardista desinspirado, cada casa parece ter sido propositadamente construída para contrastar com as vizinhas, e grande parte delas têm ar de pré-fabricadas. Visitámos o antigo Presídio, agora transformado em complexo museológico com entradas pagas a preço inflacionado para turistas, e subimos a escadaria-passadiço do Paseo del Centenario, o melhor miradouro sobre a cidade e a baía. Ambientei-me.

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Ushuaia significa também a oportunidade de ver pinguins no seu habitat natural, mas para isso há que fazer um passeio de barco no Canal Beagle até à Isla Martillo, a que informalmente chamam Pingüinera. É aqui que, nos meses do Verão austral, se instalam três espécies diferentes de pinguins com um único propósito: nidificar. Os mais abundantes são os pinguins-gentoo e os pinguins-de-magalhães, mas em anos recentes têm também aparecido pinguins-rei. A ilha está classificada como reserva natural, por isso nos passeios mais comuns, como o que fizemos, a embarcação apenas se aproxima da praia e vemos os pinguins à distância – suficiente para os observarmos em idas e vindas no seu habitual passo oscilante, mais engraçados ainda quando se enchem de pressa e aceleram, com as asas meio abertas em jeito de corcunda. Independentemente disso, qualquer passeio no Canal Beagle é um festim para os olhos, sobretudo se tiverem a sorte que tivemos: depois de um amanhecer cinzento, um dia de sol aberto que fazia brilhar a água e a neve espalhada nos cumes das montanhas.

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Guardámos para o final o Parque Nacional Tierra del Fuego, cuja entrada fica a cerca de 20 km de Ushuaia, com várias ligações diárias em minibus. Nos seus quase 700 km2, este parque conjuga ambientes de montanha, de floresta andino-patagónica e aquáticos, numa variedade de cenários cruzados por trilhos pedestres na sua maioria fáceis de percorrer. Foi aqui que passámos o nosso último dia na Terra do Fogo argentina, caminhando em volta da Baía Lapataia e depois bosque adentro, tendo como banda sonora o rugido suave das árvores e o toc-toc ocasional de algum pica-pau. Frequentemente, uma mancha branca ou castanha com riscas negras mexia-se entre a vegetação ou atravessava-se no nosso caminho: o ganso-de-magalhães é a ave mais abundante por estes lados, tão comum que a sua imagem está no logótipo do parque. Piquenicámos com vista para a Laguna Verde na companhia de um falconídeo guloso, ao longe o fumo dos grelhadores do parque de campismo subia até se juntar à neblina ligeira que teimava em soltar-se das encostas. E foi a descansar à beira do Lago Acigami, água-espelho entre um corredor de montanhas, com o Cerro Cóndor ali ao lado, indiferente ao facto de ter uma fronteira a dividi-lo, que nos despedimos das terras argentinas do fim do mundo.

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Terra de contrastes

 

A Patagónia, região que povoa abstractamente os sonhos de tanta gente, é uma área na América do Sul com cerca de 11 vezes o tamanho de Portugal, convencionalmente limitada a norte por Puerto Montt e o lago Todos Los Santos, no Chile, e pelos rios Colorado e Barrancas, na Argentina, estendendo-se até ao arquipélago da Terra do Fogo, no extremo sul do continente americano. Parte da Cordilheira dos Andes rasga-a de norte a sul, fazendo simultaneamente a divisão entre os dois países, com a Argentina a ocupar a maior fatia do território e só perdendo para o Chile mesmo quase na extremidade meridional, onde apenas conseguiu reclamar para si a ponta leste da Terra do Fogo. Esta separação geográfica resulta num contraste muito nítido no relevo da região patagónica em cada um dos países: o lado chileno é quase completamente composto por ilhas, muito recortadas e com relevo acidentado, tem vegetação abundante e alberga a maior parte do Campo de Gelo do Sul da Patagónia, a terceira maior área de gelo continental no nosso planeta; na sua parte argentina, o território é árido e plano, só variando na faixa junto aos Andes, onde as montanhas e os lagos glaciais modificam a paisagem.

Às seis horas de uma manhã fria, um minibus levou-nos até Rio Grande, 200 quilómetros feitos em quase três horas e meia através de nenhures, com apenas uma breve paragem em Tolhuin, a única localidade que atravessámos durante o percurso. No terminal rodoviário de Rio Grande houve que tratar das formalidades para mais tarde cruzar a fronteira sem sobressaltos: no Chile não é permitido entrar por via terrestre com nenhum tipo de comida que seja perecível a curto prazo. As sete horas e meia seguintes foram passadas num autocarro em nada diferente dos que nos levam pelas estradas portuguesas em trajectos bem menos longos. Não há ligação terrestre contínua, por isso a passagem do Estreito de Magalhães é feita num ferry, e a espera de vez para entrar na embarcação consumiu mais de duas horas. O destino? Punta Arenas, a capital da região mais meridional do Chile.

 

O contraste entre Ushuaia e Punta Arenas é flagrante, e têm apenas um pormenor em comum: ambas ficam junto ao mar. Mas enquanto o Canal Beagle é sereno e rodeado de montanhas, o Estreito de Magalhães é um mar amplo e sem margem oposta à vista, como os oceanos que une. Fundada em meados do século XIX para consolidar a presença chilena no Estreito – que na altura era a única ligação marítima entre os oceanos Atlântico e Pacífico e, portanto, uma via de grande importância para o comércio – Punta Arenas mostra, no seu centro histórico, a monumentalidade clássica da época. Passeando entre os edifícios de pedra decorados com arcos, volutas, motivos florais e ferros forjados, nas avenidas largas e arborizadas, ou no cemitério, onde o kitsch e os jazigos de mármore ornamentado coexistem pacificamente, senti-me como se estivesse numa qualquer localidade europeia, em vez de numa cidade isolada nos confins do continente americano, mais perto da Antártida do que de Santiago do Chile. Bons restaurantes e o melhor alojamento de toda a viagem – gerido com grande simpatia pelo Arturo, um professor apaixonado por Portugal que escolhia Mariza e Cesária Évora como música de fundo ao pequeno-almoço – também influenciaram a decisão de ficar em Punta Arenas mais um dia do que o previsto.

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O arco-íris que nos saudou na tarde da chegada à cidade foi anúncio de bom tempo. Ainda assim, o vento não deu tréguas na viagem de barco que nos levou no dia seguinte à Isla Magdalena que, com a sua irmã menor de nome Marta, forma o Monumento Nacional Los Pinguinos. A ilha é protegida por ser o local no Chile mais importante para a nidificação dos pinguins-de-magalhães, e nela chegam a congregar-se mais de 200 mil indivíduos desta espécie. O desembarque é permitido nesta ilha, onde fizemos uma caminhada de cerca de uma hora com passagem pelo farol construído em inícios do século XX. O percurso está marcado por estacas e cordões, por isso conseguimos ver de perto os pinguins e as tocas em que fazem os ninhos. Como é óbvio, qualquer interacção com os animais é estritamente proibida.

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Punta Arenas não foi o primeiro assentamento nesta região inóspita. Instruídos pelo presidente Manuel Bulnes para tomarem posse do Estreito de Magalhães, os primeiros colonos chilenos instalaram-se 52 km mais a sul e ergueram o Fuerte Bulnes em 1843. No entanto, as terríveis condições climatéricas do lugar levaram a que os seus habitantes resistissem apenas durante seis anos, após os quais decidiram abandonar o povoado e mudar para o local onde hoje se encontra a cidade. Para celebrar o centenário da criação dessa colónia, o forte foi reconstruído e classificado como sítio histórico-museológico, estando actualmente incluído no Parque del Estrecho. Além do Fuerte Bulnes, onde estão recriadas algumas construções que faziam parte do assentamento, a excursão guiada que nos levou nesta visita incluiu uma caminhada pelos dois percursos pedestres do parque, que são de baixa dificuldade e cheios de beleza. Um atravessa o Bosque del Viento, rico em flora endémica e árvores fascinantes. O outro percorre parte da península junto à costa, com vistas encantadoras sobre o Estreito de Magalhães e as ilhas e montanhas em volta.

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Lagos e montanhas

 

A Ruta 9 liga Punta Arenas a Puerto Natales, as duas principais cidades do sul da Patagónia chilena. Nesta extensa fita de asfalto, rodeada de estepe acastanhada, deserta e só ocasionalmente interrompida por algum lago desinteressante, as curvas são tão largas que se tornam imperceptíveis, e a estrada assemelha-se a uma recta sem fim. Nestes percursos de autocarro pelo sul da Patagónia senti-me como se estivesse no faroeste norte-americano. Horas e mais horas de paisagem monótona, onde até os guanacos são raros e mal se adivinham ao longe, silhuetas escuras sob o brilho inclemente do sol. Felizmente, a viagem até Puerto Natales foi bem mais curta e menos cansativa do que a anterior: apenas três horas e meia.

 

A primeira impressão que tive da cidade não foi das melhores, e não se modificou grandemente nos dias seguintes. Aliás, e pese embora tenha mais de 20 mil habitantes, chamar-lhe cidade é quase um eufemismo. Puerto Natales tem ar de aldeia – uma aldeia grande, feita à pressa e largada antes de estar pronta. As ruas são linhas rectas, sobrevoadas por centenas de fios emaranhados entre postes e limitadas por casas baixas, com telhados achatados e na sua maioria de aspecto meio provisório. Vêem-se poucas pessoas, árvores ainda menos, e os carros são inúmeros mas estão, misteriosamente, quase todos parados. À beira do golfo Almirante Montt e com os Andes como cenário, a zona da marginal poderia ter um ambiente menos mortiço, mas não é o caso. Há mais pedra e cimento do que areia, os edifícios novos parecem algo deslocados do entorno, as esculturas espalhadas pela avenida não são particularmente atractivas (com excepção da “Amores de Viento”, que se tornou num dos ex libris da cidade) e nem a água se mexe. Mesmo com sol, tudo parece congelado no tempo. Deste marasmo salvam-se algumas excepções, como o edifício do Espaço Cultural Nataris, na praça principal da cidade, que já foi Câmara Municipal e está desde há alguns anos convertido em centro de exposições e cultura.

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Puerto Natales vive actualmente muito do facto de ser a porta de entrada para o Parque Nacional Torres del Paine – que, ainda assim, fica a mais de 100 km de distância. Os autocarros diários que fazem a ligação com o Parque vão cheios de mochileiros carregados com tendas, sacos-cama e outros apetrechos necessários para passarem vários dias nas montanhas a percorrerem os circuitos W (71 km em 5 dias) ou O (120 km, 8 dias). A nossa ideia inicial tinha sido visitar o Parque durante dois dias, mas os constrangimentos provocados por uma greve de trabalhadores (alguns trilhos e estradas estavam encerrados) e o preço exorbitante do catamarã que liga as margens leste e oeste do Lago Pehoé fizeram-nos mudar de ideias. Decidimos reduzir as nossas ambições a um único dia e ficarmos pela área da Estância Pudeto, para percorrer o trilho que passa pela cascata do Salto Grande e segue até ao Mirador Cuernos. Meio dia é suficiente para esta curta visita, mas vale a pena fazer o percurso com calma e piquenicar à beira do Lago Nordenskjold, que tem o nome do geólogo e explorador sueco que o descobriu em inícios do séc. XX. O local é de uma beleza natural mesmerizante, sobretudo pela cor turquesa das águas do lago, mais brilhante ainda em dia de muito sol. Do Mirador Cuernos avistam-se o Cerro Paine Grande e os Cuernos del Paine, duas montanhas icónicas do Parque – e este ficou, para mim, como um dos lugares mais memoráveis de toda a viagem.

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(Também publicado no blogue Viajar Porque Sim)

26 grandes e pequenas razões para conhecer Portugal

Ana CB, 10.06.24

Gosto de Portugal desde que me lembro de ser gente. Comecei a viajar pelo país quando ainda era miúda, com a minha família, e tenho recordações vívidas de vários lugares onde íamos passar férias ou simplesmente de visita: a Praça da Fruta nas Caldas da Rainha; a praia da Foz do Arelho; o Portugal dos Pequenitos; Albufeira quando as praias tinham pouca gente e os carros ainda passavam na Rua 5 de Outubro; Sines antes de a terem estragado; as rectas do Alentejo, onde o meu pai cometia a “loucura” de acelerar até aos 100 km por hora; os passeios em Lisboa, a cidade onde nasci e vivi a maior parte da minha vida.

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À medida que os anos foram passando, continuei a viajar em Portugal. E quanto mais conheço este nosso pequeno país, mais ele parece crescer. Há sempre um recanto que ainda não tinha descoberto, um museu que abriu há pouco tempo, uma aldeia reconstruída, uma praia renovada, um parque com alguma novidade. Esta capacidade que Portugal tem de se reinventar é um dos seus maiores atributos, a par da enorme diversidade paisagística e cultural.

 

Numa altura em que o mundo parece ter entrado em ebulição constante, com as guerras e o terror a espalharem-se por quase todos os continentes como erva daninha, viver em Portugal é uma sorte. Sorte porque os nossos conflitos sociais são sempre brandos quando comparados com os dos outros, sorte porque somos um país pequeno que não ameaça ninguém, nem ninguém cobiça, sorte porque apesar de estar longe da perfeição, o nosso país ganha em comparação com muitos outros. Estão à vontade para discordar, mas esta é a minha opinião.

 

Hoje, Dia de Portugal, parece-me ser uma boa altura para “contar as nossas bênçãos” e enumerar todas as boas razões por que vale tanto a pena viver aqui e, sobretudo, conhecer melhor o nosso país.

 

Estátua de D. Afonso Henriques, Guimarães.JPG

Somos o Estado-nação mais antigo da Europa. As nossas fronteiras foram definidas em 1297 pelo tratado de Alcanizes e mantêm-se inalteradas desde essa altura (à parte aquela velha querela sobre Olivença e arredores que todos conhecemos). Talvez por isso as nossas regiões, tão diferentes umas das outras, consigam coexistir pacificamente (com um ou outro bairrismo que até nos torna mais divertidos) há tanto tempo.

 

As ilhas portuguesas são verdadeiros tesouros. Os Açores são nove jóias, todas diferentes umas das outras e felizmente ainda não demasiado lapidadas pelo turismo, razão pela qual receberam recentemente o certificado de destino sustentável atribuído pelo Global Sustainable Tourism Council (GSTC). Quanto às ilhas do arquipélago da Madeira, são como que uma espécie de paraíso tropical português. As Desertas e as Selvagens são áreas protegidas e de acesso restrito. Madeira e Porto Santo são mecas do turismo nacional e internacional, mas nem isso nos rouba o prazer que é visitá-las. E há ainda as Berlengas, as ilhas da Ria Formosa, a alentejana ilha do Pessegueiro e muitas outras, atlânticas ou fluviais, ilhéus, mouchões e ínsuas, cada um destes isolados pedaços de terra ou rocha com a sua própria mística e as suas próprias histórias.

Poço da Ribeira do Ferreiro, ilha das Flores.JPG

 

Em Portugal (continente e ilhas) estão classificados 24 parques naturais e 1 parque nacional. Juntando-lhes várias reservas naturais, zonas de paisagem protegida, monumentos naturais e parques marinhos, o que não nos falta são lugares onde podemos usufruir o que há de melhor na natureza em estado ainda razoavelmente bruto.

 

Há no nosso país vestígios pré-históricos importantíssimos. Desde os achados relacionados com dinossauros na Lourinhã e na Serra de Aire aos inúmeros monumentos megalíticos com milhares de anos que existem em todo o país, passando pelas gravuras rupestres do Escoural e do Côa, e pelo esqueleto com 24.500 anos do Menino de Lapedo, em Portugal têm sido encontradas inúmeras e significativas evidências arqueológicas que contribuíram para um melhor conhecimento da vida na Terra em vários períodos da Pré-História.

Cromeleque dos Almendres, Alentejo.JPG

 

Temos inscritos na UNESCO 17 lugares como Património Mundial e 10 elementos como Património Cultural Imaterial da Humanidade. Podem consultar as listas aqui e aqui.

 

A Universidade de Coimbra é uma das mais antigas do mundo ainda em funcionamento. Foi criada por D. Dinis em 1290, com a sua localização a alternar entre Lisboa e Coimbra até 1537, ano em que se fixou definitivamente na cidade que lhe dá o nome. A Biblioteca Joanina, que data do século XVIII, é uma das bibliotecas europeias mais bonitas e originais.

Paços da Universidade, Coimbra.JPG

 

A língua portuguesa é riquíssima e falada por 265 milhões de pessoas. Celebra-se a 5 de Maio, desde 2019, o Dia Mundial da Língua Portuguesa. Há falantes de português espalhados pelos cinco continentes, e a diversidade de sotaques e vocabulário é enorme, mesmo dentro do pequeno rectângulo formado por Portugal Continental.

 

A Livraria Bertrand que fica no Chiado, em Lisboa, abriu as portas em 1732. Está registada no Guinness World Records como sendo a livraria mais antiga do mundo ainda em funcionamento. Situada num edifício forrado a azulejo na esquina da Rua Garrett com a Rua Anchieta, cada uma das suas sete salas com tectos abobadados tem o nome de um escritor português. A sala Aquilino Ribeiro, que é a sala de entrada, ainda mantém estantes antigas em madeira maciça.

 

Há cada vez mais investimento para renovar e melhorar as nossas cidades e vilas. Nota-se um esforço enorme em todo o país para tornar mais agradáveis os grandes aglomerados populacionais. É verdade que este esforço é dirigido ao aumento do turismo em Portugal, mas também é verdade que nalguns aspectos todos nós, habitantes e visitantes, acabamos por beneficiar disso, sobretudo no que toca ao património cultural e ao embelezamento dos espaços públicos. É claro que há também o reverso da medalha (aumento do ruído em certas zonas, subida dos preços da habitação e de certos bens, descaracterização), mas mesmo assim ainda estamos longe dos exageros que se vêem por esse mundo fora. Até ver…

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A calçada portuguesa é uma expressão artística genuinamente nossa. Herança histórica da cultura e da tecnologia de construção dos romanos, fomos nós, os portugueses, que lhe demos vida e características especiais e a espalhámos pelo mundo. Onde quer que encontremos pavimentos calcetados com paralelepípedos de pedra branca e negra formando desenhos, podemos ter a certeza de que a inspiração e a ideia partiram daqui. Apesar de associarmos quase sempre a cor preta da pedra ao basalto, a verdade é que na calçada portuguesa são habitualmente utilizados o calcário branco e o negro. O basalto apenas é usado nas ilhas, onde existe em abundância e se torna mais económico, pois é um material muito mais duro e difícil de trabalhar.

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O Estilo Manuelino tem características muito próprias que o tornam distinto das outras correntes góticas. Particularmente notável no campo decorativo, tem uma preferência nítida pelas ornamentações de inspiração marítima e vegetal, exóticas e em quantidade abundante, influência indubitável das civilizações com que os nossos navegadores contactavam. Está também sempre presente a simbologia régia, importante para que ninguém esquecesse quem tinha sido o promotor da obra arquitectónica admirada.

 

Há em Portugal 241 castelos (se a Wikipedia estiver correcta e eu não me tiver enganado na contagem). A maioria deles data da Idade Média, sobretudo dos séculos da fundação do país e subsequente expansão até à consolidação das nossas fronteiras. Alguns são sobejamente conhecidos e visitados, outros estão praticamente em ruínas, mas todos eles são lugares cheios de interesse, ricos em história e em lendas, e parte importante do nosso património cultural.

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Ficam no nosso país os pontos mais ocidentais da Europa. O Cabo da Roca, perto da vila de Sintra, é o ponto mais a oeste no continente europeu, visitado todos os anos por milhares e milhares de pessoas, tanto estrangeiros como nacionais. Quanto ao ponto mais ocidental da Europa, o ilhéu de Monchique, é uma simples rocha com 30 metros de altura ao largo da Fajã Grande, na nossa maravilhosa ilha das Flores.

 

Portugal tem uma enorme diversidade de pontes, a maioria delas belíssimas. Há várias de origem romana, que encontramos como ex libris de cidades ou vilas, ou então em lugares recônditos, quase escondidas. Outras, concebidas em épocas diversas da nossa História, evoluíram com o passar do tempo, modificando-se sucessivamente para se adaptarem às necessidades de utilização. E muitas são verdadeiros prodígios da engenharia, ícones de metal ou betão que identificamos facilmente com um simples olhar e se impõem como elementos dominantes na paisagem.

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A ponte internacional mais pequena do mundo liga Portugal a Espanha. TTem 6 metros de comprimento e 1,95 metros de largura e está construída sobre a ribeira de Abrilongo. Partilhada entre o nosso Alentejo e a Extremadura espanhola, une as localidades de Marco/El Marco, que na realidade são uma única aldeia onde se fala português. Durante muitos anos não foi mais do que uma rudimentar ponte pedonal em chapa metálica com um corrimão, que por vezes era arrastada pela corrente da ribeira se ocorriam chuvas mais abundantes. Há alguns anos foi construída uma nova ponte com suporte metálico e tabuleiro e protecções laterais de madeira.

Ponte do Marco, Alentejo.JPG

 

Fica na aldeia da Carrasqueira, junto ao rio Sado, o maior cais palafítico da Europa. Começou a ser construído nos anos 50 do século passado pelos pescadores que queriam aceder às suas embarcações durante a maré vazia, quando as margens do rio estão lamacentas e pantanosas. É uma obra-prima da arquitectura popular, uma rede irregular de passadiços feitos com tábuas pregadas sobre estacas de madeira que se tem mantido relativamente inalterada ao longo das décadas. De aspecto enganadoramente frágil, estende-se ao longo de algumas centenas de metros pelo estuário do rio adentro e abriga os pequenos barcos de pesca coloridos dos cada vez menos pescadores que ainda se mantêm activos naquela zona.

Cais palafítico da Carrasqueira, Setúbal.JPG

 

No nosso país há milhares de aldeias, na sua maioria riquíssimas em história, tradição, gastronomia, cultura e valor artístico. Algumas são famosas e recebem inúmeros visitantes todos os anos; outras, apesar de praticamente desconhecidas, são verdadeiras jóias com um património antiquíssimo para conhecer, tradições que perduram desde há séculos, histórias que merecem ser contadas e ouvidas. A desertificação galopante de grande parte das nossas aldeias tem vindo mais recentemente a ser contrariada pela necessidade crescente de regressar às origens e ao respeito pela natureza (e também pelo seu interesse turístico), o que está a provocar o ressurgimento progressivo de algumas delas.

 

Portugal é um país de mar. Temos mais de 940 km de linha de costa em Portugal Continental e quase outro tanto nas ilhas, extensas faixas de areia alternando com falésias rochosas de onde temos vistas amplas sobre o Atlântico. O mar é a nossa vocação: trouxe-nos glória no passado, é uma ânsia no presente, e quem sabe se não será ele o nosso futuro. E é o mar que nos dá as ondas célebres que fazem do nosso país uma das mecas do surf mundial.

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As nossas praias são excelentes. No continente são de areia fininha e clara, com águas frescas na costa oeste e mais amenas no Algarve. Nas ilhas há de tudo um pouco. Quanto às praias fluviais, crescem de ano para ano em quantidade e qualidade. E todas elas nos oferecem paisagens que enchem os olhos e o coração.

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Em Portugal Continental temos quase 3 mil horas de sol por ano e o nosso clima é predominantemente temperado, o que nos torna um país a que toda a gente se adapta com facilidade, seja em férias ou para viver. Se pensarmos que a maioria dos países europeus, por exemplo, não chega a ter 2 mil horas de sol por ano e tem temperaturas médias bem abaixo das nossas… não é difícil perceber as nossas vantagens.

 

Portugal é um país líder no recurso às energias renováveis. Entre 31 de Outubro e 6 de Novembro de 2023 batemos mais uma vez o nosso recorde do número de horas/dias em que a produção em termos de energias renováveis foi suficiente para suprir o consumo: 149 horas (mais de seis dias consecutivos). Foram produzidos 1102 GWh, mais do que o consumo nacional durante o mesmo período (840 GWh). Em 2022, a contribuição das fontes de energia renovável no consumo final de energia (incluindo consumos não energéticos) foi de 32%. E na Europa, somos o sétimo país que mais consome energia vinda de recursos renováveis.

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O calçado português é dos melhores do mundo. Conhecido desde sempre pela qualidade dos seus produtos, este sector tem vindo a evoluir exponencialmente desde os anos 90, aliando as novas tecnologias à criatividade e à flexibilidade logística e produtiva. Com a aposta nos produtos personalizados e de grande valor acrescentado, as exportações cresceram durante oito anos consecutivos e o calçado português passou a ser o segundo mais caro a nível mundial.

 

A cortiça é um dos nossos produtos naturais mais característicos. Temos em Portugal a maior extensão de sobreiros do mundo (33% da área mundial), pelo que não é de admirar sermos os maiores produtores e exportadores de cortiça – que além de tudo o mais é um produto totalmente reaproveitável e extraído manualmente sem danificar a árvore. O maior, mais antigo e mais produtivo sobreiro que existe no mundo foi plantado no ano de 1783 em Águas de Moura (Alentejo) e deram-lhe o nome de Assobiador. Foi eleito a mais bela árvore da Europa em 2018 no concurso “Tree of the Year”.

 

Há três oliveiras portuguesas entre as árvores mais velhas do mundo. A oliveira do Mouchão, em Mouriscas (Abrantes) tem a provecta idade estimada de 3350 anos. Em Santa Iria de Azóia, perto de Lisboa, sobrevive e ainda dá azeitona a oliveira a que chamam Portugal e se calcula ter cerca de 2850 anos. A mais jovem das três está em Monsaraz e terá à volta de 2450 anos.

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Em Portugal come-se maravilhosamente. A gastronomia tradicional portuguesa é rica e variada, usamos ingredientes que pouco ou nada são usados noutros países, tudo nos serve para fazer um prato delicioso. Temos vários tipos de sopas, cozinhamos a carne e o peixe de todas as maneiras e feitios, e temos dezenas de variedades diferentes de pão. Ninguém prepara o bacalhau como nós, nem com tanta imaginação. Adoramos inventar petiscos, e até a nossa comida de rua e o fast food são acima da média. Preferimos o azeite às outras gorduras e há séculos que sabemos usar bem os condimentos. E haverá algum outro país que tenha tanta diversidade de doces como nós? O café é praticamente uma instituição em Portugal; qualquer rua tem pelo menos uma pastelaria ou tasca onde se pode matar a fome ou a sede. E como se tudo isto não bastasse, ainda temos um sem-número de restaurantes de fusão, gourmet, vegetarianos ou com comidas típicas dos quatro cantos do mundo.

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Os vinhos portugueses são únicos e originais. Já na época da ocupação romana se exportavam vinhos produzidos no nosso território, o que quer dizer que produzimos bons vinhos desde há mais de dois mil anos. Um estudo de 2013 identificou 248 variedades de castas vinícolas indígenas de Portugal, consideradas pelos maiores especialistas como um “tesouro”. Isto faz com que os nossos vinhos tenham uma originalidade e uma variedade inigualáveis, a par com uma enorme qualidade – mesmo quando o seu preço não é elevado – razão pela qual o nosso país é uma referência entre os produtores vinícolas a nível mundial e as suas exportações de vinho têm vindo a crescer consistentemente.

 

Poderia facilmente continuar aqui a enumerar razões pelas quais Portugal merece ser conhecido, visitado e apreciado, porque neste caso elas também são como as cerejas e vêm umas atrás das outras. Só que este post arriscar-se-ia assim a ser interminável, e no fundo a minha missão passa simplesmente por vos incentivar a todos a continuarem a descobrir Portugal. Aceitam o desafio?

 

(Adaptado de um post no blogue Viajar Porque Sim)

Dias de fé em Ponta Delgada

Ana CB, 08.05.24

Quase nove da noite de uma sexta-feira de Maio em Ponta Delgada. Ao lusco-fusco do dia que chega ao fim, as pessoas que se deslocam pelas ruas da cidade confluem todas para um mesmo local: o Campo de São Francisco. No losango irregular da praça revestida de calçada à portuguesa, onde o basalto negro é mais abundante do que o calcário branco, aglomera-se uma multidão irrequieta e expectante, feita de gente de todas as idades, tamanhos, cores e sotaques. Não é Natal, mas os amigos e conhecidos que se cruzam desejam-se mutuamente as “Boas Festas”. Às 21 horas em ponto, solta-se das gargantas um “aaaaah!” colectivo. Acenderam-se as luzes do Santuário do Senhor Santo Cristo dos Milagres, e o efeito é avassalador. Milhares de lâmpadas coloridas formam volutas, flores, cruzes e outros objectos, num bordado luminoso que quase parece filigrana. Para os novatos neste espectáculo, como eu, a surpresa é grande. Os olhos arregalam-se, empunham-se telemóveis e câmaras fotográficas, tanta beleza tem de ser registada. É o primeiro grande momento das festas em honra do Senhor do Santo Cristo dos Milagres.

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Celebra-se sempre na quinta semana depois da Páscoa e é a maior festa religiosa dos Açores, congregando muitos milhares de devotos na cidade de Ponta Delgada – não só habitantes de São Miguel e das outras ilhas do arquipélago, como também inúmeros emigrantes na América do Norte, que enchem voos charter transatlânticos operados especificamente para esta ocasião e vêm matar saudades das suas origens. Realiza-se há mais de 320 anos e no entanto, facto algo estranho, é uma festa desconhecida para grande parte dos portugueses. Não sendo crente, sinto sempre curiosidade por estas manifestações seculares que fazem parte do tecido cultural de um povo, arreigadas na memória colectiva de cada região e sem perderem a sua força anímica. Decidi-me por isso a ir ver de perto (e viver) estas festas.

 

Quinta-feira: Oferecer flores e visitar o Santo

 

Maio é o mês das flores, mas nesta altura torna-se difícil encontrá-las nas floristas. O motivo é simples: são todas encaminhadas para o Santuário, onde um grande número de voluntárias dá corpo a lindíssimos arranjos florais que vão enfeitar igrejas, varandas, montras e, sobretudo, a capela do Santo e o andor onde será transportada a sua imagem. São sempre oferecidas, pois não há devoto que não queira contribuir para a festa do Senhor Santo Cristo. Acompanhei uma amiga que vive em São Miguel quando foi fazer a sua compra, e a tarefa não se revelou fácil nem rápida. Na loja havia quase mais pessoas do que flores (estou a exagerar, mas só um bocadinho). Jarras brancas orgulhosamente vazias ou com poucos exemplares, floristas de cara fechada, já sem paciência, concentradas no trabalho de montar arranjos ou a tentarem despachar os clientes que não desistiam e não paravam de chegar. Depois de quase uma hora, lá conseguimos sair dali com um molho de cravos vermelhos e brancos, escolhidos entre a parca oferta disponível.

 

A paragem seguinte é no claustro do Convento da Esperança, que integra o Santuário (existe uma congregação de freiras residente). Gordos baldes cinzentos acolhem as flores e verduras que os fiéis vão entregando, enquanto vários grupos de senhoras se afadigam em volta de mesas improvisadas com cavaletes, sobre as quais vão nascendo os arranjos.

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Peregrinamos depois até à Roda, embutida na parede lateral do Convento e que hoje já perdeu a sua função antiga de lugar de depósito dos “expostos” – as crianças entregues para serem criadas nos conventos, por falta de meios ou vontade das famílias. É ali que agora são deixados os donativos, em troca de pequenas recordações do Santuário, e quem oferece flores também tem direito a receber uma lembrança. Finalmente, seguimos para a igreja e vamos espreitar o local onde está resguardado o motivo principal de todo este corrupio: a imagem do Senhor Santo Cristo dos Milagres.

A capela fica do lado esquerdo de quem entra, separada da igreja por uma parede de vidro. É comprida, e lá ao fundo quase mais se adivinha do que se vê o busto do Santo Cristo. Os longos metros de chão envernizado estão cobertos por uma passadeira vermelha, e o espaço livre à volta é um mar florido, encabeçado por uma composição avantajada em que as palavras “Ecce Homo”, desenhadas com flores vermelhas, se destacam sobre um leito também feito de flores, só que brancas. Diz a Bíblia que “Ecce Homo” (Eis o Homem) terão sido as palavras pronunciadas por Pôncio Pilatos quando apresentou Jesus de Nazaré – já depois de flagelado – à multidão que iria decidir o seu destino. As representações “Ecce Homo” de Jesus são, por isso, imagens que mostram sofrimento.

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Mas a originalidade maior deste ícone é, quanto a mim, o facto de ser um busto. Em termos de imagens consagradas, não é um tipo de representação escultórica habitual na iconografia cristã (embora sendo comum na pintura). A origem desta imagem de madeira é desconhecida, e em concreto, por via de um estudo realizado em 2019, apenas se sabe que foi esculpida no século XVII. Pese embora as várias lendas tecidas sobre o assunto, a verdade é que se ignora quando ou como ela terá chegado à posse das clarissas de um mosteiro fundado na Caloura em 1523, mais tarde transferido e dividido em duas localizações diferentes: o Convento de Santo André, em Vila Franca do Campo, e o Convento de Nossa Senhora da Esperança, em Ponta Delgada. Foi aqui que Teresa de Jesus tomou o véu de noviça em 1682, e foi aqui que a imagem do Santo Cristo chamou a sua atenção e mais tarde, por influência de uma sua irmã, captou a sua devoção. Bem menos conhecida do que a sua homónima de Calcutá, Madre Teresa d’Anunciada foi a mentora do culto do Senhor Santo Cristo dos Milagres, e a sua figura é igualmente venerada.

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Sexta-feira: Começa a festa

 

Todo o centro da cidade está engalanado para esta ocasião. Não há montra que não tenha uma imagem devota, e muitas delas revelam-se sofisticadas obras artísticas em torno do tema. As varandas das instituições e grandes empresas vestem-se também a preceito, seja com uma simples colcha ou com um arranjo requintado. Ponta Delgada esmera-se para receber os forasteiros, com ou sem fé.

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Em cada ano, as cerimónias religiosas são lideradas por um bispo ou cardeal diferente. Já desempenharam estas funções figuras do alto clero tão importantes como D. José Tolentino de Mendonça, mais do que um Cardeal Patriarca de Lisboa, bispos do Porto, de Leiria e Fátima, de Florianópolis, da Bermuda e de Providence, o arcebispo de Boston, o Núncio Apostólico em Portugal. Embora o formato se mantenha basicamente o mesmo ano após ano, 2024 trouxe uma novidade: uma missa extra em inglês, no domingo de manhã. A comunidade emigrante já tem muitos não-falantes de português, e há que não desprezar o potencial do turismo religioso. Aliás, o prelado escolhido para presidir às celebrações deste ano foi o bispo católico de Stockton, na Califórnia, filho de pais açorianos mas nascido nos Estados Unidos. Um sinal de apreço pela devoção irredutível que os emigrantes lusos e seus descendentes têm mostrado pelo Senhor Santo Cristo ao longo das últimas décadas.

 

Com o trânsito cortado entre o Forte de São Brás e a marina, a avenida marginal enche-se de barraquinhas onde se vende de tudo um pouco, rulotes de fast food e carrinhos de gulodices, carrocéis e tudo o mais que é imprescindível numa festa popular portuguesa. Nas Portas do Mar, uma tenda gigantesca acolhe a iniciativa anual da Câmara do Comércio e Indústria de Ponta Delgada, a que dão o nome de Feira Lar Campo e Mar e se prolonga pelo espaço no subsolo do recinto. No piso de cima predomina o artesanato, variado e sobretudo original, enquanto o piso inferior está vocacionado para o comércio e indústria de maior porte. O valor do bilhete de acesso é quase simbólico, pelo que acaba por ser ponto de visita obrigatório e há alturas em que está a abarrotar de gente.

Dependendo da altura do dia e da lentidão do passo, o quilómetro que separa a Feira do Forte de São Brás talvez seja suficiente para abrir o apetite, e quem não gostar de comidas rápidas pode satisfazer a fome num dos restaurantes montados ao abrigo da muralha oeste do Forte. Nem sempre é fácil encontrar mesa, mas não há nada melhor do que umas lapas grelhadas para confortar o estômago e fazer esquecer as dores nos pés.

 

Quando a iluminação nocturna é inaugurada, os edifícios do Santuário, em dias normais singelamente vestidos de branco e cinzento, transformam-se (quase como por milagre) num objecto etéreo, flutuando contra o negrume da noite açoriana. A orgia de luz alastra pelo coreto que ocupa o centro do Campo e pelas ruas adjacentes, adornadas com arcos policromáticos brilhantes. Do lado de fora das portas do Santuário formam-se filas de pessoas ansiosas por verem a imagem do Ecce Homo, ainda resguardada na sua capela. Mais tarde, abre-se o Bazar e ouve-se o concerto executado por uma banda ou filarmónica da ilha de São Miguel. Está cumprida a primeira noite das festas em honra do Senhor do Santo Cristo dos Milagres.

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Sábado: Ver a saída do Senhor Santo Cristo

 

O segundo grande momento das festas é a Procissão da Mudança, no sábado à tarde. Marca a saída da imagem do Senhor Santo Cristo do seu recato no Coro Baixo do Convento, para ser mais tarde acolhida na Igreja de São José. Ambos os edifícios ficam no Campo de São Francisco, separados por 80 metros de rua, mas o traslado irá demorar mais de duas horas e meia.

 

A cerimónia começa quando o provedor da Irmandade do Senhor Santo Cristo dos Milagres bate na Porta Regral do Convento, solicitando a saída do Santo, e termina com o acolhimento da imagem na igreja vizinha, seguido de uma missa. Nesse ínterim, precedido por membros do clero e acólitos, e carregado por membros da Irmandade, o palanquim coberto que transporta a imagem do Senhor Santo Cristo dá a volta ao Campo em passo lento, oferecendo-se à devoção dos vários milhares de pessoas aglomeradas na praça. Tem direito a Guarda de Honra do Exército e a uma salva lançada a partir de um navio da Marinha. Atrás do andor desfilam membros de Irmandades, freiras, uma banda, escuteiros e, fechando o cortejo, todos os leigos que se queiram juntar à procissão, muitos deles carregando círios maiores do que eles próprios.

À noite, a tradição manda comprar rifas no Bazar e passear pelas ruas iluminadas, ou ficar pelo arraial até à hora do fogo-de-artifício. Lançado a partir da Muralha da Doca, é facilmente visível a partir de qualquer ponto da marginal, e prende-nos a atenção durante largos minutos.

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Domingo: A grande procissão

 

No domingo de manhã, volta a azáfama. Nas ruas por onde vai desfilar a procissão da tarde, organizadores e voluntários unem-se para criar passadeiras aromáticas e vistosas, umas feitas de criptoméria, louro e pétalas de flores, outras de aparas de madeira colorida. Os motivos variam, muitos deles dependendo da imaginação de quem patrocina cada troço do trabalho. Sobre a calçada de pedra escura, as cores sobressaem ainda mais, e custa saber que dali a umas horas toda aquela arte será destruída. Custa-me a mim, que estou de fora e sou profana. Para quem constrói estes tapetes, é uma honra saber que irão ser pisados pela procissão em honra do Senhor Santo Cristo.

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O Guião da procissão sai do Santuário às três e meia da tarde, mas duas horas antes já há muita gente acantonada nos passeios do Campo de São Francisco, com o fito de garantirem o melhor lugar para assistirem ao desfile, e de preferência num sítio à sombra. Bancos e cadeiras dobráveis, garrafas de água e snacks fazem parte do equipamento essencial para resistir ao longo período de espera e ao demorado cortejo. Entabulam-se conversas com os vizinhos temporários, permutam-se petiscos, quem está sentado troca por vezes lugar com quem está de pé, uns desejosos de esticar as pernas e outros de as descansar. O ambiente é de descontracção e partilha.

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Foi no ano de 1700 (ou talvez 1698) que se realizou a primeira procissão em honra do Senhor Santo Cristo, organizada por Madre Teresa d’Anunciada para partilhar a sua devoção e para que os fiéis pudessem agradecer os favores e milagres que se considerava serem obra do Santo. A popularidade desta demonstração de fé cresceu com os séculos, e cresceu também a sua magnitude. Actualmente, é a maior procissão da Europa, e uma das mais antigas do mundo. Quem nunca assistiu poderá duvidar da sua grandeza, e eu compreendo. Mesmo estando lá, custa a crer que uma simples imagem de madeira tenha tanta influência e o poder de movimentar um tão grande número de pessoas.

 

Finalmente, por cima do ruído da multidão irrequieta, ouvem-se os acordes do Hino do Senhor Santo Cristo, tocado por uma das dezenas de bandas que participam na procissão. Surge entretanto o Guião, transportado pela Irmandade do Santo Cristo, e depois sucedem-se as bandas – todas tocam o mesmo Hino, e a meio do desfile já estava cansada de o ouvir – alternadas com Irmandades várias, romeiros, crianças vestidas de anjo, freiras e um sem-fim de padres e acólitos (tanto rapazes como raparigas), seguidos de membros do alto clero.

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O longuíssimo cortejo de gente dura mais de uma hora, até que o repicar de sinos substitui a música das bandas, a desvanecer-se na distância. É sinal de que se aproxima o andor do Senhor Santo Cristo dos Milagres, mostrando-se mais uma vez em todo o seu esplendor. Tal como na véspera, está quase completamente coberto de flores, e mal se entrevê o tecido do dossel que protege a imagem. É uma visão em cores quentes, vermelhos e rosas, dourados e amarelos-vivos, numa profusão barroca que vai muito para lá do que é habitual neste tipo de manifestações religiosas.

Entre o avultado património material pertencente ao Senhor Santo Cristo dos Milagres, há cinco jóias especiais que acompanham a imagem durante estas festas. Para as descrever, aproprio-me das palavras usadas no site oficial do Santuário: “resplendor, encaixado na parte posterior da cabeça; coroa de espinhos, cingida à cabeça; medalhão-relicário, pendurado ao pescoço por uma corda, ocultando a abertura sobre o peito; ceptro, na mão direita; e corda, prendendo os antebraços e as mãos cruzadas. O conjunto destes magníficos exemplares de joalharia portuguesa do século XVIII tem o nome “tesouro do Senhor” e constitui um dos mais belos e valiosos acervos nacionais de joalharia religiosa”. Tanto assim é que, em conjunto com a imagem, foram classificadas pela Assembleia Legislativa dos Açores como “Tesouro Regional” e protegidas por Decreto Legislativo. Entre elas, apenas a corda foi criada durante a vida da Madre Teresa (e refeita em 2020). Todas as outras jóias, embora solicitadas por ela, foram doadas posteriormente.

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E há ainda as capas, motivo de expectativa anual. Oferecidas por devotos, em anos mais recentes sobretudo emigrantes, já são quase 40, e todos os anos é escolhida uma capa diferente para cobrir os ombros do Santo na sua saída em procissão (a das imagens foi oferecida pela Irmandade do Senhor Santo Cristo de Brampton, no Canadá; a de 2024 foi a número 39, executada pelas próprias ofertantes, três senhoras de Ponta Delgada). Confeccionadas em tecidos nobres, bordadas a ouro e por vezes ornamentadas com jóias, são peças requintadíssimas, cujo maior valor, ainda assim, é serem testemunhos de uma devoção profundamente sentida.

 

No meio da parafernália, destaca-se o rosto do Santo, a madeira já carcomida em alguns pontos, o sangue pintado que escorre pelas faces, os olhos escuros contemplando o vazio sob as pálpebras meio descidas. Mais do que sofrimento, parece-me ter uma expressão de serenidade – mas eu vejo a imagem com olhar de profana, não com o coração de devota, e sou claramente uma excepção. À passagem do andor, todos os olhares convergem para a imagem do Senhor Santo Cristo. Ouvem-se palmas, e são muitos os lábios que se movem em oração, talvez pedindo, talvez agradecendo, talvez cumprindo um ritual instintivo.

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Seguem-se-lhe mais membros de Irmandades e mais filarmónicas, dignitários do Governo Regional e de outros organismos oficiais, representantes das Forças Armadas, das autarquias e das forças de segurança. Depois de ainda mais uma banda, quatro escuteiras abrem a ala das mulheres de negro – algumas estão mesmo de luto, outras cumprem promessas. E só então chega finalmente a vez dos restantes fiéis, que engrossam a procissão com mais uns bons milhares de almas. Há quem tenha vestido o seu melhor “fato de domingo”, e quem vá de ténis; uns levam círios, outros crianças ao colo; há quem tire os sapatos e prossiga de meias, ou mesmo descalço. Neste desfile democrático qualquer pessoa pode participar, e o único requisito é ter fé.

O fumo e o barulho de morteiros indicam que o andor desfila em frente ao Forte de São Brás. Depois de deixar o Campo de São Francisco, o cortejo faz um périplo pelas ruas mais antigas da cidade. Mimetizando a rota da procissão original, passa pelas igrejas e conventos mais importantes do centro histórico de Ponta Delgada, regressando ao adro do Santuário cinco horas depois de ter começado, numa prova de resistência que só mesmo a forte devoção (e uma razoável forma física) consegue fazer superar. Depois das últimas despedidas, já perto das dez da noite, a imagem do Senhor Santo Cristo recolhe à sua capela, de onde só voltará a sair um ano mais tarde.

 

A festa não termina aqui. Ainda haverá celebrações eucarísticas, concertos e arraiais até à quinta-feira seguinte, dia do encerramento das festividades. Apesar de algumas tímidas tentativas, no passado, para reduzir a componente comercial do evento e dar maior relevância à vertente espiritual das festas em honra do Senhor Santo Cristo dos Milagres, a verdade é que estes são dias de grande movimento de pessoas em toda a cidade, e de inegável importância económica.

 

Mesmo entre os crentes, as festas do Senhor Santo Cristo dos Milagres não são tão famosas quanto outras manifestações religiosas no nosso país. O peso da insularidade continua a ser grande, por muito que estejamos numa “aldeia global” e apesar da recentemente adquirida popularidade dos Açores. No entanto, e se outro mérito não tivessem, conseguem a proeza de chamar a si vários milhares de pessoas espalhadas por todo o mundo, unindo-as numa mesma devoção e sob um único manto: o da fé numa imagem religiosa. É obra!

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Referências consultadas online:
 
Website oficial do Santuário do Senhor Santo Cristo dos Milagres
 
Hélio Nuno Soares – Os promotores de uma devoção no séc. XVIII: o Senhor Santo Cristo de Ponta Delgada. Revista da FLUP. Porto. IV Série. Vol. 12 nº 1. 2022. 85-106
 
Açoriano Oriental. Festas do Senhor Santo Cristo dos Milagres 2015
 
(Post já publicado no blogue Viajar Porque Sim)

Um banco com vista: Marsaxlokk

Ana CB, 26.04.24

Está um belo dia de sol e o ambiente é modorrento. O Mediterrâneo exibe os seus matizes mais leves, quase leitosos, tão tranquilo que nem incomoda os inúmeros barcos ancorados no porto. As cores garridas que pintam a madeira das embarcações contrastam com a paisagem semidesértica que assoma do outro lado da baía, e com os edifícios em tons desmaiados que rodeiam a marginal. É hora de almoço. São poucos os turistas que vagueiam entre as bancas de artesanato e souvenirs, e ainda menos os habitantes locais, certamente recolhidos no fresco das suas habitações. Fosse domingo e a animação seria outra; mas é apenas mais um vulgar dia de semana, e Marsaxlokk está posta em sossego.

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A tradição da pesca

Marsaxlokk está situada numa grande baía, irregular e abrigada, no extremo sudeste da ilha de Malta, a cerca de 10 km de Valletta. O nome deriva da sua localização: “marsa” é uma palavra árabe para ancoradouro, e “xlokk” significa sudeste em maltês. Como porto natural, faz parte da cultura marítima mediterrânica desde a Antiguidade: foi usado por fenícios, romanos, árabes e até mesmo otomanos, quando cercaram Malta em 1565.

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Actualmente é o maior porto de pesca das ilhas maltesas, e uma das poucas aldeias piscatórias que sobrevivem no arquipélago. Grande parte do peixe vendido em Malta é capturado por pescadores que aqui ancoram os seus barcos. Durante a semana, o peixe capturado destina-se ao mercado de Marsa, mais perto da capital, onde os retalhistas e proprietários de restaurantes se abastecem. Só ao domingo é que os pescadores locais vendem o seu peixe fresco directamente aos consumidores, no mercado ao ar livre, razão pela qual este é o dia mais movimentado na localidade – sobretudo porque muitos malteses (e turistas) aproveitam a oportunidade para almoçar num dos variados restaurantes que há à volta do porto.

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Um festival de cor

Em Marsaxlokk reinam as cores primárias, e sinto-me como que imersa num espectáculo de videomapping. Desde as riscas do banco onde estou sentada às faixas multicoloridas dos barcos, o mundo à minha volta veste-se de amarelo-canário, azulão, vermelho Ferrari e verde-esmeralda.

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Na amálgama de embarcações paradas na água há de tudo um pouco. Há barcos a remos, alguns ainda de madeira pintada, com os bordos exteriores protegidos por grossos cabos entrançados. Há semi-rígidos e pequenos barcos de pesca desportiva, insípidos nas suas cores neutras. Há traineiras apetrechadas com uma parafernália de fatos cor de laranja, guinchos, projectores e radares. Mais ao longe, impõe-se a massa tricolor do Armada LNG Mediterrana, um navio-tanque de produção e armazenamento de gás natural liquefeito que está desde há alguns anos atracado junto à central eléctrica de Delimara.

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E há os luzzijiet (plural de luzzu; pronúncia maltesa: [lutt͡su]), que são também um dos motivos pelos quais Marsaxlokk é tão colorida e apelativa para os visitantes turistas. Descendentes dos ferilli, os barcos de pesca típicos de Malta entre o século XVII e o final do século XIX, os luzzijiet são feitos de madeira e têm um casco duplo, pontiagudo e arqueado para cima em ambas as extremidades. Estão pintados com riscas de cores garridas e ostentam, em ambos os lados da proa, o amuleto egípcio de protecção mais difundido em todo o mundo: o olho de Hórus. As velas tradicionais foram substituídas por motores, alguns já estão dotados de uma cabina, outros têm apenas uma lona, em jeito de tenda, para abrigar os utensílios usados na faina, e outros ainda estão cobertos com um toldo rectangular. Tal como é habitual em tantas comunidades pesqueiras, as cores de cada luzzu não são escolhidas aleatoriamente; obedecem a um código que indica o local de onde a embarcação provém, o núcleo familiar a que pertence (os luzzijiet são passados de pai para filho), e até mesmo se houve alguma morte recente nessa família.

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Do mar até à mesa

Sobre as lajes aquecidas pelo sol espraiam-se as redes que os pescadores estenderam para secar. Mais à frente, afundado no chão, um tanque pelo qual parecem já ter passado muitos anos foi convertido em base de obra artística: um memorial aos homens do mar. Imobilizados em bronze, duas crianças e um gato assistem à chegada de um pescador carregado com cestas cheias de peixe.

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O acolhimento depois da faina será certamente diferente hoje em dia. Ainda assim, a vida em Marsaxlokk continua a apoiar-se no mar e na pesca. Aproxima-se das duas dezenas o número de restaurantes que se perfilam à volta do porto, e todos eles oferecem pratos de peixe. Claro que também há concessões ao gosto (e à bolsa) de quem não aprecia aquilo que o mar nos dá e se inclina mais para os omnipresentes hambúrgueres e as suas obrigatórias acompanhantes. Mas a oferta de peixe e frutos do mar domina as ementas: cozinhados das mais diversas maneiras ou crus (fatiados em carpaccio e divinamente temperados), envolvidos em massa ou arroz, ou na aljotta, a sopa de peixe maltesa tradicional, em saladas ou como petisco de entrada. Só as sobremesas se mantêm alheias ao alimento que vem do mar – pelo menos até que algum chef mais atrevido se lembre de inventar um doce à base de peixe.

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Depois do almoço – num pontão sobre a água, as mesas resguardadas do sol por enormes sombrinhas verde-mar – impõe-se uma volta pelas ruas interiores, onde as casas antigas de pedra ocre convivem com prédios baixos de linhas mais modernaças, em que o mármore, ferro forjado ou madeira das varandas foi substituído por cimento pintado. A aridez cromática é cortada aqui e ali por um mural, uma porta multicolorida, uma floreira ornamentada, uma varanda de madeira azul-pavão.

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Uma história de fé

Acima do casario pairam as torres da igreja dedicada a Nossa Senhora do Rosário de Pompeia, construída em finais do século XIX. Estranha-se a padroeira, mas tem uma justificação, e uma história. Em 1885, a Marquesa Rosalia Apap Viani Testaferrata viajava por mar ao longo da costa ocidental de Itália quando se levantou uma tempestade. Devota da Nossa Senhora de quem tinha o nome, a Marquesa invocou-a em oração, suplicando a sua ajuda. Coincidência ou não, a tempestade amainou durante algum tempo, suficiente para que o navio conseguisse chegar ao porto de Bastia, na Córsega, e os seus ocupantes desembarcassem sãos e salvos, antes de a tempestade desabar de novo. Como agradecimento pela sua salvação milagrosa, a Marquesa propôs custear metade do valor da construção da igreja de Marsaxlokk, desde que a dedicassem a Nossa Senhora do Rosário de Pompeia. Desde 1963, esta igreja é o destino de uma peregrinação nacional que se realiza anualmente a 8 de Maio, liderada pelo Arcebispo de Malta. Em 2017 foi elevada de igreja paroquial a Santuário Mariano. É um dos testemunhos da fé dos malteses, que se replica nos inúmeros e grandiosos templos religiosos que encontramos por todo o lado nas ilhas de Malta e Gozo.

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Deixo Marsaxlokk como a encontrei: soalheira, plácida e colorida, guardiã tranquila de histórias e hábitos antigos que convivem sem sobressaltos com as exigências dos tempos modernos. Na esperança de que assim se consigam manter.

Jardins

Ana CB, 19.03.24

Hoje apetece-me a Primavera.

Não aquela do calendário, que por sinal me diz que ela está quase a chegar. Esta Primavera moderna – que antes começava sempre a 21 de Março (ou assim me parecia…) mas agora tem data flutuante, como flutuante parece ser tudo hoje em dia – tanto pode assemelhar-se à sua própria definição como vestir-se de Verão tropical, ou de Inverno polar. É agora, em tempos de alterações climáticas, uma estação de humores variáveis em demasia, por vezes quase inexistente, e que ainda por cima trará um avanço de hora que me desacerta o relógio interno.

O que me apetece da Primavera é o seu espírito. A mudança subtil, a renovação, o crescimento, a alegria do renascimento cíclico neste continuum a que chamamos vida – a minha, a nossa, a da natureza. A certeza de que nada é imutável, e a esperança de novas possibilidades, de outras perspectivas que abrem caminhos diferentes.

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Haverá melhor lugar para sentir a Primavera do que um jardim?

Um jardim é a natureza à mão de semear. É o útil aliado ao belo: uma biblioteca viva, a preservação das espécies de mãos dadas com a estética, o apelo aos nossos sentidos. Lugar de descontracção, de sossego, ou de brincadeira e alegria, de meditação, de conversas, confissões e segredos.

E por falar em segredos, quem nunca namorou num jardim? Alguns têm recantos que parecem feitos para abrigar amores fora da vista dos outros. Ou, pelo menos, para uma conversa sem sobressaltos nem interrupções, seja para trocar confidências, transmutar sentimentos em palavras, ou deixar a emoção correr em forma de lágrimas.

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Nos dez jardins que rodeiam o Castelo de Sudeley, em Inglaterra, tranquilidade é algo que não falta, nem faltam recantos ideais para uma conversa fluida. Mas o mais intimista (e mais romântico) é sem dúvida o Jardim Secreto, um rectângulo de relva protegido por arbustos altos e coloridos, com um único banco estrategicamente colocado.

 

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Em Bornos, na Andaluzia, o jardim do Palácio dos Ribera também teve originalmente um jardim secreto, de que hoje só permanece uma piscina com nenúfares, resguardada por buxos. Neste jardim renascentista, que também tem um pomar, não há multidões e o sossego é dono do lugar.

 

 

No princípio era o jardim

A relação entre jardins e espiritualidade é ancestral. Por alguma razão chamaram Jardim do Éden ao paraíso original da tradição judaico-cristã: mais do que um simples espaço terreno para proporcionar sustento físico, é um símbolo da beleza e da comunhão entre o divino e o humano, onde a presença de Deus se manifestava de forma tangível. O Jannah, conceito muçulmano de céu ou paraíso, para onde os muçulmanos bons e fiéis vão depois do Dia do Juízo Final, é descrito como um jardim belo e tranquilo, onde corre água e são servidos alimentos e bebidas abundantes aos mortos e às suas famílias. Várias outras tradições religiosas, como é o caso do budismo zen, também valorizam os jardins como lugares de comunhão com a natureza, transcendência e paz interior, ideais para a meditação, a contemplação e a oração. Concebidos para reflectir a beleza e a simplicidade do que é natural, com arranjos minimalistas e simbólicos, a harmonia dos jardins que habitualmente apelidamos de “japoneses” tornou-os extremamente populares, e hoje em dia estão espalhados por todo o mundo. Sou uma admiradora confessa destes jardins e nunca perco a ocasião de os visitar, mas o meu preferido – talvez porque concentra todas as virtudes de um jardim zen num espaço mais reduzido – continua a ser o primeiro que visitei, e onde já estive mais vezes: o Kyoto Garden, em Londres.

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Kyoto Garden, Londres

 

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Jardim Japonês, Buenos Aires

 

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 Jardim Pierre-Baudis, Toulouse

 

O próprio acto da jardinagem pode ser visto como uma prática espiritual de ligação à terra, uma forma de colaborar com a natureza, cultivar o solo e participar no ciclo de vida. Actividade por vezes associada à subsistência, como acontecia (e ainda acontece) nos mosteiros, não são poucas as pessoas que dizem encontrar paz e significado na criação e manutenção de jardins, seus ou de outros, ou a cuidar de hortas.

 

Jardins para dar cor à vida

Independentemente da beleza que têm noutras épocas do ano, é na Primavera que a maior parte dos jardins estão no seu auge. A culpa é das flores e da explosão de cor com que os pintam. Depois dos meses cinzentos e frios, em que muito do que há na natureza fica em estado de hibernação, o renascimento de um jardim é um hino à alegria que reflecte o nosso próprio desejo de nos libertarmos do peso do Inverno. Queremos luz e festa, entusiasmo, energia. E é por isso que a função ornamental de um jardim é uma das suas facetas mais importantes.

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Em muitos países onde os rigores invernais são mais fortes, este amor pelos jardins é bem visível. Em Akureyri, a maior cidade do norte da Islândia, situada uns meros 50 km a sul do Círculo Polar Árctico, o encantador Jardim Botânico (Lystigarður) congrega mais de 7 mil espécies diferentes de plantas, das quais apenas 430 são nativas do país. Caminhos ondulantes, imaculadamente limpos, rodeiam canteiros com flores coloridíssimas, arbustos e árvores, zonas arrelvadas, pequenos lagos, e bancos para descanso dos visitantes.

 

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Na região inglesa das Cotswolds, perto de Painswick, os Rococo Gardens são outro exemplo de jardim ornamental exuberante. Concebidos no séc. XVIII, espelham a alegria de viver da classe média-alta dessa época, quando a extravagância e a frivolidade reinavam. Têm uma atmosfera teatral, com elementos arquitectónicos que pouco mais são do que decorativos, secundados por uma profusão de flores de cores pastel. Um jardim repleto de pormenores deliciosos e surpreendentes.

 

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Os Jardins Botânicos Reais de Kew, situados na periferia de Londres, têm um valor tão grande como paisagem histórica que estão desde 2003 classificados como Património Mundial pela Unesco. Criados em 1759 pela Princesa Augusta, ilustram de forma ímpar os períodos característicos do paisagismo nos séculos XVIII a XX, com ambientes que reflectem as tendências artísticas da época, oriundas tanto da Europa como de regiões mais distantes.

 

No reino da originalidade

Certos jardins são como que uma bolha isolada da realidade que os rodeia. Passamos o seu limiar e somos transportados para outros lugares, outras eras, outros mundos. Recriam ambientes exóticos, utopias transformadas em realidade, ou nascem da excentricidade de quem os concebe, às vezes até por acaso. São oásis de fuga à rotina, portais para um universo onde as regras do comum não parecem aplicar-se.

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O Jardim Tropical Monte Palace é um pedacinho de paraíso na ilha da Madeira. Estende-se por uma área de 70.000 m2 e é povoado por milhares de espécies diferentes de plantas exógenas, em pacífica coexistência com as muitas outras que são típicas da floresta Laurissilva da Madeira. Está estruturado em vários ambientes diferentes entre si, todos igualmente encantadores. Os espaços mais exuberantes são o lago central, dominado por um grande espelho de água habitado por estatuetas e animais e alimentado por uma cascata copiosa, e os jardins orientais, onde a água e a vegetação densa predominam, decorados com esculturas, bancos, lanternas orientais em pedra, pagodes em várias versões e lagoas com peixes Koi.

 

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Os Jardins Majorelle, em Marraquexe, foram criados pelo pintor francês Jacques Majorelle nas décadas de 1920-30, e mais tarde restaurados e desenvolvidos pelo estilista Yves Saint Laurent. O design meticuloso destes jardins é uma fusão ecléctica de estilos que combina elementos art deco, do artesanato berbere e da arquitectura mourisca. A paleta de cores vibrantes dos elementos construídos contrasta com o verde hegemónico das plantas e brilha sob o sol marroquino. Com palmeiras imponentes, cactos, buganvílias e uma variedade de plantas suculentas em harmoniosa coexistência, definindo cenários visualmente inesperados, estes jardins são uma mistura única de influências artísticas, botânicas e culturais, um oásis exótico e tranquilo no coração da cidade.

 

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Em Ponte de Lima, os jardins do Parque Temático do Arnado são um patchwork de quatro estilos diferentes de jardins. Há um jardim romano, com piso de mosaicos e uma colunata de tijolo e pérgulas que rodeiam um lago ajardinado. No jardim barroco, o tema são as rosas, declinadas em várias cores, com canteiros delimitados por buxo ao estilo dos parterres franceses. O jardim labirinto desenvolve-se em torno de uma folly de metal, colocada numa zona mais elevada e ornamentada com jasmins, onde também crescem belos exemplares de ácer japonês. E no jardim Renascença há ciprestes e canteiros de azáleas e rododendros, e água que escorre por uma parede de pedra em socalcos. Aos jardins temáticos soma-se um horto botânico com uma estufa feita de ferro forjado cor de chumbo, que num dos lados está adjacente a dois lagos com nenúfares.

 

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Num recanto do bairro judeu de Hervás, em Espanha, há uma surpreendente preciosidade: o pátio dos cactos. São mais de 6000 cactos de todos os géneros, que crescem nos suportes mais estranhos e originais que podemos imaginar, e cobrem completamente as paredes e boa parte do piso do minúsculo pátio de uma casa particular. É com imenso carinho e cuidado que o dono da casa conserva este invulgar jardim em miniatura, abrindo as suas portas aos visitantes.

 

Demonstrações de grandeza

Foram concebidos como símbolos de magnificência, destinados a exibirem ao mundo a riqueza dos seus promotores – monarcas, líderes políticos, nobres, comerciantes endinheirados. São os chamados jardins monumentais, de que existem inúmeros exemplos sobejamente conhecidos – como os de Versalhes, Schönbrunn ou Villa d’Este, só para citar alguns; ou ainda, entre os portugueses, o Jardim Episcopal de Castelo Branco, os do Palácio de Queluz, ou os do Solar de Mateus, em Vila Real. Estilos habituais nestes jardins são o renascentista italiano e o francês, demonstrativos das habilidades técnicas e da imaginação dos seus criadores. Locais de entretenimento e de socialização onde se cruzavam as elites intelectuais e artísticas, os jardins monumentais contribuíram ao longo dos séculos para o florescimento da criatividade e do intercâmbio de ideias.

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Os famosos Jardins de Boboli, em Florença, são um modelo exemplar de jardim renascentista italiano. Começados no séc. XVI e ampliados nos séculos seguintes, estendem-se por um plano inclinado com vistas amplas sobre a cidade, que lhes serve também de cenário. Cobrindo uma área de aproximadamente 45 mil metros quadrados subdividida de forma regular em socalcos, os espaços verdes são definidos por caminhos regulares e ornamentados por escadarias grandiosas, terraços panorâmicos, estátuas, grandes fontes, e cavernas artificiais decoradas com pinturas.

 

72 - Jardins do Palácio de Hampton Court, Inglaterra.jpeg

Nos arredores de Londres, aninhados numa curva do Tamisa, os jardins do Palácio de Hampton Court ocupam mais de 240 mil metros quadrados e albergam o labirinto mais antigo do mundo, uma vinha que bateu um recorde e três colecções nacionais de plantas. Mandados construir por Henrique VIII em 1528, estes jardins relativamente modestos transformaram-se, desde essa altura, em luxuosos jardins de lazer com canteiros, estátuas e fontes. O seu extenso canal foi mandado abrir por Carlos II para preparar a chegada da sua noiva, Catarina de Bragança. No século XVII, durante o reinado de Guilherme III e Maria II, os jardins de Hampton Court tornaram-se famosos pela sua beleza e requintado desenho barroco. Data desta altura a criação do labirinto, do Jardim Privado, e do Jardim da Grande Fonte original. Os teixos deste jardim foram domados até adoptarem a sua peculiar forma de cogumelos, e mantêm-se de pé há mais de 300 anos.

 

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Tal como a vemos hoje, a Casa da Ínsua, em Penalva do Castelo, foi construída no último quarto do séc. XVIII a mando de Luís de Albuquerque e Mello Pereira e Cáceres, um fidalgo cavaleiro da Casa Real que foi o quarto governador e capitão-general da capitania de Mato Grosso, no Brasil. Únicos, tanto como pela sua dimensão como pela originalidade e variedade de espécies botânicas, os jardins oitocentistas da Casa da Ínsua dividem-se em vários espaços, cada um deles concebido de acordo com estilo e finalidade diferentes. Há o francês, com os seus parterre geométricos e um lago com flores de lótus indianas, que florescem entre Junho e Julho e só vivem 48 horas. Há o inglês, mais selvagem, com muitos arbustos e árvores de grande porte – sequóias, cedros, paus-brasil. Há o dos aromas, com flores e um canteiro onde estão plantadas videiras das castas usadas para os vinhos Casa da Ínsua. Há um tanque com patos e um cisne, e há fontes, mesas e esculturas em pedra.

 

Sejam modestos ou sumptuosos, concebidos por grandes paisagistas ou meramente nascidos como hobby de um qualquer cidadão anónimo, apenas frequentados pelos habitantes de um bairro ou visitados por milhares de turistas anualmente, os jardins são uma ponte entre as pessoas e a natureza, e revelam muito sobre a cultura de cada sociedade ao longo dos tempos. Mas o seu maior feito é, sem dúvida, contribuírem – imenso! – para a nossa felicidade.

Aldeias com histórias: Babe

Ana CB, 21.02.24

Há milhares de aldeias em Portugal. Algumas são conhecidas por toda a gente, quanto mais não seja de nome ou em fotografia. Muitas são visitadas durante praticamente o ano inteiro, divulgadas pela comunicação social, filmadas para documentários ou em directos televisivos, e até recebem a visita de altos dignatários do nosso país – o que, como é óbvio, em nada as desmerece. E no entanto, para cada uma destas há centenas de outras de que nunca se ouve falar, entre elas muitas que têm património antiquíssimo para conhecer, tradições que perduram desde há séculos, histórias que merecem ser contadas. É mais uma destas aldeias que hoje vos convido a visitar.

Babe (7)

Babe é uma aldeia transmontana a uns escassos 14 km para leste de Bragança. Sede de uma freguesia com apenas 25 km2 e pouco mais de 200 habitantes (a que também pertence a aldeia de Laviados), chamam-lhe “varanda da cidade”: à cota de 800 metros acima do mar, é um acesso ao planalto da Lombada e oferece-nos vistas panorâmicas sobre Bragança e a serra de Montesinho.

Babe - vista geral (1)

Em dias normais, o ambiente é tranquilo, até mesmo modorrento. No largo principal apenas está estacionado um carro. No grande bebedouro de granito, de aspecto muito antigo – provavelmente bem mais antigo do que a data de 1894 que está gravada numa pedra, a julgar pelo brasão dito seiscentista cravado no muro de pedra – não se vêem animais a matar a sede, e o diminuto parque infantil que fica ali mesmo ao lado está deserto. Não creio que haja em Babe muitas crianças. Em passeio pela aldeia, apenas vimos algumas idosas sentadas à porta de casa, sem dúvida a aproveitarem o calor breve do sol do meio-dia, brilhante num céu sem nuvens – que será decerto coisa rara nos Invernos da região. Mais adiante, três homens afadigavam-se à volta de uma maquineta agrícola. Passou um tractor, uma ou outra carrinha, uma moto-quatro. Consta que o pessoal da aldeia é adepto deste meio de transporte, vá-se lá saber por que mistério…

Babe - largo - fonte de mergulho

Babe - largo - bebdouro

Mas não foi sempre assim. Na verdade, o povoamento de Babe vem de época tão remota que nem se consegue definir. O castro da Sapeira, a sudoeste da aldeia, atesta a ocupação pré-histórica do local, e sabe-se que por ali passava uma via romana que ligava Bracara (Braga) a Asturica (Astorga), de que hoje resta um marco miliário. A freguesia de “Sancti Petri de Babi” é referida num documento com data de 1258 incluído nas “Inquirições” ordenadas por D. Afonso III, e supõe-se que a igreja primitiva já existisse pelo menos desde o século X. Mas foi no século XIV que ali ocorreu o momento mais marcante da longa história da aldeia: a assinatura do Tratado de Babe.

Babe - Igreja de São Pedro (4)

João de Gaunt, filho do rei Eduardo III de Inglaterra e Duque de Lencastre, foi casado em segundas núpcias com Constança de Castela, filha do defunto rei D. Pedro I de Leão e Castela, assassinado pelo seu irmão Henrique de Trastámara em 1369. Apesar de ser um dos homens mais ricos e influentes do seu país, o poder que João de Gaunt detinha não lhe parecia suficiente e por isso um belo dia decidiu avançar como pretendente à coroa castelhana, chegando mesmo a afirmar-se Rei de Castela. Aproveitando as pretensões do Duque e no seguimento do Tratado de Windsor (o tratado de apoio mútuo assinado entre Portugal e a Inglaterra em 1386, que ratificava a Aliança Anglo-Portuguesa de 1373 e dura até hoje, sendo por isso a aliança diplomática mais antiga do mundo ainda em vigor), o recém-entronado D. João I de Portugal propôs-se ajudá-lo a causar divisões nas forças militares de Leão e Castela. O encontro entre estes dois aliados deu-se em Ponte de Mouro (localidade entre Monção e Melgaço) em Novembro de 1386, quando estabeleceram um acordo que incluía, entre outras condições, o casamento de D. João com Filipa, uma das filhas do Duque. A boda acabou por se realizar em Fevereiro de 1387 no Porto, mas as tropas portuguesas só se juntaram às inglesas em Março, quando um impaciente João de Gaunt já tinha decidido encaminhar-se para Castela. Foi em Babe que instalaram os acampamentos, e foi aqui que D. João I de Portugal e o sogro assinaram, a 26 de Março de 1387, o Tratado em que o Duque de Lencastre abdicava de quaisquer direitos que pudesse eventualmente vir a ter sobre a coroa portuguesa. Foi também nesta altura, como reza a placa colocada na Igreja de São Pedro de Babe, que D. Filipa se despediu dos seus pais para assumir em pleno o papel de uma das rainhas portuguesas mais influentes da nossa História.

Babe - Igreja de São Pedro (3)

Visivelmente, a Igreja de São Pedro continua a ser o monumento mais importante da aldeia. Os primeiros registos de actos religiosos que chegaram aos nossos dias datam de inícios do século XVII, pelo que se supõe que o edifício actual tenha sido construído por essa altura, em substituição da antiga igreja. Nota-se que foi alvo de obras relativamente recentes: os muros que a cercam são de pedra de xisto aparada e têm cantarias de granito, a escadaria está em bom estado, com os espaços laterais cuidadosamente arranjados com relva e oliveiras, e o portão de ferro que guarda a entrada para o recinto tem ar de novo. A fachada da igreja é feita com blocos de granito e tem alguns elementos barrocos, embora simples, mas o corpo do edifício propriamente dito está rebocado, pintado de branco e coberto por telha. Este tipo de igrejas, em que a fachada inclui os sinos e aparenta ser um elemento independente, apenas com a espessura da sua pedra e “colado” ao resto da igreja, não é muito comum no nosso país e só aparece com alguma frequência nestas terras do norte – lembro-me de que quando visitei Babe pela primeira vez, há já bastantes anos, foi precisamente esta originalidade que me fez retê-la na memória.

Babe - Igreja de São Pedro (1)Babe - Igreja de São Pedro (2)

Se o exterior é simples, o interior é tudo menos isso. Ali reina o barroco. Os altares estão primorosamente restaurados e o dourado domina sobre fundos brancos ou com padrões. O altar principal é encantador, com as suas cores e motivos harmoniosamente conjugados e um tecto de madeira onde estão pintadas figuras quase naif, as imagens dos santos principais bem integradas no conjunto. O resto do interior da igreja é mais discreto: paredes brancas, pias em pedra já desgastada pelo passar dos séculos, elementos estruturais em granito, chão e texto de madeira castanha envernizada, algumas outras imagens de santos esculpidas de forma menos rebuscada (e provavelmente mais antigas).

Babe - Igreja de São Pedro - interior (1)Babe - Igreja de São Pedro - interior (5)Babe - Igreja de São Pedro - interior (4)Babe - Igreja de São Pedro - interior (3)Babe - Igreja de São Pedro - interior (2)

Babe - Igreja de São Pedro - interior (8)

Babe - Igreja de São Pedro - interior (7)Babe - Igreja de São Pedro - interior (6)

A São Pedro de Babe esteve também associada uma importante Comenda da Ordem de Cristo – tão importante que foi dividida em duas, como o prova uma ordem real de D. Sebastião em documento do ano de 1561 (a outra Comenda daqui resultante foi para Nossa Senhora de Gimonde, aldeia que hoje é bem mais conhecida do que Babe). Um dos detentores mais conhecidos da Comenda de São Pedro de Babe foi António Cavide, monteiro do rei D. João IV. Mas o mais famoso de todos estes Comendadores foi certamente Domingos de Morais Madureira Pimentel, Fidalgo da Casa Real e Familiar do Santo Ofício, entre outros títulos, e proprietário em finais do século XVII da emblemática Casa do Arco em Bragança – foi, aliás, este fidalgo quem mandou construir o arco que caracteriza este edifício, ao fazer a ligação entre duas casas de que era proprietário.

Babe - Igreja de São Pedro - Torre sineira

Subi os vetustos e altos degraus que conduzem à torre sineira da igreja. Lá do alto avista-se quase toda a aldeia, uma amálgama de telhados em vários estados de conservação, reflexo das casas a que pertencem. Nota-se bem que a pedra foi substituída pelo reboco pintado de branco na maioria delas. Mas há também algumas com tijolo à vista, ou revestidas de cimento nu. As de pedra são poucas e dividem-se entre o xisto e o granito. No que toca à arquitectura, Babe é um pot-pourri de tendências: uma varanda com protecção de vidro aqui, umas portas modernaças em metal acolá, um beiral suportado por estacas de madeira numa casa meio arruinada mais à frente, janelas de madeira com tinta a descascar ao lado de outras com caixilharia de alumínio, escadas e alpendres, casas simples ou com vários volumes – entre a decrepitude e o kitsch de ideias nitidamente importadas de outros países, há de tudo um pouco por aqui.

Babe - vista geral (2)

Babe - vista geral (3)

Babe (4)

Babe (5)

Babe (3)

Babe (6)

Babe (2)

Babe (8)

Descendo a Rua da Igreja, cruzamo-nos com uma idosa vestida de negro da cabeça aos pés, lenço incluído, como hoje em dia já se vêem poucas. O cumprimento é obrigatório, e acabamos por ficar à conversa com ela durante um bocado. Fala-nos com orgulho da sua igreja e evoca o Doutor Belarmino, pároco da aldeia durante cerca de 20 anos, a quem tece os maiores elogios, para no final nos contar de lágrimas nos olhos que perdeu o filho num acidente. E ainda assim, notam-se nesta senhora uma força e um enorme prazer em conversar com duas estranhas que lhe passam à porta. Nestas terras ignoradas do nosso país, apesar de já serem na sua maioria facilmente acessíveis, qualquer pessoa de fora é uma novidade que quebra a rotina dos dias.

 

Nas minhas pesquisas posteriores vim a saber que o dito pároco, falecido em 2005 e que tantas saudades deixou em Babe, foi Belarmino Afonso, sacerdote e professor que dedicou a sua vida à cultura e às comunidades da região nordestina. Formado em História, entre outros cargos foi director do Arquivo Distrital de Bragança e provedor da Santa Casa da Misericórdia desta mesma cidade, desenvolveu trabalhos e escreveu obras nas áreas da antropologia e da etnografia, e foi por tudo isto condecorado em 2002 pelo Presidente da República com a Grã Ordem do Infante.

 

Foi precisamente pela mão do Doutor Belarmino Afonso que nasceu o Museu Etnográfico Rural de Babe. Num simples edifício branco, que acumula as funções de centro de dia, estão expostos vários artefactos usados em tempos idos pela população, recuperados por iniciativa daquele pároco e agora testemunhos de vivências passadas e costumes já quase desaparecidos: candeias e candeeiros a petróleo, engenhos agrícolas arcaicos, dobadouras, bem como utensílios usados pelos ferreiros da aldeia, que em tempos foram famosos. De facto, as facas produzidas por estes ferreiros de Babe eram reconhecidas em toda a região transmontana pela sua grande qualidade, tal como atestado pelo Abade de Baçal numa das suas obras.

Babe - Museu Etnográfico Rural

A religião tem, como é óbvio, um papel importante na vida dos habitantes de Babe. Além da igreja, existem na aldeia duas capelas: a de São Sebastião, que fica à entrada, e a de São José, que data de finais do século XVII e é mais singela, toda em pedra. Ambas estão restauradas. Há ainda uma Tulha das Almas, um edifício curioso não pelo seu aspecto, pois é um simples casinhoto de pedra, apenas identificado por uma mó e algo que parece ser parte de uma pequena roda de azenha, mas pela sua função: servir de armazém para as oferendas de cereal para “as almas”.

Babe - Capela de São José

Babe - Tulha das Almas

O pão é um dos alimentos mais importantes das gentes transmontanas, tal como em todas as outras regiões do nosso país, e por isso muitas das festas tradicionais que perduram até hoje, algumas oriundas de ritos pagãos, estão ligadas ao seu culto. Agregadas às celebrações religiosas da igreja católica, são sempre ocasiões importantes na vida das aldeias, e Babe não é excepção. É na época natalícia, entre a véspera da consoada e o dia de Reis, que aqui se celebra a Festa dos Rapazes, uma das mais importantes e animadas do ano, tanto que muitos emigrantes vêm nesta época à sua terra propositadamente para participarem. São protagonistas os rapazes maiores de 12 anos, cumprindo vários rituais que vão permitir-lhes o acesso ao mundo dos adultos. Há desfiles com gaiteiros e bombos, praxes que envolvem ovos e farinha, actuações de grupos musicais, e comida e bebida com fartura.

 

Para melhorar as condições destas celebrações comunitárias, em 2016 o espaço da antiga escola primária (já desactivada) foi reabilitado e convertido em centro de convívio e pavilhão multiusos, e é desde então um dos palcos principais das festividades que se realizam ao longo do ano. Ainda assim, há quem ache que as festas têm vindo a perder o encanto. Numa longa conversa com outra das habitantes da aldeia, muito mais jovem do que a anterior, ficámos a saber que muitas tradições já desapareceram, algumas delas bem interessantes. Havia a arrematação das roscas, com os pães preparados pelas mulheres e raparigas da aldeia a serem depois compostos em ramos com frutas e guloseimas para serem leiloados, os lucros da venda revertendo para a igreja. Outra festa comunitária tradicional era a lenha das almas de Todos os Santos, em que os jovens iam, com carros de bois ou tractores, “roubar” ou apanhar lenha, que depois era vendida no largo da aldeia. Ficavam assim algumas casas já aprovisionadas de lenha para uma parte do Inverno, e o dinheiro conseguido era destinado às missas rezadas ao longo do ano pelas almas dos defuntos. A festa continuava então, como não podia deixar de ser, com uma ceia partilhada por toda a gente.

 

Também a Páscoa é altura de celebração e festas em Babe, com muitos dos filhos da terra que estão emigrados a regressarem à aldeia para se reunirem aos seus familiares e amigos. Numa aldeia cada vez menos povoada, estas ocasiões são importantes para lhe insuflar mais ânimo e quebrar a rotina dos que a habitam em permanência. Babe é apenas mais um exemplo da vida de muitas das aldeias desconhecidas do Portugal profundo que ainda existe.

Babe (1)

(Adaptado de um post no blogue Viajar Porque Sim)