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Delito de Opinião

Gozo, o prazer de ter vagar

Ana CB, 30.08.24

São quase sete da tarde quando o autocarro me deixa em Sannat, num pequeno largo marcado ao centro por uma escultura em metal oxidado que representa três lavradores – uma das muitas esculturas que estão espalhadas pela ilha de Gozo, fruto de um concurso de arte pública lançado há uns anos pelo Ministério que governa a ilha. Mas não foi isto que me trouxe aqui. Meto pés a caminho do meu objectivo por uma estrada de terra batida. Do lado esquerdo, o vale de Hanżira e a vizinha vila de ix-Xewkija, a sua magnífica Basílica de São João Baptista bem destacada no meio do casario branco e ocre. Sannat fica num planalto 120 metros acima do mar, com vistas soberbas sobre grande parte da ilha, a norte, e sobre o Mediterrâneo a sul. É por este ponto cardeal que me oriento pelo trilho aberto no garrigue, que me leva ao meu destino final: a falésia de Ta’ Ċenċ.

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Cheguei mesmo na hora certa. O sol já desce rapidamente no horizonte, exactamente sobre o extremo da linha irregular que separa a água dos rochedos. Os raios de luz atravessam as nuvens trazidas pela brisa marinha do final de tarde, e o céu divide-se entre o azul brilhante e o dourado suave, que se se transforma aos poucos em laranja, rosa e púrpura. A sombra dos rochedos escurece o mar, que reflecte mais ao longe as cores mornas do pôr-do-sol. Foi este o lugar que escolhi para terminar o meu primeiro dia em Gozo, apreciando a tranquilidade do momento – e foi este o espírito dominante nos dias que passei na ilha.

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Entre as três ilhas habitadas do arquipélago de Malta, Gozo (ou Għawdex, em maltês) é a irmã do meio em tamanho, mas não em status. A ilha de Malta é aquela a que os visitantes por norma dedicam mais tempo: é a maior e mais famosa, rica em história, cultura e atracções, com uma capital vibrante e apelativa para o turismo. Comino é a estrela brilhante do arquipélago, o bilhete-postal que serve de chamariz para quem gosta de águas mornas e transparentes. Já Gozo acaba por ser sempre relegada para segundo plano e geralmente é apenas merecedora de um magro dia de visita, quando não totalmente ignorada. O que é – desculpem-me a franqueza – um erro tremendo, porque merece muito mais do que uma visita feita a correr.

 

Sucede com os lugares tal como sucede com as pessoas: mesmo que mais tarde venhamos a corrigir a nossa avaliação, as primeiras impressões têm muita importância. E a primeira impressão que tive de Gozo, quando o ferry se aproximava do porto de Mġarr, foi positiva. É certo que a encosta escarpada que rodeia o porto está cravejada de edifícios, alguns com nítido ar de hotel, e que a profusão de guindastes augura mais uns quantos a nascerem. Mas pelo menos não há arranha-céus, e as cores das casas mantêm-se entre o branco e os tons neutros ou terrosos, nada que ofenda particularmente a visão. O que salta mesmo à vista são as igrejas, várias, bem em evidência pelo contraste das suas formas caprichosas com a sobriedade poliédrica do casario. Na altura não fazia ideia, mas uma delas – a mais majestosa – iria ser o meu cenário de várias refeições nos dias seguintes.

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Nada tenho contra os hotéis, mas sempre que posso escolho alojamentos locais, e a minha estadia em Gozo não foi uma excepção. Em vez de optar por Victoria ou por uma zona de praia, decidi ficar perto de Mġarr, na pequena localidade de Għajnsielem (pronuncia-se mais ou menos como iain-siê-lem), que se traduz por “nascente tranquila”. E tranquilidade não faltou, nem no alojamento, nem nas redondezas. Apesar da proximidade do porto e de ter um amplo miradouro sobre Mġarr e as ilhas de Comino, Cominotto e Malta, o local está fora das rotas turísticas habituais da ilha. Sorte minha, tem tudo aquilo de que eu mais precisava: autocarros, para me deslocar por Gozo, e um sítio bom para tomar o pequeno-almoço ou petiscar.

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As associações musicais têm um papel único na cultura social maltesa. As bandas participam activamente na preparação e gestão das festas locais, e são um dos motivos de orgulho de cada vila ou aldeia. As suas instalações funcionam também como ponto de encontro para os habitantes e assumem um papel fulcral na comunicação e socialização a nível local. Għajnsielem não é excepção. A Għaqda Mużikali San Ġużepp (Associação Musical de São José) foi fundada em 1928 sob a égide do Instituto de São José, um orfanato, e continua em actividade até hoje. Além de ter um belíssimo salão de snooker profissional, o bar funciona como bistro e serve refeições ligeiras. Bem localizado, ao lado de uma simpática praceta ajardinada, foi na sua enorme esplanada que fiz boa parte das refeições durante a minha estadia, em modo de relaxamento total, por vezes com vista para uma nesga de mar no horizonte, outras com os olhos na grandiosa igreja-santuário de Għajnsielem, do lado oposto da estrada.

 

As evidências da fé

Għajnsielem é mais conhecida pelo evento que ali se realiza anualmente em Dezembro no campo de Ta’ Passi: a recriação ao vivo de um presépio e a sua aldeia, a que dão o nome de “Bethlehem f'Għajnsielem”. Numa área de 20.000 m2, cerca de 150 actores e alguns animais levam os visitantes a recuar no tempo até à Judeia de há 2.000 anos. Há moinhos e grutas, pastores e artesãos, e actividades condizentes com a época para miúdos e graúdos. Mas fora da quadra natalícia é apenas uma terrinha sossegada que vive à sombra da bela e imponente igreja-santuário neogótica. Dedicada a Nossa Senhora do Loreto, demorou mais de 50 anos a ser edificada, entre 1922 e finais da década de 70, e é um excelente exemplo de quão magnífica é a arquitectura religiosa mais recente das ilhas maltesas.

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Apenas a uma ruela de distância, na Pjazza Indipendenza, ainda se encontra orgulhosamente de pé a antiga igreja paroquial, também dedicada à mesma santa mas muito mais sóbria em aparência. Esta igreja mais antiga, construída no século XIX, sucedeu a uma capela erguida para celebrar uma aparição mariana ocorrida em data desconhecida a um pastor, de seu nome Anglu Grech, que levava regularmente as suas cabras e ovelhas a beberem água da fonte de Għajnsielem. A visão do pastor deu origem a uma estátua, depois colocada num nicho, à volta do qual os habitantes da localidade se reuniam diariamente para rezar o terço. Existem ainda outras duas igrejas e oito nichos com uma variedade de estátuas de santos (a título de curiosidade, dois deles são dedicados a Santo António, tal como uma das igrejas). Esta profusão de símbolos religiosos numa área tão reduzida não é exclusiva de Għajnsielem. Em toda a ilha de Gozo (tal como em Malta, na generalidade), há uma vertente que permanece dominante e tão destacada que é impossível de ignorar: o catolicismo.

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As ilhas maltesas têm uma longa história de fé cristã. Segundo a tradição, o apóstolo S. Paulo naufragou em Malta no ano 60 d.C., e este acontecimento é considerado um momento fundamental para a difusão do cristianismo na região. Outro momento fulcral ocorreu no século XVI, quando os Cavaleiros de S. João, também conhecidos como Cavaleiros Hospitalários, se estabeleceram nas ilhas. Deixaram um legado duradouro de magníficas igrejas, catedrais e fortificações, muitas das quais ainda hoje se mantêm de pé. A fé católica não tem sido apenas uma força religiosa, mas também cultural e social, marcando indelevelmente a identidade destas ilhas e do seu povo. Os festivais religiosos, as procissões e os rituais fazem parte integrante do modo de vida maltês.

 

A Basílica do Santuário da Virgem de Ta’ Pinu é outro exemplo sonante desta ligação religiosa. Isolado numa zona árida onde não se passa nada (a aldeia mais próxima fica a meio quilómetro de distância), a magnificência deste santuário destoa e ao mesmo tempo surpreende como uma gema brilhante engastada em metal pobre. É um edifício colossal, que me impressionou tanto pela imponência como pela beleza. Foi construído em inícios do século XX no estilo neo-românico, em pedra rosada e ocre, com um recorte complexo em vários volumes e níveis, e é encimado por uma cúpula. O campanário está separado, ao estilo italiano, destacando-se com os seus 60 metros de altura. O interior é uma mistura bem conseguida de elementos arquitectónicos clássicos com arabescos e pormenores bizantinos – espelho das várias influências que a cultura maltesa agrega. A penumbra e a serenidade da atmosfera convidam à reflexão. Ainda assim, há pouca gente a visitar a basílica, e todos são turistas como eu. Um painel à entrada pede decoro, respeito e silêncio. E silenciosa é a devoção dos fiéis, materializada nos inúmeros ex-votos que enchem as paredes da sacristia, agradecimentos mudos mas eloquentes pela concretização dos desejos de quem deposita grande fé na padroeira do local.

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Criado no lugar onde já existia uma capela de origens imprecisas (anterior ao século XVI), o santuário deve a sua popularidade a uma lenda local. Em 1883, uma camponesa da vizinha aldeia de Għarb disse ter ouvido, ao passar pela capela, uma voz que lhe pediu para entrar e recitar três ave-marias. À ocorrência de vários supostos milagres em anos seguintes atribuiu-se a graça de Nossa Senhora da Assunção, a quem a capela estava dedicada. Foi o bastante para começar a atrair peregrinos e ser oficializada como santuário mariano, com a consequente construção da basílica. A capela antiga foi incorporada no novo edifício, por trás do altar. Lá dentro mantém-se o quadro da Assunção de Nossa Senhora ao Céu, pintado em 1619 por Amadeo Perugino, de onde se diz que a voz falou a Karmni Grima – a aldeã que deu origem à lenda, e que se encontra ali sepultada. A fé da mais simples das pessoas pode não mover montanhas, mas não há dúvida de que tem criado muitos santuários.

 

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Desaparecida, mas não esquecida

Até 2017, a razão principal pela qual a maioria dos visitantes ia a Gozo era uma formação rochosa a que deram o nome de Janela Azul: um arco de calcário perto da baía de Dwejra, com 28 metros de altura, desenhado pela erosão do vento e do mar ao longo de 500 anos. Estrela de filmes, anúncios e do turismo, incluída numa área de conservação especial, sucumbiu à violência do mar e desabou completamente na manhã de 8 de Março daquele ano fatídico, após vários dias de tempestades. Dela ficaram a memória, muitas fotos, e o nome num restaurante. Perdida a atracção maior, o local passou a capitalizar outras actividades: os mergulhos no Blue Hole, uma espécie de piscina de águas azuis límpidas, entre rochas, com um arco natural submerso a fazer de “porta de entrada” para o mar aberto; e os passeios de barco a partir do Mar Interior, uma lagoa semicircular de águas pouco profundas rodeada de falésias rochosas.

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A antiga vocação piscatória do lugar é bem visível. No lado que não está ocupado pela escarpa, o Mar Interior é limitado por uma espécie de praia, uma faixa estreita de pedrinha arenosa, à volta da qual se acotovelam construções cúbicas exíguas de pedra maciça, sem janelas e com portas coloridas. Algumas têm toldos que avançam sobre plataformas cimentadas, e painéis solares nas açoteias. Rampas de betão entram pela água parada, onde flutuam várias pequenas embarcações simples, umas mais modernas, outras mais coloridas. Há pessoas a nadar, outras a apanhar sol, outras ainda apenas sentadas em cadeiras plásticas instaladas à porta dos casinhotos, observando o movimento na lagoa.

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Os pescadores converteram-se em guias turísticos e há um corrupio de barquitos que entram e saem da lagoa. A comunicação com o Mediterrâneo é feita através de um longo túnel, que fura o penhasco ao longo de mais de 80 metros. É um passeio cénico e tranquilo, agradável mesmo com o céu meio encoberto. A água desdobra-se em cores que vão do verde-esmeralda ao azul mais profundo. As escarpas abruptas, de rocha porosa manchada pelo tempo e pelos sedimentos, escondem enseadas e grutas por onde o barco ziguezagueia. Passamos da claridade à penumbra, depois saímos novamente para a luz, num vaivém que dura uns escassos 15 minutos mas parece ainda mais curto – e que, como não podia deixar de ser, passa pelo local onde em tempos esteve a Janela Azul, em homenagem devidamente assinalada pelo guia-condutor. A excêntrica formação natural pode ter sucumbido ao abraço do mar, mas a sua memória está bem viva, um testemunho de como a natureza é ao mesmo tempo grandiosa e frágil.

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O domínio da pedra

A agitação de Victoria é o contraponto à atmosfera serena do resto da ilha. A capital, a que os locais continuam a chamar Ir-Rabat, é o centro nevrálgico de Gozo. Tudo parece passar por ali. Eu própria, nas minhas deambulações de autocarro entre os vários sítios que fui visitar, acabei por ter de lá ir todos os dias, à falta de transporte directo de Għajnsielem para alguns desses lugares. Victoria divide-se em dois planos, separados pela avenida principal. A Triq ir-Repubblika é o coração comercial da cidade, onde as casas com as tradicionais varandas maltesas coabitam com lojas, bancos e teatros, e os carros se misturam com motas, carrinhas e mini comboios turísticos, numa cacofonia pouco habitual na ilha.

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Para norte cresce a colina onde foi erguida a Cidadela, o bastião fortificado que há 3500 anos protege Ir-Rabat, o seu subúrbio. Para sul da avenida, a Praça da Independência alberga a Banca Giuratale, sede do município, e é a porta de entrada para o dédalo de ruas pedonais sinuosas que formam a parte antiga da cidade. Nestas ruelas estreitas, as varandas quase se tocam, e por vezes nem o sol do meio-dia consegue iluminá-las. As casas são de pedra e têm portas em arco, varandas em ferro forjado ou de madeira, pintadas com cores alegres, e emblemas religiosos cravados nas paredes, feitos em cerâmica. Há becos com vasos de flores e trepadeiras, esquinas com estatuetas religiosas colocadas sobre pedestais altos, gatos que aproveitam uma sombra para dormir ou apenas estarem ali, naquela sua pose descontraída de quem está de bem com a vida.

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No centro da cidade velha fica a basílica dedicada a São Jorge, numa praça rodeada de esplanadas e lojas para turistas. Construída no último quarto do século XVII e totalmente revestida de mármore, é a igreja barroca mais exuberante da ilha, no que toca à decoração interior. A cúpula e as abóbadas estão pintadas com cenas religiosas e decoradas com frisos dourados, e o dossel com quatro colunas sobre o altar-mor é uma peça colossal em bronze e ouro. O contraste com outras igrejas que visitei é flagrante.

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Sugestivamente apelidada de “Coroa de Gozo”, há indícios de que a Cidadela de Victoria já fosse habitada há 7000 anos. Mas as robustas muralhas defensivas que hoje a definem foram construídas pelos Cavaleiros Hospitalários em finais do século XVI. A cota a que se encontra faz dela um miradouro fabuloso sobre praticamente toda a ilha. Passei várias horas a percorrer o interior das muralhas, onde está bem visível um extenso trabalho de restauração ainda em curso. A pedra é omnipresente, às vezes mais rugosa ou manchada, marcada pelo tempo, outras mais clara e suave, prova de uma renovação mais recente. É na Cidadela que estão a Catedral de Gozo e o Tribunal – os templos máximos da fé e da lei partilham o mesmo adro. Nesta espécie de caverna de Ali Babá a céu aberto há de tudo um pouco: museus vários, a rua de um bairro judeu medieval, um palácio seiscentista com a sua capela, a antiga prisão, o paiol da pólvora, canhões da bateria e um abrigo anti-bomba, silos e cisternas, as obrigatórias lojas para turistas, e pelo menos um restaurante: o Ta’ Rikardu, onde nem o dia quente me dissuadiu de provar a sopa de peixe preparada à maneira local.

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Tradição centenária

A maior parte das praias de Gozo ficam na costa norte, mas não são de todo o melhor que a ilha tem. A excepção é Ir-Ramla, onde a maravilhosa tepidez das águas mediterrânicas se une a um areal generoso, numa combinação ideal para umas horas em modo de lagarto ao sol. Curiosamente, não há quaisquer infra-estruturas hoteleiras nas imediações desta praia, o que provavelmente explica o fenómeno de ainda ser possível encontrar um lugar para estender a toalha com vários metros de areia desimpedida à volta.

Também no norte da ilha, e pese embora a sua praia esteja muitos furos abaixo de Ir-Ramla, a localidade de Marsalforn já adquiriu o estatuto de estância balnear. No entanto, não é essa a razão da minha visita. Umas centenas de metros mais à frente, junto à costa, espalhando-se ao longo de mais de um quilómetro num padrão de xadrez irregular e orgânico, as salinas artesanais de Xwejni são um testemunho admirável da longa tradição da ilha de colher sal do mar.

 

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A história destas salinas remonta possivelmente ao tempo dos fenícios, que se sabe terem-se estabelecido na região por volta de 700 a.C. Estes primeiros colonos reconheceram a abundância de água salgada na zona e o clima favorável à evaporação do sal – Gozo tem uma média de mais de 300 dias de sol por ano. Com o passar do tempo, a habilidade na produção de sal foi transmitida de geração em geração e as salinas tornaram-se uma indústria vital para a economia da ilha. Maravilha da engenharia antiga, consistem numa série de tanques rasos, rectangulares, definidos por muretes feitos de pedra local e aproveitando as irregularidades do solo rochoso onde foram criadas. Estão ligadas por um sistema de canais por onde é encaminhada a água do mar, e à medida que esta água se evapora sob o sol mediterrânico, vai deixando para trás uma camada cristalina de sal. Este sal é cuidadosamente recolhido utilizando ferramentas tradicionais, como ancinhos e cestos de madeira, e é depois deixado a secar antes de ser preparado para venda ou consumo local.

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Por tradição, estas salinas foram exploradas ao longo dos tempos como labor familiar, com o conhecimento técnico a passar de geração em geração. No entanto, como em tantas outras actividades quase artesanais, o número de pessoas que a ela se dedicam tem vindo a diminuir nas últimas décadas. A produção de sal ocorre habitualmente de Maio a Setembro, mas no meu passeio de uma hora pelas imediações não vejo ninguém a trabalhar. A prova de que as salinas continuam em funcionamento resume-se aos painéis que proíbem o acesso a pessoas estranhas, em particular mergulhadores e banhistas, e às portas coloridas que marcam, na falésia do lado oposto da estrada, as entradas dos armazéns (escavados na rocha) de apoio às salinas.

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Com a última tarde da minha estadia em Gozo a chegar ao fim e a hora do autocarro para Għajnsielem ainda longe, sentei-me numa esplanada meio escondida de Marsalforn e aproveitei para jantar. Tal como tantas outras facetas da cultura maltesa, a gastronomia destas ilhas é uma mistura muito bem conseguida entre a Itália e o norte de África, com pitadas de Inglaterra, Grécia, e até mesmo Turquia. E é deliciosa, mais ainda quando apreciada ao crepúsculo, com um suave marulhar de água como som de fundo, numa atmosfera tépida e sem vento. Em Gozo, há uma sensação quase constante de serenidade que impregna o ar e nos puxa a saborear cada momento, cada local, com o vagar merecido – é a facilidade dos dias tranquilos que escorrem sem pressas.

 

(Post já publicado no blogue Viajar Porque Sim)

Livros de cabeceira (4) – série II

Ana CB, 17.08.24

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Longe vão os dias em que só lia um livro de cada vez, e de uma ponta à outra. Quando por acaso não tinha leituras novas, relia algum de que já não recordasse bem a história (porque não me agrada ler um livro de que já sei o final, salvo raras e honrosas excepções). Nessa altura tinha menos livros e mais tempo, o inverso do que possuo actualmente: os livros vão aumentando em número, e o tempo parece cada vez mais fugidio.

Para meu grande desgosto, tornei-me uma leitora errática. Tanto sou capaz de ler um livro em dois dias como arrastar uma leitura ao longo de meses, e aos solavancos. Horror dos horrores, há livros que leio até certo ponto e depois simplesmente desisto e abandono-os – alguns na esperança de mais tarde conseguir pegar-lhes, outros já a saber que não vale a pena insistir, não consigo digeri-los com um mínimo de prazer. E leitura que não me dá prazer, não vale a pena (só se for por razões profissionais). Há por aí muitos livros à espera que eu os descubra e goste deles.

Na minha mesa-de-cabeceira os livros demoram-se, e por várias razões. A principal é porque para ler um livro físico à noite preciso de ter a luz acesa, e o gesto de fechar o livro, pousá-lo e depois desligar o candeeiro tira-me daquela agradável sonolência em que as pálpebras pesam e o cérebro já está meio desligado. A outra é porque há livros que não são para ler de uma só vez.

É o caso de “Tal como és”, de Ryōkan, com tradução de Marta Morais a partir do japonês. Haiku é um dos meus géneros preferidos de poesia. Saborear estes pequenos poemas, frequentemente deliciosos, é relaxante e predispõe-me para uma noite tranquila. Veio substituir na minha mesa-de-cabeceira um outro, que muito aprecio, de poesia Tanka dos séculos IX-XI (uma forma de poesia essencialmente feminina, precursora do Haiku).

Um híbrido de poesia e conto é o livro de Aline Bei, “O peso do pássaro morto”. A escrita original desta autora brasileira é maravilhosa e tem a capacidade de evocar, com poucas palavras, imagens em que a dor é protagonista, sempre associada ao amor nas suas várias versões. Com uma sensibilidade tocante.

Writing down the bones”, de Natalie Goldberg, é uma inspiração para escrever melhor. E também o oposto de um livro chato e absolutista sobre o acto da escrita. Gosto de ler um ou dois dos seus capítulos leves e bem-humorados, sobretudo ao fim-de-semana de manhã, depois de acordar. Fico com vontade de desatar a escrever.

Quanto aos livros de Virginia Woolf e Olga Tokarczuk, o título é o mesmo, “Viagens”, mas o conteúdo muito diferente. Enquanto a escritora inglesa descreve, em cartas e no seu diário, partes do que foi vendo nas suas viagens pela Europa, entrelaçadas com considerações sobre ela própria, os outros e o mundo, Olga Tokarczuk conta pequenas histórias – ficcionadas ou não, frequentemente estranhas, intercaladas com pequenos apontamentos – sobre pessoas em viagem, ou simplesmente a deslocarem-se de um ponto para outro; personagens com motivações várias, em épocas várias, um caldeirão humano onde cabe tudo, e sem ordem aparente. Em comum entre as duas escritoras, o facto de as viagens conduzirem à reflexão.

Invisíveis na fotografia mas presentes no smartphone que a tirou, dois outros livros que leio actualmente em formato de ebook. A obra de grande fôlego de Simon Sebag Montefiore “O mundo - Uma história da humanidade”, que degusto em doses homeopáticas e me tem vindo a mostrar que afinal não sei nada de História. E o recente livro de Carmen Posadas, escrito a meias com o seu irmão Gervasio, cujo título revelador é “Hoje caviar, amanhã sardinhas”. Num tom divertido, os irmãos uruguaios desfiam as memórias da sua vida nos vários locais para onde o pai, um diplomata, ia sendo enviado.

Viagens ao vivo e a cores, viagens através dos livros, viagens interiores. De uma maneira ou outra, mesmo recostada na cama ou no sofá, acabo por estar sempre a viajar.

Blogue da semana

Ana CB, 14.07.24

A Inês não gosta de estar quieta. Seja por prazer ou por obrigação profissional, está sempre a pensar na próxima viagem – e ela viaja muito! Tantas viagens e a vontade de as partilhar só poderiam resultar num blogue cheios de histórias, de boas sugestões, e até de humor.

Já são 67 os países que a Inês visitou, e sobre a maioria deles tem sempre algo a dizer. Além de boas fotos para mostrar.

O blogue Sempre Entre Viagens é a minha sugestão para esta semana.

Patagónia, terra de contrastes - parte 2

Ana CB, 08.07.24

Em linha recta, o hiperfamoso glaciar Perito Moreno dista apenas cerca de 60 km do Parque Torres del Paine, mas na prática há todo um mundo de montanhas e uma fronteira terrestre a separá-los. Situado no lado argentino dos Andes e inserido no Parque Nacional Los Glaciares, o Perito Moreno tem como cidade mais próxima El Calafate, 80 km a leste.

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Chegar a esta cidade desde Puerto Natales implica, de autocarro, mais uma viagem de quase seis horas para cobrir 350 km de estrada, com a obrigatória demora no posto de fronteira de Dorotea e mais tarde o desvio para uma curta paragem em Esperanza.

 

Uma cidade virada para o turismo

 

Entrando em El Calafate, senti mais uma vez o choque da diferença em relação ao ambiente em que tinha passado os dias anteriores. Muito colorida e europeizada, a sua rusticidade é apenas aparente e disfarça uma sofisticação de lugar claramente devotado ao turismo. E no entanto, gostei da cidade. El Calafate é extensa e substancialmente plana, com o movimento a concentrar-se ao longo e em torno da Avenida del Libertador – um trecho da Ruta 11, que atravessa a cidade de leste para oeste. É aqui que estão os melhores restaurantes, as grandes lojas de artesanato sofisticado, os operadores turísticos, o casino, o Mirador de la Ciudad – estrutura metálica de onde temos uma vista abrangente sobre El Calafate – e a Intendencia do Parque Nacional Los Glaciares: um centro interpretativo num edifício histórico, rodeado por um belo jardim com percursos explicativos sobre a fauna e flora do Parque, máquinas e equipamentos antigos utilizados pelos trabalhadores, e cenas esculpidas em homenagem a exploradores da região, como Charles Darwin e Francisco Moreno.

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A Avenida del Libertador tem um ambiente algo hippie chic, e reflecte bem os dois tipos de visitantes que parecem ser mais habituais na Patagónia: jovens mochileiros, que vêm à procura de aventura antes de serem engolidos pelo mundo do trabalho e das responsabilidades familiares; e viajantes de meia-idade, ou já para lá dela, cujo desafogo económico lhes permite atravessar uma parte do planeta para irem conhecer uma das regiões mais inóspitas do planeta. Embora fazendo parte deste segundo grupo, apreciei muito mais a atmosfera cool do Bar Borges & Alvarez (o meu apelido é só coincidência, mas confesso que o facto de se intitular “Librobar” me agradou sobremaneira) e do La Oveja Negra, do que do classicismo de restaurantes como o La Tablita. No capítulo das compras, e como localidade focada no turismo, o artesanato é de perder a cabeça, seja ele o mais genuíno, vendido em barraquinhas, ou o mais requintado, exibido em enormes estabelecimentos onde apetece comprar tudo. Fui salva pela falta de espaço na bagagem: uma mala de cabine e uma mochila para três semanas não deixam lugar para compras volumosas. Mas não consegui resistir a comprar um livro com um título sugestivo: “Patagonia a Sangre Fría”, de Gerardo Bartolomé, um livrinho de contos à la Edgar Allan Poe, entre o mistério e o terror. Uma boa escolha.

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O nosso alojamento também ficava nesta avenida, mas numa zona mais tranquila, rodeado de árvores e casas com jardins. O Hotel Glaciar é um chalé de madeira que parece saído dos Alpes, despretensioso mas confortável, com quartos virados para um corredor interior ao ar livre e uma sala de pequenos-almoços com tecto e mesas de madeira clara, toalhas aos quadrados vermelhos e brancos, e muitas janelas com vista para o exterior. Um dos meus maiores prazeres em viagem é ter a possibilidade de tomar o pequeno-almoço, com calma, num local agradável – parece-me sempre um bom prenúncio para o resto do dia.

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Colada à margem do Lago Argentino, a Reserva Natural Laguna Nimez é outra das boas surpresas de El Calafate. Criada em 1986 por determinação municipal, é uma zona pantanosa muito rica em biodiversidade, onde estão representados vários ambientes naturais da Patagónia. O trilho interpretativo de 3 km que percorre a Reserva levou-nos à volta das lagoas Nimez e Escondida onde, entre as 137 (!) espécies de aves já ali observadas (acima de 10% da avifauna argentina), os flamingos são incontestáveis vedetas, com os seus tons de rosa-salmão a destacarem-se no prateado imóvel da água. No percurso há observatórios de aves e miradouros sobre o Lago Argentino, sobrevoado pelos omnipresentes gansos-de-magalhães e por cisnes-de-pescoço-preto. Na tarde tépida do nosso passeio, o vento aplainava as ervas típicas da estepe e fazia dançar os arbustos floridos e os canaviais. Ao longe, para oeste, as montanhas andinas mostravam os seus chapéus de neve, em jeito de provocação, atazanando-nos o espírito pela antecipação do que iríamos ver no dia seguinte.

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O deslumbramento dos glaciares

 

O autocarro da Cal-Tur foi buscar-nos ao hotel por volta das 9 da manhã, mas demorámos mais de duas horas até finalmente termos um vislumbre do Perito Moreno: houve paragens para ir buscar outros turistas, e em miradouros estratégicos sobre o Lago Argentino e as montanhas que o rodeiam. A paisagem e as explicações da guia fizeram com que a viagem fosse menos monótona e parecesse mais curta.

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Os glaciares ocupam 10% da superfície do nosso planeta e contêm 90% da água potável disponível em todo o mundo. Os maiores estão na Antártida e na Gronelândia, mas o Campo de Gelo do Sul da Patagónia, com quase 17.000 km2, é a terceira maior extensão de gelo continental da Terra, e é nele que se insere o Perito Moreno. Com cerca de 250 quilómetros quadrados (uma área superior à da cidade de Buenos Aires), é um glaciar notável tanto pela vastidão como pela sua dinâmica única. A maior parte dos glaciares que existem no nosso planeta estão a regredir, mas o Perito Moreno é um dos poucos que mantém um equilíbrio notável: avança cerca de dois metros por dia, mas perde também diariamente uma quantidade de massa proporcional, o que mantém a sua estabilidade.

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Na encosta do Parque Nacional Los Glaciares com vista para o Perito Moreno foi criado um conjunto de passarelas com cinco percursos distintos (um deles acessível a pessoas com mobilidade reduzida) e vários miradouros, de onde podemos observar o glaciar de diferentes ângulos. Qualquer que seja a perspectiva de que o vemos, é um fenómeno geológico magnífico. Tem mais de quatro quilómetros de largura e ergue-se até 78 metros acima do nível das águas do Lago Argentino. Mais impressionante ainda, a massa invisível que fica debaixo de água pode chegar aos 700 metros de profundidade.

O que todos estes números não traduzem é o deslumbramento que senti perante este gigante gelado. Vê-lo em fotografia é fascinante, mas ao vivo é toda uma outra emoção. Sente-se o frio que trepa pela encosta, mesmo não havendo vento, e que faz arder o nariz e as faces. Ouvem-se os gemidos do gelo, que se dilata e contrai, e de vez em quando se despenha ruidosamente no lago, formando círculos leitosos na água parada, opaca, pintada em tons de jade e brilhante mesmo quando o céu ameaça chuva. O vermelho-vivo das flores da árvore de fogo chilena (Embothrium coccineum; “notro”, na linguagem local) destaca-se no fundo verde-escuro e azul da paisagem. Um caracará (Carcara plancus) posa para as fotografias, e depois decide abrir asas e partir para longe das atenções. O Perito Moreno faz parte de um ecossistema vivo, um habitat vital para diversas espécies de fauna e flora adaptadas às condições únicas do ambiente glacial; estar ali, sentir a magnitude daquela maravilha da natureza, foi uma experiência que transcendeu a mera contemplação visual e fez crescer ainda mais o meu respeito pelo planeta em que vivemos.

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Descemos ao lago para um passeio de barco nas águas onde flutuam pequenos blocos de gelo, alguns deles já translúcidos, prestes a derreter. A embarcação não se aproxima a menos de três ou quatro centenas de metros do glaciar, mas mesmo assim o efeito é avassalador. À nossa frente ergue-se uma muralha de gelo irregular e agreste, mais alta do que um edifício de 20 andares, larga a perder de vista, de um azul entre o turquesa profundo e o quase branco, cruzado por veios escuros. De repente, um grande estrondo e um murmúrio de admiração que se alastra pelos ocupantes do barco: uma torre de gelo desprendeu-se do glaciar mesmo à nossa frente – gelo que se formou há cerca de 400 ou 500 anos, um tempo muito superior ao de qualquer vida humana.

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Paraíso do trekking

 

Como cada vez gosto mais de caminhar, a minha viagem à Patagónia tinha obrigatoriamente de incluir El Chaltén – que se autodenomina “capital argentina do trekking”. É com base nesta vocação que a localidade tem crescido, pese embora a sua finalidade inicial tenha sido política. Na verdade, El Chaltén foi fundada em 1985 como parte de um esforço para estabelecer presença humana e reforçar a soberania argentina sobre a região da Patagónia. Mas a sua localização, na base das montanhas andinas Fitz Roy e Cerro Torre e muito perto do Lago Viedma, atraiu aventureiros de todos os pontos do globo, e tornou-se um destino popular para os amantes do montanhismo e do alpinismo. Integrada no Parque Nacional Los Glaciares, nota-se um foco significativo na preservação ambiental e na promoção do turismo sustentável. A localidade mantém uma atmosfera simples e acolhedora, embora ofereça uma variedade de serviços virados para o turismo, e é um ponto de partida estratégico para quem gosta de aventura e de actividades ao ar livre.

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Os 220 km de estrada que separam El Calafate de El Chaltén foram mais uma vez transpostos em autocarro. Três horas de viagem bem instalada no piso superior do veículo, à frente de uma janela panorâmica. Não que houvesse muito para ver: a paisagem entre as duas localidades resume-se a terra deserta, com uma ocasional sugestão de montanhas muito ao longe, e às extensões de água azul dos lagos. Quase no final da viagem, a atmosfera passou de soalheira a enevoada, e quando finalmente parámos no terminal rodoviário de El Chaltén o mau tempo tinha-se instalado, com chuva e vento forte. No quilómetro que tivemos de andar até ao alojamento, a impressão com que fiquei foi a de uma “cidade” com um desolador ar de acampamento pouco mais que provisório, semi-deserta, desenxabida e pouco acolhedora.

 

Com a minha sorte habitual, o tempo mudou passadas umas horas, e os dias seguintes encarregaram-se de também mudar a minha opinião. Por trás do aspecto incipiente das suas casas e ruas, El Chaltén revelou ter um ambiente jovem, simpático e hospitaleiro, onde fomos recebidas com sorrisos e respostas a todas as nossas perguntas. Cafés e restaurantes com ambiente intimista e comida excelente, conversas animadas – o empregado de mesa do “La Esquina”, onde tomámos várias refeições, até falava connosco em português do Brasil – e um interesse genuíno no nosso bem-estar, a par de alguma curiosidade sobre nós e o nosso país. Deu para perceber que não passam por ali muitos portugueses.

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Depois foram dois dias intensos de caminhadas, que tiveram tanto de cansativas quanto de memoráveis. Mesmo os trilhos mais curtos envolvem subidas contínuas durante vários quilómetros, e implicam algum esforço e várias paragens para descansar. Por vezes até tive vontade de desistir. Mas valeu bem a pena todo o “sacrifício”. Há qualquer coisa de mágico naquelas montanhas. De cada vez que olhava para o Fitz Roy – que em El Chaltén é bem visível de qualquer parte – dava por mim a sorrir. Percorrer aqueles trilhos que me mostravam várias perspectivas destes picos foi um privilégio que nunca vou esquecer.

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Dos quatro percursos que fizemos, o mais desafiante foi também o meu preferido, não por ser difícil (que o é bastante, uma ascensão de 350 metros ao longo de 3 km) mas pelo entorno. O trilho que sobe até à Laguna Capri passa pelo miradouro do rio de las Vueltas (aqui quase ia ficando sem gorro, tal era a violência do vento), de onde se avistam muitos quilómetros da Cordilheira Andina e do vale em que o rio vai serpenteando. Depois entramos numa maravilhosa zona de bosque onde predomina a faia-antárctica (Nothofagus antarctica; “ñirre”, em espanhol), e mais ou menos a meio entre o terceiro e o quarto quilómetro começamos a ver o contorno das montanhas por entre as árvores. Até que chegamos finalmente à Laguna Capri, um extenso tapete de água transparente que reflecte as cores do céu e da vegetação que o rodeia, com o Cerro Torre, o Fitz Roy e o glaciar Piedras Blancas lá ao fundo. É a recompensa pelo esforço da subida.

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Para aproveitar ainda mais aquele maravilhoso ambiente, prolongámos o passeio pela vereda que acompanha a margem do lago e depois inflecte até ao ponto a que dão o nome de Miradouro do Fitz Roy, num percurso circular que desemboca no trilho da Laguna de Los Tres e se une mais abaixo ao caminho que nos levou à lagoa.

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No extremo sul de El Chaltén, depois de passarmos uma ponte, fica o Centro de Visitantes do Parque Nacional, que marca também o início de outros trilhos. Os mais curtos levam-nos a dois miradouros com nomes de aves habituais nesta região: o Mirador de los Cóndores e o Mirador de las Águilas. O primeiro é curto mas tirou-me o fôlego, e de duas maneiras: pela subida acentuada, que me deixou os músculos das pernas a reclamar descanso (nesse dia já tinha caminhado 16 km), e por oferecer a melhor vista sobre El Chaltén – que, deste sítio, parece feita de casinhas do Monopólio. O segundo partilha um troço da subida do primeiro, mas depois torna-se misericordiosamente quase plano até chegarmos ao miradouro, um promontório rochoso com um panorama excepcional, que inclui o Lago Viedma e a extensa planície que o acompanha. O regresso, nesta área de vegetação rasteira que exibia os verdes e vermelhos de uma Primavera avançada e com o sol já a descer na direcção das montanhas, foi a parte que mais apreciei e fiz com asas nos pés, por ter sempre no horizonte o perfil do Fitz Roy e outros picos nevados dos Andes. El Chaltén tem uma atmosfera verdadeiramente especial.

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O apelo da natureza

 

No imaginário das minhas viagens sonhadas, a Patagónia era um misto de lugar desértico com paisagens arrebatadoras e pequenos povoados tranquilos varridos pelo vento. A realidade encarregou-se de me mostrar que, em grande parte do território que visitei (sobretudo no lado argentino), há mais aridez e monotonia do que eu imaginava, e os locais habitados são bastante mais movimentados e menos românticos do que estava à espera.

 

Ainda assim, as vastas extensões semi-selvagens, a sua biodiversidade e a imponência das montanhas e dos glaciares fazem da Patagónia uma região particularmente apelativa para quem procura conhecer lugares menos adulterados pelo Homem. Ao longo dos tempos, vários filósofos tentaram explicar esta atracção que a natureza exerce sobre nós, seja como fonte de autenticidade, utilidade ou inspiração espiritual. Para mim, no entanto, a única perspectiva com a qual consigo identificar-me é a do valor intrínseco da natureza, exterior e independente a qualquer potencial utilidade para o ser humano. Nós existimos porque fazemos parte dela, e arrogarmo-nos o direito de usar e abusar dela é pura estupidez.

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A parte final desta viagem implicou o regresso de autocarro a El Calafate, de onde apanhámos depois o avião para Buenos Aires. Para esta estadia de uma única noite escolhemos um alojamento mais modesto, numa rua tranquila perto do centro da cidade. À frente da casa estavam plantados alguns calafates que, a um mês de distância do Verão austral, já tinham substituído as suas típicas flores amarelo-vivo por bagas arroxeadas. O calafate (Berberis microphylla) é um arbusto espinhoso endémico da Patagónia, cujo fruto comestível é aproveitado desde a pré-história como alimento, pelo seu grande valor nutritivo, e também usado para fins medicinais. Sabe-se actualmente que tem uma das mais altas actividades químicas antioxidantes presentes em frutos comestíveis do planeta, sendo considerado um superalimento. As flores são amarelas, mas as bagas são de um azul quase negro, parecidas com os mirtilos. Esta foi a única oportunidade que tive de as ver, ainda verdes, mas já as tinha provado em forma de doce, por sinal delicioso.

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De tão popular que é, existem muitas lendas associadas ao calafate. Mas a mais promissora é a que diz que quem come este fruto, garante o seu regresso à Patagónia. Parece-me um bom presságio.

 

(Também publicado no blogue Viajar Porque Sim)

Patagónia, terra de contrastes - parte 1

Ana CB, 04.07.24

É longa a viagem até ao fim do mundo. Em linha recta seriam menos de 12 mil quilómetros, mas na vida real o percurso entre o nosso pequeno rectângulo europeu e o extremo sul do continente americano implica três voos e muitas, muitas horas. Quando – finalmente! – o avião que nos trazia de Buenos Aires reduziu a altitude para aterrar em Ushuaia, sobrevoando montanhas coroadas de neve e ilhas que mais pareciam borrões de tinta sobre água azul-chumbo, sentia-me ao mesmo tempo aliviada por chegar, expectante pelo que antevia, e assombrada com o que já estava a ver. Era o início de uma viagem pelo sul da Patagónia, e tinha decidido começá-la na cidade que se autodenomina “fim do mundo”.

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Onde a terra acaba

 

Ushuaia é cidade argentina e fica na Ilha Grande da Terra do Fogo, à beira do Canal Beagle, onde a fronteira com o Chile faz um ângulo abrupto de 90 graus para norte, prolongando-se em linha absolutamente recta até à costa setentrional da ilha. Este limite artificial, estabelecido pelo Tratado de 1881 entre os dois países vizinhos, isolou a Terra do Fogo argentina do resto do país: é impossível lá chegar por via rodoviária sem passar pelo Chile, e é por isso que grande parte dos visitantes da cidade chega e parte de avião. No nosso caso, aplicava-se apenas a primeira parte. A saída ia ser de autocarro, e este iria continuar a ser o nosso modo de locomoção durante o resto da viagem até à hora de regressar a Buenos Aires para depois voltar a casa.

 

Começar em Ushuaia um périplo de quase três semanas pelo sul da Patagónia revelou-se uma boa decisão. Cidade mestiça, cruzamento de aldeia alpina com localidade nórdica, temperada com pitadas de tropicalidade sul-americana, a sua atmosfera meio sonolenta foi ideal para me acostumar à temperatura (baixa, mesmo na Primavera), ao castelhano em que o “ll” soa a “g” ou “ch”, mas nunca a “lh”, ao câmbio de milhares de pesos traduzidos em poucos euros. Percebi que sermos cumprimentadas com um “Hola chicas!” é sinal seguro de simpatia, e que por aqueles lados as tradicionais empanadas foram elevadas à categoria de delícia de comer e chorar por mais. Passeámos com vagar pela avenida marginal e pelas ruas geometricamente desenhadas, onde o kitsch comercial predomina e harmonia arquitectónica é conceito desconhecido: cada edifício tem o seu estilo, muitos a penderem para o vanguardista desinspirado, cada casa parece ter sido propositadamente construída para contrastar com as vizinhas, e grande parte delas têm ar de pré-fabricadas. Visitámos o antigo Presídio, agora transformado em complexo museológico com entradas pagas a preço inflacionado para turistas, e subimos a escadaria-passadiço do Paseo del Centenario, o melhor miradouro sobre a cidade e a baía. Ambientei-me.

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Ushuaia significa também a oportunidade de ver pinguins no seu habitat natural, mas para isso há que fazer um passeio de barco no Canal Beagle até à Isla Martillo, a que informalmente chamam Pingüinera. É aqui que, nos meses do Verão austral, se instalam três espécies diferentes de pinguins com um único propósito: nidificar. Os mais abundantes são os pinguins-gentoo e os pinguins-de-magalhães, mas em anos recentes têm também aparecido pinguins-rei. A ilha está classificada como reserva natural, por isso nos passeios mais comuns, como o que fizemos, a embarcação apenas se aproxima da praia e vemos os pinguins à distância – suficiente para os observarmos em idas e vindas no seu habitual passo oscilante, mais engraçados ainda quando se enchem de pressa e aceleram, com as asas meio abertas em jeito de corcunda. Independentemente disso, qualquer passeio no Canal Beagle é um festim para os olhos, sobretudo se tiverem a sorte que tivemos: depois de um amanhecer cinzento, um dia de sol aberto que fazia brilhar a água e a neve espalhada nos cumes das montanhas.

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Guardámos para o final o Parque Nacional Tierra del Fuego, cuja entrada fica a cerca de 20 km de Ushuaia, com várias ligações diárias em minibus. Nos seus quase 700 km2, este parque conjuga ambientes de montanha, de floresta andino-patagónica e aquáticos, numa variedade de cenários cruzados por trilhos pedestres na sua maioria fáceis de percorrer. Foi aqui que passámos o nosso último dia na Terra do Fogo argentina, caminhando em volta da Baía Lapataia e depois bosque adentro, tendo como banda sonora o rugido suave das árvores e o toc-toc ocasional de algum pica-pau. Frequentemente, uma mancha branca ou castanha com riscas negras mexia-se entre a vegetação ou atravessava-se no nosso caminho: o ganso-de-magalhães é a ave mais abundante por estes lados, tão comum que a sua imagem está no logótipo do parque. Piquenicámos com vista para a Laguna Verde na companhia de um falconídeo guloso, ao longe o fumo dos grelhadores do parque de campismo subia até se juntar à neblina ligeira que teimava em soltar-se das encostas. E foi a descansar à beira do Lago Acigami, água-espelho entre um corredor de montanhas, com o Cerro Cóndor ali ao lado, indiferente ao facto de ter uma fronteira a dividi-lo, que nos despedimos das terras argentinas do fim do mundo.

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Terra de contrastes

 

A Patagónia, região que povoa abstractamente os sonhos de tanta gente, é uma área na América do Sul com cerca de 11 vezes o tamanho de Portugal, convencionalmente limitada a norte por Puerto Montt e o lago Todos Los Santos, no Chile, e pelos rios Colorado e Barrancas, na Argentina, estendendo-se até ao arquipélago da Terra do Fogo, no extremo sul do continente americano. Parte da Cordilheira dos Andes rasga-a de norte a sul, fazendo simultaneamente a divisão entre os dois países, com a Argentina a ocupar a maior fatia do território e só perdendo para o Chile mesmo quase na extremidade meridional, onde apenas conseguiu reclamar para si a ponta leste da Terra do Fogo. Esta separação geográfica resulta num contraste muito nítido no relevo da região patagónica em cada um dos países: o lado chileno é quase completamente composto por ilhas, muito recortadas e com relevo acidentado, tem vegetação abundante e alberga a maior parte do Campo de Gelo do Sul da Patagónia, a terceira maior área de gelo continental no nosso planeta; na sua parte argentina, o território é árido e plano, só variando na faixa junto aos Andes, onde as montanhas e os lagos glaciais modificam a paisagem.

Às seis horas de uma manhã fria, um minibus levou-nos até Rio Grande, 200 quilómetros feitos em quase três horas e meia através de nenhures, com apenas uma breve paragem em Tolhuin, a única localidade que atravessámos durante o percurso. No terminal rodoviário de Rio Grande houve que tratar das formalidades para mais tarde cruzar a fronteira sem sobressaltos: no Chile não é permitido entrar por via terrestre com nenhum tipo de comida que seja perecível a curto prazo. As sete horas e meia seguintes foram passadas num autocarro em nada diferente dos que nos levam pelas estradas portuguesas em trajectos bem menos longos. Não há ligação terrestre contínua, por isso a passagem do Estreito de Magalhães é feita num ferry, e a espera de vez para entrar na embarcação consumiu mais de duas horas. O destino? Punta Arenas, a capital da região mais meridional do Chile.

 

O contraste entre Ushuaia e Punta Arenas é flagrante, e têm apenas um pormenor em comum: ambas ficam junto ao mar. Mas enquanto o Canal Beagle é sereno e rodeado de montanhas, o Estreito de Magalhães é um mar amplo e sem margem oposta à vista, como os oceanos que une. Fundada em meados do século XIX para consolidar a presença chilena no Estreito – que na altura era a única ligação marítima entre os oceanos Atlântico e Pacífico e, portanto, uma via de grande importância para o comércio – Punta Arenas mostra, no seu centro histórico, a monumentalidade clássica da época. Passeando entre os edifícios de pedra decorados com arcos, volutas, motivos florais e ferros forjados, nas avenidas largas e arborizadas, ou no cemitério, onde o kitsch e os jazigos de mármore ornamentado coexistem pacificamente, senti-me como se estivesse numa qualquer localidade europeia, em vez de numa cidade isolada nos confins do continente americano, mais perto da Antártida do que de Santiago do Chile. Bons restaurantes e o melhor alojamento de toda a viagem – gerido com grande simpatia pelo Arturo, um professor apaixonado por Portugal que escolhia Mariza e Cesária Évora como música de fundo ao pequeno-almoço – também influenciaram a decisão de ficar em Punta Arenas mais um dia do que o previsto.

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O arco-íris que nos saudou na tarde da chegada à cidade foi anúncio de bom tempo. Ainda assim, o vento não deu tréguas na viagem de barco que nos levou no dia seguinte à Isla Magdalena que, com a sua irmã menor de nome Marta, forma o Monumento Nacional Los Pinguinos. A ilha é protegida por ser o local no Chile mais importante para a nidificação dos pinguins-de-magalhães, e nela chegam a congregar-se mais de 200 mil indivíduos desta espécie. O desembarque é permitido nesta ilha, onde fizemos uma caminhada de cerca de uma hora com passagem pelo farol construído em inícios do século XX. O percurso está marcado por estacas e cordões, por isso conseguimos ver de perto os pinguins e as tocas em que fazem os ninhos. Como é óbvio, qualquer interacção com os animais é estritamente proibida.

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Punta Arenas não foi o primeiro assentamento nesta região inóspita. Instruídos pelo presidente Manuel Bulnes para tomarem posse do Estreito de Magalhães, os primeiros colonos chilenos instalaram-se 52 km mais a sul e ergueram o Fuerte Bulnes em 1843. No entanto, as terríveis condições climatéricas do lugar levaram a que os seus habitantes resistissem apenas durante seis anos, após os quais decidiram abandonar o povoado e mudar para o local onde hoje se encontra a cidade. Para celebrar o centenário da criação dessa colónia, o forte foi reconstruído e classificado como sítio histórico-museológico, estando actualmente incluído no Parque del Estrecho. Além do Fuerte Bulnes, onde estão recriadas algumas construções que faziam parte do assentamento, a excursão guiada que nos levou nesta visita incluiu uma caminhada pelos dois percursos pedestres do parque, que são de baixa dificuldade e cheios de beleza. Um atravessa o Bosque del Viento, rico em flora endémica e árvores fascinantes. O outro percorre parte da península junto à costa, com vistas encantadoras sobre o Estreito de Magalhães e as ilhas e montanhas em volta.

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Lagos e montanhas

 

A Ruta 9 liga Punta Arenas a Puerto Natales, as duas principais cidades do sul da Patagónia chilena. Nesta extensa fita de asfalto, rodeada de estepe acastanhada, deserta e só ocasionalmente interrompida por algum lago desinteressante, as curvas são tão largas que se tornam imperceptíveis, e a estrada assemelha-se a uma recta sem fim. Nestes percursos de autocarro pelo sul da Patagónia senti-me como se estivesse no faroeste norte-americano. Horas e mais horas de paisagem monótona, onde até os guanacos são raros e mal se adivinham ao longe, silhuetas escuras sob o brilho inclemente do sol. Felizmente, a viagem até Puerto Natales foi bem mais curta e menos cansativa do que a anterior: apenas três horas e meia.

 

A primeira impressão que tive da cidade não foi das melhores, e não se modificou grandemente nos dias seguintes. Aliás, e pese embora tenha mais de 20 mil habitantes, chamar-lhe cidade é quase um eufemismo. Puerto Natales tem ar de aldeia – uma aldeia grande, feita à pressa e largada antes de estar pronta. As ruas são linhas rectas, sobrevoadas por centenas de fios emaranhados entre postes e limitadas por casas baixas, com telhados achatados e na sua maioria de aspecto meio provisório. Vêem-se poucas pessoas, árvores ainda menos, e os carros são inúmeros mas estão, misteriosamente, quase todos parados. À beira do golfo Almirante Montt e com os Andes como cenário, a zona da marginal poderia ter um ambiente menos mortiço, mas não é o caso. Há mais pedra e cimento do que areia, os edifícios novos parecem algo deslocados do entorno, as esculturas espalhadas pela avenida não são particularmente atractivas (com excepção da “Amores de Viento”, que se tornou num dos ex libris da cidade) e nem a água se mexe. Mesmo com sol, tudo parece congelado no tempo. Deste marasmo salvam-se algumas excepções, como o edifício do Espaço Cultural Nataris, na praça principal da cidade, que já foi Câmara Municipal e está desde há alguns anos convertido em centro de exposições e cultura.

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Puerto Natales vive actualmente muito do facto de ser a porta de entrada para o Parque Nacional Torres del Paine – que, ainda assim, fica a mais de 100 km de distância. Os autocarros diários que fazem a ligação com o Parque vão cheios de mochileiros carregados com tendas, sacos-cama e outros apetrechos necessários para passarem vários dias nas montanhas a percorrerem os circuitos W (71 km em 5 dias) ou O (120 km, 8 dias). A nossa ideia inicial tinha sido visitar o Parque durante dois dias, mas os constrangimentos provocados por uma greve de trabalhadores (alguns trilhos e estradas estavam encerrados) e o preço exorbitante do catamarã que liga as margens leste e oeste do Lago Pehoé fizeram-nos mudar de ideias. Decidimos reduzir as nossas ambições a um único dia e ficarmos pela área da Estância Pudeto, para percorrer o trilho que passa pela cascata do Salto Grande e segue até ao Mirador Cuernos. Meio dia é suficiente para esta curta visita, mas vale a pena fazer o percurso com calma e piquenicar à beira do Lago Nordenskjold, que tem o nome do geólogo e explorador sueco que o descobriu em inícios do séc. XX. O local é de uma beleza natural mesmerizante, sobretudo pela cor turquesa das águas do lago, mais brilhante ainda em dia de muito sol. Do Mirador Cuernos avistam-se o Cerro Paine Grande e os Cuernos del Paine, duas montanhas icónicas do Parque – e este ficou, para mim, como um dos lugares mais memoráveis de toda a viagem.

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(Também publicado no blogue Viajar Porque Sim)

26 grandes e pequenas razões para conhecer Portugal

Ana CB, 10.06.24

Gosto de Portugal desde que me lembro de ser gente. Comecei a viajar pelo país quando ainda era miúda, com a minha família, e tenho recordações vívidas de vários lugares onde íamos passar férias ou simplesmente de visita: a Praça da Fruta nas Caldas da Rainha; a praia da Foz do Arelho; o Portugal dos Pequenitos; Albufeira quando as praias tinham pouca gente e os carros ainda passavam na Rua 5 de Outubro; Sines antes de a terem estragado; as rectas do Alentejo, onde o meu pai cometia a “loucura” de acelerar até aos 100 km por hora; os passeios em Lisboa, a cidade onde nasci e vivi a maior parte da minha vida.

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À medida que os anos foram passando, continuei a viajar em Portugal. E quanto mais conheço este nosso pequeno país, mais ele parece crescer. Há sempre um recanto que ainda não tinha descoberto, um museu que abriu há pouco tempo, uma aldeia reconstruída, uma praia renovada, um parque com alguma novidade. Esta capacidade que Portugal tem de se reinventar é um dos seus maiores atributos, a par da enorme diversidade paisagística e cultural.

 

Numa altura em que o mundo parece ter entrado em ebulição constante, com as guerras e o terror a espalharem-se por quase todos os continentes como erva daninha, viver em Portugal é uma sorte. Sorte porque os nossos conflitos sociais são sempre brandos quando comparados com os dos outros, sorte porque somos um país pequeno que não ameaça ninguém, nem ninguém cobiça, sorte porque apesar de estar longe da perfeição, o nosso país ganha em comparação com muitos outros. Estão à vontade para discordar, mas esta é a minha opinião.

 

Hoje, Dia de Portugal, parece-me ser uma boa altura para “contar as nossas bênçãos” e enumerar todas as boas razões por que vale tanto a pena viver aqui e, sobretudo, conhecer melhor o nosso país.

 

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Somos o Estado-nação mais antigo da Europa. As nossas fronteiras foram definidas em 1297 pelo tratado de Alcanizes e mantêm-se inalteradas desde essa altura (à parte aquela velha querela sobre Olivença e arredores que todos conhecemos). Talvez por isso as nossas regiões, tão diferentes umas das outras, consigam coexistir pacificamente (com um ou outro bairrismo que até nos torna mais divertidos) há tanto tempo.

 

As ilhas portuguesas são verdadeiros tesouros. Os Açores são nove jóias, todas diferentes umas das outras e felizmente ainda não demasiado lapidadas pelo turismo, razão pela qual receberam recentemente o certificado de destino sustentável atribuído pelo Global Sustainable Tourism Council (GSTC). Quanto às ilhas do arquipélago da Madeira, são como que uma espécie de paraíso tropical português. As Desertas e as Selvagens são áreas protegidas e de acesso restrito. Madeira e Porto Santo são mecas do turismo nacional e internacional, mas nem isso nos rouba o prazer que é visitá-las. E há ainda as Berlengas, as ilhas da Ria Formosa, a alentejana ilha do Pessegueiro e muitas outras, atlânticas ou fluviais, ilhéus, mouchões e ínsuas, cada um destes isolados pedaços de terra ou rocha com a sua própria mística e as suas próprias histórias.

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Em Portugal (continente e ilhas) estão classificados 24 parques naturais e 1 parque nacional. Juntando-lhes várias reservas naturais, zonas de paisagem protegida, monumentos naturais e parques marinhos, o que não nos falta são lugares onde podemos usufruir o que há de melhor na natureza em estado ainda razoavelmente bruto.

 

Há no nosso país vestígios pré-históricos importantíssimos. Desde os achados relacionados com dinossauros na Lourinhã e na Serra de Aire aos inúmeros monumentos megalíticos com milhares de anos que existem em todo o país, passando pelas gravuras rupestres do Escoural e do Côa, e pelo esqueleto com 24.500 anos do Menino de Lapedo, em Portugal têm sido encontradas inúmeras e significativas evidências arqueológicas que contribuíram para um melhor conhecimento da vida na Terra em vários períodos da Pré-História.

Cromeleque dos Almendres, Alentejo.JPG

 

Temos inscritos na UNESCO 17 lugares como Património Mundial e 10 elementos como Património Cultural Imaterial da Humanidade. Podem consultar as listas aqui e aqui.

 

A Universidade de Coimbra é uma das mais antigas do mundo ainda em funcionamento. Foi criada por D. Dinis em 1290, com a sua localização a alternar entre Lisboa e Coimbra até 1537, ano em que se fixou definitivamente na cidade que lhe dá o nome. A Biblioteca Joanina, que data do século XVIII, é uma das bibliotecas europeias mais bonitas e originais.

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A língua portuguesa é riquíssima e falada por 265 milhões de pessoas. Celebra-se a 5 de Maio, desde 2019, o Dia Mundial da Língua Portuguesa. Há falantes de português espalhados pelos cinco continentes, e a diversidade de sotaques e vocabulário é enorme, mesmo dentro do pequeno rectângulo formado por Portugal Continental.

 

A Livraria Bertrand que fica no Chiado, em Lisboa, abriu as portas em 1732. Está registada no Guinness World Records como sendo a livraria mais antiga do mundo ainda em funcionamento. Situada num edifício forrado a azulejo na esquina da Rua Garrett com a Rua Anchieta, cada uma das suas sete salas com tectos abobadados tem o nome de um escritor português. A sala Aquilino Ribeiro, que é a sala de entrada, ainda mantém estantes antigas em madeira maciça.

 

Há cada vez mais investimento para renovar e melhorar as nossas cidades e vilas. Nota-se um esforço enorme em todo o país para tornar mais agradáveis os grandes aglomerados populacionais. É verdade que este esforço é dirigido ao aumento do turismo em Portugal, mas também é verdade que nalguns aspectos todos nós, habitantes e visitantes, acabamos por beneficiar disso, sobretudo no que toca ao património cultural e ao embelezamento dos espaços públicos. É claro que há também o reverso da medalha (aumento do ruído em certas zonas, subida dos preços da habitação e de certos bens, descaracterização), mas mesmo assim ainda estamos longe dos exageros que se vêem por esse mundo fora. Até ver…

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A calçada portuguesa é uma expressão artística genuinamente nossa. Herança histórica da cultura e da tecnologia de construção dos romanos, fomos nós, os portugueses, que lhe demos vida e características especiais e a espalhámos pelo mundo. Onde quer que encontremos pavimentos calcetados com paralelepípedos de pedra branca e negra formando desenhos, podemos ter a certeza de que a inspiração e a ideia partiram daqui. Apesar de associarmos quase sempre a cor preta da pedra ao basalto, a verdade é que na calçada portuguesa são habitualmente utilizados o calcário branco e o negro. O basalto apenas é usado nas ilhas, onde existe em abundância e se torna mais económico, pois é um material muito mais duro e difícil de trabalhar.

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O Estilo Manuelino tem características muito próprias que o tornam distinto das outras correntes góticas. Particularmente notável no campo decorativo, tem uma preferência nítida pelas ornamentações de inspiração marítima e vegetal, exóticas e em quantidade abundante, influência indubitável das civilizações com que os nossos navegadores contactavam. Está também sempre presente a simbologia régia, importante para que ninguém esquecesse quem tinha sido o promotor da obra arquitectónica admirada.

 

Há em Portugal 241 castelos (se a Wikipedia estiver correcta e eu não me tiver enganado na contagem). A maioria deles data da Idade Média, sobretudo dos séculos da fundação do país e subsequente expansão até à consolidação das nossas fronteiras. Alguns são sobejamente conhecidos e visitados, outros estão praticamente em ruínas, mas todos eles são lugares cheios de interesse, ricos em história e em lendas, e parte importante do nosso património cultural.

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Ficam no nosso país os pontos mais ocidentais da Europa. O Cabo da Roca, perto da vila de Sintra, é o ponto mais a oeste no continente europeu, visitado todos os anos por milhares e milhares de pessoas, tanto estrangeiros como nacionais. Quanto ao ponto mais ocidental da Europa, o ilhéu de Monchique, é uma simples rocha com 30 metros de altura ao largo da Fajã Grande, na nossa maravilhosa ilha das Flores.

 

Portugal tem uma enorme diversidade de pontes, a maioria delas belíssimas. Há várias de origem romana, que encontramos como ex libris de cidades ou vilas, ou então em lugares recônditos, quase escondidas. Outras, concebidas em épocas diversas da nossa História, evoluíram com o passar do tempo, modificando-se sucessivamente para se adaptarem às necessidades de utilização. E muitas são verdadeiros prodígios da engenharia, ícones de metal ou betão que identificamos facilmente com um simples olhar e se impõem como elementos dominantes na paisagem.

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A ponte internacional mais pequena do mundo liga Portugal a Espanha. TTem 6 metros de comprimento e 1,95 metros de largura e está construída sobre a ribeira de Abrilongo. Partilhada entre o nosso Alentejo e a Extremadura espanhola, une as localidades de Marco/El Marco, que na realidade são uma única aldeia onde se fala português. Durante muitos anos não foi mais do que uma rudimentar ponte pedonal em chapa metálica com um corrimão, que por vezes era arrastada pela corrente da ribeira se ocorriam chuvas mais abundantes. Há alguns anos foi construída uma nova ponte com suporte metálico e tabuleiro e protecções laterais de madeira.

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Fica na aldeia da Carrasqueira, junto ao rio Sado, o maior cais palafítico da Europa. Começou a ser construído nos anos 50 do século passado pelos pescadores que queriam aceder às suas embarcações durante a maré vazia, quando as margens do rio estão lamacentas e pantanosas. É uma obra-prima da arquitectura popular, uma rede irregular de passadiços feitos com tábuas pregadas sobre estacas de madeira que se tem mantido relativamente inalterada ao longo das décadas. De aspecto enganadoramente frágil, estende-se ao longo de algumas centenas de metros pelo estuário do rio adentro e abriga os pequenos barcos de pesca coloridos dos cada vez menos pescadores que ainda se mantêm activos naquela zona.

Cais palafítico da Carrasqueira, Setúbal.JPG

 

No nosso país há milhares de aldeias, na sua maioria riquíssimas em história, tradição, gastronomia, cultura e valor artístico. Algumas são famosas e recebem inúmeros visitantes todos os anos; outras, apesar de praticamente desconhecidas, são verdadeiras jóias com um património antiquíssimo para conhecer, tradições que perduram desde há séculos, histórias que merecem ser contadas e ouvidas. A desertificação galopante de grande parte das nossas aldeias tem vindo mais recentemente a ser contrariada pela necessidade crescente de regressar às origens e ao respeito pela natureza (e também pelo seu interesse turístico), o que está a provocar o ressurgimento progressivo de algumas delas.

 

Portugal é um país de mar. Temos mais de 940 km de linha de costa em Portugal Continental e quase outro tanto nas ilhas, extensas faixas de areia alternando com falésias rochosas de onde temos vistas amplas sobre o Atlântico. O mar é a nossa vocação: trouxe-nos glória no passado, é uma ânsia no presente, e quem sabe se não será ele o nosso futuro. E é o mar que nos dá as ondas célebres que fazem do nosso país uma das mecas do surf mundial.

Praia da Ursa, Sintra.JPG

 

As nossas praias são excelentes. No continente são de areia fininha e clara, com águas frescas na costa oeste e mais amenas no Algarve. Nas ilhas há de tudo um pouco. Quanto às praias fluviais, crescem de ano para ano em quantidade e qualidade. E todas elas nos oferecem paisagens que enchem os olhos e o coração.

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Em Portugal Continental temos quase 3 mil horas de sol por ano e o nosso clima é predominantemente temperado, o que nos torna um país a que toda a gente se adapta com facilidade, seja em férias ou para viver. Se pensarmos que a maioria dos países europeus, por exemplo, não chega a ter 2 mil horas de sol por ano e tem temperaturas médias bem abaixo das nossas… não é difícil perceber as nossas vantagens.

 

Portugal é um país líder no recurso às energias renováveis. Entre 31 de Outubro e 6 de Novembro de 2023 batemos mais uma vez o nosso recorde do número de horas/dias em que a produção em termos de energias renováveis foi suficiente para suprir o consumo: 149 horas (mais de seis dias consecutivos). Foram produzidos 1102 GWh, mais do que o consumo nacional durante o mesmo período (840 GWh). Em 2022, a contribuição das fontes de energia renovável no consumo final de energia (incluindo consumos não energéticos) foi de 32%. E na Europa, somos o sétimo país que mais consome energia vinda de recursos renováveis.

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O calçado português é dos melhores do mundo. Conhecido desde sempre pela qualidade dos seus produtos, este sector tem vindo a evoluir exponencialmente desde os anos 90, aliando as novas tecnologias à criatividade e à flexibilidade logística e produtiva. Com a aposta nos produtos personalizados e de grande valor acrescentado, as exportações cresceram durante oito anos consecutivos e o calçado português passou a ser o segundo mais caro a nível mundial.

 

A cortiça é um dos nossos produtos naturais mais característicos. Temos em Portugal a maior extensão de sobreiros do mundo (33% da área mundial), pelo que não é de admirar sermos os maiores produtores e exportadores de cortiça – que além de tudo o mais é um produto totalmente reaproveitável e extraído manualmente sem danificar a árvore. O maior, mais antigo e mais produtivo sobreiro que existe no mundo foi plantado no ano de 1783 em Águas de Moura (Alentejo) e deram-lhe o nome de Assobiador. Foi eleito a mais bela árvore da Europa em 2018 no concurso “Tree of the Year”.

 

Há três oliveiras portuguesas entre as árvores mais velhas do mundo. A oliveira do Mouchão, em Mouriscas (Abrantes) tem a provecta idade estimada de 3350 anos. Em Santa Iria de Azóia, perto de Lisboa, sobrevive e ainda dá azeitona a oliveira a que chamam Portugal e se calcula ter cerca de 2850 anos. A mais jovem das três está em Monsaraz e terá à volta de 2450 anos.

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Em Portugal come-se maravilhosamente. A gastronomia tradicional portuguesa é rica e variada, usamos ingredientes que pouco ou nada são usados noutros países, tudo nos serve para fazer um prato delicioso. Temos vários tipos de sopas, cozinhamos a carne e o peixe de todas as maneiras e feitios, e temos dezenas de variedades diferentes de pão. Ninguém prepara o bacalhau como nós, nem com tanta imaginação. Adoramos inventar petiscos, e até a nossa comida de rua e o fast food são acima da média. Preferimos o azeite às outras gorduras e há séculos que sabemos usar bem os condimentos. E haverá algum outro país que tenha tanta diversidade de doces como nós? O café é praticamente uma instituição em Portugal; qualquer rua tem pelo menos uma pastelaria ou tasca onde se pode matar a fome ou a sede. E como se tudo isto não bastasse, ainda temos um sem-número de restaurantes de fusão, gourmet, vegetarianos ou com comidas típicas dos quatro cantos do mundo.

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Os vinhos portugueses são únicos e originais. Já na época da ocupação romana se exportavam vinhos produzidos no nosso território, o que quer dizer que produzimos bons vinhos desde há mais de dois mil anos. Um estudo de 2013 identificou 248 variedades de castas vinícolas indígenas de Portugal, consideradas pelos maiores especialistas como um “tesouro”. Isto faz com que os nossos vinhos tenham uma originalidade e uma variedade inigualáveis, a par com uma enorme qualidade – mesmo quando o seu preço não é elevado – razão pela qual o nosso país é uma referência entre os produtores vinícolas a nível mundial e as suas exportações de vinho têm vindo a crescer consistentemente.

 

Poderia facilmente continuar aqui a enumerar razões pelas quais Portugal merece ser conhecido, visitado e apreciado, porque neste caso elas também são como as cerejas e vêm umas atrás das outras. Só que este post arriscar-se-ia assim a ser interminável, e no fundo a minha missão passa simplesmente por vos incentivar a todos a continuarem a descobrir Portugal. Aceitam o desafio?

 

(Adaptado de um post no blogue Viajar Porque Sim)

Dias de fé em Ponta Delgada

Ana CB, 08.05.24

Quase nove da noite de uma sexta-feira de Maio em Ponta Delgada. Ao lusco-fusco do dia que chega ao fim, as pessoas que se deslocam pelas ruas da cidade confluem todas para um mesmo local: o Campo de São Francisco. No losango irregular da praça revestida de calçada à portuguesa, onde o basalto negro é mais abundante do que o calcário branco, aglomera-se uma multidão irrequieta e expectante, feita de gente de todas as idades, tamanhos, cores e sotaques. Não é Natal, mas os amigos e conhecidos que se cruzam desejam-se mutuamente as “Boas Festas”. Às 21 horas em ponto, solta-se das gargantas um “aaaaah!” colectivo. Acenderam-se as luzes do Santuário do Senhor Santo Cristo dos Milagres, e o efeito é avassalador. Milhares de lâmpadas coloridas formam volutas, flores, cruzes e outros objectos, num bordado luminoso que quase parece filigrana. Para os novatos neste espectáculo, como eu, a surpresa é grande. Os olhos arregalam-se, empunham-se telemóveis e câmaras fotográficas, tanta beleza tem de ser registada. É o primeiro grande momento das festas em honra do Senhor do Santo Cristo dos Milagres.

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Celebra-se sempre na quinta semana depois da Páscoa e é a maior festa religiosa dos Açores, congregando muitos milhares de devotos na cidade de Ponta Delgada – não só habitantes de São Miguel e das outras ilhas do arquipélago, como também inúmeros emigrantes na América do Norte, que enchem voos charter transatlânticos operados especificamente para esta ocasião e vêm matar saudades das suas origens. Realiza-se há mais de 320 anos e no entanto, facto algo estranho, é uma festa desconhecida para grande parte dos portugueses. Não sendo crente, sinto sempre curiosidade por estas manifestações seculares que fazem parte do tecido cultural de um povo, arreigadas na memória colectiva de cada região e sem perderem a sua força anímica. Decidi-me por isso a ir ver de perto (e viver) estas festas.

 

Quinta-feira: Oferecer flores e visitar o Santo

 

Maio é o mês das flores, mas nesta altura torna-se difícil encontrá-las nas floristas. O motivo é simples: são todas encaminhadas para o Santuário, onde um grande número de voluntárias dá corpo a lindíssimos arranjos florais que vão enfeitar igrejas, varandas, montras e, sobretudo, a capela do Santo e o andor onde será transportada a sua imagem. São sempre oferecidas, pois não há devoto que não queira contribuir para a festa do Senhor Santo Cristo. Acompanhei uma amiga que vive em São Miguel quando foi fazer a sua compra, e a tarefa não se revelou fácil nem rápida. Na loja havia quase mais pessoas do que flores (estou a exagerar, mas só um bocadinho). Jarras brancas orgulhosamente vazias ou com poucos exemplares, floristas de cara fechada, já sem paciência, concentradas no trabalho de montar arranjos ou a tentarem despachar os clientes que não desistiam e não paravam de chegar. Depois de quase uma hora, lá conseguimos sair dali com um molho de cravos vermelhos e brancos, escolhidos entre a parca oferta disponível.

 

A paragem seguinte é no claustro do Convento da Esperança, que integra o Santuário (existe uma congregação de freiras residente). Gordos baldes cinzentos acolhem as flores e verduras que os fiéis vão entregando, enquanto vários grupos de senhoras se afadigam em volta de mesas improvisadas com cavaletes, sobre as quais vão nascendo os arranjos.

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Peregrinamos depois até à Roda, embutida na parede lateral do Convento e que hoje já perdeu a sua função antiga de lugar de depósito dos “expostos” – as crianças entregues para serem criadas nos conventos, por falta de meios ou vontade das famílias. É ali que agora são deixados os donativos, em troca de pequenas recordações do Santuário, e quem oferece flores também tem direito a receber uma lembrança. Finalmente, seguimos para a igreja e vamos espreitar o local onde está resguardado o motivo principal de todo este corrupio: a imagem do Senhor Santo Cristo dos Milagres.

A capela fica do lado esquerdo de quem entra, separada da igreja por uma parede de vidro. É comprida, e lá ao fundo quase mais se adivinha do que se vê o busto do Santo Cristo. Os longos metros de chão envernizado estão cobertos por uma passadeira vermelha, e o espaço livre à volta é um mar florido, encabeçado por uma composição avantajada em que as palavras “Ecce Homo”, desenhadas com flores vermelhas, se destacam sobre um leito também feito de flores, só que brancas. Diz a Bíblia que “Ecce Homo” (Eis o Homem) terão sido as palavras pronunciadas por Pôncio Pilatos quando apresentou Jesus de Nazaré – já depois de flagelado – à multidão que iria decidir o seu destino. As representações “Ecce Homo” de Jesus são, por isso, imagens que mostram sofrimento.

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Mas a originalidade maior deste ícone é, quanto a mim, o facto de ser um busto. Em termos de imagens consagradas, não é um tipo de representação escultórica habitual na iconografia cristã (embora sendo comum na pintura). A origem desta imagem de madeira é desconhecida, e em concreto, por via de um estudo realizado em 2019, apenas se sabe que foi esculpida no século XVII. Pese embora as várias lendas tecidas sobre o assunto, a verdade é que se ignora quando ou como ela terá chegado à posse das clarissas de um mosteiro fundado na Caloura em 1523, mais tarde transferido e dividido em duas localizações diferentes: o Convento de Santo André, em Vila Franca do Campo, e o Convento de Nossa Senhora da Esperança, em Ponta Delgada. Foi aqui que Teresa de Jesus tomou o véu de noviça em 1682, e foi aqui que a imagem do Santo Cristo chamou a sua atenção e mais tarde, por influência de uma sua irmã, captou a sua devoção. Bem menos conhecida do que a sua homónima de Calcutá, Madre Teresa d’Anunciada foi a mentora do culto do Senhor Santo Cristo dos Milagres, e a sua figura é igualmente venerada.

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Sexta-feira: Começa a festa

 

Todo o centro da cidade está engalanado para esta ocasião. Não há montra que não tenha uma imagem devota, e muitas delas revelam-se sofisticadas obras artísticas em torno do tema. As varandas das instituições e grandes empresas vestem-se também a preceito, seja com uma simples colcha ou com um arranjo requintado. Ponta Delgada esmera-se para receber os forasteiros, com ou sem fé.

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Em cada ano, as cerimónias religiosas são lideradas por um bispo ou cardeal diferente. Já desempenharam estas funções figuras do alto clero tão importantes como D. José Tolentino de Mendonça, mais do que um Cardeal Patriarca de Lisboa, bispos do Porto, de Leiria e Fátima, de Florianópolis, da Bermuda e de Providence, o arcebispo de Boston, o Núncio Apostólico em Portugal. Embora o formato se mantenha basicamente o mesmo ano após ano, 2024 trouxe uma novidade: uma missa extra em inglês, no domingo de manhã. A comunidade emigrante já tem muitos não-falantes de português, e há que não desprezar o potencial do turismo religioso. Aliás, o prelado escolhido para presidir às celebrações deste ano foi o bispo católico de Stockton, na Califórnia, filho de pais açorianos mas nascido nos Estados Unidos. Um sinal de apreço pela devoção irredutível que os emigrantes lusos e seus descendentes têm mostrado pelo Senhor Santo Cristo ao longo das últimas décadas.

 

Com o trânsito cortado entre o Forte de São Brás e a marina, a avenida marginal enche-se de barraquinhas onde se vende de tudo um pouco, rulotes de fast food e carrinhos de gulodices, carrocéis e tudo o mais que é imprescindível numa festa popular portuguesa. Nas Portas do Mar, uma tenda gigantesca acolhe a iniciativa anual da Câmara do Comércio e Indústria de Ponta Delgada, a que dão o nome de Feira Lar Campo e Mar e se prolonga pelo espaço no subsolo do recinto. No piso de cima predomina o artesanato, variado e sobretudo original, enquanto o piso inferior está vocacionado para o comércio e indústria de maior porte. O valor do bilhete de acesso é quase simbólico, pelo que acaba por ser ponto de visita obrigatório e há alturas em que está a abarrotar de gente.

Dependendo da altura do dia e da lentidão do passo, o quilómetro que separa a Feira do Forte de São Brás talvez seja suficiente para abrir o apetite, e quem não gostar de comidas rápidas pode satisfazer a fome num dos restaurantes montados ao abrigo da muralha oeste do Forte. Nem sempre é fácil encontrar mesa, mas não há nada melhor do que umas lapas grelhadas para confortar o estômago e fazer esquecer as dores nos pés.

 

Quando a iluminação nocturna é inaugurada, os edifícios do Santuário, em dias normais singelamente vestidos de branco e cinzento, transformam-se (quase como por milagre) num objecto etéreo, flutuando contra o negrume da noite açoriana. A orgia de luz alastra pelo coreto que ocupa o centro do Campo e pelas ruas adjacentes, adornadas com arcos policromáticos brilhantes. Do lado de fora das portas do Santuário formam-se filas de pessoas ansiosas por verem a imagem do Ecce Homo, ainda resguardada na sua capela. Mais tarde, abre-se o Bazar e ouve-se o concerto executado por uma banda ou filarmónica da ilha de São Miguel. Está cumprida a primeira noite das festas em honra do Senhor do Santo Cristo dos Milagres.

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Sábado: Ver a saída do Senhor Santo Cristo

 

O segundo grande momento das festas é a Procissão da Mudança, no sábado à tarde. Marca a saída da imagem do Senhor Santo Cristo do seu recato no Coro Baixo do Convento, para ser mais tarde acolhida na Igreja de São José. Ambos os edifícios ficam no Campo de São Francisco, separados por 80 metros de rua, mas o traslado irá demorar mais de duas horas e meia.

 

A cerimónia começa quando o provedor da Irmandade do Senhor Santo Cristo dos Milagres bate na Porta Regral do Convento, solicitando a saída do Santo, e termina com o acolhimento da imagem na igreja vizinha, seguido de uma missa. Nesse ínterim, precedido por membros do clero e acólitos, e carregado por membros da Irmandade, o palanquim coberto que transporta a imagem do Senhor Santo Cristo dá a volta ao Campo em passo lento, oferecendo-se à devoção dos vários milhares de pessoas aglomeradas na praça. Tem direito a Guarda de Honra do Exército e a uma salva lançada a partir de um navio da Marinha. Atrás do andor desfilam membros de Irmandades, freiras, uma banda, escuteiros e, fechando o cortejo, todos os leigos que se queiram juntar à procissão, muitos deles carregando círios maiores do que eles próprios.

À noite, a tradição manda comprar rifas no Bazar e passear pelas ruas iluminadas, ou ficar pelo arraial até à hora do fogo-de-artifício. Lançado a partir da Muralha da Doca, é facilmente visível a partir de qualquer ponto da marginal, e prende-nos a atenção durante largos minutos.

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Domingo: A grande procissão

 

No domingo de manhã, volta a azáfama. Nas ruas por onde vai desfilar a procissão da tarde, organizadores e voluntários unem-se para criar passadeiras aromáticas e vistosas, umas feitas de criptoméria, louro e pétalas de flores, outras de aparas de madeira colorida. Os motivos variam, muitos deles dependendo da imaginação de quem patrocina cada troço do trabalho. Sobre a calçada de pedra escura, as cores sobressaem ainda mais, e custa saber que dali a umas horas toda aquela arte será destruída. Custa-me a mim, que estou de fora e sou profana. Para quem constrói estes tapetes, é uma honra saber que irão ser pisados pela procissão em honra do Senhor Santo Cristo.

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O Guião da procissão sai do Santuário às três e meia da tarde, mas duas horas antes já há muita gente acantonada nos passeios do Campo de São Francisco, com o fito de garantirem o melhor lugar para assistirem ao desfile, e de preferência num sítio à sombra. Bancos e cadeiras dobráveis, garrafas de água e snacks fazem parte do equipamento essencial para resistir ao longo período de espera e ao demorado cortejo. Entabulam-se conversas com os vizinhos temporários, permutam-se petiscos, quem está sentado troca por vezes lugar com quem está de pé, uns desejosos de esticar as pernas e outros de as descansar. O ambiente é de descontracção e partilha.

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Foi no ano de 1700 (ou talvez 1698) que se realizou a primeira procissão em honra do Senhor Santo Cristo, organizada por Madre Teresa d’Anunciada para partilhar a sua devoção e para que os fiéis pudessem agradecer os favores e milagres que se considerava serem obra do Santo. A popularidade desta demonstração de fé cresceu com os séculos, e cresceu também a sua magnitude. Actualmente, é a maior procissão da Europa, e uma das mais antigas do mundo. Quem nunca assistiu poderá duvidar da sua grandeza, e eu compreendo. Mesmo estando lá, custa a crer que uma simples imagem de madeira tenha tanta influência e o poder de movimentar um tão grande número de pessoas.

 

Finalmente, por cima do ruído da multidão irrequieta, ouvem-se os acordes do Hino do Senhor Santo Cristo, tocado por uma das dezenas de bandas que participam na procissão. Surge entretanto o Guião, transportado pela Irmandade do Santo Cristo, e depois sucedem-se as bandas – todas tocam o mesmo Hino, e a meio do desfile já estava cansada de o ouvir – alternadas com Irmandades várias, romeiros, crianças vestidas de anjo, freiras e um sem-fim de padres e acólitos (tanto rapazes como raparigas), seguidos de membros do alto clero.

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O longuíssimo cortejo de gente dura mais de uma hora, até que o repicar de sinos substitui a música das bandas, a desvanecer-se na distância. É sinal de que se aproxima o andor do Senhor Santo Cristo dos Milagres, mostrando-se mais uma vez em todo o seu esplendor. Tal como na véspera, está quase completamente coberto de flores, e mal se entrevê o tecido do dossel que protege a imagem. É uma visão em cores quentes, vermelhos e rosas, dourados e amarelos-vivos, numa profusão barroca que vai muito para lá do que é habitual neste tipo de manifestações religiosas.

Entre o avultado património material pertencente ao Senhor Santo Cristo dos Milagres, há cinco jóias especiais que acompanham a imagem durante estas festas. Para as descrever, aproprio-me das palavras usadas no site oficial do Santuário: “resplendor, encaixado na parte posterior da cabeça; coroa de espinhos, cingida à cabeça; medalhão-relicário, pendurado ao pescoço por uma corda, ocultando a abertura sobre o peito; ceptro, na mão direita; e corda, prendendo os antebraços e as mãos cruzadas. O conjunto destes magníficos exemplares de joalharia portuguesa do século XVIII tem o nome “tesouro do Senhor” e constitui um dos mais belos e valiosos acervos nacionais de joalharia religiosa”. Tanto assim é que, em conjunto com a imagem, foram classificadas pela Assembleia Legislativa dos Açores como “Tesouro Regional” e protegidas por Decreto Legislativo. Entre elas, apenas a corda foi criada durante a vida da Madre Teresa (e refeita em 2020). Todas as outras jóias, embora solicitadas por ela, foram doadas posteriormente.

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E há ainda as capas, motivo de expectativa anual. Oferecidas por devotos, em anos mais recentes sobretudo emigrantes, já são quase 40, e todos os anos é escolhida uma capa diferente para cobrir os ombros do Santo na sua saída em procissão (a das imagens foi oferecida pela Irmandade do Senhor Santo Cristo de Brampton, no Canadá; a de 2024 foi a número 39, executada pelas próprias ofertantes, três senhoras de Ponta Delgada). Confeccionadas em tecidos nobres, bordadas a ouro e por vezes ornamentadas com jóias, são peças requintadíssimas, cujo maior valor, ainda assim, é serem testemunhos de uma devoção profundamente sentida.

 

No meio da parafernália, destaca-se o rosto do Santo, a madeira já carcomida em alguns pontos, o sangue pintado que escorre pelas faces, os olhos escuros contemplando o vazio sob as pálpebras meio descidas. Mais do que sofrimento, parece-me ter uma expressão de serenidade – mas eu vejo a imagem com olhar de profana, não com o coração de devota, e sou claramente uma excepção. À passagem do andor, todos os olhares convergem para a imagem do Senhor Santo Cristo. Ouvem-se palmas, e são muitos os lábios que se movem em oração, talvez pedindo, talvez agradecendo, talvez cumprindo um ritual instintivo.

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Seguem-se-lhe mais membros de Irmandades e mais filarmónicas, dignitários do Governo Regional e de outros organismos oficiais, representantes das Forças Armadas, das autarquias e das forças de segurança. Depois de ainda mais uma banda, quatro escuteiras abrem a ala das mulheres de negro – algumas estão mesmo de luto, outras cumprem promessas. E só então chega finalmente a vez dos restantes fiéis, que engrossam a procissão com mais uns bons milhares de almas. Há quem tenha vestido o seu melhor “fato de domingo”, e quem vá de ténis; uns levam círios, outros crianças ao colo; há quem tire os sapatos e prossiga de meias, ou mesmo descalço. Neste desfile democrático qualquer pessoa pode participar, e o único requisito é ter fé.

O fumo e o barulho de morteiros indicam que o andor desfila em frente ao Forte de São Brás. Depois de deixar o Campo de São Francisco, o cortejo faz um périplo pelas ruas mais antigas da cidade. Mimetizando a rota da procissão original, passa pelas igrejas e conventos mais importantes do centro histórico de Ponta Delgada, regressando ao adro do Santuário cinco horas depois de ter começado, numa prova de resistência que só mesmo a forte devoção (e uma razoável forma física) consegue fazer superar. Depois das últimas despedidas, já perto das dez da noite, a imagem do Senhor Santo Cristo recolhe à sua capela, de onde só voltará a sair um ano mais tarde.

 

A festa não termina aqui. Ainda haverá celebrações eucarísticas, concertos e arraiais até à quinta-feira seguinte, dia do encerramento das festividades. Apesar de algumas tímidas tentativas, no passado, para reduzir a componente comercial do evento e dar maior relevância à vertente espiritual das festas em honra do Senhor Santo Cristo dos Milagres, a verdade é que estes são dias de grande movimento de pessoas em toda a cidade, e de inegável importância económica.

 

Mesmo entre os crentes, as festas do Senhor Santo Cristo dos Milagres não são tão famosas quanto outras manifestações religiosas no nosso país. O peso da insularidade continua a ser grande, por muito que estejamos numa “aldeia global” e apesar da recentemente adquirida popularidade dos Açores. No entanto, e se outro mérito não tivessem, conseguem a proeza de chamar a si vários milhares de pessoas espalhadas por todo o mundo, unindo-as numa mesma devoção e sob um único manto: o da fé numa imagem religiosa. É obra!

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Referências consultadas online:
 
Website oficial do Santuário do Senhor Santo Cristo dos Milagres
 
Hélio Nuno Soares – Os promotores de uma devoção no séc. XVIII: o Senhor Santo Cristo de Ponta Delgada. Revista da FLUP. Porto. IV Série. Vol. 12 nº 1. 2022. 85-106
 
Açoriano Oriental. Festas do Senhor Santo Cristo dos Milagres 2015
 
(Post já publicado no blogue Viajar Porque Sim)

Um banco com vista: Marsaxlokk

Ana CB, 26.04.24

Está um belo dia de sol e o ambiente é modorrento. O Mediterrâneo exibe os seus matizes mais leves, quase leitosos, tão tranquilo que nem incomoda os inúmeros barcos ancorados no porto. As cores garridas que pintam a madeira das embarcações contrastam com a paisagem semidesértica que assoma do outro lado da baía, e com os edifícios em tons desmaiados que rodeiam a marginal. É hora de almoço. São poucos os turistas que vagueiam entre as bancas de artesanato e souvenirs, e ainda menos os habitantes locais, certamente recolhidos no fresco das suas habitações. Fosse domingo e a animação seria outra; mas é apenas mais um vulgar dia de semana, e Marsaxlokk está posta em sossego.

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A tradição da pesca

Marsaxlokk está situada numa grande baía, irregular e abrigada, no extremo sudeste da ilha de Malta, a cerca de 10 km de Valletta. O nome deriva da sua localização: “marsa” é uma palavra árabe para ancoradouro, e “xlokk” significa sudeste em maltês. Como porto natural, faz parte da cultura marítima mediterrânica desde a Antiguidade: foi usado por fenícios, romanos, árabes e até mesmo otomanos, quando cercaram Malta em 1565.

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Actualmente é o maior porto de pesca das ilhas maltesas, e uma das poucas aldeias piscatórias que sobrevivem no arquipélago. Grande parte do peixe vendido em Malta é capturado por pescadores que aqui ancoram os seus barcos. Durante a semana, o peixe capturado destina-se ao mercado de Marsa, mais perto da capital, onde os retalhistas e proprietários de restaurantes se abastecem. Só ao domingo é que os pescadores locais vendem o seu peixe fresco directamente aos consumidores, no mercado ao ar livre, razão pela qual este é o dia mais movimentado na localidade – sobretudo porque muitos malteses (e turistas) aproveitam a oportunidade para almoçar num dos variados restaurantes que há à volta do porto.

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Um festival de cor

Em Marsaxlokk reinam as cores primárias, e sinto-me como que imersa num espectáculo de videomapping. Desde as riscas do banco onde estou sentada às faixas multicoloridas dos barcos, o mundo à minha volta veste-se de amarelo-canário, azulão, vermelho Ferrari e verde-esmeralda.

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Na amálgama de embarcações paradas na água há de tudo um pouco. Há barcos a remos, alguns ainda de madeira pintada, com os bordos exteriores protegidos por grossos cabos entrançados. Há semi-rígidos e pequenos barcos de pesca desportiva, insípidos nas suas cores neutras. Há traineiras apetrechadas com uma parafernália de fatos cor de laranja, guinchos, projectores e radares. Mais ao longe, impõe-se a massa tricolor do Armada LNG Mediterrana, um navio-tanque de produção e armazenamento de gás natural liquefeito que está desde há alguns anos atracado junto à central eléctrica de Delimara.

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E há os luzzijiet (plural de luzzu; pronúncia maltesa: [lutt͡su]), que são também um dos motivos pelos quais Marsaxlokk é tão colorida e apelativa para os visitantes turistas. Descendentes dos ferilli, os barcos de pesca típicos de Malta entre o século XVII e o final do século XIX, os luzzijiet são feitos de madeira e têm um casco duplo, pontiagudo e arqueado para cima em ambas as extremidades. Estão pintados com riscas de cores garridas e ostentam, em ambos os lados da proa, o amuleto egípcio de protecção mais difundido em todo o mundo: o olho de Hórus. As velas tradicionais foram substituídas por motores, alguns já estão dotados de uma cabina, outros têm apenas uma lona, em jeito de tenda, para abrigar os utensílios usados na faina, e outros ainda estão cobertos com um toldo rectangular. Tal como é habitual em tantas comunidades pesqueiras, as cores de cada luzzu não são escolhidas aleatoriamente; obedecem a um código que indica o local de onde a embarcação provém, o núcleo familiar a que pertence (os luzzijiet são passados de pai para filho), e até mesmo se houve alguma morte recente nessa família.

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Do mar até à mesa

Sobre as lajes aquecidas pelo sol espraiam-se as redes que os pescadores estenderam para secar. Mais à frente, afundado no chão, um tanque pelo qual parecem já ter passado muitos anos foi convertido em base de obra artística: um memorial aos homens do mar. Imobilizados em bronze, duas crianças e um gato assistem à chegada de um pescador carregado com cestas cheias de peixe.

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O acolhimento depois da faina será certamente diferente hoje em dia. Ainda assim, a vida em Marsaxlokk continua a apoiar-se no mar e na pesca. Aproxima-se das duas dezenas o número de restaurantes que se perfilam à volta do porto, e todos eles oferecem pratos de peixe. Claro que também há concessões ao gosto (e à bolsa) de quem não aprecia aquilo que o mar nos dá e se inclina mais para os omnipresentes hambúrgueres e as suas obrigatórias acompanhantes. Mas a oferta de peixe e frutos do mar domina as ementas: cozinhados das mais diversas maneiras ou crus (fatiados em carpaccio e divinamente temperados), envolvidos em massa ou arroz, ou na aljotta, a sopa de peixe maltesa tradicional, em saladas ou como petisco de entrada. Só as sobremesas se mantêm alheias ao alimento que vem do mar – pelo menos até que algum chef mais atrevido se lembre de inventar um doce à base de peixe.

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Depois do almoço – num pontão sobre a água, as mesas resguardadas do sol por enormes sombrinhas verde-mar – impõe-se uma volta pelas ruas interiores, onde as casas antigas de pedra ocre convivem com prédios baixos de linhas mais modernaças, em que o mármore, ferro forjado ou madeira das varandas foi substituído por cimento pintado. A aridez cromática é cortada aqui e ali por um mural, uma porta multicolorida, uma floreira ornamentada, uma varanda de madeira azul-pavão.

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Uma história de fé

Acima do casario pairam as torres da igreja dedicada a Nossa Senhora do Rosário de Pompeia, construída em finais do século XIX. Estranha-se a padroeira, mas tem uma justificação, e uma história. Em 1885, a Marquesa Rosalia Apap Viani Testaferrata viajava por mar ao longo da costa ocidental de Itália quando se levantou uma tempestade. Devota da Nossa Senhora de quem tinha o nome, a Marquesa invocou-a em oração, suplicando a sua ajuda. Coincidência ou não, a tempestade amainou durante algum tempo, suficiente para que o navio conseguisse chegar ao porto de Bastia, na Córsega, e os seus ocupantes desembarcassem sãos e salvos, antes de a tempestade desabar de novo. Como agradecimento pela sua salvação milagrosa, a Marquesa propôs custear metade do valor da construção da igreja de Marsaxlokk, desde que a dedicassem a Nossa Senhora do Rosário de Pompeia. Desde 1963, esta igreja é o destino de uma peregrinação nacional que se realiza anualmente a 8 de Maio, liderada pelo Arcebispo de Malta. Em 2017 foi elevada de igreja paroquial a Santuário Mariano. É um dos testemunhos da fé dos malteses, que se replica nos inúmeros e grandiosos templos religiosos que encontramos por todo o lado nas ilhas de Malta e Gozo.

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Deixo Marsaxlokk como a encontrei: soalheira, plácida e colorida, guardiã tranquila de histórias e hábitos antigos que convivem sem sobressaltos com as exigências dos tempos modernos. Na esperança de que assim se consigam manter.

Jardins

Ana CB, 19.03.24

Hoje apetece-me a Primavera.

Não aquela do calendário, que por sinal me diz que ela está quase a chegar. Esta Primavera moderna – que antes começava sempre a 21 de Março (ou assim me parecia…) mas agora tem data flutuante, como flutuante parece ser tudo hoje em dia – tanto pode assemelhar-se à sua própria definição como vestir-se de Verão tropical, ou de Inverno polar. É agora, em tempos de alterações climáticas, uma estação de humores variáveis em demasia, por vezes quase inexistente, e que ainda por cima trará um avanço de hora que me desacerta o relógio interno.

O que me apetece da Primavera é o seu espírito. A mudança subtil, a renovação, o crescimento, a alegria do renascimento cíclico neste continuum a que chamamos vida – a minha, a nossa, a da natureza. A certeza de que nada é imutável, e a esperança de novas possibilidades, de outras perspectivas que abrem caminhos diferentes.

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Haverá melhor lugar para sentir a Primavera do que um jardim?

Um jardim é a natureza à mão de semear. É o útil aliado ao belo: uma biblioteca viva, a preservação das espécies de mãos dadas com a estética, o apelo aos nossos sentidos. Lugar de descontracção, de sossego, ou de brincadeira e alegria, de meditação, de conversas, confissões e segredos.

E por falar em segredos, quem nunca namorou num jardim? Alguns têm recantos que parecem feitos para abrigar amores fora da vista dos outros. Ou, pelo menos, para uma conversa sem sobressaltos nem interrupções, seja para trocar confidências, transmutar sentimentos em palavras, ou deixar a emoção correr em forma de lágrimas.

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Nos dez jardins que rodeiam o Castelo de Sudeley, em Inglaterra, tranquilidade é algo que não falta, nem faltam recantos ideais para uma conversa fluida. Mas o mais intimista (e mais romântico) é sem dúvida o Jardim Secreto, um rectângulo de relva protegido por arbustos altos e coloridos, com um único banco estrategicamente colocado.

 

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Em Bornos, na Andaluzia, o jardim do Palácio dos Ribera também teve originalmente um jardim secreto, de que hoje só permanece uma piscina com nenúfares, resguardada por buxos. Neste jardim renascentista, que também tem um pomar, não há multidões e o sossego é dono do lugar.

 

 

No princípio era o jardim

A relação entre jardins e espiritualidade é ancestral. Por alguma razão chamaram Jardim do Éden ao paraíso original da tradição judaico-cristã: mais do que um simples espaço terreno para proporcionar sustento físico, é um símbolo da beleza e da comunhão entre o divino e o humano, onde a presença de Deus se manifestava de forma tangível. O Jannah, conceito muçulmano de céu ou paraíso, para onde os muçulmanos bons e fiéis vão depois do Dia do Juízo Final, é descrito como um jardim belo e tranquilo, onde corre água e são servidos alimentos e bebidas abundantes aos mortos e às suas famílias. Várias outras tradições religiosas, como é o caso do budismo zen, também valorizam os jardins como lugares de comunhão com a natureza, transcendência e paz interior, ideais para a meditação, a contemplação e a oração. Concebidos para reflectir a beleza e a simplicidade do que é natural, com arranjos minimalistas e simbólicos, a harmonia dos jardins que habitualmente apelidamos de “japoneses” tornou-os extremamente populares, e hoje em dia estão espalhados por todo o mundo. Sou uma admiradora confessa destes jardins e nunca perco a ocasião de os visitar, mas o meu preferido – talvez porque concentra todas as virtudes de um jardim zen num espaço mais reduzido – continua a ser o primeiro que visitei, e onde já estive mais vezes: o Kyoto Garden, em Londres.

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Kyoto Garden, Londres

 

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Jardim Japonês, Buenos Aires

 

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 Jardim Pierre-Baudis, Toulouse

 

O próprio acto da jardinagem pode ser visto como uma prática espiritual de ligação à terra, uma forma de colaborar com a natureza, cultivar o solo e participar no ciclo de vida. Actividade por vezes associada à subsistência, como acontecia (e ainda acontece) nos mosteiros, não são poucas as pessoas que dizem encontrar paz e significado na criação e manutenção de jardins, seus ou de outros, ou a cuidar de hortas.

 

Jardins para dar cor à vida

Independentemente da beleza que têm noutras épocas do ano, é na Primavera que a maior parte dos jardins estão no seu auge. A culpa é das flores e da explosão de cor com que os pintam. Depois dos meses cinzentos e frios, em que muito do que há na natureza fica em estado de hibernação, o renascimento de um jardim é um hino à alegria que reflecte o nosso próprio desejo de nos libertarmos do peso do Inverno. Queremos luz e festa, entusiasmo, energia. E é por isso que a função ornamental de um jardim é uma das suas facetas mais importantes.

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Em muitos países onde os rigores invernais são mais fortes, este amor pelos jardins é bem visível. Em Akureyri, a maior cidade do norte da Islândia, situada uns meros 50 km a sul do Círculo Polar Árctico, o encantador Jardim Botânico (Lystigarður) congrega mais de 7 mil espécies diferentes de plantas, das quais apenas 430 são nativas do país. Caminhos ondulantes, imaculadamente limpos, rodeiam canteiros com flores coloridíssimas, arbustos e árvores, zonas arrelvadas, pequenos lagos, e bancos para descanso dos visitantes.

 

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Na região inglesa das Cotswolds, perto de Painswick, os Rococo Gardens são outro exemplo de jardim ornamental exuberante. Concebidos no séc. XVIII, espelham a alegria de viver da classe média-alta dessa época, quando a extravagância e a frivolidade reinavam. Têm uma atmosfera teatral, com elementos arquitectónicos que pouco mais são do que decorativos, secundados por uma profusão de flores de cores pastel. Um jardim repleto de pormenores deliciosos e surpreendentes.

 

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Os Jardins Botânicos Reais de Kew, situados na periferia de Londres, têm um valor tão grande como paisagem histórica que estão desde 2003 classificados como Património Mundial pela Unesco. Criados em 1759 pela Princesa Augusta, ilustram de forma ímpar os períodos característicos do paisagismo nos séculos XVIII a XX, com ambientes que reflectem as tendências artísticas da época, oriundas tanto da Europa como de regiões mais distantes.

 

No reino da originalidade

Certos jardins são como que uma bolha isolada da realidade que os rodeia. Passamos o seu limiar e somos transportados para outros lugares, outras eras, outros mundos. Recriam ambientes exóticos, utopias transformadas em realidade, ou nascem da excentricidade de quem os concebe, às vezes até por acaso. São oásis de fuga à rotina, portais para um universo onde as regras do comum não parecem aplicar-se.

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O Jardim Tropical Monte Palace é um pedacinho de paraíso na ilha da Madeira. Estende-se por uma área de 70.000 m2 e é povoado por milhares de espécies diferentes de plantas exógenas, em pacífica coexistência com as muitas outras que são típicas da floresta Laurissilva da Madeira. Está estruturado em vários ambientes diferentes entre si, todos igualmente encantadores. Os espaços mais exuberantes são o lago central, dominado por um grande espelho de água habitado por estatuetas e animais e alimentado por uma cascata copiosa, e os jardins orientais, onde a água e a vegetação densa predominam, decorados com esculturas, bancos, lanternas orientais em pedra, pagodes em várias versões e lagoas com peixes Koi.

 

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Os Jardins Majorelle, em Marraquexe, foram criados pelo pintor francês Jacques Majorelle nas décadas de 1920-30, e mais tarde restaurados e desenvolvidos pelo estilista Yves Saint Laurent. O design meticuloso destes jardins é uma fusão ecléctica de estilos que combina elementos art deco, do artesanato berbere e da arquitectura mourisca. A paleta de cores vibrantes dos elementos construídos contrasta com o verde hegemónico das plantas e brilha sob o sol marroquino. Com palmeiras imponentes, cactos, buganvílias e uma variedade de plantas suculentas em harmoniosa coexistência, definindo cenários visualmente inesperados, estes jardins são uma mistura única de influências artísticas, botânicas e culturais, um oásis exótico e tranquilo no coração da cidade.

 

50 - Jardins do Arnado, Ponte de Lima.jpg

Em Ponte de Lima, os jardins do Parque Temático do Arnado são um patchwork de quatro estilos diferentes de jardins. Há um jardim romano, com piso de mosaicos e uma colunata de tijolo e pérgulas que rodeiam um lago ajardinado. No jardim barroco, o tema são as rosas, declinadas em várias cores, com canteiros delimitados por buxo ao estilo dos parterres franceses. O jardim labirinto desenvolve-se em torno de uma folly de metal, colocada numa zona mais elevada e ornamentada com jasmins, onde também crescem belos exemplares de ácer japonês. E no jardim Renascença há ciprestes e canteiros de azáleas e rododendros, e água que escorre por uma parede de pedra em socalcos. Aos jardins temáticos soma-se um horto botânico com uma estufa feita de ferro forjado cor de chumbo, que num dos lados está adjacente a dois lagos com nenúfares.

 

55 - Pátio dos cactos, Hervás, Espanha.jpeg

Num recanto do bairro judeu de Hervás, em Espanha, há uma surpreendente preciosidade: o pátio dos cactos. São mais de 6000 cactos de todos os géneros, que crescem nos suportes mais estranhos e originais que podemos imaginar, e cobrem completamente as paredes e boa parte do piso do minúsculo pátio de uma casa particular. É com imenso carinho e cuidado que o dono da casa conserva este invulgar jardim em miniatura, abrindo as suas portas aos visitantes.

 

Demonstrações de grandeza

Foram concebidos como símbolos de magnificência, destinados a exibirem ao mundo a riqueza dos seus promotores – monarcas, líderes políticos, nobres, comerciantes endinheirados. São os chamados jardins monumentais, de que existem inúmeros exemplos sobejamente conhecidos – como os de Versalhes, Schönbrunn ou Villa d’Este, só para citar alguns; ou ainda, entre os portugueses, o Jardim Episcopal de Castelo Branco, os do Palácio de Queluz, ou os do Solar de Mateus, em Vila Real. Estilos habituais nestes jardins são o renascentista italiano e o francês, demonstrativos das habilidades técnicas e da imaginação dos seus criadores. Locais de entretenimento e de socialização onde se cruzavam as elites intelectuais e artísticas, os jardins monumentais contribuíram ao longo dos séculos para o florescimento da criatividade e do intercâmbio de ideias.

58 - Jardins de Boboli, Florença.JPG

Os famosos Jardins de Boboli, em Florença, são um modelo exemplar de jardim renascentista italiano. Começados no séc. XVI e ampliados nos séculos seguintes, estendem-se por um plano inclinado com vistas amplas sobre a cidade, que lhes serve também de cenário. Cobrindo uma área de aproximadamente 45 mil metros quadrados subdividida de forma regular em socalcos, os espaços verdes são definidos por caminhos regulares e ornamentados por escadarias grandiosas, terraços panorâmicos, estátuas, grandes fontes, e cavernas artificiais decoradas com pinturas.

 

72 - Jardins do Palácio de Hampton Court, Inglaterra.jpeg

Nos arredores de Londres, aninhados numa curva do Tamisa, os jardins do Palácio de Hampton Court ocupam mais de 240 mil metros quadrados e albergam o labirinto mais antigo do mundo, uma vinha que bateu um recorde e três colecções nacionais de plantas. Mandados construir por Henrique VIII em 1528, estes jardins relativamente modestos transformaram-se, desde essa altura, em luxuosos jardins de lazer com canteiros, estátuas e fontes. O seu extenso canal foi mandado abrir por Carlos II para preparar a chegada da sua noiva, Catarina de Bragança. No século XVII, durante o reinado de Guilherme III e Maria II, os jardins de Hampton Court tornaram-se famosos pela sua beleza e requintado desenho barroco. Data desta altura a criação do labirinto, do Jardim Privado, e do Jardim da Grande Fonte original. Os teixos deste jardim foram domados até adoptarem a sua peculiar forma de cogumelos, e mantêm-se de pé há mais de 300 anos.

 

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Tal como a vemos hoje, a Casa da Ínsua, em Penalva do Castelo, foi construída no último quarto do séc. XVIII a mando de Luís de Albuquerque e Mello Pereira e Cáceres, um fidalgo cavaleiro da Casa Real que foi o quarto governador e capitão-general da capitania de Mato Grosso, no Brasil. Únicos, tanto como pela sua dimensão como pela originalidade e variedade de espécies botânicas, os jardins oitocentistas da Casa da Ínsua dividem-se em vários espaços, cada um deles concebido de acordo com estilo e finalidade diferentes. Há o francês, com os seus parterre geométricos e um lago com flores de lótus indianas, que florescem entre Junho e Julho e só vivem 48 horas. Há o inglês, mais selvagem, com muitos arbustos e árvores de grande porte – sequóias, cedros, paus-brasil. Há o dos aromas, com flores e um canteiro onde estão plantadas videiras das castas usadas para os vinhos Casa da Ínsua. Há um tanque com patos e um cisne, e há fontes, mesas e esculturas em pedra.

 

Sejam modestos ou sumptuosos, concebidos por grandes paisagistas ou meramente nascidos como hobby de um qualquer cidadão anónimo, apenas frequentados pelos habitantes de um bairro ou visitados por milhares de turistas anualmente, os jardins são uma ponte entre as pessoas e a natureza, e revelam muito sobre a cultura de cada sociedade ao longo dos tempos. Mas o seu maior feito é, sem dúvida, contribuírem – imenso! – para a nossa felicidade.

Aldeias com histórias: Babe

Ana CB, 21.02.24

Há milhares de aldeias em Portugal. Algumas são conhecidas por toda a gente, quanto mais não seja de nome ou em fotografia. Muitas são visitadas durante praticamente o ano inteiro, divulgadas pela comunicação social, filmadas para documentários ou em directos televisivos, e até recebem a visita de altos dignatários do nosso país – o que, como é óbvio, em nada as desmerece. E no entanto, para cada uma destas há centenas de outras de que nunca se ouve falar, entre elas muitas que têm património antiquíssimo para conhecer, tradições que perduram desde há séculos, histórias que merecem ser contadas. É mais uma destas aldeias que hoje vos convido a visitar.

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Babe é uma aldeia transmontana a uns escassos 14 km para leste de Bragança. Sede de uma freguesia com apenas 25 km2 e pouco mais de 200 habitantes (a que também pertence a aldeia de Laviados), chamam-lhe “varanda da cidade”: à cota de 800 metros acima do mar, é um acesso ao planalto da Lombada e oferece-nos vistas panorâmicas sobre Bragança e a serra de Montesinho.

Babe - vista geral (1)

Em dias normais, o ambiente é tranquilo, até mesmo modorrento. No largo principal apenas está estacionado um carro. No grande bebedouro de granito, de aspecto muito antigo – provavelmente bem mais antigo do que a data de 1894 que está gravada numa pedra, a julgar pelo brasão dito seiscentista cravado no muro de pedra – não se vêem animais a matar a sede, e o diminuto parque infantil que fica ali mesmo ao lado está deserto. Não creio que haja em Babe muitas crianças. Em passeio pela aldeia, apenas vimos algumas idosas sentadas à porta de casa, sem dúvida a aproveitarem o calor breve do sol do meio-dia, brilhante num céu sem nuvens – que será decerto coisa rara nos Invernos da região. Mais adiante, três homens afadigavam-se à volta de uma maquineta agrícola. Passou um tractor, uma ou outra carrinha, uma moto-quatro. Consta que o pessoal da aldeia é adepto deste meio de transporte, vá-se lá saber por que mistério…

Babe - largo - fonte de mergulho

Babe - largo - bebdouro

Mas não foi sempre assim. Na verdade, o povoamento de Babe vem de época tão remota que nem se consegue definir. O castro da Sapeira, a sudoeste da aldeia, atesta a ocupação pré-histórica do local, e sabe-se que por ali passava uma via romana que ligava Bracara (Braga) a Asturica (Astorga), de que hoje resta um marco miliário. A freguesia de “Sancti Petri de Babi” é referida num documento com data de 1258 incluído nas “Inquirições” ordenadas por D. Afonso III, e supõe-se que a igreja primitiva já existisse pelo menos desde o século X. Mas foi no século XIV que ali ocorreu o momento mais marcante da longa história da aldeia: a assinatura do Tratado de Babe.

Babe - Igreja de São Pedro (4)

João de Gaunt, filho do rei Eduardo III de Inglaterra e Duque de Lencastre, foi casado em segundas núpcias com Constança de Castela, filha do defunto rei D. Pedro I de Leão e Castela, assassinado pelo seu irmão Henrique de Trastámara em 1369. Apesar de ser um dos homens mais ricos e influentes do seu país, o poder que João de Gaunt detinha não lhe parecia suficiente e por isso um belo dia decidiu avançar como pretendente à coroa castelhana, chegando mesmo a afirmar-se Rei de Castela. Aproveitando as pretensões do Duque e no seguimento do Tratado de Windsor (o tratado de apoio mútuo assinado entre Portugal e a Inglaterra em 1386, que ratificava a Aliança Anglo-Portuguesa de 1373 e dura até hoje, sendo por isso a aliança diplomática mais antiga do mundo ainda em vigor), o recém-entronado D. João I de Portugal propôs-se ajudá-lo a causar divisões nas forças militares de Leão e Castela. O encontro entre estes dois aliados deu-se em Ponte de Mouro (localidade entre Monção e Melgaço) em Novembro de 1386, quando estabeleceram um acordo que incluía, entre outras condições, o casamento de D. João com Filipa, uma das filhas do Duque. A boda acabou por se realizar em Fevereiro de 1387 no Porto, mas as tropas portuguesas só se juntaram às inglesas em Março, quando um impaciente João de Gaunt já tinha decidido encaminhar-se para Castela. Foi em Babe que instalaram os acampamentos, e foi aqui que D. João I de Portugal e o sogro assinaram, a 26 de Março de 1387, o Tratado em que o Duque de Lencastre abdicava de quaisquer direitos que pudesse eventualmente vir a ter sobre a coroa portuguesa. Foi também nesta altura, como reza a placa colocada na Igreja de São Pedro de Babe, que D. Filipa se despediu dos seus pais para assumir em pleno o papel de uma das rainhas portuguesas mais influentes da nossa História.

Babe - Igreja de São Pedro (3)

Visivelmente, a Igreja de São Pedro continua a ser o monumento mais importante da aldeia. Os primeiros registos de actos religiosos que chegaram aos nossos dias datam de inícios do século XVII, pelo que se supõe que o edifício actual tenha sido construído por essa altura, em substituição da antiga igreja. Nota-se que foi alvo de obras relativamente recentes: os muros que a cercam são de pedra de xisto aparada e têm cantarias de granito, a escadaria está em bom estado, com os espaços laterais cuidadosamente arranjados com relva e oliveiras, e o portão de ferro que guarda a entrada para o recinto tem ar de novo. A fachada da igreja é feita com blocos de granito e tem alguns elementos barrocos, embora simples, mas o corpo do edifício propriamente dito está rebocado, pintado de branco e coberto por telha. Este tipo de igrejas, em que a fachada inclui os sinos e aparenta ser um elemento independente, apenas com a espessura da sua pedra e “colado” ao resto da igreja, não é muito comum no nosso país e só aparece com alguma frequência nestas terras do norte – lembro-me de que quando visitei Babe pela primeira vez, há já bastantes anos, foi precisamente esta originalidade que me fez retê-la na memória.

Babe - Igreja de São Pedro (1)Babe - Igreja de São Pedro (2)

Se o exterior é simples, o interior é tudo menos isso. Ali reina o barroco. Os altares estão primorosamente restaurados e o dourado domina sobre fundos brancos ou com padrões. O altar principal é encantador, com as suas cores e motivos harmoniosamente conjugados e um tecto de madeira onde estão pintadas figuras quase naif, as imagens dos santos principais bem integradas no conjunto. O resto do interior da igreja é mais discreto: paredes brancas, pias em pedra já desgastada pelo passar dos séculos, elementos estruturais em granito, chão e texto de madeira castanha envernizada, algumas outras imagens de santos esculpidas de forma menos rebuscada (e provavelmente mais antigas).

Babe - Igreja de São Pedro - interior (1)Babe - Igreja de São Pedro - interior (5)Babe - Igreja de São Pedro - interior (4)Babe - Igreja de São Pedro - interior (3)Babe - Igreja de São Pedro - interior (2)

Babe - Igreja de São Pedro - interior (8)

Babe - Igreja de São Pedro - interior (7)Babe - Igreja de São Pedro - interior (6)

A São Pedro de Babe esteve também associada uma importante Comenda da Ordem de Cristo – tão importante que foi dividida em duas, como o prova uma ordem real de D. Sebastião em documento do ano de 1561 (a outra Comenda daqui resultante foi para Nossa Senhora de Gimonde, aldeia que hoje é bem mais conhecida do que Babe). Um dos detentores mais conhecidos da Comenda de São Pedro de Babe foi António Cavide, monteiro do rei D. João IV. Mas o mais famoso de todos estes Comendadores foi certamente Domingos de Morais Madureira Pimentel, Fidalgo da Casa Real e Familiar do Santo Ofício, entre outros títulos, e proprietário em finais do século XVII da emblemática Casa do Arco em Bragança – foi, aliás, este fidalgo quem mandou construir o arco que caracteriza este edifício, ao fazer a ligação entre duas casas de que era proprietário.

Babe - Igreja de São Pedro - Torre sineira

Subi os vetustos e altos degraus que conduzem à torre sineira da igreja. Lá do alto avista-se quase toda a aldeia, uma amálgama de telhados em vários estados de conservação, reflexo das casas a que pertencem. Nota-se bem que a pedra foi substituída pelo reboco pintado de branco na maioria delas. Mas há também algumas com tijolo à vista, ou revestidas de cimento nu. As de pedra são poucas e dividem-se entre o xisto e o granito. No que toca à arquitectura, Babe é um pot-pourri de tendências: uma varanda com protecção de vidro aqui, umas portas modernaças em metal acolá, um beiral suportado por estacas de madeira numa casa meio arruinada mais à frente, janelas de madeira com tinta a descascar ao lado de outras com caixilharia de alumínio, escadas e alpendres, casas simples ou com vários volumes – entre a decrepitude e o kitsch de ideias nitidamente importadas de outros países, há de tudo um pouco por aqui.

Babe - vista geral (2)

Babe - vista geral (3)

Babe (4)

Babe (5)

Babe (3)

Babe (6)

Babe (2)

Babe (8)

Descendo a Rua da Igreja, cruzamo-nos com uma idosa vestida de negro da cabeça aos pés, lenço incluído, como hoje em dia já se vêem poucas. O cumprimento é obrigatório, e acabamos por ficar à conversa com ela durante um bocado. Fala-nos com orgulho da sua igreja e evoca o Doutor Belarmino, pároco da aldeia durante cerca de 20 anos, a quem tece os maiores elogios, para no final nos contar de lágrimas nos olhos que perdeu o filho num acidente. E ainda assim, notam-se nesta senhora uma força e um enorme prazer em conversar com duas estranhas que lhe passam à porta. Nestas terras ignoradas do nosso país, apesar de já serem na sua maioria facilmente acessíveis, qualquer pessoa de fora é uma novidade que quebra a rotina dos dias.

 

Nas minhas pesquisas posteriores vim a saber que o dito pároco, falecido em 2005 e que tantas saudades deixou em Babe, foi Belarmino Afonso, sacerdote e professor que dedicou a sua vida à cultura e às comunidades da região nordestina. Formado em História, entre outros cargos foi director do Arquivo Distrital de Bragança e provedor da Santa Casa da Misericórdia desta mesma cidade, desenvolveu trabalhos e escreveu obras nas áreas da antropologia e da etnografia, e foi por tudo isto condecorado em 2002 pelo Presidente da República com a Grã Ordem do Infante.

 

Foi precisamente pela mão do Doutor Belarmino Afonso que nasceu o Museu Etnográfico Rural de Babe. Num simples edifício branco, que acumula as funções de centro de dia, estão expostos vários artefactos usados em tempos idos pela população, recuperados por iniciativa daquele pároco e agora testemunhos de vivências passadas e costumes já quase desaparecidos: candeias e candeeiros a petróleo, engenhos agrícolas arcaicos, dobadouras, bem como utensílios usados pelos ferreiros da aldeia, que em tempos foram famosos. De facto, as facas produzidas por estes ferreiros de Babe eram reconhecidas em toda a região transmontana pela sua grande qualidade, tal como atestado pelo Abade de Baçal numa das suas obras.

Babe - Museu Etnográfico Rural

A religião tem, como é óbvio, um papel importante na vida dos habitantes de Babe. Além da igreja, existem na aldeia duas capelas: a de São Sebastião, que fica à entrada, e a de São José, que data de finais do século XVII e é mais singela, toda em pedra. Ambas estão restauradas. Há ainda uma Tulha das Almas, um edifício curioso não pelo seu aspecto, pois é um simples casinhoto de pedra, apenas identificado por uma mó e algo que parece ser parte de uma pequena roda de azenha, mas pela sua função: servir de armazém para as oferendas de cereal para “as almas”.

Babe - Capela de São José

Babe - Tulha das Almas

O pão é um dos alimentos mais importantes das gentes transmontanas, tal como em todas as outras regiões do nosso país, e por isso muitas das festas tradicionais que perduram até hoje, algumas oriundas de ritos pagãos, estão ligadas ao seu culto. Agregadas às celebrações religiosas da igreja católica, são sempre ocasiões importantes na vida das aldeias, e Babe não é excepção. É na época natalícia, entre a véspera da consoada e o dia de Reis, que aqui se celebra a Festa dos Rapazes, uma das mais importantes e animadas do ano, tanto que muitos emigrantes vêm nesta época à sua terra propositadamente para participarem. São protagonistas os rapazes maiores de 12 anos, cumprindo vários rituais que vão permitir-lhes o acesso ao mundo dos adultos. Há desfiles com gaiteiros e bombos, praxes que envolvem ovos e farinha, actuações de grupos musicais, e comida e bebida com fartura.

 

Para melhorar as condições destas celebrações comunitárias, em 2016 o espaço da antiga escola primária (já desactivada) foi reabilitado e convertido em centro de convívio e pavilhão multiusos, e é desde então um dos palcos principais das festividades que se realizam ao longo do ano. Ainda assim, há quem ache que as festas têm vindo a perder o encanto. Numa longa conversa com outra das habitantes da aldeia, muito mais jovem do que a anterior, ficámos a saber que muitas tradições já desapareceram, algumas delas bem interessantes. Havia a arrematação das roscas, com os pães preparados pelas mulheres e raparigas da aldeia a serem depois compostos em ramos com frutas e guloseimas para serem leiloados, os lucros da venda revertendo para a igreja. Outra festa comunitária tradicional era a lenha das almas de Todos os Santos, em que os jovens iam, com carros de bois ou tractores, “roubar” ou apanhar lenha, que depois era vendida no largo da aldeia. Ficavam assim algumas casas já aprovisionadas de lenha para uma parte do Inverno, e o dinheiro conseguido era destinado às missas rezadas ao longo do ano pelas almas dos defuntos. A festa continuava então, como não podia deixar de ser, com uma ceia partilhada por toda a gente.

 

Também a Páscoa é altura de celebração e festas em Babe, com muitos dos filhos da terra que estão emigrados a regressarem à aldeia para se reunirem aos seus familiares e amigos. Numa aldeia cada vez menos povoada, estas ocasiões são importantes para lhe insuflar mais ânimo e quebrar a rotina dos que a habitam em permanência. Babe é apenas mais um exemplo da vida de muitas das aldeias desconhecidas do Portugal profundo que ainda existe.

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(Adaptado de um post no blogue Viajar Porque Sim)

Um banco com vista: Cuenca

Ana CB, 24.01.24

Se existe um lugar na Espanha que desafia a gravidade e desperta a sensação de vertigem em cada esquina, esse lugar é Cuenca. Vista de cima, das redondezas do Castelo, a cidade parece uma montagem fotográfica. As casas são como que um prolongamento dos penhascos calcários, absolutamente verticais nas suas formas orgânicas que a erosão criou. São camadas de pedra e telha sobre camadas de rocha estratificada, suavizada até perder as suas arestas, e não se percebe onde acaba uma e começam as outras. Não se distingue a obra da Mãe Natureza da que foi feita por mão humana.

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Lá em baixo corre o rio Huécar, tão fino que nem se vê, escondido pela altura, pela vegetação, ofuscado pela dimensão do antigo Convento de San Pablo, agora tornado Parador e centro cultural. Pairando acima da garganta sinuosa por onde desliza o rio e das estradas igualmente serpenteantes rasgadas na encosta, salta à vista o metal vermelho-escuro da ponte pedonal de San Pablo, que liga o casco antíguo à colina preenchida pela robustez das formas do convento.

 

Arquitectura em suspensão

 

Entre a mole de edifícios aglomerados sobre os penhascos destaca-se também a corpulência da Catedral, e só aqui de cima é que é possível perceber a sua verdadeira dimensão. Mais ao longe, a enganadoramente mudéjar Torre de Mangana e o seu relógio, e a cúpula azulada do Museo de las Ciencias de Castilla-La Mancha. Mais distantes ainda, adivinham-se os contornos dos edifícios da parte mais moderna da cidade, com a Serranía de Cuenca como cenário.

 

Sobre o abismo, como se tivessem sido coladas ao penhasco numa brincadeira de criança, as Casas Colgadas parecem flutuar no ar, contrariando as leis da física. Remontam aos séculos XIV e XV, período em que Cuenca teve um rápido desenvolvimento, e destacam-se pelos seus balcões suspensos, que se projectam para fora da borda do desfiladeiro rochoso sobre o qual a cidade está construída. Serviam originalmente como residências e armazéns para os comerciantes locais, com a sua posição proeminente a facilitar o acesso directo ao rio Huécar. Os balcões tornaram-se uma característica distintiva da arquitectura local, mas ao longo dos séculos algumas das casas foram modificadas e reconstruídas para satisfazer as necessidades dos proprietários. No início do século XX, as Casas Colgadas começaram a atrair a atenção de artistas e escritores, e tornaram-se um ícone da cidade. Por iniciativa do pintor Fernando Zóbel, em 1966 passaram a abrigar o Museo de Arte Abstrato Español, o que contribuiu significativamente para o reconhecimento e preservação destes singulares edifícios medievais. Por estranho que possa parecer alojar um museu dedicado às correntes mais modernas da arte nestes edifícios seculares, a parceria resulta: o intimismo singelo dos interiores, que mantêm alguns elementos arquitectónicos antigos, casa bem com a abstracção das obras expostas, e dá-lhes o relevo necessário, sem as abafar. E as janelas abertas sobre a vertigem da altura a que as Casas Colgadas estão suspensas são um bónus que não pode ser desprezado.

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Vertigem invertida

 

A vista a partir deste banco-miradouro esconde o outro lado da cidade, aquele onde corre o rio Júcar, de que o Huécar é um afluente. O Júcar define o flanco norte dos penhascos, a face mais sombria de Cuenca mas também a mais fresca, onde um parque e um percurso ordenado ao longo do rio são um refúgio abençoado nos dias quentes da região manchega. Ali a vertigem sente-se em sentido inverso, de baixo para cima, o olhar subindo pelas paredes de rocha e depois pelos edifícios que parecem perder-se nas alturas.

É à beira do Júcar que estão dois dos locais religiosos mais importantes da cidade. Junto à ponte de San Antón, mirando o rio, brilha a igreja barroca da Virgen de la Luz, “casa” da padroeira da cidade – uma virgem negra, cuja veneração remonta aos séculos XII-XIII por via de uma lenda associada à reconquista de Cuenca pelos cristãos. Seguindo o desfiladeiro para montante do rio, chegamos ao Santuário de Nuestra Señora de las Angustias, outra virgem muito popular entre os devotos conquenses. Não fossem as placas indicativas e o seu portal quase excessivamente barroco, esta ermida poderia passar despercebida, rodeada que está de arvoredo e quase encaixada no penhasco. Esta parte da cidade, onde a presença e a beleza do rio Júcar se impõem, tem uma atmosfera particularmente romântica.

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Marcos da História

 

Aninhada nas profundezas da região de Castilla-La Mancha, Cuenca foi fundada pelos mouros numa posição defensiva no coração do Califado de Córdova. Conquistada pelos castelhanos no século XII, a sua localização entre Madrid e Valência tornou-a um centro comercial estratégico durante a época medieval. O casco antíguo da cidade é um museu vivo, com as suas ruas labirínticas ladeadas por edifícios medievais e renascentistas bem preservados.

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A Catedral de Santa María e San Julián de Cuenca foi a primeira catedral gótica de Espanha, e um dos exemplos mais emblemáticos deste estilo arquitectónico no país. É um monumento invulgar, cuja fachada parece inacabada e tem a particularidade de exibir elementos gótico-normandos, com detalhes decorativos, incluindo esculturas religiosas e motivos ornamentais. Está situada na Plaza Mayor, de formato oblongo e dimensões modestas por comparação com as plazas homónimas de outras cidades espanholas, ocupada numa das extremidades pela Casa Consistorial, sede do Ayuntamiento de Cuenca e facilmente identificável por estar construída sobre os três arcos que dão acesso à Calle Alfonso VIII. Nesta rua esguia do bairro de San Martín, os edifícios altos e estreitos, colados uns aos outros e pintados de cores que não passam despercebidas, com as suas janelas-varandas adornadas de ferro forjado, fazem lembrar arranha-céus, e o olhar apenas distingue uma nesga de espaço acima deles.

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Cuenca é um daqueles lugares fora do comum, que deixam uma marca duradoura na memória pela sua singularidade. Mas é mais do que isso. Ao explorar a cidade, onde o orgânico e o construído se misturam sem atropelos, percebemos como é possível integrar e harmonizar a inventividade humana com o ambiente, em vez de irmos pelo caminho mais curto, subjugando-o aos nossos desejos. Cuenca é um exemplo inspirador de como a presença humana e a natureza não têm de puxar para lados opostos.

Aldeias com histórias: Fonte Arcada

Ana CB, 22.12.23

Talvez por ter nascido em Lisboa e vivido quase sempre nos seus arredores, durante boa parte da minha vida não senti grande apetência específica por visitar as nossas (ou quaisquer outras) aldeias. Os meus pais não eram lisboetas, mas nem eles nem os meus avós tinham casas na “terra”, pelo que até à idade adulta apenas fiz esporádicas visitas a uma ou outra morada de primos afastados que viviam em ambientes mais rurais, e que nada me diziam. Foi só quando passei a viajar com regularidade por Portugal que comecei a descobrir o encanto de algumas localidades mais pequenas. Ainda assim, são poucas as que me conquistam logo nos primeiros instantes. Fonte Arcada, de que vos vou falar agora, é uma delas.

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Ergue-se sobre a margem esquerda da Barragem de Vilar, que represa o rio Távora e é a maior barragem do distrito de Viseu. Esta localização privilegiada faz com que um dos maiores atributos de Fonte Arcada seja a fabulosa paisagem que dela se avista – ter um manto de água como cenário de fundo é sempre uma percentagem de beleza garantida. Mas este atributo é relativamente recente, pois a barragem só foi construída em 1965 e a história de Fonte Arcada vem de muitos séculos antes, ao que parece pelo menos desde a época da ocupação sueva ou visigótica. Com efeito, a fonte de mergulho que encontramos no lugar da Cova da Moura e dá nome à aldeia – por ter a forma de um arco ogival – data dos séculos XIII ou XIV, mas supõe-se que terá origens mais remotas, uma vez que nas suas proximidades passava uma via romana. Hoje, não fosse o letreiro e a protecção de vidro, não lhe atribuiríamos grande importância, pois os nossos olhos são atraídos para a fonte e o tanque mais recentes de onde corre a água, à distância de uns quantos degraus. A água é a mesma, mas o aparato é maior. Como é de bom-tom em qualquer aldeia vetusta e com pergaminhos, uma lenda associa esta fonte secular a uma jovem moura que ali se escondeu, chorosa, guardando um fabuloso tesouro. A ela se refere o Abade Vasco Moreira na sua obra “Terras da Beira – Cernancelhe e seu Alfoz” O imaginário português é fértil em lendas que envolvem mouras belas e infelizes …

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A aldeia é mencionada no século X no testamento de D. Flâmula Rodrigues, sobrinha da famosa Condessa Mumadona Dias (que fundou o Castelo de Guimarães), mas comprovadamente marcado na História é o foral que foi concedido a Fonte Arcada em 1193 por D. Sancha Vermuiz e a elevou a Vila e Concelho. Datará desta altura a construção da igreja, um edifício simples em granito que ainda mantém na sua porta principal o arco de volta perfeita característico do estilo românico, apesar das renovações de que foi alvo ao longo do tempo: no século XVI, quando lhe foram acrescentadas as capelas laterais, em finais do século XVII com a criação do retábulo-mor em talha dourada, e mais recentemente em 1978.

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Muito do casario de Fonte Arcada já é moderno e está pintado de branco, mas a pedra ainda reina. Apesar de ter visitado a aldeia num dia gélido de Inverno, o sol baixo da tarde já avançada quebrava a frieza do granito, que aqui já é amarelado por natureza, matizando-o de tons alaranjados. Espalhando-se por duas encostas suaves e um ligeiro vale entre elas, com ruas estreitas de traçado irregular, a aldeia torna-se aconchegante. Alguns pormenores das habitações denunciam as suas raízes medievais: varandas de madeira avançando sobre a rua, que contrastam com outras em pedra, e pisos inferiores das casas com grandes portadas, denotando as suas anteriores funções de curral ou armazém. Na orla da aldeia as casas são novas, mas no núcleo, tal como sucede na grande maioria das nossas aldeias mais remotas, há várias que estão em ruínas ou em vias disso. Talvez por serem acatitadas e sem terreno à volta, as pessoas parecem preferir construir de raiz a recuperar o que já existe, e assim vão decaindo algumas destas casas mais típicas e originais.

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Um edifício chama a atenção pelo seu ar robusto e maciço, quase de fortaleza. É o Paço da Loba, erguido a mando de Fernão Sanches, filho bastardo de D. Dinis e senhor destas terras no século XIII. O nome vem-lhe das duas imagens talhadas em granito que se encontram por cima da porta, por se assemelharem à cabeça de um lobo.

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Em 1400 D. João I doou Fonte Arcada a Gonçalo Vasques Coutinho, 2º Conde de Marialva. Fez parte da herança até ao 4º Conde e Meirinho-Mor do reino, D. Francisco Coutinho, que não teve descendência masculina. À filha, D. Guiomar Coutinho, em carta de 18 de Junho de 1504 D. Manuel I permitiu que herdasse o património dos seus pais, o que fez dela uma das mais ricas e cobiçadas herdeiras em Portugal, com um rendimento de cerca de 14 mil cruzados. Talvez por isso o rei tivesse achado boa ideia combinar desde cedo, com o Conde, o casamento de D. Guiomar com o seu filho D. Fernando. A boda só teve lugar em 1530, já no reinado de D. João III, pois entretanto a perspectiva deste matrimónio tinha sido contestada por D. João de Lencastre, Marquês de Torres Novas, que defendia ter casado em segredo com D. Guiomar. Sobre este conflito (que durou nove anos…!) escreveram vários cronistas, e foi à volta dele que Camilo Castelo Branco urdiu a trama da sua obra “O Marquês de Torres Novas”. Dos dois filhos do casal, um morreu à nascença e a outra aos três anos de idade, em 1534, o ano em que D. Guiomar e D. Fernando também faleceram, pondo assim um fim trágico ao Condado de Marialva. Consta que D. Fernando se terá refugiado, desgostoso, pouco tempo antes da sua morte, em Fonte Arcada, precisamente no Paço da Loba.

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Outro marco importante neste mesmo século foi a concessão de um foral manuelino em 1514, devidamente assinalado pelo pelourinho em granito que sobreviveu até aos nossos dias, agora quase “abafado” pelas construções que o rodeiam. Fica na minúscula Praça Pádua Correia e, apesar do seu aspecto geral muito simples, tem quase cinco metros de altura e uma base octogonal com sete degraus.

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Mas foi no século XVII que a localidade conheceu os seus tempos mais prósperos ao ser qualificada como Viscondado, que D. Pedro II atribuiu a Pedro Jacques de Magalhães, herói da Guerra da Restauração. São desta época as casas solarengas mais bonitas que existem em Fonte Arcada. Num dos extremos do largo a que chamam da Igreja, o Solar dos Condes da Azenha é uma dessas casas, facilmente identificável pelas armas afixadas em alto-relevo no seu pórtico (que está a precisar de obras urgentes de manutenção).

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Outra destas grandes mansões é o Solar dos Gouveias, mais conhecido por Casa dos Brigadeiros porque os varões da família desempenharam sempre altos cargos militares. Situado numa rua que desemboca ao lado da igreja, tem um muro alto e longo com variados elementos decorativos que causam grande impacto visual. É bem óbvia a importância que este edifício teve e continua a ter na aldeia.

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Fonte Arcada é palco de uma das maiores romarias do concelho de Sernancelhe, que tem lugar no terceiro domingo de Páscoa. A ela ocorrem habitualmente milhares de pessoas para participarem na procissão em honra da Senhora da Saúde. O Santuário ocupa o topo de uma colina, miradouro de onde se avista toda a aldeia até ao Távora. A capela branca e simples, que terá as suas origens em finais do século XVIII ou inícios do seguinte, está situada no centro de um enorme terreiro que inclui parque de merendas e um coreto. A procissão sai da igreja de Fonte Arcada com os andores (que antigamente eram puxados ladeira acima por carros de bois) a serem rebocados por tractores – excepto o que transporta a Senhora, pois este continua a ser carregado em ombros. O passo é marcado pelos bombos dos Zés-pereira e pelos sons de uma banda de música. A festa prolonga-se por uma semana com uma feira montada na avenida paralela à capela.

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Com a tarde a chegar ao fim, subi ao cerro do Castelo, que na verdade não tem castelo nenhum mas sim uma torre sineira. A Torre do Relógio é o ex libris de Fonte Arcada, e parece pairar sobre ela. Não é grande nem vistosa, mas atrai o olhar desde longe. À falta de adjectivo melhor, só posso dizer que é “diferente”, e imprime à aldeia um cunho muito particular e original. Terá servido desde o século XVI como local de vigia, e o seu sino ressoava umas vezes como aviso à população, outras como convocatória de assembleias. Na parede frontal tem degraus e uma porta descentrada, noutra parede há uma minúscula janelinha quadrada, no cimo o campanário com o sino, que agora cumpre a função de relógio, e uma cornija com gárgulas de canhão. Nada mais tem, e nada mais faz falta.

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É aqui o melhor sítio para ver o sol a recolher-se para lá das águas calmas da barragem, rodeada de oliveiras e campos de cultivo. Caudas de fumo saíam das chaminés, uma leve neblina alastrava sobre o vale como um véu fino, os raios de sol imprimiam auréolas vermelhas à terra castanha, em contraste com o céu ainda muito azul típico dos nossos dias frios de Inverno. O final perfeito para uma visita a esta aldeia memorável.

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(Adaptado de um post no blogue Viajar Porque Sim)

Blogue da semana

Ana CB, 17.12.23

Quase tão grande como a minha paixão pelas viagens – e mais antiga, por sinal – é a que tenho pelos livros e pela leitura (aliás, se tivesse de escolher entre estes dois amores, iria ser uma das decisões mais difíceis da minha vida). Descobri este blogue há uns bons anos, e ficou logo nos meus favoritos: gostei da escrita da Patrícia, da forma clara como expõe as suas opiniões, e do facto de não ter medo de tocar em temas polémicos. Quis o acaso que uns tempos depois eu acabasse por ser convidada (por outra amiga) a juntar-me ao clube de leitura de que ela já fazia parte, e até hoje continuamos a encontrar-nos com alguma regularidade, que nem a pandemia quebrou aos membros do clube esta vontade de nos juntarmos para umas horas de boa conversa e muitas gargalhadas.

A Patrícia escreve muito bem, seja sobre as suas leituras ou qualquer outro tema que lhe apeteça, sempre com os livros como pano de fundo. Não se coíbe de dizer o que pensa, seja por escrito ou ao vivo, e essa é uma das suas virtudes. As opiniões que dá são mesmo sentidas, não compactua nem faz favores, e adora uma bela discussão, principalmente se ela estiver na contracorrente, como é muitas vezes o caso. É ecléctica nos seus gostos, pese embora tenha alguns autores favoritos. Os seus posts são leves mas incisivos, e é um prazer lê-la.

Se gostam de livros, este é um blogue que vale muito a pena seguir: Ler por aí.

Nos passos de Vlad Dracul

Ana CB, 27.10.23

Uma das personagens mais evocadas nesta época de Halloween (importação que parece ter vindo para ficar) é sem dúvida o Conde Drácula, o famoso vampiro à volta de quem gira a história do livro homónimo de Bram Stoker. Para criar o seu protagonista o escritor inspirou-se vagamente na figura de Vlad Dracul, que foi voivode (príncipe) da Valáquia no séc. XV. Mas sabiam que Stoker escreveu o seu livro sem nunca ter postos os pés na Roménia? E quem foi realmente Vlad Dracul? Entre o mito e a realidade, os factos confirmados e aqueles cuja genuinidade permanece incerta, vou contar um pouco da sua história, numa visita guiada pelos locais que permanecem ligados à sua memória.

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SIGHIŞOARA

 

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Sighişoara é uma das cidades mais bonitas da Roménia, e presume-se que foi nesta casa situada no coração do centro histórico que Vlad Dracul III nasceu, algures entre 1428 e 1431, e viveu até aos quatro anos de idade. Deram-lhe o mesmo nome do pai, apesar de ser o segundo filho. Dracul significa “dragão”, sobrenome que o seu pai recebera ao tornar-se membro da Ordem do Dragão, uma Ordem fundada pelo Imperador Segismundo em 1408, na Transilvânia, para proteger o Cristianismo no leste europeu.

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P1480214 assin.jpgA casa é actualmente um restaurante, sempre muito concorrido devido ao “folclore” que existe à volta da figura histórica de que foi berço, mas consta que a qualidade da comida não é exactamente proporcional à sua fama.

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TÂRGOVIȘTE

 

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Târgoviște era na época a capital do voivodato da Valáquia, razão pela qual a família Dracul se mudou para aqui quando Vlad Dracul pai conseguiu ascender ao trono da Valáquia, em 1436. Foi por isso aqui que Vlad filho viveu grande parte da sua infância.

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Depois de o seu pai e irmão mais velho terem sido assassinados, Vlad reclamou para si o principado, mas apenas conseguiu mantê-lo durante dois escassos meses em 1448 até ser obrigado a refugiar-se fora da região. Em 1456 voltou a atacar a província e retomou o trono da Valáquia. Correu entre os habitantes o rumor de que era o seu pai que tinha regressado do mundo dos mortos para os proteger, e presume-se que seja esta a origem provável do mito da imortalidade de Vlad Dracul. Desta vez conseguiu manter o seu domínio durante seis anos. A Valáquia era disputada pela Hungria e pelos otomanos, pactos e alianças faziam-se e desfaziam-se à velocidade da luz, e as traições eram constantes. A violência era moeda corrente na época, mas consta que os métodos de Vlad para instigar respeito e terror excediam o habitual. Quando o exército do sultão Mehmet II entrou em Târgoviște em meados de 1462, a cidade estava deserta mas o cenário com que depararam era dantesco: milhares de cadáveres de homens, mulheres e crianças estavam empalados em grandes estacas cravadas no chão, formando uma floresta macabra de carcaças em estágios de decomposição variados. A sua brutalidade valeu-lhe o nome pelo qual passou a ser depois conhecido: Vlad Țepeș (Vlad, o Empalador).

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Do palácio real (Curtea Domnească) de Târgoviște restam hoje apenas ruínas. Mas o conjunto monumental que pode agora ser visitado tem outros motivos de interesse, sendo um deles o actual ex libris da cidade: a torre Chindia, que foi mandada construir pelo próprio Vlad Dracul III.

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FORTALEZA DE POENARI (CETATEA POENARI)

 

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O castelo de Poenari tem as suas origens no séc. XIII, mas encontrava-se em ruínas quando Vlad Țepeș decidiu aproveitar o seu potencial defensivo e transformá-lo numa fortaleza quase inexpugnável. Quase, mas não completamente, pois nem ela conseguiu resistir aos avanços dos Otomanos no final do seu segundo reinado, tendo Vlad sido obrigado a fugir por uma passagem secreta com acesso às montanhas a norte. Diz a lenda que a sua mulher se suicidou atirando-se das muralhas, apavorada pelo receio de ser selvaticamente maltratada pelos turcos – a violência desmedida não era um exclusivo do seu marido. Situada perto de Arefu (em pleno coração da fabulosa Transfăgărășan), a 860 metros de altura, a fortaleza de Poenari é basicamente uma muralha – e em termos práticos, um “ninho de águia” que obriga a subir mais de 1400 degraus para lá chegar. Só para corajosos…

 

CURTEA VECHE

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Na Roménia, Vlad Țepeș é considerado um herói nacional. Em flagrante contraste com a imagem sanguinária descrita na maioria dos textos da época que sobreviveram até aos nossos dias – escritos por saxões e turcos, há que notar, que eram os seus maiores inimigos – as narrativas tradicionais romenas apresentam-no como um apoiante dos camponeses contra os traiçoeiros boiardos e um intrépido defensor do seu principado contra o Império Otomano. É provavelmente por isso que o encontramos representado em bustos esculpidos um pouco por todo o lado – e Bucareste não é excepção.

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O Palácio Real Velho fica mesmo no centro histórico de Bucareste e foi mandado construir de raiz por Vlad II Dracul. Vlad Țepeș, que era o seu segundo filho, ocupou-o durante o segundo reinado, entre 1456 e 1462. A partir dessa altura passou a ser a residência real oficial, estatuto que só perdeu no séc. XVIII. Hoje em dia funciona como museu, fazendo parte do núcleo do Museu Municipal de Bucareste.

 

CASTELO DE BRAN

 

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É irónico que o local na Roménia mais associado ao Drácula de Bram Stoker seja aquele que menos (ou talvez mesmo nada) tem a ver com Vlad Dracul III. Stoker nunca visitou a Roménia, e presume-se que tenha aproveitado uma ilustração do castelo de Bran mostrada num livro de Charles Boner para descrever o castelo do Conde Drácula, uma vez que mais nenhum castelo romeno se lhe assemelha.

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Situado a poucos quilómetros da turística cidade de Brașov, na Transilvânia, o castelo de Bran está construído – como seria de esperar – no topo de uma elevação junto à localidade com o mesmo nome, rodeado de vegetação. A Transilvânia só passou a fazer parte da Roménia depois da Primeira Guerra Mundial, e em 1920 os cidadãos de Brașov decidiram unanimemente oferecer o castelo de Bran à Rainha Maria, que o restaurou e passou a usar como residência real.

A ténue ligação que o castelo de Bran talvez possa ter com Vlad Țepeș remonta a 1462, quando o príncipe foi capturado pelo exército do rei húngaro e, segundo consta (mas não está provado sem sombra de dúvida), ali terá ficado encarcerado durante dois meses.

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MOSTEIRO DE SNAGOV

 

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Vlad voltou a conquistar a Valáquia novamente em 1476, mas também desta vez o seu reinado foi de curta duração. Mais uma vez atacado pelos turcos, foi morto perto de Bucareste em Dezembro do mesmo ano. A História diz que a sua cabeça foi enviada a Mehmet II, em Constantinopla. Já quanto ao local onde foi sepultado, a controvérsia mantém-se até aos nossos dias – outra coisa não seria de esperar um homem cuja vida deu azo a tanta celeuma. A versão mais difundida é que foi enterrado no mosteiro de Snagov, situado numa ilhota no lago que leva o mesmo nome.

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O lugar é tranquilo e muito bonito. A apenas cerca de 40 km a norte de Bucareste, é um local privilegiado de veraneio para os habitantes da capital.

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Recentemente, os historiadores levantaram a hipótese de Vlad Țepeș ter de facto sido sepultado no Mosteiro de Comana, por se encontrar mais próximo do local onde ocorreu a batalha em que foi morto.

 

Do que não restam dúvidas é que o príncipe da Valáquia morreu mesmo, embora a memória colectiva se tenha encarregado de o guardar para a posteridade. Por mera coincidência ou ironia do destino, o Drácula de Bram Stoker terá certamente dado uma “ajudinha”.

 

(Post já publicado no blogue Viajar Porque Sim)

Aldeias com histórias: Juízo

Ana CB, 11.10.23

Era uma vez uma aldeia beirã, dessas como há tantas no nosso Portugal profundo. Pequena, longe de tudo, com gentes que viviam da agricultura de subsistência e trabalhavam de sol a sol para sobreviver. A sua história é idêntica à de muitas outras: viu os jovens partirem em busca de melhores condições de vida, a população residente envelhecer, as suas casas e património ruírem aos poucos, a desertificação a aproximar-se.

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Só que… talvez por se chamar Juízo, talvez por ser bonita, talvez por sorte, a história desta aldeia tem um final feliz – ou, melhor dizendo, uma continuação feliz, porque o fim não está nem à vista.

 

A aldeia

 

Podemos dizer o mal que quisermos do turismo – que é poluidor, consumidor de recursos, descaracterizador, incomodativo e tudo o mais que é habitual dizer para o denegrir (e com alguma parcela de razão) – mas a verdade é que toda a actividade que se desenvolve em torno desse tipo de lazer constitui parte de uma solução para insuflar vida (e alguma prosperidade) a lugares que de outro modo já teriam sido completamente abandonados. Por muito que doa, esta é a realidade dos nossos dias, mais de um quinto já passado deste século XXI.

A aldeia do Juízo é disto um excelente exemplo. Povoada desde a época da Península Ibérica pelos romanos, habitada em tempos por um juiz (de quem lhe vem o nome), tem hoje em dia uma população permanente de apenas 15 habitantes, que felizmente é agora “engrossada” com alguma frequência pelos visitantes que a escolhem para passar um fim-de-semana ou uns dias de férias.

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E escolhem muito bem. Encarrapitada num planalto entre as serras da Estrela e da Marofa e com um troço da GR22 a passar-lhe à porta (o percurso entre Castelo Rodrigo e Marialva da Grande Rota das Aldeias Históricas), é uma aldeia desafogada, rodeada de belíssimas vistas sobre os verdes e castanhos da paisagem serrana da Beira Alta, e muito acolhedora. Apesar de fora das rotas turísticas habituais, está centralmente localizada em relação a muitos locais de interesse e é, ela própria, um riquíssimo baú de vestígios históricos e cultura popular.

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As ruas da aldeia enrolam-se umas nas outras, passando entre casas de granito amarelo ou com cores desmaiadas – algumas recuperadas, outras desabitadas e meio em ruínas. Em cada recanto encontramos pormenores rústicos e deliciosos: canteiros de pedra com flores, uma pipa sobre uma carreta de ferro, um tanque daqueles já quase desaparecidos, uma alminha, uma fonte com uma frase divertida, um antigo sinal do posto dos correios, pedras com gravações centenárias. E as cores de Outono das folhas caídas e das vinhas despojadas dos seus frutos condizem bem com esta aldeia.

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As ruas têm placas novas com os seus nomes. A bonita casa que em tempos foi uma escola está também renovada; tem um portão de ferro forjado pintado de verde-escuro e na entrada há hortênsias e um loendro. Na aldeia há um cemitério bem arranjado e duas capelas. Uma delas, a do Juízo, foi já completamente restaurada. Tem um altar novo de granito com linhas depuradas mas o Cristo na cruz que está pendurado por cima, com ar de sofrimento, é naif e muito antigo.

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Esta é uma terra rica em amêndoa, azeite e vinho; na verdade, é a região com maior número de vinhas da Beira Interior. Mas há mais. Há colmeias e há rebanhos de ovelhas, e um lindíssimo bosque de azinheiras que tem o nome de Carrascal do Juízo – porque aqui chamam carrascos às azinheiras. Um passeio pelo Carrascal desvenda-nos as poldras da ribeira do Porquinho (que praticamente não tem água, depois deste Verão tão seco), onde uma mó sobrevivente mostra que houve ali um moinho em tempos já idos. O Carrascal é zona protegida, tem árvores com líquenes tão antigos que já foram objecto de estudo, árvores fantasmagóricas, esqueléticas e belas, que parecem pertencer a uma outra dimensão.

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Daqui avista-se uma paisagem infinda de serrania, com algumas aldeias dispersas. Das aldeias históricas, Marialva é a mais próxima, cerca de 12 quilómetros a noroeste. Trancoso fica a 25 quilómetros, Castelo Rodrigo a 30, Almeida está a 45 e até Castelo Mendo são 47 quilómetros. A aldeia do Juízo é o local ideal de onde partir para as visitar a todas.

 

As Casas do Juízo

 

O recente renascimento da aldeia deve-se ao facto de algumas das casas recuperadas estarem a ser disponibilizadas como alojamento turístico rural. São as Casas do Juízo, adaptadas e geridas com empenho e bom gosto pelo Sr. José Guerra e pela D. Isabel, que velam pelo bem-estar dos seus hóspedes até ao mínimo pormenor. São já oito as casas renovadas, cada uma com um nome que evoca as suas antigas funções, todas elas mantendo a traça original e a rusticidade mas totalmente equipadas e dotadas do conforto que hoje em dia não dispensamos. O complexo, dividido em dois núcleos que funcionam como condomínios fechados, tem capacidade para alojar até 30 pessoas e oferece várias outras comodidades: uma piscina coberta, estufa com produtos biológicos, sala para eventos e diversos espaços de lazer. Associado às Casas existe um restaurante, a Taberna do Juiz, que serve petiscos e pratos tradicionais confeccionados na sua maior parte com produtos da aldeia e da região.

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Melhor anfitrião que o Sr. José não pode haver. Conhece todos os segredos da aldeia e das redondezas, leva-nos em passeio, conta histórias locais cheias de graça, chama a atenção para pormenores curiosos – como a oliveira que já pertenceu a dez pessoas ao mesmo tempo, a sepultura antropomórfica que agora é canteiro de flores, ou a inscrição numa pedra que puxa pela nossa imaginação para percebermos o que é. E além das caminhadas há várias actividades tradicionais da aldeia que se mantêm vivas e nas quais os hóspedes das Casas podem participar, dependendo da altura do ano.

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No largo principal da aldeia, uma das fontes sugere que umas quantas cabeçadas são maneira garantida de ganhar juízo. Será? Fica o desafio para irem até lá verificar se a presunção se comprova.

 

(Adaptado de um post no blogue Viajar Porque Sim)

 

Blogue da semana

Ana CB, 08.10.23

Começaram por ser dois, com o objectivo de darem a volta ao mundo durante um ano. A viagem acabou por ter de ser encurtada, mas o blogue ficou e cresceu. Tal como cresceu a família, e hoje já são três, embora a mais pequena ainda não escreva nem fotografe.

Como já perceberam, é um blogue de viagens. Os autores são a Raquel e o Tiago, e a pendura chama-se Maria. Nas muitas dezenas de posts já publicados desde 2017, o 365 dias no mundo conta as experiências desta família pelo mundo fora, entre roteiros, sugestões, opiniões sobre experiências, conselhos, preocupações e outras histórias.

Hoje somos um casal com uma filha que não quer parar de viajar, mas que sabe que uma criança muda o ritmo. Se é ela que nos comanda? Não diríamos, mas os nossos relógios sintonizaram com o seu bater de coração e somos felizes só por estarmos juntos.

E é também por isto que escolhi o 365 dias no mundo para blogue da semana.

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Caminhar

Ana CB, 21.08.23

Contava-me a minha mãe que comecei a andar muito cedo, e que agarrava todas as oportunidades para sair de casa. Confrontada com a condição de poder acompanhá-la desde que não pedisse colo, habituei-me desde pequenina a caminhar, por vezes distâncias que certamente pareceriam enormes para as minhas pernas de criança. Mais tarde, em viagens com o meu pai – para quem andar a pé era o modo de locomoção preferido – percorri quilómetros infindos em Nova Iorque, Londres ou Paris quase sem entrar num transporte público. Usar o autocarro ou o metro ficava reservado para o final do dia (e só às vezes…), se os pés já acusassem o cansaço.

 

Mesmo depois de entrar na “era das quatro rodas”, ou seja, quando passei a ter carro e autorização para conduzir, nunca deixei completamente de gostar de caminhar, pese embora durante uns bons anos só o fizesse quando não tinha outra alternativa. O frenesim diário da minha vida implicava deslocações rápidas, e a rapidez implica, em distâncias para lá de curtas, um veículo motorizado.

 

Fosse em Portugal ou lá fora, as minhas férias sempre envolveram caminhadas mais ou menos extensas – e nem o meu filho escapou, com uns meros cinco anos de idade, aos oito quilómetros a pé entre La Défense e o Museu do Louvre, seguidos de mais alguns a percorrer várias das enormes salas do museu. O gene de viajante que tem passado de geração em geração na minha família parece ser gémeo siamês do gene de caminhante.

 

Na verdade, sou daquelas pessoas que acha que andar a pé é a melhor maneira de conhecer um lugar, e este meu gosto por caminhar tem vindo a crescer com os anos. Concedo que é estranho: agora que tenho menos energia e estou em pior forma, aumentou a minha apetência pelas caminhadas. E aumentou de tal maneira, que algumas das viagens que tenho feito nos últimos anos têm propositadamente incluído uma boa fatia de trilhos pedestres. Hoje em dia, para mim, caminhar é tanto um gosto como uma necessidade, um contraponto físico e mental a uma vida que sinto (e é, sobretudo por questões profissionais) mais sedentária.

 

Caminhar = forma de locomoção natural

Há qualquer coisa como quatro milhões de anos, ou perto disso, os nossos antepassados da tribo Hominini tornaram-se exclusiva e definitivamente bípedes. Segundo alguns biólogos, a bipedia será até anterior ao aumento da capacidade craniana, e a libertação dos membros anteriores para outras actividades que não o apoio à deslocação terá sido um avanço de extrema importância e contribuído para esse crescimento. Várias fases evolutivas depois, o homo sapiens continua a ser bípede, e a ser um dos dois únicos mamíferos que adoptaram exclusivamente este tipo de locomoção (o outro é o canguru).

 

O desenvolvimento cognitivo da nossa espécie levou a que inventássemos outras maneiras de nos deslocarmos que não sobre os nossos membros inferiores. No entanto, caminhar continua a ser a forma de locomoção mais natural, simples e humana que existe. Mais ainda do que isso, o acto de colocar um pé à frente do outro, intrínseco à nossa natureza e frequentemente considerado simples e rotineiro, transcende a mera locomoção e revela-se um fascinante e multifacetado fenómeno quando explorado através de diversas perspectivas.

03 Erg Chebbi, Merzouga, Marrocos.JPGCaminhar nas dunas do Erg Chebbi, em Marrocos

 

Caminhar = andar numa determinada direcção

Embora o acto de caminhar seja satisfatório por si só – por ser um hábito saudável, porque é propício à reflexão, e porque por vezes o caminho é mais importante do que o destino – uma caminhada tendo em vista um objectivo final traz-nos um propósito definido. Há uma motivação forte, um ponto no mapa que é preciso atingir, e desistir não é opção, mesmo quando o caminho se torna mais difícil e o cansaço já pesa. Sucedeu-me isso recentemente ao percorrer uma parte do Cotswold Way, na região central de Inglaterra, num dia particularmente difícil que envolveu subidas longas, um engano que implicou uma volta maior, e uma hora de chuva torrencial no final da caminhada. Saber que me aproximava do objectivo – chegar ao alojamento, poder secar-me e descansar – deu-me “asas nos pés” e, à chegada, a sensação de ter conseguido esticar mais uma vez os meus limites.

Caminhar na região das Cotswolds, em Inglaterra 

 

Caminhar = explorar sensorialmente diferentes ambientes

Quando caminho, os meus sentidos ficam mais despertos. A percepção do ambiente à minha volta é mais imersiva: os sons, os cheiros, as texturas do solo, as variações na luminosidade, tudo é absorvido de forma mais imediata e vívida. A forma como caminho é influenciada pelo lugar em que estou. Cada cenário imprime a sua marca na minha maneira de andar, uma simbiose única entre mim e o ambiente que me acolhe momentaneamente.

06 Torres del Paine, Chile.JPGTrilho Mirador Cuernos, Parque Nacional das Torres del Paine, na Patagónia chilena

 

Numa cidade vibrante como Londres, a energia que parece fluir de todo o lado acelera os meus passos. A cabeça gira de um lado para o outro na ânsia de absorver todo aquele movimento, paro para tirar uma fotografia (ou muitas!), ver uma montra, esperar que um semáforo mude de cor para que eu possa atravessar, desvio-me das pessoas apressadas que se cruzam comigo. Em época de Natal, fico contagiada pela alegria das luzes coloridas e dou por mim a sorrir sem ser por nada. Já uma vila toscana como Montepulciano ou Lucca têm em mim o efeito contrário: a pedra antiga dos edifícios faz-me sossegar, como que em reverência, observar com calma, saborear os pormenores. Veneza e Bolonha pedem-me que ande ao acaso e me perca nas suas ruas, que explore os seus becos e volte para trás, que ande em círculos para ir desaguar no sítio de onde parti.

07 Veneza, itália.JPGCaminhar nas ruas escondidas de Veneza
Caminhar nas ruas íngremes das vilas toscanas
Caminhar à sombra das arcadas de Bolonha

 

Caminhar num ambiente natural é toda uma outra experiência. Fico mais relaxada e automaticamente em sintonia com a tranquilidade da natureza ao meu redor. Uma floresta é para mim como um casulo, sinto-me protegida e confortável. Um trilho numa montanha deslumbra-me constantemente. As irregularidades do piso marcam o compasso da caminhada. A minha atenção está focada no momento: na atmosfera em que estou inserida; no obstáculo que é preciso contornar; na respiração que tenho de controlar quando a subida é mais exigente. À beira-mar, as sensações entram pela pele: a frescura da água nos pés, a textura da areia, a brisa que vem do mar e agita o cabelo. O passo é desigual, os pés enterram-se no chão, por vezes é preciso fugir de uma onda mais atrevida.

12 Bosque de Chavanod, França.JPGO tranquilo Bosque de Chavanod, perto de Annecy, França
13 El Chaltén, Argentina.JPGEl Chaltén, a capital do trekking na Argentina
14 Parque Grená, São Miguel.JPGSubir ao Miradouro do Poço do Salto da Inglesa no Parque Grená, em São Miguel
lhéu das Rolas, São Tomé                                                                                                  Menorca, Espanha

Percorrer ambientes diversos é uma tecelagem dinâmica de experiências e caminhar, mais do que um acto físico, torna-se um veículo de exploração que me liga ao mundo que me rodeia e o traz para dentro de mim.

 

Caminhar = sentir a mutabilidade da natureza

Viver na correria da cidade desliga-nos em grande medida dos ritmos naturais da vida e das transformações a que a natureza está sujeita ao longo do ciclo das estações do ano. É certo que sentimos o frio e o calor, e apercebemo-nos de quando os dias crescem ou encolhem, vemos as folhas desaparecerem de certas árvores e as flores que às vezes desabrocham quase de um dia para o outro. Mas não vamos muito mais longe do que isso.

 

Percorrer a pé um mesmo trilho ou uma mesma região em épocas diferentes do ano oferece-nos toda uma outra perspectiva (muito mais abrangente) do mundo em que vivemos. Se o Minho que visito no Verão é brilhante e colorido, no Outono é maravilhoso, com as árvores pintadas em tons de ferrugem e o aroma do mosto que se espalha pelas aldeias. No Inverno, caminhei nas Fragas do Eume, na Galiza, quase sempre com o rio à vista por entre os ramos despidos dos carvalhos; no Verão, as águas do Eume ouvem-se mais do que se vêem, escondidas pela cortina frondosa que se estende ao longo das suas margens. Fazer o percurso pedestre que liga o Piódão a Foz d’Égua na Primavera é encher os olhos de paisagem colorida pelas giestas, urzes e árvores em flor, enquanto no Inverno é o cinzento que domina.

O Inverno nas Fragas do Eume, em Espanha, e o Minho no Verão
Primavera: cerejeiras em flor no Vale do Jerte, em Espanha, e giestas no Piódão
21 Buçaco.JPGOutono no Buçaco

 

Caminhar ao longo das estações do ano sintoniza-nos com a natureza cíclica da vida e desperta-nos para a importância de aceitar as mudanças e transformações – as do mundo à nossa volta, e as nossas.

 

Caminhar = estimular a criatividade

Quando caminho sozinha num ambiente pouco distractivo, tenho tendência a divagar. E não são poucas as vezes em que noto que me surgem pensamentos mais fora do comum. Ou, se tenho alguma questão a resolver, que me é mais fácil ordenar ideias e tomar uma decisão. Caminhar actua sobre mim como uma espécie de catalisador da criatividade, de facilitador de soluções ou projectos. A cadência dos meus passos influencia o meu estado mental, como que regulando o ritmo do meu cérebro – uma espécie de meditação em movimento, de onde tudo parece surgir mais claro e descomplicado.

22 Esmoriz.pngPassadiços da Barrinha de Esmoriz

 

Caminhar = sentir a mudança

Embora eu não faça caminhadas com uma regularidade fixa, tento andar a pé sempre que possível: se tenho tempo e a distância ou o peso não são incomportáveis, esqueço o carro ou os transportes públicos e vou a pé. As vantagens são mais que muitas, e caminhar tem-me ajudado até em alturas mais complicadas da minha vida: é uma terapia barata e eficaz, um estimulante natural do humor e um mitigador da tensão. Além dos óbvios benefícios para a saúde física, andar mais a pé e considerar a caminhada como uma das minhas principais actividades de lazer tem provocado algumas mudanças em mim.

 

Caminhar desacelera o tempo, e agora dou mais prioridade ao vagar. Neste mundo em que a pressa é uma constante, caminhar sabe-me a pausa e cada vez gosto mais de observar o que me rodeia ao ritmo dos meus passos. Andar a pé é também uma celebração da simplicidade, e tenho vindo progressivamente a tentar simplificar a minha vida, dando mais espaço (temporal e mental) ao que é realmente importante para mim. E é uma lição de humildade: quando me desloco pelos meus próprios meios apercebo-me melhor da minha pequenez na ordem natural do universo.

23 Drave.JPGCaminhar até à aldeia desabitada da Drave

 

A ligação entre o movimento físico e a nossa mente é mais profunda do que parece. Caminhar ajuda-me tanto a reflectir como a tomar consciência do que existe à minha volta, e conduz-me a revelações profundas sobre mim própria e o nosso mundo. É a melhor maneira de me lembrar que as respostas que procuro estão frequentemente mais próximas do que pensava, e que para encontrar o extraordinário basta – tantas vezes! – olhar para o que é comum.

Blogue da semana

Ana CB, 23.07.23

O nome do blogue engana. “Contos Alfacinhas” parece ser (e também é!) sobre Lisboa, mas é muito mais do que isso. É o lugar de escrita da Filipa, “histórias de uma alfacinha em Lisboa, e de uma Lisboeta no Mundo”, nas suas próprias palavras. E, qualquer que seja o tema, a Filipa escreve tão bem…! Nas descrições, sempre muito pessoais, das viagens que tem feito e das suas experiências, sente-se que escreve com o coração, muitas vezes de forma poética. Lê-la é um enorme prazer, e nunca cansativo.

Contando as suas histórias neste blogue “feito de pequenos momentos em grandes viagens e momentos enormes ao virar da esquina”, a Filipa tem como objectivos maiores inspirar-nos a sair de casa, mas também levar-nos a pensar sobre as nossas atitudes em viagem e em relação às viagens de um modo geral, sobre “o nosso impacto ambiental e social” e a responsabilidade que temos para com o mundo e as pessoas que nos rodeiam, seja em que lugar for.

É um dos meus blogues de viagens favoritos, e é a minha escolha para blogue da semana – porque merece muito ser lido.

A ponte 516 Arouca, passadiços, baloiços e afins

Ana CB, 27.06.23

Eu, pecadora, me confesso: já percorri a ponte 516 Arouca. E gostei da experiência. Quer isto dizer que sou fã de pontes suspensas, passadiços, baloiços e todas as demais infra-estruturas cuja intenção principal é apenas serem chamariz para o turismo? Claro que não. Devemos riscar do nosso mapa e votar ao esquecimento todos estes equipamentos que têm crescido que nem cogumelos um pouco por todo o nosso país? É óbvio que também não. A polémica está instalada e avoluma-se na proporção do aumento destes locais, que atraem cada vez mais atenções e pessoas. Não sou nem me considero tecnicamente habilitada para emitir juízos sobre o assunto. Apenas posso falar sobre o que vejo e sinto, e reflectir sobre o assunto. Que é precisamente o que vou fazer.

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Deixem-me, antes de mais, contar-vos como foi a minha experiência. Fim-de-semana combinado com amigas para ir conhecer Cinfães e uma parte da margem sul do Douro, o facto de nenhuma delas ainda ter ido aos passadiços do Paiva fizeram-nos decidir aproveitar a proximidade geográfica e reservar um dia para este passeio.

A ponte tem duas entradas, uma em Alvarenga e outra no Areinho, e optámos pela primeira porque a do Areinho obriga a subir (e depois descer, obviamente) a escadaria inicial de acesso aos passadiços, e no grupo há uma pessoa que tem uma certa fobia a descidas. Além disso, o plano era também ir depois provar o célebre bife de Alvarenga, uma sugestão à qual não consegui resistir – há já vários anos que evito comer carne de qualquer tipo, mas não sou fundamentalista e abro excepções quando estou em viagem, principalmente quando os outros pratos não me agradam por aí além; e constato, com muita pena minha, que continuo a gostar imenso de um belo bife de vaca. Mas adiante…

O carro ficou estacionado junto ao cemitério de Alvarenga, onde uma seta indica o acesso à ponte por um caminho pedonal que atravessa uma parte da aldeia e segue depois por um belo trilho de terra batida entre árvores.

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As entradas na ponte são com hora marcada, porque é preciso limitar o número de pessoas que acedem, e porque cada grupo leva um guia. As torres onde estão fixados os extremos da ponte são uns mamarrachos altos que desfeiam a paisagem, e só não é pior porque ao longe ficam meio escondidas pelas árvores, sobretudo a da entrada de Alvarenga.

No início, e também quando chegamos ao lado oposto, o guia dá algumas explicações sobre a ponte, a envolvente, e a fauna e flora da região. São explicações curtas e nada maçadoras, pois já se sabe que quem ali está quer mesmo é passar pela experiência sem ter de ouvir grandes dissertações. E atravessar a ponte é, de facto, uma experiência diferente de tudo o resto que podemos ver e fazer no nosso país. A paisagem é lindíssima, como não podia deixar de ser, com a Cascata das Aguieiras a despenhar-se pela encosta abaixo e as vistas sobre quilómetros da Garganta do Paiva de ambos os lados da ponte (e por baixo!), o rio a correr lá bem no fundo. Mas o que mais me impressionou foi mesmo a sensação de estar a uma grande altura tendo em volta um espaço completamente aberto e a perder de vista – quase como se estivesse a pairar. O gradeamento da ponte nem sequer nos chega aos ombros e não serve de grande bloqueador visual, e os cabos de suporte são praticamente invisíveis, mais ainda num dia em que o céu estava da mesma cor. A somar a isso, a ligeira vibração da ponte contribuiu para a impressão de que não estava a pisar chão firme, quase como se estivesse num barco.

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Depois de terminar a primeira travessia houve quem continuasse para os Passadiços, mas a maioria dos visitantes voltaram para trás pelo mesmo caminho, incluindo nós. Já tínhamos mesa marcada para o famoso bife, que não defraudou as expectativas. O restaurante, um dos vários que há na localidade, é grande mas estava a abarrotar, e havia fila de espera. Não creio que a maioria dos clientes estivesse ali por causa da ponte ou dos passadiços… Nós, portugueses, somos capazes de fazer dezenas (às vezes centenas) de quilómetros para ir comer qualquer coisa de especial que nos apeteça, só porque sim.

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A manhã tinha estado chuvosa, mas quando saímos do almoço o mundo estava diferente, sol brilhante numa tarde calma e quase sem nuvens. Aproveitámos para ir até Espiunca, onde deixámos o carro, e fomos percorrer passadiços durante três ou quatro quilómetros, voltando depois para trás. Um passeio muitíssimo agradável, relaxante, que me deu a oportunidade de ver o rio a uma outra luz, pois da primeira vez que os percorri (podem ler tudo neste post) o tempo estava chuviscoso.

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Já passei por algumas outras experiências “radicais”, mas atravessar a 516 Arouca foi na verdade diferente. Não estou a dizer que tenha sido a mais fantástica de todas – até porque me sentia incomodada com a chuva, que a certa altura caiu com alguma intensidade e começou a encharcar-me, apesar do impermeável. No entanto, embora já tenha cruzado outras pontes suspensas, esta foi de facto única no género, pelo menos até agora.

 

O que é que me levou a querer ir à 516 Arouca? Pois a curiosidade, está claro. De conhecer uma coisa nova, querer saber como é em vez de só ouvir pela boca dos outros, que cada um tem uma perspectiva diferente consoante a sua própria experiência. E, sobretudo, de querer pôr-me à prova, numa situação única e que não é, de maneira nenhuma, para todos. Não sou medricas, não tenho fobia de alturas, nem sofro de vertigens. Mas também não sou propriamente uma supermulher, e há situações que impõem respeito, ou mexem com os meus terrores de criança (e alguns de adulta…). Gosto de saber até onde consigo ir, conhecer os meus limites e tentar esticá-los mais um bocadinho. Já passei por situações que achei irem ser favas contadas e depois não foram, e por outras que pensei serem mais difíceis e ultrapassei sem grandes problemas. É com estas experiências que me vou conhecendo melhor.

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Aqui há uma meia dúzia de anos, descobriu-se que o turismo podia ser uma galinha dos ovos de ouro para Portugal. Acontece que o turismo é um “produto” com tantos outros e, nos tempos que correm, para vender há que apostar no marketing. Se os primeiros passadiços de madeira instalados no nosso país tinham como finalidade proteger os cordões dunares da nossa costa, não tardou muito até que alguém percebesse que seriam também uma forma de tornar acessíveis às pessoas comuns, para fins de lazer, zonas que habitualmente exigiam algum nível de agilidade para serem visitadas, bem como outras de acesso praticamente impossível. Quase de um dia para o outro, passámos a poder andar, correr ou pedalar em áreas de floresta, ria, pântano, areia, rocha, e tudo o mais que as edilidades autárquicas se têm lembrado de aproveitar para atrair visitantes aos seus territórios. Nalguns casos, a madeira veio substituir ou alternar com trilhos de terra batida pré-existentes, noutros simplesmente criou percursos novos onde apenas havia terra ou água.

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A fórmula resultou: portugueses e estrangeiros aderiram em massa a estas novas oportunidades de estarem mais facilmente em contacto com pedaços de natureza que até então lhes estavam praticamente vedados, e muitas localidades desconhecidas (ou quase) começaram a florescer com este aumento de atenção. Mais gente significa mais cafés, mais almoços, mais dormidas na região, mais uma “lembrança” que se compra. Mas também significa mais barulho, mais intrusão, mais lixo, mais impacto ambiental. Negativo, ou nem tanto? Fizeram-se estudos antes de tomar as decisões? Segundo o que tenho lido, parece que não – e também parece que não estão a ser avaliadas quaisquer potenciais alterações que tenham ocorrido ao longo dos anos de utilização de várias destas estruturas.

Se resulta bem para uns, então também deve resultar bem para outros, e as “modas” pegaram. Primeiro foram os passadiços. Com o sucesso dos do Paiva (que, dizem os ambientalistas, não faziam falta nenhuma), começaram a surgir estruturas no género em tudo quanto é sítio – alguns nem sequer são passadiços propriamente ditos, são apenas escadas de madeira absolutamente redundantes, como é o caso, por exemplo, dos que instalaram nas Fragas de São Simão, que nada vieram acrescentar a não ser poluição visual, pois os acessos à praia fluvial já eram mais do que suficientes. Pelo contrário, aumentaram a pressão humana num local idílico, que já foi relativamente tranquilo e agora fica apinhado de gente mal o tempo aquece. Também os passadiços que estão (ou estiveram, porque a obra foi parada a meio e, tanto quanto consegui perceber, ainda não foi concluída) a ser construídos junto ao Pulo do Lobo, perto de Mértola, não fazem grande sentido num local que sempre foi de fácil acesso a partir de qualquer das margens. E estes são só dois exemplos.

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Depois foram os baloiços. Aos dois ou três mais antigos, juntaram-se recentemente tantos que já lhes perdi a conta. Embora não tenham o impacto ambiental dos passadiços, como são “instagramáveis” por natureza acabam por atrair hordas de pessoas ao local onde estão instalados – e quem diz pessoas diz carros, como é óbvio, e a consequente poluição. Alguns estão em sítios onde já existiam outras infra-estruturas de lazer, e por isso acabam por não fazer grande mossa, mas outros foram colocados em locais onde não há mais nada a não ser beleza natural.

Entretanto chegaram as pontes. As notícias da inauguração da 516 Arouca correram mundo (e a polémica de ser ou não a mais longa do mundo não a prejudicou, antes pelo contrário – é aquela coisa de não importar se dizem bem ou mal, o que interessa é que falem…) e visitantes não faltam, apesar das queixas do preço elevado (pode ser caro para o nosso nível de vida médio, mas para qualquer estrangeiro será uma pechincha). A ponte vem até insuflar vida nos próprios passadiços, que já têm demasiada concorrência. As torres estragam a paisagem, é verdade, mas a ponte em si, vista de longe, pouco se nota. Sobre o custo e o facto de alegadamente ter sido feita com dinheiros públicos, que poderiam ter sido usados para outro tipo de investimento, penso que é uma questão que deveria ser bem esclarecida e discutida. Com o sucesso da 516 fica uma porta aberta para que outras estruturas no género comecem a aparecer. E será que fazem falta? Esta é, quanto a mim, mais uma matéria discutível e que não deve ser apenas analisada do ponto de vista do turismo.

 

Devemos então pôr completamente de lado este tipo de infra-estruturas turísticas? Ou, indo mais longe, o turismo será mais nocivo do que vantajoso? Como é óbvio, não tenho qualquer idoneidade para dar uma resposta cabal as estas questões. Mas podemos olhar para o que é feito noutros países, seja de bom ou de menos bom, e tirar algumas conclusões. Bons e maus exemplos não faltam por esse mundo fora. O que pode eventualmente faltar é o discernimento para distinguir entre o que é apropriado para determinados lugares, e o que é exagero e mero exibicionismo.

Será que os benefícios económicos do turismo têm sempre como contraponto desvantagens ambientais e uma descaracterização cultural? Não forçosamente. Tudo depende, como é evidente, de como se olha para esta fonte de rendimento, dos limites que são (ou não) impostos ao seu desenvolvimento, e da forma como são geridas as questões mais complexas que o seu incremento sempre levanta. Bons exemplos há muitos. Organismos e associações regionais que optam por incentivar a continuação de modos de vida e de produção mais tradicionais (em vez de orientarem a maioria das pessoas para profissões padronizadas, como a restauração ou a hotelaria). Reinvestimento de lucros em soluções ambientalmente mais sustentáveis, tanto por parte de entidades privadas como públicas. Ou projectos que juntam a observação da vida selvagem com a sua conservação. Há muitas maneiras de levar a água ao moinho e fomentar o turismo sem desvirtuar o que já é positivo.

O turismo (e sobretudo a sua massificação) é, de facto e em muitos casos, fonte de grandes e variados problemas. Mas pode também, se “utilizado” de outras formas, fazer parte da solução. Independentemente do que nos é oferecido e da forma apelativa como essa oferta é feita, podemos sempre pesar os prós e os contras das nossas opções quando viajamos, e adoptar princípios e condutas que sejam menos danosos para o nosso mundo ou mesmo, idealmente, que contribuam para um desenvolvimento ponderado dos lugares que visitamos.

Mas voltando à questão mais comezinha que deu origem a este texto. Se por um lado é possível compreender o entusiasmo com que no nosso país actualmente se divulgam e acolhem todas as “novidades” turísticas que têm vindo a surgir nos últimos anos (mais ainda agora, quando toda a gente ficou sequiosa de voltar a usufruir de uma liberdade total), por outro lado parece-me ser importante – e antes que este frenesim descambe e depois seja mais difícil contê-lo – reflectir e ter algum espírito crítico em relação ao que está, ou não, a ser feito, e como está a ser feito.

Não é preciso cair no exagero de encarar pontes suspensas, passadiços, baloiços e afins como obras demoníacas, nem o turismo como um pecado, mas é de todo aconselhável ter a noção de que as nossas escolhas quando viajamos têm sempre algum impacto no mundo que nos rodeia.

 

(Adaptado de um post no blogue Viajar Porque Sim)