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Delito de Opinião

No Rio também há dias sem sol

Ana CB, 16.10.25

Quatro da tarde, e parecia hora de ponta na entrada do Parque Bondinho, ao pé da Praia Vermelha. É verdade que era domingo, e para os brasileiros o bilhete é mais barato do que para os estrangeiros (que eram nitidamente poucos). Só que… o sol ia desaparecer por volta das cinco e meia, e na minha cabeça rodava uma interrogação: o que é que tanta gente vai fazer ao Pão de Açúcar a esta hora? Resposta óbvia: o mesmo que tu – ou seja, ver o pôr-do-sol num dos lugares mais icónicos do Brasil e do mundo. Mas seria “só” isso?

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Não, não era.

Para mim, o Pão de Açúcar foi sempre o conjunto dos dois monólitos, um mais alto do que o outro, eternizados nas milhentas imagens do Rio difundidas por todo o lado. Só que não é. O Pão de Açúcar é o mais alto dos dois. O mais baixo é o Morro da Urca. E se para chegar ao cimo deste morro existe um trilho pedestre – muito íngreme, é certo, mas devidamente marcado e mantido – para subir ao Pão de Açúcar só em modo escalada na rocha. Portanto, a solução é mesmo usar os dois teleféricos que ligam a cidade aos miradouros instalados no topo dos morros.

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Turismo e rentabilidade oblige, o conceito de miradouro neste caso está bastante expandido. Três minutos de ascensão no teleférico deixaram-nos 220 metros acima do nível do mar, num espaço alargado ao ar livre em que o ambiente era de festa. A animação maior era ditada por um DJ aos comandos do equipamento que debitava música de dança, rodeado de um mar balançante de gente, bebida na mão ou telemóvel no ar para gravar o momento. O Morro da Urca é lugar de entretenimento. Há restaurantes, barzinhos de espécies várias e lojas de marca. Há o Museu do Teleférico e uma Árvore dos Desejos, espelhos deformadores no Beco das Ilusões, e malabaristas que distraem os visitantes durante os longos minutos de espera nas filas para subir ou descer nos bondinhos. Há até um heliporto, de onde saem helicópteros que levam quem pode em voo panorâmico sobre o Rio de Janeiro.

E há – claro! – vistas sem fim sobre a beleza, feita de mar e serra, da Baía de Guanabara e o seu entorno. Por trás da praia de Botafogo, com a água pintada de um laranja pálido, já descia um sol envergonhado, a sua luz filtrada pelas nuvens acasteladas sobre a Serra da Carioca. No topo do Corcovado, que mais parece um irmão gémeo do Pão de Açúcar, o Cristo Redentor era só uma cruz escura contra o céu cinza claro. A superfície glauca e imóvel da baía estava mosqueada com dezenas de embarcações, quase todas tão imóveis como a água por baixo delas. Ali do alto, os inúmeros arranha-céus que ocupam a maior parte do Rio perdem importância, e a cidade justifica que a adjectivem de maravilhosa.

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Outro trajecto de bondinho, tão curto quanto o primeiro, e chegámos ao Pão de Açúcar. A atmosfera aqui estava mais calma, condizente com o lusco-fusco que se instalava em modo acelerado. O espaço disponível é bem mais reduzido que o do Morro da Urca, mas aquele que a vista alcança, a quase 400 metros de altitude, é muito superior: abrange de Niterói a Copacabana, oferecendo-nos uma paisagem em que a água se impõe a tudo o resto.

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A oferta de restauração e lojas no Pão de Açúcar é menor do que na paragem anterior, e isso também ajuda à tranquilidade do lugar. Em compensação, há um percurso entre o arvoredo, a que chamam Bosque das Artes, aproveitado agora para expor alguns trabalhos do artista plástico Carlos Vergara, um dos mais representativos do movimento da Nova Figuração no Brasil (inspirado na pop art americana dos anos 60). O projecto inclui três esculturas do artista, colocadas em pontos estratégicos, e é complementado com uma sugestão de jornada digital interactiva, em que vamos encontrando informações sobre a Mata Atlântica e a sua biodiversidade.

A escuridão chegou quase de repente, como é habitual nestas latitudes. As descidas foram intercaladas por tempos alargados de espera – a maior parte dos visitantes não fica por ali até ao encerramento do parque, que tem horário variável – pois cada bondinho só transporta um máximo de 65 pessoas por viagem. A demora teve, ainda assim, um lado positivo: a possibilidade de ver o Rio sob outra luz, e ficar a saber que nem a noite lhe diminui a sedução.

 

Lugares com história

O condutor do Uber como que materializou os meus pensamentos em palavras: “Sem sol, nem parece o Rio”. Pelos vistos, estávamos em sintonia. A cidade que eu imaginava e aquela onde ele vive são um Rio onde o sol brilha a maior parte do tempo – só que não desta vez. A excepção certamente confirmará a regra, mas o clima está a mudar. E a verdade é que nos dias em que estive no Rio de Janeiro, o sol nunca se mostrou completamente, substituído por nuvens grossas que de vez em quando decidiam aliviar a sua carga em forma de chuva.

Não seria isso que iria estragar a nossa estadia. Trocam-se as sandálias por ténis, veste-se uma gabardina (fininha, que a temperatura não baixa assim tanto), e vamos lá à descoberta da cidade. O Rio conhece-se ao ar livre. Quando a chuva aparece, aproveita-se para entrar numa loja, num café ou numa igreja. Quando ela vai embora, voltamos à rua e seguimos caminho. Há muito para ver, e não é uma chuvinha que vai arruinar-nos os planos.

O Rio dos nossos dias é uma cidade imensa, espalhada por bairros de carácter muito distinto. Numa primeira visita, por onde começar? Para nós, depois de a vermos do alto, fez sentido começar a descobri-la por alguns dos lugares ligados à sua história. Porque a verdade é que nós, portugueses, só conhecemos a história do Brasil que nos é contada nos bancos da escola, e que quase se resume a dois momentos: a chegada de Pedro Álvares Cabral em 1500, e a independência proclamada por D. Pedro em 1822.

O Rio é de Janeiro porque foi esse o mês em que no ano de 1502, uma frota portuguesa enviada por D. Manuel I e comandada por Gaspar de Lemos entrou na imensa enseada hoje conhecida como Baía de Guanabara. Na altura, a região era habitada por povos indígenas provenientes da Amazónia, conhecidos como tamoios ou tupinambás. Durante algumas décadas, a baía tornou-se palco de encontros e tensões. Franceses e portugueses disputaram o comércio do pau-brasil e a amizade dos autóctones, que conheciam a fundo aquelas águas e manguezais. Em 1555, os franceses, sob o comando de Villegaignon, tentaram fixar-se, erguendo a chamada França Antártica. A resposta portuguesa não tardou: após anos de confrontos, em 1565, Estácio de Sá fundava oficialmente a cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro, ao pé do Morro Cara de Cão, selando o domínio luso sobre uma das paisagens mais cobiçadas do Atlântico.

Em 1567, a jovem cidade foi transferida para o Morro do Castelo, onde se ergueram igrejas, colégios e fortalezas, tornando-se o verdadeiro berço urbano do Rio de Janeiro até ao século XVIII. Hoje o morro já não existe (foi demolido nas reformas urbanísticas do início do século XX), mas a sua memória corresponde grosso modo ao actual centro da cidade, onde se encontram alguns dos lugares importantes para compreender a evolução do Rio de Janeiro.

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Por estarmos num alojamento ali bem perto, começámos pelo bairro da Saúde, um dos cinco bairros que abrigam o porto da cidade. Num dos seus extremos, bem de frente para a Baía de Guanabara, a Praça Mauá foi desde sempre um palco privilegiado da história carioca. No século XIX, era a porta de entrada do porto, espaço de comércio intenso, marcado pelo vaivém de mercadorias e pelo peso silencioso do tráfico atlântico de escravizados, que ali deixou cicatrizes. Durante muito tempo, porém, a praça foi esquecida, sufocada pelo tráfego pesado e pela sombra de armazéns que a separavam do mar.

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Com o projecto Porto Maravilha, iniciado em 2009, o espaço renasceu. As avenidas foram abertas à luz, os armazéns deram lugar a esplanadas amplas e o mar voltou a estar em contacto com a cidade. Hoje, a Praça Mauá é o coração de um novo eixo cultural: de um lado o Museu de Arte do Rio (MAR), instalado em dois edifícios díspares (o palacete Dom João VI e um antigo terminal rodoviário modernizado) e que guarda e narra a pluralidade da vida urbana; do outro, sobre um cais antigo, o audacioso Museu do Amanhã, cuja arquitectura futurista se projecta como uma nave sobre as águas – e basta um olhar para se intuir que o edifício foi concebido por Santiago Calatrava, pese embora o arquitecto não se tenha socorrido, para esta obra, das suas habituais linhas arredondadas.

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Ao percorrer esta área, não há como ignorar uma das páginas mais duras da História: a do tráfico atlântico de escravizados, que fez do Rio um dos maiores portos negreiros do mundo. Em quase 400 anos de esclavagismo, a cidade recebeu cerca de 20% de todos os africanos escravizados que chegaram vivos às Américas – a maior transferência forçada de população na história da humanidade. Esta herança pode ser sentida em lugares de memória hoje recuperados, como é o caso do Cais do Valongo. Situado na zona portuária da cidade, não muito longe da Praça Mauá, é um dos lugares mais marcantes da história da escravatura no mundo atlântico. Construído em 1811, o Cais do Valongo foi pensado para afastar do centro urbano o desembarque dos africanos escravizados, que até então ocorria em áreas mais visíveis da cidade. Durante décadas, tornou-se a principal porta de entrada de homens, mulheres e crianças trazidos à força de África: calcula-se que mais de um milhão, vindos na sua maioria do Congo e de Angola, tenham pisado aquelas pedras.

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Redescoberto em 2011, aquando das obras de revitalização da zona portuária (o projecto Porto Maravilha, iniciado em 2009), a Prefeitura do Rio acolheu a proposta do Movimento em Defesa do Direito do Negro e devolveu ao Cais do Valongo o lugar que lhe pertence na memória colectiva: um espaço preservado, onde as lajes de pedra e estruturas expostas permitem hoje um contacto directo com um passado que é difícil, mas incontornável. Desde então, o cais integra o Circuito Histórico e Arqueológico da Celebração da Herança Africana, um percurso que convida a visitar as marcas deixadas pela diáspora africana na região portuária, e que inclui o Jardim Suspenso do Valongo, a Largo do Depósito, a Pedra do Sal, o Centro Cultural José Bonifácio e o Cemitério dos Pretos Novos. Em 2017 foi classificado como Património Mundial da UNESCO.

 

 

Cultura e arte a céu aberto - parte 2

Ana CB, 18.09.25

 

Arte e jardins: uma convivência feliz

 

A arte não se exprime apenas em telas, esculturas ou edifícios. Também os jardins podem ser entendidos como criações artísticas, concebidos com a mesma intenção de provocar emoção, contemplação ou surpresa. Um canteiro desenhado com rigor geométrico, um lago artificial que reflecte a luz de determinada maneira, ou a escolha de espécies que florescem em sequência ao longo das estações: tudo isto revela um gesto criativo tão intencional como o de qualquer pintor ou escultor.

Neste ponto de encontro entre a natureza e a imaginação humana surgem espaços singulares. Uns transformam vastas áreas em museus ao ar livre, onde esculturas convivem com árvores centenárias e caminhos errantes. Outros têm o próprio jardim como obra central, seja pela exuberância das cores, pela harmonia das formas ou pela maneira como nos transportam para universos culturais distintos.

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O que une todos estes lugares é a ideia de que um jardim pode não ser apenas lugar de relaxamento, brincadeira ou passeio, mas também uma experiência estética. A cada passo, há uma narrativa que se desenrola – umas vezes explícita, outras sugerida pelo ritmo das plantas, pela disposição dos espaços ou pela relação com a história do lugar.

Gosto particularmente de jardins que se afirmam como obras vivas em constante transformação. É esta vitalidade, feita da combinação entre concepção artística e natureza em mutação, que torna cada experiência única. Porque aqui não estamos apenas a contemplar arte ou a admirar paisagens, mas a caminhar dentro de criações que respiram e se renovam com a passagem do tempo.

 

Onde arte e natureza se reinventam

Brumadinho, Brasil

Entre todos os lugares que demonstram como a natureza pode ser palco para a criação artística, o Inhotim ocupa uma posição singular. Situado em Brumadinho, no estado brasileiro de Minas Gerais, é considerado o maior museu a céu aberto da América Latina e um dos mais notáveis exemplos de como arte e natureza podem conviver em equilíbrio dinâmico. Ali, não sabemos ao certo se são as obras que embelezam a paisagem ou se é a exuberância tropical que dá vida às obras. O resultado é uma experiência imersiva, uma verdadeira viagem sensorial entre galerias, trilhos, lagos e jardins botânicos.

A origem do espaço está ligada à colecção do (controverso) empresário Bernardo Paz, que começou a reunir obras de arte contemporânea a partir dos anos 80. Em 2004, decidiu criar um instituto que permitisse reunir esse acervo num lugar onde a arte dialogasse directamente com a paisagem. Aberto ao público em 2006, o Inhotim passou a acolher instalações de artistas brasileiros e internacionais em edifícios de arquitectura singular e em áreas abertas que se fundem com o entorno. O nome fora do comum deste instituto terá uma explicação curiosa: parece derivar de uma forma popular de dizer “Senhor Tim” – o local foi em tempos propriedade de um fazendeiro inglês de nome Timothy (na linguagem local, “Senhor Tim” derivou para “Inhô Tim”).

O espaço cresceu até atingir uma escala impressionante: são mais de 140 hectares visitáveis, com dezenas de galerias, esculturas monumentais e um parque botânico que reúne espécies raras de vários cantos do planeta. As plantas não são apenas pano de fundo; fazem parte da proposta curatorial. Uma alameda de palmeiras pode ser tão marcante quanto um pavilhão de arte, e uma colecção de cactos do deserto pode rivalizar com a intensidade de uma instalação.

A diversidade das obras expostas confirma a ambição do projecto. Entre as esculturas ao ar livre destaca-se a Beam Drop Inhotim, de Chris Burden: dezenas de enormes vigas de metal cravadas verticalmente no solo, lançadas de grande altura sobre cimento fresco, num gesto radical que se tornou escultura monumental e memória do impacto da gravidade e do acaso. Outras obras convidam à experiência sensorial ou lúdica. A Viewing Machine, de Olafur Eliasson, é um caleidoscópio gigante que fragmenta e multiplica o jardim à sua volta em padrões geométricos infinitos. Troca-Troca, de Jarbas Lopes, usa carros coloridos desmontáveis que podem ser combinados em novas formas, transformando a lógica utilitária do automóvel em jogo artístico. A dimensão política e histórica também encontra espaço no Inhotim. O Barco, de Grada Kilomba, é uma instalação poderosa composta por estruturas de ferro, com palavras gravadas, que evocam o porão de um navio negreiro. Caminhar entre estas peças é um confronto com a memória da escravatura, com a dor e a resistência de milhões de vidas silenciadas e apagadas.

O Inhotim distingue-se também pelas galerias dedicadas a criadores específicos. A Galeria Adriana Varejão, que integra obras da artista plástica que foi casada com Bernardo Paz, é uma das mais emblemáticas, até mesmo pela sua arquitectura. Já a Galeria Psicoativa, de Tunga, oferece um mergulho no universo enigmático do artista: esculturas e instalações que exploram alquimia, metamorfose e inconsciente, num espaço onde razão e mistério se confundem. Na galeria Cildo Meireles, gostei especialmente do Desvio para o Vermelho, um ambiente monocromático que nos envolve num universo inteiro dominado por aquela cor. O quotidiano – uma mesa, uma sala, objectos banais – transforma-se em cenário inquietante, onde o trivial esconde algo de perturbador. Entre as experiências imersivas, a galeria dedicada a Yayoi Kusama é a minha favorita, com duas obras que nos transportam para um universo de repetições e reflexos infinitos, característicos da artista japonesa. A sensação de estar dentro de um espaço que se multiplica infindavelmente é uma das mais intensas da visita ao Inhotim. E há ainda lugar para homenagens à comunidade local nos murais Abre a Porta e Rodoviária de Brumadinho, de John Ahearn & Rigoberto Torres, criações cheias de realismo e cor.

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A soma destas (e de muitas outras) experiências confirma a singularidade do Inhotim: um lugar onde arte e paisagem são inseparáveis, e onde cada obra ganha novos significados ao ser vivida num espaço aberto, tropical e vivo. Mais do que um museu, é um organismo que desafia a ideia de que a arte só pertence a paredes brancas ou corredores fechados.

Visitar o Inhotim exige tempo e entrega. Dois dias serão o mínimo necessário para os vários percursos expositivos, em trilhos que contornam lagos e jardins temáticos, com galerias e instalações escondidas entre a exuberância vegetal, descobrindo obras que surpreendem a cada volta do caminho. Não sei dizer se me marcou mais o acervo artístico, a riqueza botânica, ou a forma como tudo se conjuga. Talvez o maior mérito do Instituto seja exactamente este: mostrar que arte e natureza não são esferas separadas, mas domínios que, em conjunto, podem reinventar a forma como olhamos o mundo.

 

A arte em diálogo com a natureza

Porto, Portugal

Longe da escala monumental do Inhotim, o ponto forte de Serralves está no equilíbrio entre várias dimensões: a arquitectura, o jardim histórico e a arte contemporânea. É um dos meus sítios preferidos no Porto. Reúne três pólos que se complementam: o Museu de Arte Contemporânea, a Casa de Serralves e o Parque. Nenhum destes espaços se entende isoladamente, pois é na articulação entre eles que reside o impacto do lugar.

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O parque, com mais de 18 hectares, foi concebido entre as décadas de 30 e 40 do século passado sob a orientação do arquitecto francês Jacques Gréber. Inspirado em modelos de jardins clássicos europeus, combina áreas formais – com avenidas, escadarias e lagos geométricos – com zonas mais orgânicas, bosques e clareiras. Caminhar no parque é absorver diferentes linguagens paisagísticas, desde o rigor geométrico ao romantismo naturalista, numa diversidade que nunca soa forçada. A vegetação é cuidadosamente pensada: magnólias, camélias, cedros e espécies raras convivem em cenários que mudam consoante os humores de cada estação do ano.

Mas Serralves não é apenas jardim. É também palco de um dos museus mais activos de Portugal no domínio da arte contemporânea. O edifício, assinado por Álvaro Siza Vieira, é um exemplo de como a arquitectura pode ser discreta e ao mesmo tempo marcante. As linhas sóbrias e a integração na paisagem criam uma continuidade natural: do interior para o exterior, das salas brancas para o verde que se vê pelas janelas, nunca perdemos a noção de que estamos imersos num espaço mais extenso.

É precisamente nesta convivência entre museu e parque que Serralves se distingue. As exposições não se limitam às galerias; transbordam para o ar livre, ocupando clareiras, prados ou estruturas do jardim. Aqui, a arte contemporânea, tantas vezes associada a ambientes urbanos ou industriais, respira de outra maneira. Vários artistas de renome internacional têm em Serralves marcas permanentes, mas as surpresas fazem parte do percurso. Nunca sabemos exactamente o que vamos encontrar, e é esta incerteza que torna cada visita única. No campo da inovação, o projecto “Serralves em luz” está entre as experiências artísticas mais memoráveis que já tive a felicidade de visitar.

Para além da arte e da paisagem, Serralves tem também uma vertente patrimonial e arquitectónica importante. A Casa de Serralves, construída entre 1925 e 1944, é um dos exemplos mais notáveis de Art Déco em Portugal. O edifício, com as suas linhas elegantes, interiores sofisticados e ligação directa ao jardim, acrescenta uma dimensão histórica que enriquece a experiência. Não é apenas cenário: é parte do diálogo que o espaço estabelece entre passado e presente, tradição e contemporaneidade.

Há alguns anos, o parque ganhou uma nova atracção, na linha de outros jardins estrangeiros famosos: a Treetop Walk, um passadiço elevado que permite caminhar entre as copas das árvores. Para além da perspectiva inusitada sobre o parque, esta estrutura simboliza bem a filosofia de Serralves: olhar de outro ângulo, experimentar uma ligação à natureza de forma diferente.

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Há algo em Serralves que sempre me faz pensar sobre a noção de escala. A grandiosidade aqui não está no tamanho absoluto, mas na subtileza com que elementos distintos se entrelaçam. Um jardim que é também museu, um museu que é também parque, uma casa histórica que é também espaço de arte. Nada funciona solitariamente, e é essa teia de relações que dá sentido ao conjunto. Fica na memória o modo como tudo se conjuga num ambiente coerente, em que cultura e paisagem não são mundos de costas voltadas, mas antes partes de um mesmo organismo. Vivo.

 

Arte, Oriente e tropicalidade: um trio equilibrado

Funchal, Portugal

O Monte Palace, situado na encosta sobre o Funchal, é um dos lugares que melhor demostram que um espaço a céu aberto pode ser concebido como obra de arte total. Uma antiga quinta, transformada em hotel de luxo no início do século XX, é hoje uma área de 70 mil metros quadrados onde a vegetação tropical, a arte e a memória histórica vivem em harmonia. A casa principal, pintada em tons pastel que contrastam com as madeiras e os ferros forjados escuros, continua a ser um dos ícones visuais do conjunto. Da sua esplanada-miradouro desfruta-se de uma das vistas mais belas sobre a baía do Funchal, recorte azul entre o verde tropical da montanha.

O percurso pelos jardins é feito de espantos sucessivos. Caminhos em declive revelam clareiras, lagos, painéis de azulejos e esculturas escondidas entre a vegetação. Esta dimensão cenográfica é intencional: tudo parece estar pensado para surpreender. Durante o passeio encontramos obras decorativas de várias origens, esculturas contemporâneas e instalações artísticas que foram sendo acrescentadas ao longo dos anos, tornando os jardins num espaço activo de coexistência da natureza com a cultura.

Entre os elementos que mais marcam a identidade do Monte Palace estão as colecções de azulejos, que relatam episódios históricos de diferentes épocas, desde narrativas religiosas até representações da expansão marítima. O mais impressionante é o conjunto “Aventura dos Portugueses no Japão”, formado por mais de uma centena de azulejos que narram, em sequência, o encontro entre duas culturas distantes. Mais do que simples decoração, estes painéis são uma forma de inscrever a história na paisagem, mostrando que um jardim também pode ser um repositório de memórias.

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Os Jardins Orientais merecem um destaque especial. Com pagodes, portais vermelhos, esculturas de inspiração asiática e lagos que reflectem pontes de madeira, criam uma atmosfera distinta dentro do complexo. A conjugação de bambus, fetos arbóreos e lanternas de pedra com a arquitectura vermelha dos pavilhões compõe uma paisagem que parece transportar-nos para outro continente. É uma das áreas mais fotogénicas do Monte Palace (e a minha preferida) e também das que mais puxam à contemplação: a simetria dos elementos e o contraste das cores têm um efeito quase hipnótico. Já para não falar dos lagos povoados por carpas koi de várias cores, que oferecem entretenimento garantido.

No coração do jardim encontra-se o lago central, alimentado por uma muito “instagramável” cascata em modo cortina de água. Habitado por cisnes nórdicos, alvíssimos, funciona como espelho para a vegetação envolvente e para as esculturas posicionadas estrategicamente à sua volta. Toda a concepção estética do local e o jogo entre reflexo, movimento e som da água transformam esta área num dos pontos mais atractivos da visita.

O museu, edifício colorido engenhosamente integrado no declive do terreno, é um espaço de contraste: no interior, a cor e o brilho de uma notável exposição de minerais de todo o mundo e das obras de arte contemporânea ali expostas; no exterior, o verde omnipresente e a diversidade botânica. Uma opulenta colecção de esculturas africanas deu origem à criação do Jardim de Escultura Contemporânea do Zimbabué, onde convivem com a vegetação tropical que evoca o continente mais próximo da ilha da Madeira. No Monte Palace, a arte prefere não estar encarcerada entre paredes.

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Mais do que um aglomerado de jardins exóticos, mais do que um espaço para mostrar ao público obras de arte coleccionadas, o Monte Palace é um exercício de harmonização e equilíbrio, de comunhão entre a criatividade dos mundos humano e natural, criado para saciar os nossos sentidos. Um objectivo conseguido com sucesso.

 

Um museu como complemento

Marraquexe, Marrocos

Nos anos 30 do século passado, o pintor francês Jacques Majorelle deixou-se seduzir pelo exotismo de Marraquexe e decidiu construir, na periferia da cidade, um refúgio que fosse simultaneamente casa, atelier e jardim. Durante décadas, coleccionou plantas raras, sobretudo espécies tropicais e cactos, criando um espaço que, pela diversidade botânica e pela cenografia pensada em cada recanto, se tornou indissociável não só da casa que rodeia, como da própria obra do artista. No lugar que permanece com o seu nome, o elemento mais marcante é cromático: o célebre “azul Majorelle”, tom profundo e luminoso que o pintor adoptou como marca própria e que passou a revestir muros, fontes e estruturas arquitectónicas do jardim, transformando-o numa tela habitável.

Após a morte do pintor, o espaço entrou num período de abandono até ser resgatado, nos anos 80, por Yves Saint Laurent e Pierre Bergé, que reconheceram o valor único do conjunto. Foi sob o seu patrocínio que o Jardim Majorelle se revitalizou, mantendo a herança do seu criador, mas acrescentando uma nova camada de significado: abriu-se ao público, e tornou-se ícone cultural e museu.

Passear pelo jardim é atravessar um percurso de contrastes calculados. Sob os nossos pés, os caminhos de cor ocre que remetem para a tradição marroquina; à volta, o choque vibrante entre o azul, o amarelo intenso e o branco que marcam portas, vasos e elementos decorativos. Entre estes planos de cor erguem-se mais de trezentas espécies de plantas, vindas de cinco continentes: palmeiras imponentes, bambus ondulantes, buganvílias, lótus, nenúfares. Uma diversidade vegetal não caótica, antes coreografada para criar um equilíbrio subtil entre sombra e luz, densidade e abertura. O jardim desdobra-se numa sucessão de quadros vivos: a vegetação enquadra a cor dos caminhos e das paredes, o reflexo da água intensifica o contraste dos elementos arquitectónicos.

A presença da água é essencial na experiência do lugar. Fontes geométricas, tanques ornamentais e o lago maior, coberto de nenúfares, introduzem movimento e som, ao mesmo tempo que reforçam a sensação de frescura. São pontos de pausa bem-vinda, onde simplesmente apetece existir.

Do jardim passamos com naturalidade para o Museu Pierre Bergé, instalado no antigo atelier de Majorelle: um espaço intimista que reúne peças de joalharia, trajes, tecidos e objectos do quotidiano que sublinham a riqueza da herança amazigh no território marroquino. A inclusão deste museu acrescenta profundidade ao complexo – para além da experiência estética e sensorial, mergulhamos no património cultural da região, reforçando o conceito de que a arte não vive apenas da cor ou da forma, mas também da identidade.

 

O local ganhou ainda maior notoriedade após a morte de Yves Saint Laurent, cujas cinzas foram depositadas no jardim, perpetuando a ligação íntima entre o estilista e o lugar que elegeu para o acolher. Esta dimensão memorial confere-lhe uma aura particular, entretanto complementada pela abertura, paredes-meias com a Villa Majorelle, de um museu dedicado ao costureiro.

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O Jardim Majorelle é um lugar onde a simbiose quase orgânica entre arte, moda e paisagem resulta numa forte identidade visual e numa atmosfera única. Visitá-lo é como entrar num universo onde a cor se torna emoção, e onde a vegetação não é apenas ornamento, mas sim matéria plástica ao serviço da visão artística partilhada pelos seus criadores.

 

Arte com flores

Lisse, Países Baixos

Situado em plena região dos campos de tulipas, o parque Keukenhof nasceu em meados do século XX com um propósito claro: mostrar ao mundo a excelência da floricultura holandesa. O nome remete para o século XV, quando as terras eram usadas para a horta da cozinha (“keuken”) do castelo da condessa Jacoba van Beieren. O passado agrícola cedeu entretanto lugar a um projecto que viria a assumir proporções monumentais: um jardim concebido como vitrina artística da produção floral, e também como cenário de sonho para os mais de um milhão de visitantes que o procuram todos os anos, durante as escassas oito semanas de Primavera em que o Keukenhof permanece aberto.

O que distingue este parque não é apenas a quantidade impressionante de flores plantadas – mais de sete milhões de bolbos a cada temporada – mas sobretudo a forma como estas são organizadas. Paisagistas e jardineiros concebem todos os anos novos desenhos, inspirados em temas que mudam a cada edição, criando tapetes cromáticos de enorme impacto visual. Cada canteiro é pensado como se fosse uma pincelada, e o resultado são cenários exuberantes de cores mutáveis, que se transformam de semana para semana entre Março e Maio. É esta dimensão efémera que confere ao Keukenhof um fascínio especial: quando o visitamos sabemos que aquilo que os nossos olhos vêem existe apenas naquele momento, e desaparecerá em breve para dar lugar a algo diferente no ano seguinte.

As tulipas, claro, são as protagonistas absolutas, celebradas em toda a sua variedade de formas e cores. Mas o Keukenhof não se limita a esta flor que é um dos símbolos da Holanda. Jacintos, narcisos, lírios e orquídeas complementam o espectáculo, ampliando a diversidade e acrescentando fragrâncias ao deleite visual. Percorremos alamedas arborizadas que se abrem sobre grandes manchas coloridas, cruzamos pontes e descobrimos recessos mais intimistas, onde a escala se reduz para permitir uma contemplação mais pausada. O desenho do parque procura esse equilíbrio entre grandiosidade e detalhe, garantindo que, para lá da imponência, exista também proximidade.

Os elementos arquitectónicos reforçam esta dualidade. Há esculturas que emprestam um toque de nobreza a certos ambientes, mas é nos pavilhões modernos que o parque mostra maior ousadia. Abrigam exposições temporárias, recantos temáticos e mostras dedicadas a espécies específicas. São espaços que ligam o jardim à tradição floral holandesa, mas também à ideia do jardim como trabalho artístico – onde a mão humana organiza a natureza segundo linhas de composição e experimentação estética.

Visitar Keukenhof é, por tudo isto, uma experiência de contemplação e de aprendizagem, com muita felicidade à mistura. Não é sem razão que há imensas crianças entre os visitantes. Enquanto passeamos entre lagos, esculturas contemporâneas e cenários quase teatrais, descobrimos o rigor técnico por trás de cada flor, de cada combinação cromática ou de espécies botânicas. O jardim é, simultaneamente, espectáculo e laboratório, vitrina comercial e obra de arte temporária.

Em Keukenhof, a natureza também é moldada pela visão criativa humana, mas o foco não está na integração da arte plástica com a paisagem e sim na própria concepção do jardim como obra artística. A paleta não é de tintas, mas de flores; o material de trabalho não é metal, pedra ou linho, mas sim terra e água. É esta singularidade que faz dele não apenas o maior jardim de flores do mundo, mas também uma das mais expressivas demonstrações de como o design paisagístico pode elevar-se à categoria de arte.

 

Cultura sem paredes

Depois de percorrer estes lugares, é inevitável reconhecer que a cultura não se esgota em museus fechados nem em salas de exposição. Tanto nos espaços etnográficos como nos jardins artísticos, a experiência ganha outra intensidade quando se vive ao ar livre, em contacto directo com a paisagem, com o clima, com os sons e até com os cheiros. É este cruzamento entre arte e natureza que lhes confere uma vitalidade singular: não são só locais para contemplar, mas também palcos para memórias, tradições e visões criativas contemporâneas.

No fundo, estes espaços convidam a uma forma de visita mais atenta e mais sensitiva. Não se trata apenas de ver, mas de estar, de caminhar, de deixar que a envolvência acrescente camadas de significado ao que ali se mostra. E talvez seja isso que os torna tão inesquecíveis: ao sair de cada um deles, trouxe comigo não só imagens de beleza, mas sobretudo a sensação de ter experimentado, ainda que só por umas horas, uma forma mais rica e sensorial de estar em contacto com a cultura.

Cultura e arte a céu aberto - parte 1

Ana CB, 11.09.25

Há lugares onde a criatividade não cabe entre quatro paredes. Espaços ao ar livre onde a história, a memória e o talento humano se encontram em feliz coabitação. Alguns recriam modos de vida que já não existem ou estão a desaparecer; outros transformam jardins e campos em plataformas de arte. Têm em comum o facto de proporcionarem uma forma diferente de contacto com a cultura – não em vitrinas ou corredores fechados, mas em cenários onde a natureza e a intervenção humana se misturam. Tenho visitado alguns destes lugares, de que sou particularmente apreciadora, e nunca saio de lá defraudada.

 

O mundo contado pela vida quotidiana

Incluo neste conjunto os museus etnográficos a céu aberto. Neles, a curiosidade não se alimenta apenas de objectos expostos, mas de ambientes inteiros, pensados para mostrar como se vivia, trabalhava e organizava a vida em tempos passados. São recriações que nos permitem mergulhar na atmosfera quotidiana de outras épocas, sentir os ritmos de uma comunidade e reconhecer o engenho que moldou ferramentas, casas ou formas de trabalho. Lugares que nos desafiam a olhar para o passado não como algo distante e abstracto, mas como uma herança palpável, feita de gestos ligados à sobrevivência, práticas comunitárias e ligações profundas com o meio envolvente – uma herança que é preciso acarinhar e preservar, mesmo que por vezes possa parecer obsoleta aos olhos da sociedade moderna.

 

O berço dos museus ao ar livre

Estocolmo, Suécia

Ao falar destes museus, é quase inevitável começar pelo Skansen. Criado em 1891, foi o primeiro museu a céu aberto do mundo, pioneiro na ideia de preservar modos de vida tradicionais fora das paredes de um edifício. Nasceu com uma ideia muito concreta: fixar a memória de um país que estava a mudar depressa. O mundo rural perdia importância, as cidades cresciam, a era industrial avançava. Era necessário guardar, de forma organizada, aquilo que definia o dia-a-dia das comunidades que viviam da terra, do trabalho manual e da relação próxima com a natureza: reunir casas, oficinas e estruturas de diferentes regiões num só local, para mostrar como viviam as comunidades rurais antes da industrialização.

O resultado é um museu vivo, que não se limita a exibir objectos soltos, mas recria ambientes inteiros. Mais de um século depois, continua a ser uma referência mundial, visitado tanto por quem procura aprender mais sobre história cultural como por famílias em passeio. É possível entrar numa casa onde as tarefas diárias ainda são feitas como no início do século passado, ou descansar dentro de uma igreja de madeira que transmite a sobriedade do quotidiano religioso. Há uma mercearia antiga, uma tipografia numa casa do século XVIII, lojas que funcionam como noutros tempos, e oficinas onde artesãos trabalham o metal ou o vidro, ou produzem peças de cerâmica ou joalharia, entre outros ofícios. O Skansen dá-nos a noção de um país inteiro resumido em parcos quilómetros – é um pouco como se estivéssemos dentro d’ A Maravilhosa Viagem de Nils Holgersson, o delicioso livro de Selma Lagerlöf em que a paisagem da Suécia também é uma personagem.

Tem ainda outra faceta que o torna especialmente popular: a vertente zoológica. Para quem tem crianças pequenas, esta será a principal atracção – vi muitos pais, tanto sozinhos como em casal ou em grupo, empurrando carrinhos de bebé ou com filhos pela mão. O espaço inclui um pequeno jardim zoológico com espécies típicas da Escandinávia, como alces, ursos, linces ou renas, bem como animais domésticos tradicionais das quintas suecas: coelhos, porcos, ovelhas, cavalos, e afins. Tem também um aquário, e lagos onde vivem focas e lontras. Durante a visita, passamos das ruas de uma aldeia histórica para cercados onde vacas ou cabras pastam tranquilamente. Esta combinação entre cultura e natureza faz com que a experiência seja mais variada, mais completa e, de certa forma, mais acessível para diferentes públicos.

O Skansen tem um calendário diversificado de actividades para miúdos e graúdos, sejam elas de pura diversão, como as celebrações festivas anuais, ou de educação, como as palestras sobre animais e a protecção da biodiversidade. Nota-se que procuram um equilíbrio entre aprendizagem e entretenimento, sem que uma dimensão anule a outra.

Apesar de o ter visitado numa época do ano mais tranquila, não tive dificuldade em perceber porque é que Skansen é um local tão popular entre os locais e atractivo para quem vem de fora. Não é apenas um museu etnográfico: é também um espaço de lazer, um lugar onde se pode passar um dia inteiro sem que a experiência se torne pesada ou demasiado académica. A mistura de casas históricas, demonstrações de ofícios e componente zoológica tornam-no num espaço em constante movimento.

O modelo de Skansen acabou por influenciar muitos outros museus etnográficos pelo mundo fora. A ideia de desmontar casas, igrejas ou oficinas de várias partes de um país e reconstruí-las num mesmo local mostrou-se eficaz para contar uma história colectiva. Hoje, visitar o Skansen é perceber como um projecto museológico pode ser igualmente uma declaração de identidade: aquilo que se decide preservar é aquilo que se considera essencial para compreender um povo.

 

A alma rural de um país

Sibiu, Roménia

O Muzeul Astra, leva a uma escala impressionante o conceito de contar a vida de um país a céu aberto. Situado numa vasta área arborizada (96 hectares na floresta protegida de Dumbrava Sibiului), reúne centenas de casas, igrejas, moinhos e oficinas que representam diferentes regiões e tradições da Roménia. Mais do que um conjunto de edifícios, é uma espécie de pequena Roménia condensada num único espaço, onde podemos atravessar séculos de história caminhando entre vegetação, água e trilhos de terra.

O Astra demonstra, de forma exemplar, a diferença entre ver um objecto isolado numa vitrina e ver esse mesmo objecto no seu contexto natural. Uma enxada exposta num museu tradicional é apenas uma ferramenta. Colocada ao lado de um celeiro ou usada numa demonstração prática, passa a ser testemunho vivo de uma forma de subsistência. Essa diferença ajuda a entender porque é que estes museus têm tanto impacto: transformam peças inertes em histórias completas. No Astra, esse princípio está bem patente.

A Roménia é um mosaico de regiões com influências diversas – latinas, saxónicas, otomanas, húngaras – e o Astra reflecte esta diversidade cultural, sobretudo em termos de arquitectura e utilidades. O espólio do museu conta com mais de 400 estruturas edificadas e mais de 200 mil objectos variados, todos preservados com cuidado. Visitar o Astra é também perceber como a identidade romena se construiu a partir da coexistência de tradições distintas. Esta pluralidade é, ainda hoje, a verdadeira riqueza de um país que mais parece uma manta de retalhos.

O espaço natural em que o Astra está inserido contribui para um efeito de imersão. As casas não estão dispostas como numa exposição em linha, mas sim espalhadas no meio das árvores, à beira de lagos, ou em clareiras. Esta organização faz com que a visita se pareça mais com uma caminhada por aldeias reais do que com uma visita museológica. A natureza funciona como cenário e, ao mesmo tempo, como parte integrante da experiência.

Entre os edifícios mais marcantes está uma igreja de madeira, que data de 1672 e é o monumento mais antigo da colecção do museu. Depois, há os moinhos – uma colecção única que inclui 33 moinhos de todos os tipos energéticos conhecidos na área euro-asiática (com excepção dos moinhos de maré), e que espelham a importância da moagem nas economias locais. E há casas de todos os tipos, algumas muito antigas ou únicas, como por exemplo a maior casa de carvalho do sudeste da Europa, construída há três séculos.

O Astra não se limita a exibir edifícios estáticos. Muitos dos espaços estão equipados com objectos do quotidiano: cozinhas com potes de barro, camas cobertas por colchas bordadas, utensílios agrícolas de uso corrente. Há até demonstrações de ofícios: oleiros, ferreiros, carpinteiros ou tecelões mostram como as mãos davam forma a quase tudo o que era necessário para viver.

Faz também parte da missão do Muzeul Astra contribuir para o desenvolvimento e promoção das comunidades rurais, tendo já divulgado ao público visitante várias minorias étnicas nacionais e mais de 200 comunidades rurais. Os eventos que organiza incluem festivais tradicionais e celebrações diversas envolvendo música, dança, gastronomia e artesanato, com a presença de artesãos oriundos de cada comunidade representada.

Não sendo uma das atracções mais divulgadas a nível turístico (pelo menos para fora do país), posso dizer com sinceridade que, em Sibiu, foi o local que mais gostei de visitar. Foi um mergulho, durante as várias horas que demorei a percorrê-lo, numa forma de pensar e organizar o mundo que já desapareceu em grande medida, mas que continua a ser fundamental para compreender a história e o carácter de um país. Não é um espaço de nostalgia, mas sim de reconhecimento. Com a minha viagem pela Roménia ainda no início, deu-me uma base importante para compreender e destrinçar tudo o que vi do país daí para a frente.

 

Casas de turfa e a vida nos confins do Atlântico

Skagafjörður, Islândia

À beira de um fiorde no norte da Islândia, Glaumbær é um daqueles lugares que nos obriga a repensar a relação entre ser humano e ambiente: um conjunto de casas de turfa que testemunham como comunidades inteiras conseguiram sobreviver em condições climáticas extremas, usando engenho e recursos locais. Nestas construções, a terra não é apenas chão, mas também parede e tecto.

Esta quinta histórica preservada (que inclui também alguns edifícios de madeira, antigos e bem recuperados, com exposições etnográficas várias) oferece-nos um vislumbre de como seria a vida na Islândia rural dos séculos XVIII e XIX. À primeira vista, as casas parecem pequenos montículos cobertos de relva, confundindo-se com a paisagem. Só mais perto é que percebemos que existem fachadas de madeira, com entradas para interiores bem organizados. A turfa, retirada dos campos vizinhos, era usada em blocos compactados que, empilhados em configuração de espinha, formavam paredes espessas capazes de isolar contra o frio e o vento. No tecto, uma camada adicional de terra e vegetação ajudava a reforçar a estrutura. Não era arquitectura de ostentação, mas de sobrevivência, nascida da necessidade e da adaptação.

Por dentro, as divisões são estreitas e pouco iluminadas, mas revelam uma organização funcional surpreendente. Há cozinhas com fogões a carvão, quartos partilhados por várias pessoas, despensas com prateleiras para conservar alimentos e áreas de trabalho onde se fiava lã ou se preparavam utensílios. O mobiliário, em madeira simples, mostra como cada peça tinha de ser prática e duradoura. O museu conserva muitos desses elementos originais, permitindo-nos imaginar o quotidiano das famílias que aqui viveram até ao século XX.

O que mais me chamou a atenção foi a forma como estas casas exprimem uma lógica comunitária, que ainda hoje sobrevive em muitas partes da Islândia. Glaumbær não era apenas uma residência isolada, mas um conjunto de edifícios interligados, uma espécie de aldeia minúscula sob uma mesma cobertura de turfa. Essa proximidade física traduzia também a importância da cooperação: num ambiente hostil, a sobrevivência dependia de esforços partilhados, desde a produção de alimentos até à manutenção das construções.

Há também um lado simbólico nesta arquitectura. As casas de turfa significavam não só abrigo físico, mas igualmente uma extensão da própria terra. A fronteira entre o natural e o humano era ténue: vivia-se dentro daquilo que o solo oferecia. Esta ligação à natureza é uma constante na cultura islandesa, visível tanto nas sagas medievais, que celebram a dureza da vida nos confins do Atlântico, como na literatura mais contemporânea, que continua a retratar a Islândia como um território onde a paisagem molda o carácter das pessoas.

Visitar Glaumbær fez-me, de certo modo, perceber como a chamada “modernidade” mudou (e vai continuar a mudar) tão radicalmente os nossos conceitos de conforto. Hoje em dia, habituados a casas luminosas e bem equipadas, causa-nos estranheza atravessar um corredor estreito ou entrar numa divisão sombria. Mas não há como ignorar a engenhosidade que permitia, em tempos menos tecnológicos, transformar recursos escassos em abrigo eficaz. A turfa pode parecer frágil, mas revelou-se mais resistente e duradoura do que muitos materiais modernos.

Glaumbær não é só um museu sobre casas antigas, mas sim uma lição sobre resiliência e adaptação. Mostra como a arquitectura pode ser profundamente enraizada no ambiente e como, mesmo em condições adversas, as comunidades encontraram formas criativas de viver e prosperar. É um lugar que nos lembra que a cultura não se exprime apenas em palácios ou monumentos grandiosos, mas muitas vezes em soluções simples, engenhosas e silenciosas que garantiram a continuidade da vida em regiões isoladas.

 

A paisagem que se tornou museu

Zaandijk, Países Baixos

Nas margens do rio Zaan, às portas de Amesterdão, Zaanse Schans é uma pequena localidade transformada em museu activo, onde moinhos, armazéns e casas de madeira recriam a atmosfera holandesa dos séculos XVIII e XIX. Aqui, não se trata apenas de conservar edifícios históricos, mas de mostrar como funcionava (e em certa medida ainda funciona, pese embora mais assente no turismo) uma comunidade próspera, sustentada pela engenhosidade técnica e pelo comércio. Se conseguirmos ignorar as centenas de turistas que visitam a aldeia, não é difícil “encaixar” neste cenário a beleza do quotidiano e as personagens retratadas por Vermeer nos seus quadros.

O que distingue Zaanse Schans é a sua ligação ao vento e à água. Os moinhos eram usados para tudo, desde a moagem tradicional destinada à alimentação até à produção de óleo ou de pigmentos, passando pela serração de madeiras. Cada moinho tinha uma função precisa. Juntos, formavam uma rede que, em plena era pré-industrial, colocava a região de Zaan na vanguarda da inovação: nesta que foi a área industrial mais antiga da Europa Ocidental, chegaram a existir, nos séculos XVIII e XIX, cerca de seiscentos moinhos de vento em funcionamento simultâneo. Alguns dos que vemos hoje em Zaanse Schans ainda são usados. Entrar num deles é ter uma aula in loco sobre a transformação de uma energia natural em força produtiva: as engrenagens de madeira rangem, as pás rodopiam, e sente-se no ar o cheiro a madeira serrada ou a sementes esmagadas.

O projecto de Zaanse Schans sensivelmente como o vemos hoje foi concebido em 1946 pelo arquitecto Jaap Schipper. Os edifícios que congrega foram resgatados em locais diversos e transportados, por estrada e por via navegável, para a área onde actualmente se encontram. Alguns já não correspondem exactamente à estrutura original. É o caso do De Kat, o único moinho de vento do mundo ainda em funcionamento que mói pigmentos minerais para a produção artesanal de tintas de acordo com a composição criada por Rembrandt, tal como se fazia há séculos. Desmantelado em 1904 até à altura da cremalheira, em 1960 foi reconstruído com a colocação do corpo de um outro moinho na subestrutura. Quanto ao Het Jonge Schaap, também ainda activo, é uma réplica fiel de um moinho de serração original de 1680, em tempos situado atrás da estação ferroviária de Zaandam e demolido em 1942. Antes da demolição foi cuidadosamente estudado e medido, o que permitiu a sua reconstrução posterior por artesãos locais. Funciona desde 2007 em Zaanse Schans, operado por uma equipa dedicada de moleiros.

Para além dos moinhos, o complexo inclui oficinas e armazéns onde se fabricavam produtos que ainda hoje associamos à identidade neerlandesa. Há queijarias que mostram o processo artesanal de produção, sapatarias dedicadas aos famosos tamancos de madeira e pequenas lojas que exibem artesanato local. Esta componente prática liga a vocação museológica à comercial, onde tradição e consumo se misturam sem conflitos.

O ambiente urbano recriado em Zaanse Schans também tem o seu encanto. As casas pintadas em tons de verde e branco, com telhados inclinados e janelas de guilhotina, evocam a estética típica da região. Várias delas foram transferidas de outras localidades para aqui, de modo a preservar o conjunto arquitectónico, e são habitadas, o que reforça a sensação de que não estamos apenas perante uma reconstrução museológica, mas num lugar que continua a ter vida própria. A etnografia pode não se resumir apenas ao registo de costumes desaparecidos.

Interessante em Zaanse Schans é também a forma como o património cultural e o natural se articulam. O rio, os canais e os prados em redor criam um enquadramento que explica porque é que esta região se tornou um pólo de actividade económica. Não é apenas uma sucessão de edifícios bem conservados, mas uma paisagem cultural em que cada elemento – água, vento, madeira, barro – desempenhou um papel na construção de um modo de vida. É o equilíbrio entre o passado preservado e o presente activo que faz de Zaanse Schans um lugar tão singular dentro do panorama dos museus ao ar livre.

 

Memórias a céu aberto

Estes quatro espaços são diferentes nas geografias, nos climas e nas tradições, mas partilham uma mesma virtude: transformam a história em algo palpável. Cada um deles tem a sua marca própria: Skansen alia a preservação cultural a uma vertente zoológica que aproxima gerações; Astra mostra a diversidade e a riqueza da vida rural romena; Glaumbær ensina-nos como a adaptação à natureza foi, em si mesma, uma forma de cultura; e Zaanse Schans revela a engenhosidade que transformou o vento e a água em motores de prosperidade. No fundo, todos estes lugares nos relembram que a cultura não é feita apenas de grandes monumentos ou obras-primas consagradas, mas também de soluções práticas, de rotinas e de modos de vida que sustentaram comunidades inteiras.

Matera, singular e mágica - parte 2

Ana CB, 12.08.25

Os Sassi de Matera são dois, separados pela Civita, o centro histórico medieval: a norte fica o Sasso Barisano, afundado entre a orla mais elevada do planalto; e a sudeste o Sasso Caveoso, pendurado sobre o rio Gravina e de frente para o planalto Murgia Timone.

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As casas trogloditas

 

Na encosta leste do Sasso Caveoso, a Associazione Culturale Gruppo Teatro Matera reabilitou algumas construções do Vico Solitario, entre elas uma casa-gruta aberta ao público como espaço etnográfico. Remonta ao século XVIII e é uma habitação parcialmente escavada e parcialmente construída. Visitá-la pode parecer apenas mais uma experiência inócua, mas não para mim.

A gruta tem uma forma simples, rectangular e com tecto abobadado. Só existe uma divisão, com um pequeno nicho contíguo para a cozinha. A ventilação faz-se apenas pela porta de entrada e por uma janela minúscula no espaço da cozinha. Tudo se concentra em poucos metros quadrados: a cama do casal, alta, para servir de lugar de arrumação por baixo, com o seu colchão cheio de lã e folhas de milho; a mesa de refeições, onde todos comiam do mesmo prato de barro; a arca dos cereais, com uma divisão interna para separar o grão para consumo humano da forragem para os animais; a cómoda onde se guardava a roupa, cujo gavetão inferior poderia também servir de cama para uma criança; o baú do enxoval e a arca onde guardavam a comida; o tear onde faziam os tecidos; o calhandro para os dejectos (a habitação não tinha esgotos). Os utensílios eram pendurados nas paredes ou colocados em pequenos nichos. Um braseiro aquecia a casa no Inverno e tinham uma pequena cisterna com tampa para armazenar a água da chuva, transportada do exterior por um rudimentar sistema de canalização. Os habitantes dos Sassi não tinham acesso a nascentes ou lençóis aquíferos, pois as grutas estão escavadas sobre uma camada maciça de calcarenito.

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Além da família, sempre numerosa – cada casal tinha uma média de seis filhos, mesmo sendo a mortalidade infantil na ordem dos 50% – a casa abrigava também os animais: uma mula ou cavalo, porcos, aves de capoeira. Todos os objectos desta casa-gruta estão exactamente nos mesmos lugares em que se encontravam nos anos 50, quando a casa era habitada. Apesar de ainda ter contactado, em tempos idos, com casas rurais no nosso país em que as condições de vida eram bastante más (pelos meus padrões citadinos, obviamente), não consigo imaginar como seria viver nestas habitações sobrelotadas e insalubres.

Na verdade, nesta parte esquecida e isolada da Basilicata, e nestas condições, viviam 60 mil pessoas até meados do século passado. A sociedade italiana do pós-guerra só virou as atenções para a região depois de 1945, ano em que Carlo Levi, opositor do regime durante os anos do fascismo de Mussolini, publicou as memórias do tempo em que tinha sido desterrado para a Basilicata por razões políticas, no livro “Cristo parou em Eboli”. Descreveu os Sassi de Matera como sendo a ideia que um estudante faz do Inferno de Dante, com cavernas escuras, húmidas e sujas, onde as pessoas coabitavam com animais e as doenças se espalhavam de forma galopante.

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Em 1950, o primeiro-ministro italiano Alcide De Gasperi visitou Matera e ficou chocado com as circunstâncias precárias em que viviam os habitantes dos Sassi. A cidade foi apelidada de “vergonha nacional” e o governo italiano lançou um programa de realojamento dos moradores em casas novas, num esforço para “modernizar” a cidade. Entre 1953 e 1968, 16 mil pessoas foram transferidas para estes bairros modernos – cuja concepção, no entanto, não foi das mais felizes e levou ao isolamento de uma população que se caracterizava pela convivência e entreajuda, como se pertencessem todos a uma mesma família. Os Sassi foram esvaziados, e houve até quem sugerisse que esta parte da cidade fosse isolada com muros, para que ninguém mais se lembrasse dela. Sem vida, passaram a servir de refúgio para ladrões e traficantes. Houve, no entanto, alguns movimentos de locais que não se conformaram com a degradação do lugar em que tinham vivido, e aos poucos foram surgindo iniciativas para insuflar um novo alento aos Sassi, sobretudo a partir dos anos 80. O impulso final foi dado pela aceitação da candidatura a Património Mundial da UNESCO, em 1993.

 

A fé de Matera

 

Ao lado da casa-gruta do Vico Solitario foram recuperadas outras construções. Na neviera era armazenado o gelo para refrescar e conservar os alimentos, servir como reserva de água potável ou ser usado no tratamento de doenças. A igreja rupestre de Sant’Agostino al Casalnuovo, que remonta aos séculos XIII/XVII, pertenceu ao vizinho Mosteiro de Santa Lúcia mas foi disponibilizada para fins não religiosos e arrendada, sendo usada primeiro como habitação e depois como armazém e até como pedreira de calcário. Tal como a neviera, agora é essencialmente um espaço expositivo.

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Uma caverna natural inserida no mesmo complexo museológico funciona como auditório. Segundo o painel informativo, este era o local de socialização dos habitantes do bairro, abrigado das chuvas e das temperaturas extremas, onde os homens conviviam no final do dia de trabalho. Sítio ideal para também nós descansarmos um bocado, em frente ao ecrã de televisão que passava um documentário. Foi ao vê-lo que descobri a razão de ser das decorações festivas que tínhamos visto na véspera (estávamos em Junho) e de um quadro, pendurado no nosso quarto no Nonna Rosario, com o desenho de um carro alegórico. E que descobri também a existência de um dos acontecimentos mais impressionantes do calendário religioso italiano.

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A santa padroeira de Matera é a Madonna della Bruna, cuja festa se celebra anualmente a 2 de Julho há mais de seis séculos (2024 foi o ano da 635.ª edição). Este é um dos eventos culturais mais significativos da cidade, e porventura o mais singular, aquele em que a fé dos materanos se mostra de forma mais vívida, emotiva, até mesmo assustadora. O carácter único das celebrações e a popularidade de Matera transformaram esta festa num acontecimento que é hoje em dia alvo de reportagens em directo durante mais de 20 horas, desde a procissão dos pastores, que se realiza às quatro e meia da manhã, até ao fogo-de-artifício que encerra as festividades.

As várias procissões que decorrem ao longo do dia têm finalidades diferentes, mas são acompanhadas por milhares de fiéis de todas as idades. Na que se realiza ao início da tarde, a imagem da Madonna é transportada numa carruagem, separada da que representa o seu filho, habitualmente colocado no seu braço esquerdo. Mãe e criança são reunidas mais tarde e regressam à Catedral ao cair da noite, naquela que é a procissão mais comovente e inspiradora da festa – ou pelo menos é assim que a retratam os vários testemunhos gravados em vídeo nos anos mais recentes. Neste cortejo, as duas figuras seguem num carro alegórico triunfal, puxado por mulas, antecedido por um grupo de “guardas” a cavalo e rodeado por seguranças, que formam um cordão para proteger todo o cortejo. Antes de voltar ao seu lugar dentro da Catedral, o carro que transporta a Madonna dá três voltas à Piazza del Duomo, um ritual para invocar a protecção da cidade.

O carro alegórico é diferente todos os anos, concebido segundo um tema escolhido nas escrituras, com esqueleto de madeira e decorado com figuras e outros elementos modelados em cartão e papier machê. Depois de aliviado da sua carga preciosa – a figura da Madonna – percorre a Via delle Beccherie (a única rua dos Sassi onde é possível a passagem de carros) até à Piazza Vittorio Veneto, feericamente iluminada para a ocasião. E é quando entra nesta praça que começa a loucura. Centenas de pessoas atiram-se (literalmente!) ao carro, empurrando-se, atropelando-se, trepando umas por cima das outras, braços em riste para arrancarem um pedaço das figuras ornamentais. Em poucos minutos, o trabalho de meses é destruído, e os felizardos que conseguiram para si (ou também para os amigos, pois muitos deles organizam-se em grupos) um bocadinho de uma figura sentem-se abençoados e vão guardá-lo para sempre como amuleto de boa sorte. Dizem os estudiosos que este acto aparentemente bárbaro simboliza o triunfo do bem sobre o mal e a renovação da vida. Mariagrazia afirma que o acontecimento não é tão selvático quando parece, mas mesmo assim prefere manter-se longe. Há dois anos, o filho teve a sorte de conseguir um desses cobiçados pedacinhos. A fé materana é transversal a todas as gerações, e a tradição secular mantém-se de boa saúde.

O número de lugares de culto em Matera é impressionante, e rivaliza com o de cidades italianas bem maiores e mais conhecidas. O edifício religioso mais significativo, como não podia deixar de ser, é a Catedral de Maria Santissima della Bruna e Sant'Eustachio. Data de 1270 e foi construída, em estilo românico apuliano, no ponto mais alto da cidade, marcando a divisão entre os dois Sassi de Matera. As alterações de que foi alvo nos séculos XVI e XVIII deram-lhe um aspecto exterior híbrido e um interior barroco, com tectos falsos em madeira pintada com cenas litúrgicas, retábulos e capelas com mármores coloridos, e muitos elementos em talha dourada. Ainda assim, a luz que entra pelas janelas do clerestório e pelo vitral singelo, a par da abundância de branco, dão ao espaço alguma leveza, que contrabalança o excesso de elementos ornamentais.

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Também do século XIII, mas muito menos modificada, a igreja de San Giovanni Battista é outro belo exemplo da arte românica. Tem um portal magnífico, decorado com motivos florais e cabeças humanas com cabelos encaracolados. O interior é espartano, pedra à vista com arcos ogivais e abóbadas nervuradas, decoração parcimoniosa, a altura central a sobrepor-se à largura. Os olhos são encaminhados para o alto e há um convite implícito à meditação, na altura da visita reforçado pelo terço rezado a várias vozes femininas.

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(Já publicado no blogue Viajar Porque Sim)

 

Matera, singular e mágica - parte 1

Ana CB, 01.08.25

Vista de longe, do miradouro de Murgia Timone, Matera parece uma cidade bombardeada. Uma mancha cinza e creme onde se notam paredes em ruínas, janelas que parecem buracos negros, fachadas assomando entre rochas, telhados inexistentes substituídos por pedras empilhadas ao acaso ou terra de onde despontam arbustos incipientes. Paisagem cubista com formas interligadas, extravasando em todas as direcções sem ordem evidente, sucessões de degraus que parecem não ter princípio nem fim e evocam as impossibilidades da gravura “Relativity” de Escher.

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A tranquilidade aparente dá a ideia de um lugar abandonado. E no entanto, o engano não poderia ser maior: estamos perante uma das povoações mais antigas do mundo constantemente habitada desde há 10 mil anos. Porquê? O que é que tem de tão especial? Há que visitá-la para perceber.

 

Do desconhecimento ao estrelato

 

Entrando em Matera pelo planalto, no lado norte, a cidade não difere de qualquer outra: prédios baixos pintados em cores insuspeitas, com lojas e oficinas nos pisos inferiores; aqui um mercado, uma igreja moderna mais à frente, um silo industrial ao longe, espreitando por cima dos telhados. Muitos carros, algumas árvores espaçadas ao longo das ruas. É o Piano, a parte moderna da cidade, onde vive a maioria dos seus 60 mil habitantes.

Numa viagem de carro pelo sul de Itália, o aspecto prático sobrepõe-se frequentemente ao romântico, e a verdade é que nos centros históricos é impossível estacionar. Por outro lado, andar a pé faz bem, até mesmo para digerir as maravilhosas refeições de pasta a que sucumbimos de boa vontade quando andamos por terras italianas. Decidimos, por tudo isso, alojar-nos numa das ruas principais do planalto, a uma mera caminhada de 10 minutos da cidade antiga, e onde até parecia estar à nossa espera um lugar milagrosamente vago no pequeno estacionamento do outro lado da estrada. Um início auspicioso!

Apesar de ter os seus Sassi e o Parque das Igrejas Rupestres inscritos no Património Mundial da UNESCO desde 1993, Matera permaneceu longe da ribalta turística até muito recentemente. “Até há poucos anos, quando ia a Milão e dizia a alguém que vinha de Matera, olhavam para mim com ar de dúvida e perguntavam: onde é que isso fica?” – palavras de Mariagrazia, a dona do B&B Nonna Rosario, o alojamento onde ficámos. O clique da mudança deu-se em 2019, quando Matera foi Capital Europeia da Cultura, reforçado pelas filmagens da sequência de abertura do filme “007-Sem Tempo para Morrer”, que mostrou a cidade ao mundo quando estreou nos cinemas, em 2021. Em meia dúzia de anos, Matera tornou-se uma estrela do turismo tanto nacional como internacional, e o corrupio de visitantes é contínuo.

 

Uma cidade, várias faces

 

As sombras do final de tarde já se alongavam quando saímos ao encontro do centro histórico, pese embora a temperatura do ar se mantivesse nos 20 e bastantes graus. Íamos em busca dos Sassi, anfiteatros escavados numa das vertentes do Torrente Gravina, que corre, em esses de quem bebeu demais, pela região da Basilicata. São eles o motivo principal do fluxo de visitantes da cidade, mas ainda assim permanecem uma face oculta, resquícios de vergonha antiga, escondidos que estão para quem vem da parte moderna. As construções que ocupam a Civita, o centro histórico medieval que se espalha pela orla do planalto, são um biombo formado por igrejas, palazzi e edifícios vários que impedem a visão imediata dos Sassi. Fervilhando de gente – habitantes locais à conversa, miúdos montados em patins ou bicicletas com rodinhas, casais de namorados, e uma boa dose de estrangeiros – a Piazza Vittorio Veneto é o centro nevrálgico da Matera antiga, uma espécie de foyer de um teatro onde nunca entrámos, e de que não sabemos bem o que esperar.

Quando passei os modestos arcos de acesso ao terraço-miradouro Luigi Guerricchio e consegui um disputado lugar na varanda de ferro forjado, entrei noutra dimensão. O anfiteatro de pedra do Sasso Barisano abria-se à minha frente e aos meus pés, tão amplo quanto compacto: uma amálgama de edifícios e rocha, de volumes desordenados, um puzzle concebido por um louco e que o meu cérebro teve dificuldade em processar. No cenário aloirado pelo sol da “golden hour”, qual estrela no cimo do pinheiro natalício, a catedral brilhava contra o céu sarapintado de aves irrequietas, com a torre sineira a destacar-se para assinalar a importância do edifício. Metade do Sasso já estava à sombra, dando ao quadro um aspecto ainda mais dramático. O meu coração falhou uma batida. Terá sido nessa altura que me enamorei de Matera?

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Se não foi, decerto não terá tardado muito. Aventurámo-nos pelas vielas e escadinhas íngremes, na ânsia de sentir o efeito de penetrar naquele labirinto. Os Sassi são enganadores. Olhamos para o mapa e parece que determinado ponto está ali mesmo ao lado. Orientamo-nos naquela direcção, mas as ruelas são tão imbricadas que às tantas damos por nós a andar em sentido contrário, para a seguir descobrirmos que o lugar que procuramos está dois níveis acima (ou abaixo!). Não são raras as vezes em que temos de voltar pelo mesmo caminho, para depois entrar numa outra viela, subir ou descer mais uma porção de degraus – e temos sorte se não formos dar a um beco. Meio perdida no cenário, senti-me criança a viver uma aventura livresca, quase à espera de ver o Professor Dumbledore surgir ao virar de uma esquina.

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Entre tentativa e erro, lá conseguimos dar com o restaurante onde tínhamos decidido ir jantar. Chama-se “Il Terrazzino”, e o nome não engana: uma escadaria estreita, ao ar livre, deixa-nos num terraço abrigado sob uma arcada tripla, de onde temos uma vista soberba sobre a vertente norte do Sasso Barisano. Mesas quadradas, cobertas com simples toalhas brancas, e cadeiras robustas de madeira escura, num ambiente quase espartano que realça o panorama exterior. Aqui qualquer comida saberia bem, que os olhos degustam tanto quanto o palato. E no entanto, há mais. Um atendimento sorridente e caloroso, comida tradicional deliciosa – como a parmigiana di melanzane (à base de beringela) ou as orecchiette al tegamino (uma massa típica da Puglia) – e ainda a oportunidade de conhecer uma antiga adega no subsolo do restaurante. A adega data de 1600 e foi escavada na rocha, seguindo a arquitectura típica dos Sassi. Nas suas várias salas está organizada uma exposição etnográfica, com objectos originais e fotografias que mostram como era a vida dos camponeses de Matera até meados do séc. XX.

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Quando saímos do restaurante, já sob o pano azul-escuro da noite, a cidade apresentava uma outra face, plena de contrastes. O negrume engolia certas partes dos Sassi, enquanto outras tinham ganhado uma vida diferente sob os focos de luz. A escuridão disfarçava as zonas ainda em ruínas, esbatia imperfeições e escondia guindastes, as luzes uniformizavam a pedra, às vezes criando pontos de cor. A Matera nocturna parece mais moderna, mas não menos misteriosa.

De regresso ao alojamento, nova passagem na Piazza Vittorio Veneto, onde o movimento decuplicara no espaço de apenas duas horas. A cidade inteira parecia ter saído à rua. O ambiente era de festa e até estavam montados grandes arcos de iluminação em vários pontos da praça, mas as suas lâmpadas mantinham-se apagadas. Só mais tarde viria a perceber porquê.

 

O pão de Matera

 

Na manhã seguinte, Mariagrazia serviu-nos o pequeno-almoço numa sala-cozinha luminosa, a divisão central do seu B&B. De um saco de papel retirou um pão estranho, com uma crosta escura e um ar tosco. Cortado em fatias, o miolo revelou-se amarelo, a fazer lembrar o nosso pão de milho, mas ao prová-lo percebi que era muito diferente, com uma textura e um ligeiro pico azedo a evocarem o pão alentejano. Sem o saber na altura, estava a comer um pão tradicional centenário, típico dos Sassi de Matera, actualmente classificado como IGP (Indicação Geográfica Protegida) e produzido segundo critérios rígidos que evitam a sua desvirtuação.

A base do verdadeiro pão de Matera é idêntica à de tantos outros pães: farinha, fermento, água e sal. Mas esta identidade é apenas genérica, pois tanto os ingredientes como o processo de produção têm particularidades que, somadas, resultam num produto muito especial. O ingrediente mais importante, a farinha, obtém-se a partir da sêmola de grãos de uma variedade de trigo tradicional muito difundida na região lucana, conhecida como “Senatore Cappelli”. Este tipo de trigo conserva no seu património genético características que não se encontram noutras variedades, e que conferem ao pão de Matera aroma e sabor únicos, além de ter um glúten mais facilmente digerido. A fermentação é longa e tem um segredo: é usada massa-mãe que envolveu a maceração de uvas e figos fermentados em água de nascente local. Finalmente, a cozedura tem obrigatoriamente de ser feita em forno de lenha alimentado com essências típicas da região.

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Dizem os locais que o formato do pão de Matera – comprido, alto e arqueado, quase um cone – se assemelha ao das elevações abruptas da Murgia, a região geográfica em que a cidade se insere. Antes de a massa ir para o forno, leva três cortes rituais, em representação da Santíssima Trindade. O pão foi durante séculos a base da alimentação dos habitantes dos Sassi, e esta era uma forma de agradecerem a Deus o alimento que lhes permitia sobreviverem. A massa era cozida em fornos comunitários, e para evitar confusões cada pão era marcado com um carimbo de madeira ou terracota que tinha gravadas as iniciais da família a que pertencia. Os carimbos são hoje acervo de museu, mas o pão tradicional continua a ser o preferido pelos materanos.

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A magia da pedra

 

No extremo oriental da Basilicata, região do sul de Itália, o sulco geológico a que dão o nome de Gravina di Matera define o território da Murgia Materana, um planalto calcário caracterizado por fendas profundas, ravinas, rochas e cavernas, coberto de vegetação mediterrânica. Os achados arqueológicos mostram que esta região é habitada desde o Paleolítico, quando as suas grutas e saliências rochosas de formação natural serviam de abrigo aos humanos, nessa altura caçadores-recolectores. Com a agricultura e o sedentarismo, por alturas do Neolítico, surgiram os primeiros assentamentos, que aproveitaram as cavernas escavadas nas encostas das ravinas, num exemplo perfeito de adaptação humana ao meio natural, tirando o máximo partido da geomorfologia e do espaço locais.

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Estas habitações trogloditas nunca deixaram de ser usadas e o seu número foi aumentando ao longo dos séculos. Na Antiguidade tardia e início da Idade Média já eram a forma de povoamento mais difundida em Matera, constituindo um labirinto de grutas que se estende para lá do imaginável: o que está à vista é apenas 30 por cento do total, que ascende a um número entre 1500 e 3000, dependendo do critério usado para contabilizar as estruturas. Muitas delas foram adaptadas e modificadas ao longo do tempo, com construções de alvenaria prolongando a frente das grutas – nos Sassi, as casas foram construídas para satisfazer as necessidades das famílias. Estas habitações subterrâneas espalham-se em grupos, de forma irregular, acompanhando as camadas de rocha calcária macia. Com o passar do tempo, a forma pré-histórica de viver numa gruta cristalizou-se no modelo de habitação característica de Matera.

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No entanto, embora os agricultores, pastores e comerciantes menos endinheirados vivessem nas casas trogloditas, a população pertencente às classes mais abastadas (clero, nobres e negociantes bem-sucedidos) construiu para si, na parte mais alta da cidade, palacetes e mosteiros mais consentâneos com a sua posição social, ao gosto de cada época. Esta é a razão pela qual existe uma diferença acentuada entre a morfologia dos edifícios da Civita e dos Sassi.

Ainda assim, quando no dia seguinte parámos no miradouro da Piazzetta Pascoli (a “varanda” de Matera), de onde temos uma vista abrangente sobre o Sasso Caveoso, não pude deixar de admirar a forma como ali tudo parece fundir-se naturalmente. As construções mais elaboradas transfiguram-se mais abaixo em casas que se projectam das grutas, esculpidas na colina, desdobrando-se até se confundirem com a paisagem. Casas e ravina misturadas, feitas de uma mesma rocha, unidas pelas mesmas tonalidades cruas e acinzentadas. Caos e harmonia em coabitação pacífica.

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Em dia quente e sem ponta de vento, subir e descer ruas íngremes e escadinhas sinuosas não é um passatempo recomendável. Mas Matera parece irradiar uma energia especial que torna tudo mais leve. Durante as várias horas em que percorremos os Sassi, os meus joelhos não se queixaram das centenas de degraus que subi, os pés resistiram sem mossa aos milhares de passos que dei, o calor não me incomodou, o humor esteve sempre em alta. Coincidência ou sortilégio? Na dúvida, apetece-me mais optar pela segunda hipótese.

(Já publicado no blogue Viajar Porque Sim)

Blogue da semana

Ana CB, 06.07.25

Descobri-o há pouco tempo. Junta dois ingredientes que para mim são mágicos: viagens e livros. Acrescentando os pozinhos de perlimpimpim de uma escrita fluida, arejada, e que (ouro sobre azul!) não se pauta pelo novo AO, o resultado é um blogue que encaixa perfeitamente nos meus gostos.

Por isso, o Atencional é a minha proposta para blogue da semana. O seu autor, José Garrido, conta também com dois livros publicados – e já estão na minha (sempre enorme) lista de livros a ler.

Cerejeiras e escritores: um roteiro no Fundão

Ana CB, 04.07.25

Há sítios que se visitam com os olhos, outros com os pés. O território do Fundão – uma discreta preciosidade encostada à serra da Gardunha – merece ser percorrido com ambos, mas também com o coração aberto e um bom livro na mochila. Entre encostas pintalgadas de branco pelas cerejeiras em flor e lugares que guardam séculos de histórias, este roteiro é uma viagem por palavras, paisagens e memórias.

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Entre palavras e cerejeiras: um passeio onde a literatura floresce

 

Nesta Primavera tenho andado em busca de lugares floridos. Talvez seja uma forma de equilibrar o meu estado de espírito, tão cinzento quanto os meses passados, desencadeado por esta espécie de retrocesso humano e civilizacional da época em que vivemos. As flores são uma prova de que a vida tende a renascer ciclicamente, e de que vale a pena ter esperança. E são sempre uma fonte de alegria quando dela mais preciso.

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No nosso país, em que metade da fronteira acaba em mar, há lugares felizes onde se começa pelo que brota da terra. A Cova da Beira é um deles. Ali pela primeira ou segunda semana de Abril, a região transforma-se num postal em movimento, com milhões de flores de cerejeira que rebentam em festa. É um espectáculo efémero e, por isso mesmo, memorável. O resultado de tanta efusividade chega com o prenúncio do Verão, quando as cerejas despontam como rubis brilhantes entre o verde da folhagem.

Mas há mais. Por aqui, as cerejas misturam-se com as palavras (afinal, todas elas vêm sempre umas atrás das outras…) e podemos seguir os rastos da poesia de Eugénio de Andrade e do elefante Salomão de José Saramago, enquanto conhecemos aldeias serranas com identidade própria, uma culinária que aproveita os produtos locais, e pessoas que não se esquivam a uma boa conversa.

 

“A aldeia era uma aldeia como já não se vêem nos dias de hoje”

 

Apesar de ter decidido viver em Lanzarote durante uma boa parte da sua vida, Saramago nunca escondeu o seu gosto por Portugal, pela sua história, pelas suas paisagens, pelos seus lugares remotos ou despercebidos. Em 2009, um ano depois de lançar o seu último livro, “A Viagem do Elefante”, e um antes da sua morte, o escritor viajou pela rota que imaginou para pano de fundo deste livro, entre Lisboa e Figueira de Castelo Rodrigo. O intuito foi chamar a atenção para algumas regiões do interior de Portugal que permanecem na sombra dos itinerários turísticos.

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A páginas tantas do seu livro – que relata a hipotética viagem de um elefante oferecido por D. João III ao seu primo Arquiduque Maximiliano de Áustria, à data regente de Espanha e residindo em Valladolid – a comitiva que acompanha o elefante Salomão chega a uma aldeia. O nome da dita cuja nunca é referido, mas no roteiro da visita de Saramago assumiu-se que ela seria Castelo Novo. Entre a breve descrição no livro e a localidade tal como a vi na altura da minha visita, nada há de coincidente – nem o século, nem o mês, que a viagem do elefante se desenrolou no Verão e nós cumprimos este roteiro numa Primavera cinzenta e meio chuvosa.

 

Tranquilidade com selo literário

 

Castelo Novo é cenário natural para introspecções literárias. Aqui há algo do ritmo lento e reflexivo de Saramago, da densidade dos silêncios, da beleza escondida nas pequenas coisas. Vaguear é a atitude certa para percorrer esta aldeia histórica, com a certeza de que cada rua revelará alguma novidade: uma capela de pedra, vasos de flores na escada de uma casinha amorosa, uma torre que espreita por trás de um telhado, uma porta pintada de verde-lima, dois gatos que bebem água da chuva e parecem o espelho um do outro.

Encaixada numa vertente da Gardunha, Castelo Novo vive entre a vertigem da encosta e o acolhimento das suas ruas de pedra. Tudo parece ter sido desenhado com calma: as casas baixas e sólidas, os portais góticos, os caminhos estreitos que se entrelaçam como versos livres. A aldeia está impecavelmente conservada, todavia sem perder o seu carácter rústico e genuíno.

Um dos seus maiores encantos é o som constante da água, ampliado pelas chuvas recentes. O Chafariz da Bica é um dos ex-líbris da aldeia, exibindo a sua estética barroca no cimo de uma escadaria que hoje parece demasiado aparatosa para uma finalidade tão básica: dar de beber a homens e animais. O acto de simplesmente deitar a mão a uma torneira para termos água potável faz-nos esquecer que nem sempre foi assim.

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No Largo do Pelourinho, a água cai das três bicas de outro chafariz, este dedicado a D. João V. Há um aviso na parede: “água não controlada”. Quando é que deixámos de confiar nas águas que durante séculos serviram para matar a sede aos nossos antepassados? Será assim tão dispendioso verificar a sua origem e assegurar que pode ser bebida? O chafariz deixaria de ser um mero ornamento arquitectónico, tornado obsoleto pela sua inutilidade, e poupavam-se umas quantas garrafas plásticas que vão acabar sabe-se lá onde.

Mas adiante. Este chafariz barroco está encostado à Casa da Câmara e Cadeia, que são manuelinas, tal como o pelourinho em frente. A patine do tempo encarregou-se de esbater as diferenças entre os estilos: o granito está igualmente manchado e desgastado em todas estas estruturas, e unifica o conjunto. Acima do largo ergue-se a Torre Sineira, que até parece fazer parte da Casa da Câmara, mas na verdade está inserida na muralha do castelo.

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Porque o nome não engana: Castelo Novo nasceu à sombra de uma fortificação. O castelo medieval, de que hoje apenas restam ruínas evocativas, foi erguido no século XIII, em plena fase de reconquista e consolidação territorial. Apesar do adjectivo “novo”, o castelo já viu muito mais do que a maioria de nós verá: batalhas, reis, reformulações – e agora, selfies. Do alto das muralhas (do que resta delas), 650 metros acima do nível do mar, a vista alonga-se por muitos quilómetros: serranias a perder de vista (em dias claros vê-se ao longe a Serra da Estrela), com a Cova da Beira lá em baixo, como um tapete verde e fértil. Ninguém escapa à tentação de pousar ali uns minutos, mesmo com vento pouco convidativo, só pelo privilégio de tão extenso panorama.

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N’ “A Viagem do Elefante”, Saramago foi omisso quanto à opinião do paquiderme sobre a aldeia perdida nas encostas da Gardunha. Terá ele também apreciado a paisagem, tão diferente da sua Índia natal? Nunca saberemos. Mas nós, humanos, temos motivos de sobra para ir conhecer Castelo Novo.

 

Segredos de Alpedrinha

 

A escolha de José Saramago para aldeia do seu livro podia bem ter sido outra. Alpedrinha é hoje vila, mas na verdade tem ambiente de aldeia. Ainda mal tínhamos saído do carro e já o Sr. António, bengala na mão e sorriso maroto nos lábios, metia conversa connosco. Logo ficámos a saber que todas as manhãs faz questão de estar naquele miradouro, junto à Capela de Santo António, à hora a que passa o comboio rápido com destino à Guarda. Palavra puxa palavra, contou-nos uma boa parte da sua longa história de vida, com graça e boa disposição. E quando lhe pedimos sugestão de lugar para almoço, não hesitou em guiar-nos até um restaurante ali próximo e recomendar-nos ao dono.

Mesa marcada, despedimo-nos do Sr. António e encaminhámo-nos encosta acima – afinal, havia que criar apetite para o que já calculávamos ir ser uma refeição não muito leve. Alpedrinha é feita de calçadas estreitas, empedradas, de escadinhas irregulares que serpenteiam por entre casas de granito. Tudo aconselha andar devagar, muito devagar. A pressa poderia fazer com que não nos apercebêssemos de certos pormenores, e é frequente serem os pormenores que marcam a diferença. Como a fonte desactivada em frente à casa dos Paços do Concelho, modernista, em metal oxidado e com ar de recente, mas que vista de perto percebemos ser afinal muito antiga: a placa colocada no topo diz “Lusalite - Lisboa”, e esta fábrica (à porta da qual passei tentas vezes) fechou em 1999. Ou a casita meio degradada com uma pequena cruz de ferro na frontaria, entre um nicho com uma imagem religiosa de idade indecifrável e uma janela emoldurada por granito, agora pintado de branco, com dois arcos recortados na cornija.

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Alpedrinha foi uma aldeia rica, estratégica e influente, e esse estatuto ainda ecoa nas fachadas e nos brasões das casas. Despercebido não passa o antigo Solar dos Pancas, que agora é creche da Santa Casa da Misericórdia. Palacete do século XIX com abundantes varandas de ferro forjado, tem um jardinzinho anexo e faz reconto com a bonita Capela de Santa Catarina, tardo-gótica (1501), à qual chamam também Capela do Leão. Este nome vem do fontanário que está ao lado, uma das mais antigas fontes de Alpedrinha – tão antiga que a imagem esculpida, de onde jorra um fio de água, já muito desgastada pelo tempo, poderá de facto representar um leão… ou outro bicho qualquer.

Sempre a subir, atalhámos caminho pela Igreja Matriz, dedicada a São Marinho Bispo. No muro, uma placa metálica lembra as vítimas mortais do saque de que a localidade foi alvo em 1808, durante a 1ª Invasão Francesa.

Chegámos finalmente ao cimo de Alpedrinha, e a um dos monumentos mais emblemáticos da vila, o Chafariz D. João V. Aquele que foi apelidado de “Rei-Sol português” parece ter sido muito popular aqui pelas bandas da Gardunha, e este fontanário não lhe desmerece o estatuto: um grande tanque, uma escadaria simétrica, remates com bolas, volutas e um baluarte com três bicas, encimado por uma coroa.

Num plano ainda mais elevado, vêem-se os muros do Palácio do Picadeiro, à porta do qual passa uma calçada romana. Construído no século XVII, este solar barroco é mais um ex-libris de Alpedrinha, mas tem tido uma vida atribulada. Já foi tribunal, hospital e (pasme-se!) tipografia, e é actualmente um museu e espaço cultural (mas, infelizmente, fechado para remodelação há já algum tempo). O seu amplo pátio é, além do mais, um mirante de excelência sobre a vila e a paisagem da Gardunha.

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Alpedrinha não vive apenas de memórias antigas. Todos os anos, em Setembro, a vila transforma-se no palco do Chocalhos-Festival dos Caminhos da Transumância, uma homenagem às rotas percorridas pelos pastores da Beira Interior. Há música, exposições, artesanato, petiscos… e chocalhos, claro. O som metálico percorre as ruas e anima as esquinas, numa festa que une tradição e contemporaneidade. Uma homenagem diferente aos pastores, e em especial ao já falecido “Ti Lopes”, é o mural pintado por Styler (a.k.a. João Cavalheiro) num edifício quase à entrada da vila.

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Depois do passeio, o almoço foi no Degusta-me Petiscos, onde o cardápio varia em função da época. O prato estrela do dia era cabrito, de que não sou grande apreciadora, e optei pelo bacalhau assado, que estava excelente. Ainda assim, e por insistência do chef, que me garantiu que o seu cabrito é temperado de maneira especial e não fica com o sabor intenso que eu não aprecio, atrevi-me a provar um pouco. E tive de concordar com ele, pois estava muito apetitoso. Em conversa, falou-nos de um dos segredos da sua cozinha: o uso de uma erva aromática pouco conhecida mas bastante usada nas Beiras, parecida com o tomilho e a que chamam serpão. Escusado será dizer que saí do restaurante quase a rebolar…

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Póvoa de Atalaia: onde nasceu um poeta

 

Foi não muito longe de Alpedrinha, em Póvoa de Atalaia, que por capricho da natureza ou dos deuses nasceu um dos nossos maiores poetas: Eugénio de Andrade. Embora tenha vivido grande parte da sua vida no Porto e em Lisboa, José Fontinhas (o seu nome de registo) nunca renegou a sua aldeia. Pelo contrário, os campos, as árvores, a luz e até o silêncio da Beira perpassam muitos dos seus versos.

Pequena, com pouco mais de 200 habitantes, Póvoa de Atalaia carrega o peso doce de ser berço de um dos poetas mais universais da língua portuguesa. E a aldeia presta-lhe justa homenagem na forma da Casa da Poesia, um espaço museológico e cultural dedicado à sua vida e obra, a funcionar na antiga escola primária onde o poeta deu os primeiros passos nas letras – literalmente.

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Na modorra de um início de tarde em que a chuva tinha feito uma pausa bem-vinda, vagueámos em volta da casa enquanto esperávamos pela hora de abertura. O edifício foi restaurado com respeito pela traça original e tem um pequeno parque infantil à frente; só a placa no muro identifica a sua finalidade. Uma das fachadas está totalmente ocupada por um mural alusivo a Eugénio de Andrade e à sua obra, concebido pela artista plástica polaca NeSpoon. Nas traseiras, alguns poemas traduzidos em inglês foram colocados nos vidros. A poesia casa bem com o perfume das cerejeiras em flor que dão sombra ao lugar.

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Quem nos guiou na visita à casa foi a Marta Barroso Ramos, dinamizadora cultural (além de cantora e cineasta) e profunda conhecedora da obra e vida de Eugénio de Andrade. O espaço inclui uma sala com documentos, fotografias, edições várias, cartas, manuscritos e objectos pessoais. Mas mais do que um lugar para “ver coisas”, a Casa da Poesia é um sítio para sentir a presença do poeta. As palavras dele vivem ali, nas paredes ondulantes forradas de cortiça, nas frases e nos poemas que surgem aqui e ali, em jeito de bálsamo ou inspiração.

Ver o exterior da casa que o poeta habitou na infância foi pretexto para passear um pouco pela aldeia – que é simples mas está bem cuidada. Não é fácil dar com a casinha minúscula, onde a pedra já se mistura com o cimento mas o lintel e os pilares se mantêm em granito. Unificada com as casas idênticas que a ladeiam, consta que pertence agora a uma família estrangeira e é usada para alojamento local. Uma placa ao lado da porta confirma que ali “viveu Eugénio de Andrade quando menino”. Quando ainda não se sabia que ele iria ser um dos nossos maiores poetas.

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(Já publicado no blogue Viajar Porque Sim)

Bolonha: torres, arcadas, e muito charme

Ana CB, 23.05.25

Uma da tarde, 34°C de temperatura do ar – ou, como diria Eça, um “calor de ananases”. Sentei-me na esplanada ainda quase deserta do Cesarina para aquele que iria ser o meu último almoço em Bolonha. Sob a protecção de um enorme chapéu-de-sol e com as árvores do complexo das Sete Igrejas de Santo Stefano a darem uma certa impressão de frescura, soube-me bem descansar enquanto esperava que me servissem um risoto de espargos. À minha frente alongava-se a Praça de Santo Stefano – que na verdade não é propriamente uma praça mas antes um espaço triangular, aberto na Via com o mesmo nome para acomodar vários palácios e as igrejas. Copo de vinho branco da Toscana na mão, dediquei-me ao tão italiano dolce far niente, no meu caso a simples arte de observar calmamente os edifícios de tons alaranjados, batidos pelo sol inclemente, as pessoas que iam e vinham, sacos de compras na mão ou máquinas fotográficas à tiracolo, muitas vezes de olhos postos num smartphone, e um ou outro ciclista de passagem. O risoto chegou e estava divinal, e depois veio também um tortino di cioccolato com cuore fondente, que tentei fazer render porque, a bem da verdade, estava com uma certa relutância em sair dali, e mais ainda de ir embora de Bolonha – a cidade como que me enfeitiçou.

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O meu primeiro almoço em Bolonha tinha sido algo diferente, mas também sossegado. Cheguei à Estação Central vinda de Florença, depois de uma curta viagem de 38 minutos no Frecciarossa, o topo de gama dos comboios de alta velocidade italianos (que pode chegar aos 300 km/hora). Ainda era cedo para dar entrada no alojamento e não me apetecia andar pela cidade de mala atrás, por isso atravessei o Parco della Montagnola, lugar fresco, cheio de árvores altas e vazio de confusões, e parei para almoçar. O parque tem um espaço nitidamente dedicado à população estudantil mais alternativa, com mesas e cadeiras de todas as espécies e feitios espalhadas entre as árvores, ao lado de uma osteria e um barzito, e de um pequeno recinto pavimentado onde decorria na altura uma aula de ioga. Entre um hambúrguer e um café pingado, deixei-me ficar por ali durante mais de uma hora, naquilo que foi para mim uma espécie de reset depois de alguns dias na agitação de Florença.

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Esta minha visita a Bolonha foi um acidente de percurso – e é a prova de que há acidentes felizes. Na história das minhas viagens existe uma boa mão cheia de lugares que se atravessaram no meu caminho sem que fosse propriamente essa a minha intenção, e dos quais acabei por ficar cativa. Bolonha foi uma das mais recentes adições a essa lista. Quando preparei a minha viagem de duas semanas pela Toscana, era suposto o voo de regresso a Portugal ser a partir de Bolonha, e por isso decidi reservar uns dias para conhecer um pouco da cidade. Como não era um destino que fizesse parte dos meus interesses principais, não fiz o “trabalho de casa” e não pesquisei praticamente nada antecipadamente. Cheguei sem saber o que esperar ou o que iria ver, portanto a surpresa foi completa (e boa!). E ser surpreendida é uma das melhores emoções que posso sentir em viagem.

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A cidade das torres

 

A idade dos lugares não se pode aferir pela nossa, que somos meros acidentes de percurso na história da Terra. Ainda assim, Bolonha é uma cidade velha, mesmo pelos padrões de povoamento da Europa. Inserida numa região habitada desde inícios do século IX a.C., foi aqui que os Etruscos fundaram o que se supõe ter sido uma estrutura urbana complexa a que deram o nome de Felsina, no século VII a.C. Sucessivamente ocupada ao longo do tempo por Gauleses, Romanos e várias tribos bárbaras, passou a fazer parte do reino de Itália em finais do século IX. Mas foi a fundação da Universidade em 1088 (o que faz dela a Universidade mais antiga do mundo em funcionamento contínuo) que deu impulso ao período de maior desenvolvimento da cidade, e ao aparecimento daquelas que são as suas duas características mais marcantes em termos arquitectónicos: as arcadas e as torres.

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Os historiadores crêem que nos séculos XII e XIII tenham sido construídas em Bolonha qualquer coisa como entre 80 e 100 torres. Porquê? Não se sabe ao certo. Presume-se que algumas terão funcionado como símbolo de riqueza e estatuto das famílias mais abastadas, e também como estruturas de defesa. As mais pequenas serviriam também de habitação. Certo é que este frenesim de construção em altura não se limitava a Bolonha. San Gimignano, 150 km a sul e em plena Toscana, foi outra das cidades medievais atacadas pela “febre” das torres: chegaram a ser 72, algumas ultrapassando os 50 metros de altura.

Em Bolonha, a loucura das torres acabou mais tarde por passar, e depois do século XIII estas gigantes começaram a desaparecer, fosse por serem demolidas, por colapsarem, ou por serem adaptadas a outas finalidades. Aos dias de hoje chegaram 22, a que se somam quatro torreões que faziam parte das muralhas do século XII, além de muitos vestígios remanescentes das casas-torre – que eram mais baixas, tinham mais aberturas, e cujas paredes eram menos espessas.

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As mais famosas são as duas torres que compõem o símbolo da cidade: a Torre Asinelli e a Torre Garisenda. A primeira é a mais alta de todas as torres de Bolonha: 92 metros, que quase me provocaram um torcicolo quando a olhei a partir do outro lado da Piazza onde estão situadas. A Garisenda é mais modesta, nos seus meros 48 metros de altura, mas bate a vizinha em graus de inclinação. São dois colossos de pedra castanho-avermelhada que se vêem de muitos pontos do centro da cidade, erectos como flechas, sobressaindo numa praça de dimensões modestas mas com um movimento tremendo, onde confluem pessoas e veículos de todas as espécies, constantemente. É possível subir à Torre Asinelli, mas confesso que deixei a tarefa para uma próxima visita. O calor e o cansaço de quase duas semanas de viagem, com muitos quilómetros feitos a pé, de carro e de comboio, esgotaram-me a coragem que é preciso ter para subir os 498 degraus que levam ao topo. Atrás das torres, o verde das cúpulas renascentistas da Basílica dos Santos Bartolomeu e Caetano parece querer competir com elas, mas sem grande sucesso.

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Fugi do sol da Piazza di Porta Ravegnana metendo por uma rua estreitinha e sombria cujo nome me chamou a atenção: Via de’ Giudei. Tenho um certo fascínio por judiarias, por serem geralmente bairros com características peculiares, uma espécie de mundo à parte dentro das localidades onde existiram. O traçado do gueto judeu de Bolonha, estabelecido no século XVI, permanece bem identificável na actualidade, definido por becos e ruelas que se entrelaçam no núcleo medieval da cidade. Também aqui existe uma torre, na entrada do Vicolo Mandria. É a Torre Uguzzoni, mas a sua altura respeitável passa praticamente despercebida neste bairro em que o céu não é mais do que uma nesga azul fininha lá no alto, as varandas se misturam com semi-arcadas, e a pedra alterna com as cores soalheiras das casas renovadas, que têm portadas garridas nas janelas e plantas que se derramam pelas paredes abaixo.

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A história da comunidade judaica em Bolonha remonta à segunda metade do século XIV, quando cerca de 15 famílias se instalaram na cidade. Apesar de verem as suas actividades continuamente controladas e das limitações que lhes foram sendo impostas ao longo dos anos, e envolvida sobretudo no comércio da seda e da joalharia, nos empréstimos bancários e na medicina, esta comunidade prosperou de tal forma que em meados do século XVI as sinagogas já eram em número de 11 – mais do que as existentes em Roma. Foi nesta altura que um decreto papal ordenou a criação do gueto, definido por muros e por portões que eram abertos quando o sol nascia (para que os seus habitantes pudessem ir trabalhar noutras partes da cidade, pois a segregação religiosa tinha o cuidado de ignorar as suas actividades, muito importantes para a cidade), fechados ao anoitecer, e constantemente vigiados. Uma das entradas era precisamente na Via de’ Giudei, outra no cruzamento da Via del Carro com a Via Zamboni, e uma terceira entrada fazia-se pelo arco que liga a Via Guglielmo Oberdan ao Vicolo Mandria. Tendo uma área disponível tão pequena, a comunidade aproveitava todo o espaço o melhor que podia, construindo em altura e até mesmo por cima das ruas, num puzzle tridimensional de que hoje ainda restam muitos vestígios. A espinha dorsal do bairro é a Via dell’Inferno, onde até 1943 existiu uma sinagoga (no actual número 16), que foi destruída pelos bombardeamentos da Segunda Guerra Mundial. Mas não pensem que o nome da rua era devido a qualquer motivo religioso: resultou de uma mera associação do fogo às chamas do inferno, pois antes da criação do gueto existiam na rua várias oficinas de ferreiro.

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A cidade das arcadas

 

Em vez de desvantagem, a minha ignorância e total ausência de curiosidade prévia sobre Bolonha acabaram por ser uma bênção. Quando finalmente me decidi a sair do ar condicionado do alojamento para o calor da minha primeira tarde na cidade, as ruas que me levavam à Piazza Maggiore desvendaram aos poucos a maior surpresa que me estava reservada: as arcadas. Rua após rua, o piso térreo de cada edifício recua para dar lugar a um passeio coberto, com a fachada dos pisos superiores assente sobre pilares com materiais e formatos diversos. Elas são, na verdade, o elemento arquitectónico mais característico de Bolonha e responsáveis por grande parte do seu encanto. Só no centro histórico existem qualquer coisa como 38 km de arcadas, que se somam aos 53 km das que se encontram fora de portas. É a cidade com mais arcadas em todo o mundo e as suas são, desde 2021, património cultural da UNESCO.

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Mas qual é afinal a razão para esta abundância de arcadas? Falta de imaginação dos arquitectos? Mania cultural? Desenganem-se: o motivo começou por ser de ordem prática (como quase sempre são os motivos para tantos aspectos culturais que encontramos pelo mundo fora) e para o perceber temos de recuar um milénio. Em meados do século XI, Bolonha expandia-se a uma velocidade sem precedentes, tanto pela fama da sua Universidade, que atraía pessoas de todo o mundo, como pela chegada de cada vez mais camponeses em busca de outras condições de vida. Para alojar tanta gente, os habitantes começaram a ampliar as suas casas ao nível do piso superior, prolongando-as sobre a rua – como forma de conseguirem um aumento de espaço sem terem de pagar mais impostos – e apoiando estas estruturas sobre pilares de madeira. Nasceram assim as primeiras arcadas. Com o tempo, os bolonheses aperceberam-se de que elas lhes traziam outras mais-valias: abrigavam os passeantes tanto da chuva como do sol (e eu tive a prova de que tornam bem mais confortável a visita à cidade em dias de muito calor), afastavam os pisos térreos da sujidade das ruas, e favoreciam o comércio e os ofícios, que se desenvolviam muitas vezes no piso inferior das habitações. O sucesso destas arcadas levou a que em 1288 uma decisão municipal estabelecesse que não só as estruturas já existentes teriam de ser mantidas, como também cada edifício construído no futuro seria obrigado a ter a sua própria arcada. No século XVI, uma nova lei proibiu que fossem construídas em madeira, e a partir dessa altura passaram a ostentar colunas feitas de pedra ou tijolo.

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(Já publicado no blogue Viajar Porque Sim)

Príncipe, a outra ilha

Ana CB, 21.04.25

Chamar caminhos de cabras aos trilhos que dão acesso às melhores praias da ilha do Príncipe é ser simpática. Até a sport wagon com pneus tamanho XL conduzida pelo Vado, um dos guias mais experientes da ilha, tem dificuldade em percorrer os poucos quilómetros de piso meio lamacento, cheio de buracos e com pedras gigantes a despontarem do solo que leva à praia Boi. Curto em distância mas longo em minutos, o percurso mói os ossos e os músculos, chocalhados sem piedade e ininterruptamente até ao final, e só o facto de ser feito dentro de uma floresta magnífica mitiga um pouco o incómodo: os olhos vão entretidos a admirar árvores desconhecidas, tão altas que apenas deixam passar uns ténues raios de sol. Isso e a praia no final do caminho. Areia fina e clara debruada a palmeiras, deserta; mar tranquilo em dégradé de azuis; sol brilhante, água morna. Perfeita!

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Tal como para as suas praias, o mote para a ilha do Príncipe podia ser este: não é fácil lá chegar, mas vale muito a pena. É preciso estar no Aeroporto de São Tomé tão cedo como se fôssemos para uma viagem internacional, não é possível levar mais do que 15 kg de bagagem de porão, e a viagem total de 40 minutos (dos quais apenas 25 em voo) é feita numa avioneta que só leva 19 passageiros, com pouco espaço, pouco insonorizada e pouco fresca. Ainda assim, a procura é tanta que actualmente estão a ser feitos três voos diários, operados pela companhia portuguesa Sevenair, e vão sempre cheios.

À chegada, meras dezenas de metros nos separam do pequeno edifício do aeródromo, pintado de amarelo-vivo. Depois aguardamos a chegada das malas numa saleta com porta aberta para o exterior, a fazer lembrar as salas de espera de antigamente das estações de comboio. Contrariando o frenesim da cidade de São Tomé que deixámos pouco antes, há uma atmosfera geral de tranquilidade, e até os ruídos do exterior soam abafados. Estranha-se esta calma, que contudo não é surpreendente se pensarmos que a ilha tem pouco mais de 9 mil habitantes (em contraste com os 80 mil da capital do país).

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Lá fora, uma mão cheia de guias aguarda a nossa saída, cada um com o nome do seu cliente escrito numa folha branca. Os turistas que chegam desta vez são poucos, a maioria dos passageiros são gente da terra. Sorridente, o Vado dá-nos as boas vindas e leva-nos ao carro. A estrada até Santo António, capital do Príncipe, é asfaltada e está em bom estado, e em coisa de 10 minutos estamos no restaurante da Residencial Mira Rio para matar a fome em frente a uma omelete – um lanche reforçado para substituir o almoço que estava em falta por causa da viagem de avião. Fazendo jus ao nome, o restaurante tem varanda e vista sobre o rio Papagaio, que nasce no pico homónimo, um dos mais altos da ilha.

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A cidade

 

Santo António é cidade com dimensão de vila e ambiente de aldeia. Fundada em inícios do século XVI, chegou a ser capital da colónia portuguesa de São Tomé e Príncipe, entre 1753 e 1852, antes de a cana-de-açúcar como produção principal ter sido substituída pela de cacau e café. Com ruas arejadas e rectilíneas na área junto à baía, onde ainda se mantêm de pé vários edifícios da época colonial, em diversos estados de conservação, o casario vai-se tornando mais miúdo e irregular à medida que seguimos para sul. Nas casas baixas de cores pastel, a alvenaria alterna com a madeira e a chapa ondulada, e quando deixamos o centro da cidade os passeios são aos poucos substituídos por meras bermas, que a vegetação tenta engolir. Há palmeiras gigantescas e muitas outras árvores e arbustos, a darem uma impressão visual de frescura mesmo quando o mercúrio sobe nos termómetros. Não há qualquer sintoma de aridez nesta ilha e a água nunca falta. Além disso, garante o Vado, toda a água da cidade é tratada e potável, pode por isso ser bebida directamente da torneira. Ainda assim, cingimo-nos à água engarrafada – vale mais prevenir, que o nosso sistema digestivo europeu já se sente sobrecarregado quanto baste pelos temperos generosos da comida local.

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Se a água não falta, o mesmo não se pode dizer do combustível. Além de ter subido a níveis estratosféricos nas últimas semanas (aqui também se sentem as consequências da guerra na Ucrânia), todo o combustível vem de São Tomé por barco, em fornecimentos irregulares que por vezes deixam a ilha do Príncipe à míngua de gasolina, gasóleo e petróleo. As gasolineiras estão vazias, e para honrar o seu compromisso connosco o Vado terá de pedir combustível a um amigo – pagando-o acima do preço habitualmente cobrado nas bombas de gasolina. No Príncipe como em São Tomé, todas as oportunidades são boas para fazer negócio.

 

Não se pode dizer que Santo António tenha uma arquitectura extraordinária. Nota-se, isso sim, alguma preocupação em manter a cidade limpa (até há caixotes destinados à separação de lixos para reciclagem) e cuidada. Olhando para algumas casas, com varandas em ferro forjado, cornijas sobre as janelas e beirais nos telhados, podemos até pensar que estamos em Portugal. No centro da cidade há meia dúzia de edifícios que se destacam, seja pelo aspecto recente, como o edifício do BISTP (o principal Banco do país); pela cor, como a casa colonial que abriga a capitania, pintada de azul céu e com um friso de bóias e âncoras, ou o edifício que ostenta o emblema do Sporting Clube de Portugal, sem vidros nem finalidade aparente, mas primorosamente pintado de verde e branco; ou pela beleza dos seus elementos decorativos, como a casa oficial da presidência, e que é sem dúvida o edifício mais bonito de todos: exterior em ripas de madeira pintadas de cinza-claro, um alpendre em toda a volta, friso de metal trabalhado a rematar o telhado, e com uma magnífica palmeira-do-viajante plantada num dos vértices, a fazer as vezes de sentinela.

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Blogue da semana

Ana CB, 20.04.25

Em 1921, como parte de uma campanha publicitária para promover a utilização de imagens em anúncios, o jornalista norte-americano Fred R. Barnard usou a frase “Uma imagem vale mais do que mil palavras”.

O slogan pegou e continua a ser usado até hoje no contexto mais abrangente da fotografia em geral, reflexo de uma verdade universal sobre o poder das imagens na comunicação.

Não negando a premissa que lhe está subjacente, a verdade é que não concordo totalmente com ela. Se há fotografias que não precisam de palavras, e palavras que não precisam de fotografia, há casos em que imagem e palavra se complementam e trabalham em conjunto, sem se atrapalharem mutuamente, para nos darem uma visão do mundo – o que nos rodeia e o que está dentro de nós. Não pensasse eu assim, que razão teria para ter criado um blogue de viagens?

Ainda assim, há dias em que me apetece mais olhar do que ler. E há na blogosfera boas opções para esses dias. O Raw Traveller é um deles – tem palavras, mas ali o que importa mesmo é ver a beleza das imagens.

É a minha escolha para blogue da semana.

O culpado

Ana CB, 21.03.25

Parto do princípio que entre os leitores fiéis deste blogue há quem goste muito de viajar, e não devo andar longe da verdade. E agora eu pergunto: porquê? Porque é que gostam (gostamos) de viajar? Nem toda a gente é como nós. Conheço várias pessoas (até na minha família próxima) que preferem não sair da sua zona de conforto, contentam-se em ver o mundo em fotografias ou na televisão e não têm curiosidade em ir pessoalmente àqueles lugares, por mais maravilhosos que pareçam. Não se trata de terem medo de andar de carro, ou barco ou avião; também não é por não saberem o que é viajar, porque já o fizeram numa ou noutra ocasião, e até nem desgostaram de todo; é simplesmente por falta de vontade, de interesse.

Então porque é que umas pessoas têm o bichinho das viagens e outras não? Será uma questão genética? Terá a ver com a educação? Porque a primeira vez que viajaram foi tão boa que procuram repetir a experiência uma e outra vez? Para colmatar uma carência, uma necessidade?

Bom, lamento dizer-vos que não sei qual é a resposta. Se calhar nem existe uma resposta, provavelmente cada um terá a sua… Mas no meu caso sei, conheço perfeitamente uma das razões pelas quais tenho desde muito nova uma grande paixão por viajar.

Senhoras e senhores, apresento-vos o culpado do meu desassossego:

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Sim, é um livro. Chama-se precisamente “O Grande Livro de Viagens” e foi editado pelas Selecções do Reader’s Digest em 1970.

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Entrou em minha casa pelas mãos do meu pai, a pessoa de quem terei certamente herdado um gene de viajante, se houver alguma influência hereditária no caso (da minha mãe não foi, que ela pertencia mais ao género de viajar no sofá). Eu era miúda, e este livro foi para mim uma revelação.

Antes que comecem a achar que sou um bicho estranho, estou a falar de uma época em que só tínhamos televisão (a preto e branco, claro) durante algumas horas por dia e tudo o que líamos – jornais, revistas, livros – ou víamos em casa ou no cinema era cuidadosamente filtrado e censurado. E obviamente que coisas como vídeos, computadores ou internet não existiam nem nos nossos sonhos. A quantidade de informação que nos chegava era muito reduzida e vinha a conta-gotas, às vezes com grande atraso. Outros tempos.

Não é por isso de admirar (acho eu) que abrir este livro tenha sido para mim um bocado como abrir a caixa de Pandora – mas sem a parte dos males, só a do mundo. Fiquei fascinada pelas fotografias que me mostravam lugares que eu nem sequer imaginava, e à medida que fui lendo os textos mais fascinada ainda fiquei. São cinquenta textos, cada um sobre o seu local ou país, todos escritos por autores diferentes. Textos que vão muito para lá do básico e são verdadeiras histórias de viagens, daquelas que dá gosto ler. É claro que no meu imaginário não sedimentaram todos eles de igual modo – ler sobre o mercado de queijo na Holanda (eu, que detesto queijo…), sobre um casamento marroquino ou sobre os lutadores de Sumo, só para citar alguns exemplos, não despertou em mim qualquer interesse especial. Mas a verdade é que muitos (grande parte) dos lugares que ainda estão na minha lista de desejos, aqueles que eu me lembro de querer visitar desde sempre, se encontram neste livro – e estão nessa lista sobretudo por causa dele.

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Quando há uns anos quis “revisitá-lo”, descobri que na casa dos meus pais terá ido parar a parte incerta, escondido provavelmente atrás ou debaixo de alguns dos muitos livros que eles tinham. Por sorte, consegui descobri-lo (e barato!) num alfarrabista, e agora sou a feliz proprietária de um exemplar. Está meio desbotado, tem as folhas amarelecidas e cheira a mofo, mas ainda está em bastante bom estado. Pode parecer um disparate, mas fiquei felicíssima no dia em que o recebi. “Trauma” de infância, certamente…

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Também é claro que é um livro bastante datado. Muito do que ali está escrito hoje já é diferente, e nos nossos dias qualquer smartphone baratucho tira fotografias melhores do que as que ele tem. Mas esse acaba por ser outro dos seus motivos de interesse, ver como alguns lugares mudaram tanto em cinquenta anos, e outros mudaram tão pouco. Um dos exemplos de maior mudança é precisamente o nosso país. O texto que fala de Portugal, escrito por André Visson e que tem o (óbvio!) título de “Jardim da Europa à beira-mar plantado”, mostra-nos um país de pescadores, varinas e apanhadores de uvas descalços, onde “ninguém terá dúvida de que (…) reina o homem. Nas estradas da província, por exemplo, vêem-se mulheres com toda a espécie de volumes à cabeça (…) enquanto os homens seguem montados em burros, ou as acompanham a pé, com as mãos nos bolsos”. Um país de que já estamos um bocado longe – embora muito do que aqui se diz sobre Portugal e os portugueses continue a ser verdade.

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Passados estes anos todos, ainda só estive em talvez uma dúzia dos locais de que este livro fala. Continuam por cumprir muitos dos meus desejos de viagem, embora já tenha realizado vários outros que surgiram entretanto e foram mais fáceis de concretizar. A alguns deles planeio ir mais ou menos a curto ou médio prazo, outros continuarão mais tempo na lista, e outros ainda surgirão entretanto. Ao contrário dos livros, e sobretudo os de viagens, que são estáticos e congelam os lugares no tempo, nós, as pessoas, estamos sempre a procurar, a descobrir, a aprender, a conhecer novos lugares – e este é, afinal, um dos maiores prazeres da vida.

(Adaptado de um post do blogue Viajar Porque Sim)

Outras formas de turismo: repensar o acto de viajar

Ana CB, 11.02.25

Em 2008, planeei pela primeira vez uma viagem totalmente com recurso à Internet. É certo que nos anos imediatamente anteriores me socorria de uma agência de viagens online (que não era portuguesa). Mas só quando quis ir fazer uma viagem pela Costa Rica e não encontrei nenhum programa de operador turístico que me levasse aonde eu queria e durante o tempo que eu queria é que me decidi a organizar tudo por minha conta e risco. E, com uma pequena excepção, não voltei a viajar de outro modo.

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Olhando para trás, no que toca a viagens, tenho feito um percurso inverso ao que seria mais provável hoje em dia. Quando comecei a viajar com regularidade para fora de Portugal, nos já idos anos 90, não era concebível reservar uma viagem de avião sem ser através de uma agência de viagens. É certo que de carro ou comboio podíamos partir à aventura sem nada marcado, mapa na mão e procurando alojamento nos sítios em que decidíamos parar. Foram várias as viagens que fiz em Espanha e França com pouco mais do que uma vaga ideia de querer ir ver isto ou aquilo. E corriam geralmente bem – uma avaria ocasional que nos atrasava os planos, ter de passar uma noite no carro ou num alojamento menos confortável por não encontrar outro melhor. Nada que me estragasse o prazer de viajar.

Mas se queríamos ir para destinos mais longínquos, e a não ser que tivéssemos todo o tempo do mundo para partir à descoberta e nenhumas responsabilidades a prenderem-nos para voltar, então tínhamos mesmo de recorrer às agências de viagem e conformar-nos com o que elas nos ofereciam. Hoje, numa altura da vida em que já seria compreensível (e talvez expectável) querer sopas e descanso e embarcar em cruzeiros, ou ir para resorts, ou que me fizessem a papinha toda e apresentassem viagens prontas a consumir, estou quase completamente no espectro oposto. Não virei mochileira (embora ande muitas vezes de mochila às costas), mas só vou aonde quero e da forma que quero, fugindo das viagens estereotipadas e, dentro do possível, das épocas mais pressionadas pelo turismo. Não é que não vá, ou não queira ir, àqueles lugares de que toda a gente gosta. Mas não aprecio confusões, e portanto tento evitá-las. Se há tanto para conhecer por esse mundo fora, porque é que havemos de ir todos para o mesmo sítio ao mesmo tempo?

Nos últimos 60 anos, as viagens “democratizaram-se”. O que antes só era acessível para quem ou fosse muito endinheirado, ou tivesse uma alma hippie, hoje em dia é mais ou menos alcançável para uma boa fatia da população mundial. Por um lado, as plataformas online tornaram possível a muita gente, como eu, viajar com mais facilidade; por outro, a maior oferta de alojamentos de vários tipos e de transporte (sobretudo na aviação) fez reduzir os custos das viagens, de um modo geral. As redes sociais encarregaram-se de alimentar e acelerar as vontades (por vezes apenas latentes) de ir mais longe, mais alto, mais fundo – ou simplesmente de ir passar férias num sítio que não o do costume, de preferência num daqueles em que é possível tirar belas fotos sem grande esforço nem sapiência.

Fonte (por vezes principal) de rendimento, emprego e desenvolvimento em muitos países, esta revolução no turismo trouxe também problemas evidentes: os destinos cheios de resorts uniformizados, a proliferação de pacotes de “tudo incluído” e a febre dos locais “instagramáveis” dominam o sector. Para muitos, viajar deixou de ser uma forma de descoberta cultural e pessoal para se tornar num acto performativo, mais voltado para acumular carimbos no passaporte ou quantidades de países visitados do que para viver experiências autênticas.

O turismo de massas tem vindo a exacerbar, a nível mundial, várias questões ambientais e sociais. Do ponto de vista do ambiente, não podemos ignorar a poluição causada pelo transporte aéreo e marítimo, a sobrecarga de ecossistemas frágeis, o desperdício de recursos naturais como água e energia, ou o aumento da produção de resíduos. Socialmente, contribui para a sobrecarga de infra-estruturas em cidades icónicas, a gentrificação de bairros históricos, o aumento do custo de vida para as populações locais, a exploração laboral no sector do turismo e a degradação da autenticidade cultural devido à excessiva comercialização. Além disso, ao comprometer a qualidade de vida em destinos muito procurados, a afluência descontrolada de turistas pode gerar (e tem gerado) tensões com as comunidades locais.

E eu encontro-me agora, com este meu grande apetite por viajar, num dilema: uma vez que faço parte do problema, como posso também fazer parte da solução? Como posso conciliar a minha paixão por conhecer o mundo (enfim, parte dele, pelo menos) com o meu desejo de contribuir o mínimo possível para piorar situações que são já por si insustentáveis? Sei que não sou a única a preocupar-me com estas questões, e não tenho qualquer pejo em defender que está na altura de repensar o que queremos quando viajamos, e qual a melhor maneira de o fazer. Há vida para lá dos formatos padronizados de viagem, e outras formas de turismo que podem ser igualmente (ou ainda mais) recompensadoras.

 

Turismo sustentável: uma responsabilidade colectiva

O turismo sustentável é uma abordagem que visa equilibrar a satisfação dos viajantes com a protecção do meio ambiente e o bem-estar das comunidades locais. O conceito surgiu como resposta primeira e directa aos efeitos negativos do turismo de massas. Através de práticas conscientes, é possível minimizar a pegada ecológica e maximizar o impacto positivo nos destinos visitados.

Por exemplo, optar por transportes menos poluentes, como os comboios, é uma forma de reduzir as emissões de carbono associadas às viagens de avião. A escolha de alojamentos amigos do ambiente, que recorrem a energias renováveis e têm programas de reciclagem, é outra medida concreta. Para além disso, a consciência ambiental deve estender-se ao consumo local: privilegiar mercados, restaurantes e lojas geridos por comunidades locais fortalece as economias locais sem explorar os recursos naturais de forma excessiva. Já falei mais em detalhe sobre esta questão aqui.

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Muitos destinos também estão já a adaptar-se a estes cânones. Exemplos como as Galápagos ou o Butão, que limitam o número de turistas anuais, demonstram que é possível preservar ecossistemas sensíveis ao mesmo tempo que se oferece uma experiência única e com qualidade. Esta limitação e qualidade envolvem custos – o que, por sua vez, dá origem a outro tipo de questões: num mundo que deveria ser cada vez mais democrático e acessível, é justo vedar certos destinos a quem tem menos posses, mesmo que com base em motivos nobres? Nesta como noutras áreas, não é fácil encontrar um equilíbrio.

 

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Bilhete-postal do fim do mundo: Ushuaia

Ana CB, 31.12.24

Foi com um sorriso aberto e um “Hola chicas!” que Ada nos abriu a porta do Los Calafates B&B, que gere com o filho Hernán. A quase 12 mil quilómetros de distância de Portugal e depois de várias horas de viagem desde Buenos Aires – autocarro, avião, táxi – esta recepção calorosa e familiar fez-me sentir como se chegasse a casa. O frio patagónico ficava lá fora e o fim do mundo já não me parecia assim tão distante do nosso rectângulo do outro lado do Atlântico. Intuindo que estaríamos cansadas, Ada não nos maçou com grandes pormenores e deixou para mais tarde os protocolos burocráticos habituais: deu algumas informações básicas e levou-nos de imediato ao nosso quarto. Uma amostra da informalidade e simpatia que iria ser o mote quase generalizado dos dias que passámos em Ushuaia.

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Conquistada pelo estômago e pela simpatia

Na Primavera austral o céu mantém-se claro até tarde, o que ajudou a ajustar o nosso relógio interno para as 4 horas de diferença daquelas longitudes. Se estivéssemos por cá, jantar quase à uma da manhã seria inconcebível para nós. Só que em Ushuaia ainda não eram 10 da noite, e o almoço já era uma vaga recordação. A pizaria Dieguito – uma sugestão da nossa anfitriã – estava à cunha, mas assim que entrámos o dono saudou-nos com uma alegria tal que parecia que nos conhecia há anos. De imediato arranjou uma mesa para as “chicas”, e enquanto nos acomodou bombardeou-nos com as habituais perguntas de quem percebe que está a receber forasteiros de terras longínquas – o que, de resto, em Ushuaia não é difícil, atendendo a que a cidade está distante de tudo, mesmo se só pensarmos na Argentina. Suspeito também que o nosso espanhol mal-amanhado e com sotaque europeu tenha contribuído para essa conclusão…

 

A atmosfera estava tão abafada que tivemos de ficar só de t-shirt – tal como toda a gente, de resto. Tirando o calor quase excessivo, o ambiente podia ser o de uma cervejaria portuguesa sem pretensões. Mesas e cadeiras simples, de madeira escura envernizada; caixas de cerveja local (com a marca “Beagle”, como o canal que banha a cidade) empilhadas a um canto; paredes e tecto com fotografias várias, cartazes e t-shirts de clubes de futebol, a condizer com o jogo que passava no ecrã de televisão, e uns quantos troféus expostos sobre uma estante. No meio da aparente agitação, a comida foi servida rapidamente, estava saborosa, e o serviço esbanjou simpatia.

Gostámos tanto que no dia seguinte voltámos lá ao almoço, desta vez para provar aquele que é um dos petiscos gastronómicos mais populares em toda a Argentina: as empanadas. Receita herdada da colonização espanhola, no século XVI, foram adaptadas aos ingredientes locais, e cada província da Argentina desenvolveu sua própria fórmula, criando uma variedade infindável de recheios e formas de preparação. A empanada tornou-se especialmente popular entre os trabalhadores rurais, pois era fácil de transportar e consumir em qualquer lugar. Embora parentes das empadas ibéricas, as argentinas são maiores e de formato semicircular ou oval. Têm geralmente uma massa mais fina e flexível, e mais recheio, o que as torna menos pesadas e muito ao meu gosto. Em Ushuaia, as do Dieguito são assadas no forno de barro onde cozinham as pizas e entraram directamente para a lista das minhas delícias favoritas no mundo, seguidas de perto pelas de marisco do quase vizinho restaurante Doña Lupita.

 

Entre a montanha e o mar

Na língua do povo yámane (ou yagán), que habitou a parte sul da Terra do Fogo durante mais de 10 mil anos, Ushuaia significa “baía ao fundo”. Para mim, o nome soava-me a vastidão do mar, vento agreste e solidão, mas não podia estar mais enganada. Quando a vi de longe, Ushuaia pareceu-me uma pequena cidade alpina, encaixada entre as montanhas pintadas de branco e a água parada do Canal Beagle. Mais perto, apercebi-me da cacofonia arquitectónica generalizada, como se tivessem decidido fazer dela um mostruário de todos os tipos de edifícios que é possível construir, em todos os estilos e com todos os materiais. Há de tudo, desde o modernismo geométrico com betão e vidro ao utilitário nórdico de chapa ondulada, passando pelos chalés em madeira e os prédios “pintados” de pedra ou tijolo, iguais a tantos outros que vemos por aí.

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Na zona mais plana e movimentada da cidade, as ruas formam um quadriculado perfeito, que se vai deformando à medida que a área urbanizada se afasta do mar e trepa pela encosta. A amálgama de estilos contagiou o comércio e abundam os letreiros com letras garrafais e os anúncios garridos, entre o folclórico e o kitsch, aqui e ali uma loja mais sóbria ou um café com uma decoração mais clean. É a Europa nórdica desconjuntada pelo “jogo de cintura” sul-americano e apimentada pelo sangue quente da herança espanhola. Ushuaia pode estar no fim do mundo, mas a verdade é que vivem ali quase 80 mil almas, número que engrossa substancialmente durante os meses da época alta do turismo.

A avenida que acompanha a curvatura da baía ao longo da cidade é rota de passeio agradável, mesmo sob um céu a ameaçar chuva. Não é que haja muito para ver… Deixando para trás as casinhas dos operadores turísticos e os nada atraentes barracões e contentores armazenados no porto, sobra a vista sobre o Onashaga (o nome do Canal Beagle na língua nativa), imperturbável como um lago, mimetizando a cor cinza da atmosfera. Há veleiros de recreio espalhados pela baía, entre outras embarcações coloridas, e um navio de cruzeiro mais ao fundo. Encostado a uma espécie de dique de cascalho, meio adernado, o rebocador Saint Christopher já viu melhores dias, e parece recordar com nostalgia a sua época de glória, quando se chamava HMS Justice e participou no Dia “D” da Segunda Grande Guerra, desembarcando tropas aliadas na Normandia. Abandonado há quase 70 anos após uma avaria, já faz parte da paisagem, e em todo este tempo a cidade decerto mudou muito mais do que ele.

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Para lá da água, estendem-se até ao infinito montanhas negras marcadas por dedos de neve, cumes brancos entrelaçados num manto de nuvens baixas. São uma bela moldura e por isso, turismo oblige, a palavra Ushuaia em letras garrafais não podia faltar, completando o enquadramento ideal para as fotos da praxe.

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Uma via pedestre de cimento pintado com formas coloridas encaminha-nos para o local a que chamam Paseo de los Antiguos Pobladores. Estão ali algumas das construções mais antigas da cidade, agora convertidas em espaços culturais e institucionais. A Casa Pena, pintada de amarelo e verde, é hoje o Museu da Cidade, onde uma exposição etnográfica conta a história de Ushuaia desde a sua origem. Na Casa Torres foi instalado o museu “Pensar Malvinas”, que expõe informação sobre a guerra que, em 1982, agitou a opinião pública em todo o mundo e terminou com o Reino Unido a manter a soberania (detida desde 1833) sobre o arquipélago do Atlântico Sul, situado perto da costa argentina, a que os britânicos chamam Falklands. A Câmara de Turismo da Terra do Fogo funciona na discreta e bonita Casa de Lisardo García, revestida de chapa ondulada cinzenta embelezada com madeiras pintadas de branco. Mas o edifício que mais chama a atenção, pela sua arquitectura extravagante, é a antiga Casa Bebán, que agora é centro cultural e de exposições. Num arroubo de excentricidade, o primeiro dono, Tomás Bebán, mandou vir da Suécia toda a estrutura da sua futura casa de família, cuja montagem ficou terminada em 1913.

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Depois há que ir ao melhor miradouro da cidade, o Paseo del Centenario. Uma escadaria moderna, com formato irregular e vários pontos de paragem, coroada por um monumento que homenageia as várias correntes migratórias que deram origem a Ushuaia. Renovado em 2021, e apesar do pedido de cuidado feito pelo Intendente Walter Vuoto aquando da reinauguração, já apresenta infelizmente alguns sinais do vandalismo que desfigura, cada vez mais, as zonas urbanas: tags (a que incorrectamente é hábito chamar grafitis) pulverizadas sobre as “espigas” de cimento que fazem parte da estrutura da escadaria. Nem as terras do fim do mundo escapam à falta de civismo e de respeito, e só mesmo a vastidão e serenidade da paisagem que se nos oferece a partir do miradouro conseguiu apaziguar o meu espírito.

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Um banco com vista: Caneiras

Ana CB, 27.11.24

Manhã quente de Verão. O rio leva pouca água. Aqui e ali nota-se a sombra clara da areia por baixo do azul líquido, ou revela-se um tronco preso no leito, que a fraca corrente não consegue arrastar; até os mouchões mais rasos estão visíveis e pujantes de erva verde. Sob a copa larga de um salgueiro, o banco de madeira sem encosto é repousa-pés ideal para quem precisa de matar o tempo até à hora de almoço, pese embora o assento escolhido não seja o banco mas sim uma cadeira de campismo. É domingo, e para quem aqui vive pouco mais haverá para fazer do que contemplar a paisagem e aproveitar a sombra para fugir do calor.

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O rio é o Tejo e ao lugar deram-lhe o nome de Caneiras. Fica a uns curtos cinco quilómetros a sul de Santarém e é o aglomerado sobrevivente e ampliado da aldeia avieira ali fundada há mais de um século. O assentamento original terá sido destruído pelas cheias de 1941, e grande parte das construções que vemos hoje também já sofreram a adulteração intrínseca à “modernidade”; mas ainda se notam muitas características das antigas casas avieiras, e continua a ser habitada por alguns pescadores que não desistem do seu modo de vida: sair para o rio em busca da fataça (tainha), do sável ou da quase desaparecida lampreia.

 

Os nómadas do rio Tejo

 

Não há datas certas, mas estima-se que foi a partir de meados do século XIX (e sobretudo na primeira metade do século XX) que famílias de pescadores da zona de Vieira de Leiria começaram a deslocar-se para as áreas ribeirinhas do Tejo entre Abrantes e a Póvoa de Santa Iria, fugindo aos rigores do Inverno que não lhes permitia procurarem o seu sustento no mar. Trocavam os barcos de mar que usavam na arte xávega por embarcações de traça semelhante, mas bastante mais pequenas – as bateiras, a que os avieiros chamam simplesmente “barco” – fazendo delas a sua casa temporária. Era na bateira que pescavam, comiam e dormiam, usando um simples toldo para se abrigarem. O homem lançava as redes e a mulher remava, além de organizar toda a vida da família e ir vender o peixe às localidades vizinhas, transpondo para o ambiente do Tejo os papéis que cada um desempenhava na sua terra de origem. Era também na bateira que os filhos iam sendo criados e aprendiam as lides da pesca de rio, que lhes garantiria a sobrevivência no futuro, num tempo em que a vida era muito diferente. A embarcação é de tal modo característica e assumiu uma (óbvia) importância tão grande para estas comunidades que, em 2016, a sua construção e uso foram inscritos no Inventário Nacional do Património Cultural Imaterial, com a indicação da necessidade de salvaguarda urgente.

Inicialmente, estas deslocações eram sazonais, e os pescadores voltavam à Praia da Vieira quando o tempo melhorava. Com o crescimento da família e o cansaço dessas idas e vindas, e porque o Tejo (e também o Sado) lhes proporcionavam peixe o ano inteiro, acabaram por se ir fixando nas margens destes rios – primeiro em simples palhotas feitas de caniço, que crescia à beira de água e era material leve e fácil de encontrar, e depois em casas de madeira, assentes sobre estacas, para evitarem ser inundadas quando o rio transbordava as suas margens. Nasciam as aldeias avieiras (de que já falei no meu blogue).

 

A aldeia das Caneiras

 

A partir dos trabalhos de levantamento feitos até à data, foram identificados cerca de 40 assentamentos de avieiros nas margens do Tejo, a maioria deles já desaparecidos ou completamente em ruínas, como é o caso do Patacão, perto de Alpiarça, que tem dois núcleos ainda visíveis mas já em rápido declínio, apesar das tentativas de preservação que foram feitas até há alguns anos. Entre as aldeias que sobrevivem contam-se o Escaroupim, assumido como ex libris turístico da cultura avieira, Porto da Palha (Lezirão) e Palhota, esta última trazida para a ribalta no romance “Avieiros”, de Alves Redol. O aldeamento das Caneiras, talvez por estar muito perto de Santarém, também tem resistido ao desaparecimento, pese embora a descaracterização e a construção desregulada das últimas décadas.

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A aldeia é um rectângulo com uma espécie de rua principal que desemboca em nenhures, encaixada entre o rio e a estrada de acesso ao mundo exterior. É ao longo desta estrada que se vêem as construções mais modernas, moradias concebidas com mais ou menos gosto, rodeadas de hortas e pequenos pomares. O núcleo mais antigo das Caneiras está bem escondido por trás destas casas vulgares, e até parece que o espírito recatado e quase impenetrável dos antigos pescadores ainda paira por ali – as comunidades avieiras eram muito fechadas, assentes no núcleo familiar e segregadas tanto por vontade própria como por animosidade da população rural, mantendo ao longo dos tempos algum secretismo sobre o seu modo de vida e as suas artes piscatórias.

 

A miscelânea arquitectónica das Caneiras tem tanto de surpreendente como de fascinante. As antigas palhotas palafíticas têm vindo a ser transformadas cada uma à sua maneira. Nas que ainda permanecem elevadas em relação ao solo, as estacas de madeira foram substituídas por pilares de alvenaria. As tradicionais varandas de acesso ao piso superior já quase desapareceram, e poucas construções as mantêm – a maioria das pessoas prefere espaço interior em detrimento do espaço de socialização, uma das funções principais das varandas das casas avieiras. A madeira ainda está bastante presente, em versões de cor escura e variados estados de conservação; são, para mim, as construções mais bonitas da aldeia, algumas realçadas com pormenores em branco ou cores vivas. É nelas que se notam os pontos de contacto com as casas típicas da região de origem dos avieiros, sobretudo as da Praia da Tocha e, mais tenuemente, as da Costa Nova.

Não faltam também os atentados arquitectónicos ao carácter original da aldeia, em que a alvenaria substituiu os materiais anteriormente utilizados, a ponto de agora não passarem de vulgares paralelepípedos com telhado, quase sempre pintados de branco e com as faixas azuis ou amarelas que voltaram a ser, em tempos recentes, populares na construção que se quer fazer parecer tradicional, mesmo quando completamente deslocadas do contexto. Deste mal enferma igualmente a Capela dedicada ao Sagrado Coração de Maria, um edifício desenxabido cuja única desculpa talvez seja o facto de datar de 2006 (embora tenha ares de reconversão de algum edifício anterior).

Num arroubo de imaginação e quiçá influência forasteira, alguém resolveu forrar o exterior de uma das casas com chapa ondulada e juntar-lhe um pormenor americanizado. Não é que seja feio – é só descabido. Prefiro a tinta a descascar e o telhado arqueado de uma outra casa, com a sua chaminé periclitante (as chaminés também são um acrescento moderno nas casas avieiras).

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Na rua principal há também um banco, mas este não tem nada a ver com o da beira-rio. É tosco e torto, tal como o casinhoto que está ao lado, uma espécie de telheiro abrigado para acumular tralhas diversas. Tento imaginar o que terá levado alguém a colocá-lo ali. Talvez para apanhar sol nos dias frios de Inverno? Para conversar com quem passa? Alguém que não tinha nada para fazer e decidiu construí-lo? As questões ficam sem resposta, porque por aqueles lados não se vê vivalma.

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Ao entrar numa espécie de beco, surge a casa que de imediato elejo como o supra-sumo do kitsch da aldeia. Uma manta de retalhos com metade em madeira escura e a outra em chapa ondulada, o rés-do-chão pintado de azul Chefchaouen, aparelho de climatização e antena parabólica bem visíveis, à mistura com cabos vários, uns trepando pelas paredes, outros cruzando o ar. Ao pé da porta, mais um banco de jardim, este bem harmonioso, em madeira e ferro forjado, tendo por companhia duas cadeiras plásticas rosa-bombom saídas directamente do mundo da Barbie. Com os seus anacronismos, parece-me ilustrar bem o espírito geral desta aldeia que tem crescido ao sabor do acaso, um pé na tradição e preservação cultural e outro na vontade de se modernizar.

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De volta ao carro, passo outra vez pela área junto ao rio, que se nota ter sido alvo de arranjo há não muitos anos: deck amplo em madeira, delimitado por postes baixos ligados com corda grossa, intercalados com painéis que exibem fotos da actividade piscatória dos avieiros. Árvores frondosas, bem cuidadas, e uma zona de merendas ao fundo, ao lado do parque de estacionamento. O banco foi abandonado, mas a cadeira de campismo colorida ainda lá está, sossegada, à espera do seu ocupante habitual. Tal como a aldeia, suspensa no limbo de decisões por tomar e herdeira de um passado que em breve será considerado obsoleto, decerto para dar lugar a mais um destino “típico” a explorar turisticamente.

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Fonte usada para pesquisa: http://www.e-atlasavieiro.org/

 

Sugestões de leitura:

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Lisboa, tão minha e tão estranha

Ana CB, 03.10.24

Sou lisboeta. Talvez não de gema, porque os meus pais vieram de outras regiões do país; mas nem eles nem os meus avós tinham casas “na terra”, por isso criaram raízes na capital. Lisboa é a cidade onde tenho passado grande parte da minha vida e reclamo-a como minha, mesmo que sem exclusividade. Sou magnânima, não me importo de a partilhar com os outros.

A minha infância foi essencialmente passada num bairro periférico relativamente moderno para a época, onde os meus pais tinham uma loja de dimensão razoável com uma ampla zona privada, que nos permitia fazer ali a nossa vida diária e só regressarmos a casa, nos subúrbios, à noite. Estando na cidade, era quase como se vivesse numa aldeia em que todos se conheciam. O segundo pequeno-almoço era tomado sempre na mesma leitaria, os livros e as revistas comprados na única papelaria que existia naquela rua (ainda tenho exemplares da revista Tintin dessa época), o pão e os bolos na grande padaria com fabrico próprio quase ao lado da nossa loja, as fotografias tipo passe sempre tiradas pelo mesmo fotógrafo. Havia uma loja para cada coisa, e os donos e empregados eram uma espécie de círculo familiar alargado. E quando íamos à Baixa, ou a qualquer outro sítio que fosse mais no centro da cidade, dizíamos que íamos “a Lisboa”. Outros tempos e outros hábitos.

No final da minha pré-adolescência, a minha mãe decidiu regressar à sua profissão anterior e passou a trabalhar no centro de Lisboa. Também eu já mais autónoma, a minha área de vivência citadina começou a alargar-se: a Avenida da Liberdade era a meca dos cinemas, o Chiado (pré-incêndio) a zona preferida para as compras. Em São Bento visitava umas primas do lado materno, geralmente depois das aulas no Instituto Britânico. Cada ano e nova experiência acrescentaram bairros à minha vida lisboeta. Os cafés eram o ponto de encontro para os convívios, cada grupo de amigos tinha o seu local favorito. Vagueei do Calvário a Campo de Ourique, da Praça de Londres à de Alvalade, da Rua do Ouro às Avenidas Novas, da Cidade Universitária a Benfica, e mais tarde pela obrigatória vida nocturna do Bairro Alto – já então muito diferente do primeiro contacto que com ele tinha tido numa tarde de Verão, modorrento e intimidante, com personagens ocasionais que olhavam fixamente (ou assim me parecia) a adolescente meio perdida que ia fazer um exame ao Colégio dos Inglesinhos. Lisboa ia mudando aos poucos.

A vida profissional manteve-me em Lisboa, primeiro de forma intermitente, depois com constância. Aportei ao Chiado há mais de 20 anos, tempo suficiente para assistir à metamorfose contínua do bairro. Se um gato tem sete vidas, o Chiado faz-lhe concorrência, que eu já lhe conheço pelo menos três ou quatro. O Chiado dos meus tempos de adolescente tinha o Grandella e os Armazéns que davam nome ao bairro, com os seus elevadores emblemáticos, e a Jerónimo Martins ainda era só Casa, não Grupo. A loja da Ana Salazar era o supra-sumo da modernidade, com as suas montras minimalistas onde pairavam modelos sempre arrojados para a época. Na Brasileira ainda não havia a escultura do Pessoa. O poeta Chiado estava sozinho no meio do largo, sem a companhia da boca do Metro. Os carros passavam livremente pela Rua do Carmo, e o elevador de Santa Justa era operado pela Carris como qualquer outro equipamento – o passe era válido para subir e descer a qualquer hora, raramente havia filas, e qualquer um podia ir ver Lisboa da sua varanda. Era a maneira mais rápida e cómoda de ir da Baixa ao Largo do Carmo. Num dia de Agosto, ao passar de manhã a pé pela Rua da Prata, o fumo escurecia o céu. Só soube o que tinha sucedido quando cheguei ao escritório onde trabalhava na altura, na Praça da Figueira. Foi o início de um longo período negro para o Chiado, que ficou deserto durante anos. Por vezes passava por lá, a caminho de qualquer outro sítio, e era como se estivesse num filme pós-apocalíptico. O cenário era desolador: paredes negras, prédios vazios, lojas fechadas, apenas uma ou outra pessoa de passagem, como eu. Mesmo as áreas que tinham ficado a salvo do fogo se ressentiram. O bairro parecia ter perdido a sua alma: as pessoas em movimento.

Anos e anos em obras que pareciam não ter fim, os edifícios esventrados do Chiado foram sendo recompostos a pouco e pouco. Mais modernaços, com um ar mais “clean”, e na sua maioria com outros negócios. Ainda assim, a vida demorou a voltar. Durante muito tempo, o Chiado foi quase só de quem lá trabalhava ou morava. Ao cair da noite esvaziava-se, ficava tranquilo; só no Natal, com as iluminações e os mirones, o sossego nocturno era quebrado. As lojas, as que já existiam e outras que foram abrindo, mantiveram-se inalteradas durante vários anos. Nessa altura deixei praticamente de ir fazer compras aos centros comerciais dos arredores. Não precisava, ali tinha quase tudo. À hora de almoço passeava, ia vendo as montras, entrava quando estava à procura de alguma coisa em concreto, comprava se fosse caso disso. Sem pressas. Nas ruas secundárias havia sempre algum prédio em obras, às vezes mais do que um, e era obrigada a percorrer a rua aos ziguezagues, atravessando de um passeio para o outro, como se sofresse de uma crónica indecisão de não saber para onde ir. Se fosse uma remodelação total, os andaimes e tapumes ficavam a fazer parte da paisagem durante largos meses, até anos. O Chiado era um microcosmos da transformação que se alastrava pela cidade.

Distraída na minha vida, demorou algum tempo até perceber que Lisboa estava a tornar-se numa Meca turística. Primeiro foram as hordas de espanhóis na altura da Páscoa; depois o aumento de gente em calções e sandálias assim que o tempo aquecia, e das palavras em línguas desconhecidas ditas por quem passava por mim na rua; até que comecei a ter dificuldade em andar nos passeios ao meu ritmo normal, travada por grupos de turistas caminhando a passo de caracol ou parados a tirar a obrigatória selfie. Esta popularidade súbita criou em mim sentimentos mistos: orgulhosa por perceber que a “minha” cidade (e Portugal, na generalidade) estava finalmente a ter o reconhecimento que merecia, e ao mesmo tempo irritada pela apropriação meio selvática que dela estava a ser feita.

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Há seis anos mudei-me para a “província”. São só 65 quilómetros de distância até Lisboa, 50 minutos em auto-estrada; mas neste nosso minúsculo rectângulo encaixado entre Espanha e o Atlântico isso é mais do que suficiente para ser considerado “província”. Continuei a trabalhar em Lisboa, para onde ia todos os dias até que a mudança de hábitos derivante da pandemia me permitiu trabalhar a partir de casa durante a maior parte do tempo. Se naqueles dois anos houve algum sossego na capital, para bem de uns e mal de muitos outros, o regresso à “normalidade” veio exacerbar a tendência pré-2020 de aumento do turismo. E as consequentes mudanças no ambiente da cidade. De repente, tudo me parece estranho. A proliferação de tuk-tuks e motoretas para entrega de comida, a música por todo o lado, as esplanadas cheias a qualquer hora do dia (e às vezes da noite), as ruas a abarrotar de gente, mesmo nos meses de Inverno, as filas intermináveis para as bilheteiras do metro e do comboio, o eléctrico 28 que agora virou coqueluche dos turistas e vai sempre apinhado, com tarifa de bordo a condizer. No Cais do Sodré já não ouço a chilreada dos estorninhos ao entardecer, não sei se por causa do aumento de outros ruídos, ou por terem debandado para algures, afugentados pela agitação humana. As obras “de fundo” multiplicam-se, todas para durarem anos, com tapumes brancos a estenderem-se aqui e acolá por centenas de metros, tapando indiferentemente o que é feio e também o que merece ser visto. As mudanças são tantas e tão rápidas que quando passo por algum sítio aonde já não ia há algum tempo, às vezes mal o reconheço. Habituada ao maior sossego de outras paragens, talvez a estranha agora seja eu.

Só que isto de amar uma cidade é um pouco como amar uma pessoa, com os seus encantos e os seus defeitos, nos dias bons e nos menos bons, quando nos faz feliz ou nos irrita, ou nos desilude. Quando vejo o roxo dos jacarandás em flor e sinto o seu perfume, e o céu se tinge de rosa e laranja ao fim da tarde, quando passo na Praça do Comércio de manhã cedo, ou desço uma rua e o azul brilhante do Tejo espreita lá ao fundo, entre as casas, a zanga esfuma-se e penso na sorte que tenho em estar ali, naquele instante. Lisboa continua a ser a “minha” cidade.

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Blogue da semana

Ana CB, 29.09.24

Foi uma viagem que os juntou, e as viagens continuam a ser uma parte importante na sua vida a dois. A Vera e o Marcelo são um dos casais mais simpáticos da blogosfera portuguesa de viagens, e criaram o blogue Ir em Viagem para partilharem as suas aventuras e experiências:

Através da escrita e da fotografia pretendemos inspirar as pessoas a viajar mais e, através de dicas e sugestões, ajudá-las a preparar as suas viagens.”

São caminhantes infatigáveis, e por isso de vez em quando organizam passeios nos trilhos mais bonitos do nosso país. Falam-nos das suas viagens, dentro e fora de Portugal, com muita sensibilidade (de uma forma quase poética) mas sem esquecerem os pormenores práticos, sempre úteis para quem lê. E como se isto não fosse suficiente, todos os artigos são ilustrados com fotografias de mestre.

O Ir em Viagem é a minha escolha para blogue da semana.

Gozo, o prazer de ter vagar

Ana CB, 30.08.24

São quase sete da tarde quando o autocarro me deixa em Sannat, num pequeno largo marcado ao centro por uma escultura em metal oxidado que representa três lavradores – uma das muitas esculturas que estão espalhadas pela ilha de Gozo, fruto de um concurso de arte pública lançado há uns anos pelo Ministério que governa a ilha. Mas não foi isto que me trouxe aqui. Meto pés a caminho do meu objectivo por uma estrada de terra batida. Do lado esquerdo, o vale de Hanżira e a vizinha vila de ix-Xewkija, a sua magnífica Basílica de São João Baptista bem destacada no meio do casario branco e ocre. Sannat fica num planalto 120 metros acima do mar, com vistas soberbas sobre grande parte da ilha, a norte, e sobre o Mediterrâneo a sul. É por este ponto cardeal que me oriento pelo trilho aberto no garrigue, que me leva ao meu destino final: a falésia de Ta’ Ċenċ.

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Cheguei mesmo na hora certa. O sol já desce rapidamente no horizonte, exactamente sobre o extremo da linha irregular que separa a água dos rochedos. Os raios de luz atravessam as nuvens trazidas pela brisa marinha do final de tarde, e o céu divide-se entre o azul brilhante e o dourado suave, que se se transforma aos poucos em laranja, rosa e púrpura. A sombra dos rochedos escurece o mar, que reflecte mais ao longe as cores mornas do pôr-do-sol. Foi este o lugar que escolhi para terminar o meu primeiro dia em Gozo, apreciando a tranquilidade do momento – e foi este o espírito dominante nos dias que passei na ilha.

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Entre as três ilhas habitadas do arquipélago de Malta, Gozo (ou Għawdex, em maltês) é a irmã do meio em tamanho, mas não em status. A ilha de Malta é aquela a que os visitantes por norma dedicam mais tempo: é a maior e mais famosa, rica em história, cultura e atracções, com uma capital vibrante e apelativa para o turismo. Comino é a estrela brilhante do arquipélago, o bilhete-postal que serve de chamariz para quem gosta de águas mornas e transparentes. Já Gozo acaba por ser sempre relegada para segundo plano e geralmente é apenas merecedora de um magro dia de visita, quando não totalmente ignorada. O que é – desculpem-me a franqueza – um erro tremendo, porque merece muito mais do que uma visita feita a correr.

 

Sucede com os lugares tal como sucede com as pessoas: mesmo que mais tarde venhamos a corrigir a nossa avaliação, as primeiras impressões têm muita importância. E a primeira impressão que tive de Gozo, quando o ferry se aproximava do porto de Mġarr, foi positiva. É certo que a encosta escarpada que rodeia o porto está cravejada de edifícios, alguns com nítido ar de hotel, e que a profusão de guindastes augura mais uns quantos a nascerem. Mas pelo menos não há arranha-céus, e as cores das casas mantêm-se entre o branco e os tons neutros ou terrosos, nada que ofenda particularmente a visão. O que salta mesmo à vista são as igrejas, várias, bem em evidência pelo contraste das suas formas caprichosas com a sobriedade poliédrica do casario. Na altura não fazia ideia, mas uma delas – a mais majestosa – iria ser o meu cenário de várias refeições nos dias seguintes.

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Nada tenho contra os hotéis, mas sempre que posso escolho alojamentos locais, e a minha estadia em Gozo não foi uma excepção. Em vez de optar por Victoria ou por uma zona de praia, decidi ficar perto de Mġarr, na pequena localidade de Għajnsielem (pronuncia-se mais ou menos como iain-siê-lem), que se traduz por “nascente tranquila”. E tranquilidade não faltou, nem no alojamento, nem nas redondezas. Apesar da proximidade do porto e de ter um amplo miradouro sobre Mġarr e as ilhas de Comino, Cominotto e Malta, o local está fora das rotas turísticas habituais da ilha. Sorte minha, tem tudo aquilo de que eu mais precisava: autocarros, para me deslocar por Gozo, e um sítio bom para tomar o pequeno-almoço ou petiscar.

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As associações musicais têm um papel único na cultura social maltesa. As bandas participam activamente na preparação e gestão das festas locais, e são um dos motivos de orgulho de cada vila ou aldeia. As suas instalações funcionam também como ponto de encontro para os habitantes e assumem um papel fulcral na comunicação e socialização a nível local. Għajnsielem não é excepção. A Għaqda Mużikali San Ġużepp (Associação Musical de São José) foi fundada em 1928 sob a égide do Instituto de São José, um orfanato, e continua em actividade até hoje. Além de ter um belíssimo salão de snooker profissional, o bar funciona como bistro e serve refeições ligeiras. Bem localizado, ao lado de uma simpática praceta ajardinada, foi na sua enorme esplanada que fiz boa parte das refeições durante a minha estadia, em modo de relaxamento total, por vezes com vista para uma nesga de mar no horizonte, outras com os olhos na grandiosa igreja-santuário de Għajnsielem, do lado oposto da estrada.

 

As evidências da fé

Għajnsielem é mais conhecida pelo evento que ali se realiza anualmente em Dezembro no campo de Ta’ Passi: a recriação ao vivo de um presépio e a sua aldeia, a que dão o nome de “Bethlehem f'Għajnsielem”. Numa área de 20.000 m2, cerca de 150 actores e alguns animais levam os visitantes a recuar no tempo até à Judeia de há 2.000 anos. Há moinhos e grutas, pastores e artesãos, e actividades condizentes com a época para miúdos e graúdos. Mas fora da quadra natalícia é apenas uma terrinha sossegada que vive à sombra da bela e imponente igreja-santuário neogótica. Dedicada a Nossa Senhora do Loreto, demorou mais de 50 anos a ser edificada, entre 1922 e finais da década de 70, e é um excelente exemplo de quão magnífica é a arquitectura religiosa mais recente das ilhas maltesas.

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Apenas a uma ruela de distância, na Pjazza Indipendenza, ainda se encontra orgulhosamente de pé a antiga igreja paroquial, também dedicada à mesma santa mas muito mais sóbria em aparência. Esta igreja mais antiga, construída no século XIX, sucedeu a uma capela erguida para celebrar uma aparição mariana ocorrida em data desconhecida a um pastor, de seu nome Anglu Grech, que levava regularmente as suas cabras e ovelhas a beberem água da fonte de Għajnsielem. A visão do pastor deu origem a uma estátua, depois colocada num nicho, à volta do qual os habitantes da localidade se reuniam diariamente para rezar o terço. Existem ainda outras duas igrejas e oito nichos com uma variedade de estátuas de santos (a título de curiosidade, dois deles são dedicados a Santo António, tal como uma das igrejas). Esta profusão de símbolos religiosos numa área tão reduzida não é exclusiva de Għajnsielem. Em toda a ilha de Gozo (tal como em Malta, na generalidade), há uma vertente que permanece dominante e tão destacada que é impossível de ignorar: o catolicismo.

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As ilhas maltesas têm uma longa história de fé cristã. Segundo a tradição, o apóstolo S. Paulo naufragou em Malta no ano 60 d.C., e este acontecimento é considerado um momento fundamental para a difusão do cristianismo na região. Outro momento fulcral ocorreu no século XVI, quando os Cavaleiros de S. João, também conhecidos como Cavaleiros Hospitalários, se estabeleceram nas ilhas. Deixaram um legado duradouro de magníficas igrejas, catedrais e fortificações, muitas das quais ainda hoje se mantêm de pé. A fé católica não tem sido apenas uma força religiosa, mas também cultural e social, marcando indelevelmente a identidade destas ilhas e do seu povo. Os festivais religiosos, as procissões e os rituais fazem parte integrante do modo de vida maltês.

 

A Basílica do Santuário da Virgem de Ta’ Pinu é outro exemplo sonante desta ligação religiosa. Isolado numa zona árida onde não se passa nada (a aldeia mais próxima fica a meio quilómetro de distância), a magnificência deste santuário destoa e ao mesmo tempo surpreende como uma gema brilhante engastada em metal pobre. É um edifício colossal, que me impressionou tanto pela imponência como pela beleza. Foi construído em inícios do século XX no estilo neo-românico, em pedra rosada e ocre, com um recorte complexo em vários volumes e níveis, e é encimado por uma cúpula. O campanário está separado, ao estilo italiano, destacando-se com os seus 60 metros de altura. O interior é uma mistura bem conseguida de elementos arquitectónicos clássicos com arabescos e pormenores bizantinos – espelho das várias influências que a cultura maltesa agrega. A penumbra e a serenidade da atmosfera convidam à reflexão. Ainda assim, há pouca gente a visitar a basílica, e todos são turistas como eu. Um painel à entrada pede decoro, respeito e silêncio. E silenciosa é a devoção dos fiéis, materializada nos inúmeros ex-votos que enchem as paredes da sacristia, agradecimentos mudos mas eloquentes pela concretização dos desejos de quem deposita grande fé na padroeira do local.

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Criado no lugar onde já existia uma capela de origens imprecisas (anterior ao século XVI), o santuário deve a sua popularidade a uma lenda local. Em 1883, uma camponesa da vizinha aldeia de Għarb disse ter ouvido, ao passar pela capela, uma voz que lhe pediu para entrar e recitar três ave-marias. À ocorrência de vários supostos milagres em anos seguintes atribuiu-se a graça de Nossa Senhora da Assunção, a quem a capela estava dedicada. Foi o bastante para começar a atrair peregrinos e ser oficializada como santuário mariano, com a consequente construção da basílica. A capela antiga foi incorporada no novo edifício, por trás do altar. Lá dentro mantém-se o quadro da Assunção de Nossa Senhora ao Céu, pintado em 1619 por Amadeo Perugino, de onde se diz que a voz falou a Karmni Grima – a aldeã que deu origem à lenda, e que se encontra ali sepultada. A fé da mais simples das pessoas pode não mover montanhas, mas não há dúvida de que tem criado muitos santuários.

 

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Desaparecida, mas não esquecida

Até 2017, a razão principal pela qual a maioria dos visitantes ia a Gozo era uma formação rochosa a que deram o nome de Janela Azul: um arco de calcário perto da baía de Dwejra, com 28 metros de altura, desenhado pela erosão do vento e do mar ao longo de 500 anos. Estrela de filmes, anúncios e do turismo, incluída numa área de conservação especial, sucumbiu à violência do mar e desabou completamente na manhã de 8 de Março daquele ano fatídico, após vários dias de tempestades. Dela ficaram a memória, muitas fotos, e o nome num restaurante. Perdida a atracção maior, o local passou a capitalizar outras actividades: os mergulhos no Blue Hole, uma espécie de piscina de águas azuis límpidas, entre rochas, com um arco natural submerso a fazer de “porta de entrada” para o mar aberto; e os passeios de barco a partir do Mar Interior, uma lagoa semicircular de águas pouco profundas rodeada de falésias rochosas.

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A antiga vocação piscatória do lugar é bem visível. No lado que não está ocupado pela escarpa, o Mar Interior é limitado por uma espécie de praia, uma faixa estreita de pedrinha arenosa, à volta da qual se acotovelam construções cúbicas exíguas de pedra maciça, sem janelas e com portas coloridas. Algumas têm toldos que avançam sobre plataformas cimentadas, e painéis solares nas açoteias. Rampas de betão entram pela água parada, onde flutuam várias pequenas embarcações simples, umas mais modernas, outras mais coloridas. Há pessoas a nadar, outras a apanhar sol, outras ainda apenas sentadas em cadeiras plásticas instaladas à porta dos casinhotos, observando o movimento na lagoa.

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Os pescadores converteram-se em guias turísticos e há um corrupio de barquitos que entram e saem da lagoa. A comunicação com o Mediterrâneo é feita através de um longo túnel, que fura o penhasco ao longo de mais de 80 metros. É um passeio cénico e tranquilo, agradável mesmo com o céu meio encoberto. A água desdobra-se em cores que vão do verde-esmeralda ao azul mais profundo. As escarpas abruptas, de rocha porosa manchada pelo tempo e pelos sedimentos, escondem enseadas e grutas por onde o barco ziguezagueia. Passamos da claridade à penumbra, depois saímos novamente para a luz, num vaivém que dura uns escassos 15 minutos mas parece ainda mais curto – e que, como não podia deixar de ser, passa pelo local onde em tempos esteve a Janela Azul, em homenagem devidamente assinalada pelo guia-condutor. A excêntrica formação natural pode ter sucumbido ao abraço do mar, mas a sua memória está bem viva, um testemunho de como a natureza é ao mesmo tempo grandiosa e frágil.

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O domínio da pedra

A agitação de Victoria é o contraponto à atmosfera serena do resto da ilha. A capital, a que os locais continuam a chamar Ir-Rabat, é o centro nevrálgico de Gozo. Tudo parece passar por ali. Eu própria, nas minhas deambulações de autocarro entre os vários sítios que fui visitar, acabei por ter de lá ir todos os dias, à falta de transporte directo de Għajnsielem para alguns desses lugares. Victoria divide-se em dois planos, separados pela avenida principal. A Triq ir-Repubblika é o coração comercial da cidade, onde as casas com as tradicionais varandas maltesas coabitam com lojas, bancos e teatros, e os carros se misturam com motas, carrinhas e mini comboios turísticos, numa cacofonia pouco habitual na ilha.

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Para norte cresce a colina onde foi erguida a Cidadela, o bastião fortificado que há 3500 anos protege Ir-Rabat, o seu subúrbio. Para sul da avenida, a Praça da Independência alberga a Banca Giuratale, sede do município, e é a porta de entrada para o dédalo de ruas pedonais sinuosas que formam a parte antiga da cidade. Nestas ruelas estreitas, as varandas quase se tocam, e por vezes nem o sol do meio-dia consegue iluminá-las. As casas são de pedra e têm portas em arco, varandas em ferro forjado ou de madeira, pintadas com cores alegres, e emblemas religiosos cravados nas paredes, feitos em cerâmica. Há becos com vasos de flores e trepadeiras, esquinas com estatuetas religiosas colocadas sobre pedestais altos, gatos que aproveitam uma sombra para dormir ou apenas estarem ali, naquela sua pose descontraída de quem está de bem com a vida.

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No centro da cidade velha fica a basílica dedicada a São Jorge, numa praça rodeada de esplanadas e lojas para turistas. Construída no último quarto do século XVII e totalmente revestida de mármore, é a igreja barroca mais exuberante da ilha, no que toca à decoração interior. A cúpula e as abóbadas estão pintadas com cenas religiosas e decoradas com frisos dourados, e o dossel com quatro colunas sobre o altar-mor é uma peça colossal em bronze e ouro. O contraste com outras igrejas que visitei é flagrante.

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Sugestivamente apelidada de “Coroa de Gozo”, há indícios de que a Cidadela de Victoria já fosse habitada há 7000 anos. Mas as robustas muralhas defensivas que hoje a definem foram construídas pelos Cavaleiros Hospitalários em finais do século XVI. A cota a que se encontra faz dela um miradouro fabuloso sobre praticamente toda a ilha. Passei várias horas a percorrer o interior das muralhas, onde está bem visível um extenso trabalho de restauração ainda em curso. A pedra é omnipresente, às vezes mais rugosa ou manchada, marcada pelo tempo, outras mais clara e suave, prova de uma renovação mais recente. É na Cidadela que estão a Catedral de Gozo e o Tribunal – os templos máximos da fé e da lei partilham o mesmo adro. Nesta espécie de caverna de Ali Babá a céu aberto há de tudo um pouco: museus vários, a rua de um bairro judeu medieval, um palácio seiscentista com a sua capela, a antiga prisão, o paiol da pólvora, canhões da bateria e um abrigo anti-bomba, silos e cisternas, as obrigatórias lojas para turistas, e pelo menos um restaurante: o Ta’ Rikardu, onde nem o dia quente me dissuadiu de provar a sopa de peixe preparada à maneira local.

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Tradição centenária

A maior parte das praias de Gozo ficam na costa norte, mas não são de todo o melhor que a ilha tem. A excepção é Ir-Ramla, onde a maravilhosa tepidez das águas mediterrânicas se une a um areal generoso, numa combinação ideal para umas horas em modo de lagarto ao sol. Curiosamente, não há quaisquer infra-estruturas hoteleiras nas imediações desta praia, o que provavelmente explica o fenómeno de ainda ser possível encontrar um lugar para estender a toalha com vários metros de areia desimpedida à volta.

Também no norte da ilha, e pese embora a sua praia esteja muitos furos abaixo de Ir-Ramla, a localidade de Marsalforn já adquiriu o estatuto de estância balnear. No entanto, não é essa a razão da minha visita. Umas centenas de metros mais à frente, junto à costa, espalhando-se ao longo de mais de um quilómetro num padrão de xadrez irregular e orgânico, as salinas artesanais de Xwejni são um testemunho admirável da longa tradição da ilha de colher sal do mar.

 

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A história destas salinas remonta possivelmente ao tempo dos fenícios, que se sabe terem-se estabelecido na região por volta de 700 a.C. Estes primeiros colonos reconheceram a abundância de água salgada na zona e o clima favorável à evaporação do sal – Gozo tem uma média de mais de 300 dias de sol por ano. Com o passar do tempo, a habilidade na produção de sal foi transmitida de geração em geração e as salinas tornaram-se uma indústria vital para a economia da ilha. Maravilha da engenharia antiga, consistem numa série de tanques rasos, rectangulares, definidos por muretes feitos de pedra local e aproveitando as irregularidades do solo rochoso onde foram criadas. Estão ligadas por um sistema de canais por onde é encaminhada a água do mar, e à medida que esta água se evapora sob o sol mediterrânico, vai deixando para trás uma camada cristalina de sal. Este sal é cuidadosamente recolhido utilizando ferramentas tradicionais, como ancinhos e cestos de madeira, e é depois deixado a secar antes de ser preparado para venda ou consumo local.

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Por tradição, estas salinas foram exploradas ao longo dos tempos como labor familiar, com o conhecimento técnico a passar de geração em geração. No entanto, como em tantas outras actividades quase artesanais, o número de pessoas que a ela se dedicam tem vindo a diminuir nas últimas décadas. A produção de sal ocorre habitualmente de Maio a Setembro, mas no meu passeio de uma hora pelas imediações não vejo ninguém a trabalhar. A prova de que as salinas continuam em funcionamento resume-se aos painéis que proíbem o acesso a pessoas estranhas, em particular mergulhadores e banhistas, e às portas coloridas que marcam, na falésia do lado oposto da estrada, as entradas dos armazéns (escavados na rocha) de apoio às salinas.

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Com a última tarde da minha estadia em Gozo a chegar ao fim e a hora do autocarro para Għajnsielem ainda longe, sentei-me numa esplanada meio escondida de Marsalforn e aproveitei para jantar. Tal como tantas outras facetas da cultura maltesa, a gastronomia destas ilhas é uma mistura muito bem conseguida entre a Itália e o norte de África, com pitadas de Inglaterra, Grécia, e até mesmo Turquia. E é deliciosa, mais ainda quando apreciada ao crepúsculo, com um suave marulhar de água como som de fundo, numa atmosfera tépida e sem vento. Em Gozo, há uma sensação quase constante de serenidade que impregna o ar e nos puxa a saborear cada momento, cada local, com o vagar merecido – é a facilidade dos dias tranquilos que escorrem sem pressas.

 

(Post já publicado no blogue Viajar Porque Sim)

Livros de cabeceira (4) – série II

Ana CB, 17.08.24

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Longe vão os dias em que só lia um livro de cada vez, e de uma ponta à outra. Quando por acaso não tinha leituras novas, relia algum de que já não recordasse bem a história (porque não me agrada ler um livro de que já sei o final, salvo raras e honrosas excepções). Nessa altura tinha menos livros e mais tempo, o inverso do que possuo actualmente: os livros vão aumentando em número, e o tempo parece cada vez mais fugidio.

Para meu grande desgosto, tornei-me uma leitora errática. Tanto sou capaz de ler um livro em dois dias como arrastar uma leitura ao longo de meses, e aos solavancos. Horror dos horrores, há livros que leio até certo ponto e depois simplesmente desisto e abandono-os – alguns na esperança de mais tarde conseguir pegar-lhes, outros já a saber que não vale a pena insistir, não consigo digeri-los com um mínimo de prazer. E leitura que não me dá prazer, não vale a pena (só se for por razões profissionais). Há por aí muitos livros à espera que eu os descubra e goste deles.

Na minha mesa-de-cabeceira os livros demoram-se, e por várias razões. A principal é porque para ler um livro físico à noite preciso de ter a luz acesa, e o gesto de fechar o livro, pousá-lo e depois desligar o candeeiro tira-me daquela agradável sonolência em que as pálpebras pesam e o cérebro já está meio desligado. A outra é porque há livros que não são para ler de uma só vez.

É o caso de “Tal como és”, de Ryōkan, com tradução de Marta Morais a partir do japonês. Haiku é um dos meus géneros preferidos de poesia. Saborear estes pequenos poemas, frequentemente deliciosos, é relaxante e predispõe-me para uma noite tranquila. Veio substituir na minha mesa-de-cabeceira um outro, que muito aprecio, de poesia Tanka dos séculos IX-XI (uma forma de poesia essencialmente feminina, precursora do Haiku).

Um híbrido de poesia e conto é o livro de Aline Bei, “O peso do pássaro morto”. A escrita original desta autora brasileira é maravilhosa e tem a capacidade de evocar, com poucas palavras, imagens em que a dor é protagonista, sempre associada ao amor nas suas várias versões. Com uma sensibilidade tocante.

Writing down the bones”, de Natalie Goldberg, é uma inspiração para escrever melhor. E também o oposto de um livro chato e absolutista sobre o acto da escrita. Gosto de ler um ou dois dos seus capítulos leves e bem-humorados, sobretudo ao fim-de-semana de manhã, depois de acordar. Fico com vontade de desatar a escrever.

Quanto aos livros de Virginia Woolf e Olga Tokarczuk, o título é o mesmo, “Viagens”, mas o conteúdo muito diferente. Enquanto a escritora inglesa descreve, em cartas e no seu diário, partes do que foi vendo nas suas viagens pela Europa, entrelaçadas com considerações sobre ela própria, os outros e o mundo, Olga Tokarczuk conta pequenas histórias – ficcionadas ou não, frequentemente estranhas, intercaladas com pequenos apontamentos – sobre pessoas em viagem, ou simplesmente a deslocarem-se de um ponto para outro; personagens com motivações várias, em épocas várias, um caldeirão humano onde cabe tudo, e sem ordem aparente. Em comum entre as duas escritoras, o facto de as viagens conduzirem à reflexão.

Invisíveis na fotografia mas presentes no smartphone que a tirou, dois outros livros que leio actualmente em formato de ebook. A obra de grande fôlego de Simon Sebag Montefiore “O mundo - Uma história da humanidade”, que degusto em doses homeopáticas e me tem vindo a mostrar que afinal não sei nada de História. E o recente livro de Carmen Posadas, escrito a meias com o seu irmão Gervasio, cujo título revelador é “Hoje caviar, amanhã sardinhas”. Num tom divertido, os irmãos uruguaios desfiam as memórias da sua vida nos vários locais para onde o pai, um diplomata, ia sendo enviado.

Viagens ao vivo e a cores, viagens através dos livros, viagens interiores. De uma maneira ou outra, mesmo recostada na cama ou no sofá, acabo por estar sempre a viajar.

Blogue da semana

Ana CB, 14.07.24

A Inês não gosta de estar quieta. Seja por prazer ou por obrigação profissional, está sempre a pensar na próxima viagem – e ela viaja muito! Tantas viagens e a vontade de as partilhar só poderiam resultar num blogue cheios de histórias, de boas sugestões, e até de humor.

Já são 67 os países que a Inês visitou, e sobre a maioria deles tem sempre algo a dizer. Além de boas fotos para mostrar.

O blogue Sempre Entre Viagens é a minha sugestão para esta semana.