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Delito de Opinião

É isto que nos espera?

Sérgio de Almeida Correia, 16.05.25

404734863182e39d2f25defaultlarge_1024.jpg(créditos: Rádio Renascença/Homem de Gouveia/LUSA)

O Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo não deixa a mais pequena margem para qualquer dúvida.

O modo como foi conduzido o caso dos militares que estavam em serviço no NRP Mondego, pelo então Chefe do Estado-Maior da Armada, hoje pré-candidato e – se as sondagens estiverem certas e não surgir um candidato decente da sociedade civil – futuro Presidente da República, Henrique Gouveia e Melo, com uma inacreditável sucessão de atropelos à legalidade, a múltipla violação de direitos fundamentais dos arguidos, o desrespeito por normas de cariz constitucional, numa questão que, em bom rigor, numa perspectiva jurídica, era de lana caprina, e a defesa que de todos esses atropelos se fez "com unhas e dentes" não augura nada de bom para o sossego dos portugueses e a garantia de futuro bom desempenho do mandato presidencial.

Os vícios procedimentais, a que o senhor almirante deu acolhimento enquanto Chefe do Estado-Maior da Armada, são tantos e tão graves que os senhores juízes concluíram escrevendo que "[a] nulidade da decisão sancionatória disciplinar por vícios do procedimento, obsta à apreciação e qualificação do comportamento dos militares da Marinha descrito nos autos e à (in)validade da subsunção normativa que lhe será inerente, bem como, consequentemente, prejudica a aferição da legalidade substancial das sanções aplicadas".

Uma perfeita borrada, não tenhamos medo da contundência de algumas palavras, imprópria de um Estado de direito, que alguns iludidos, outros desvirtuados e espúrios interesses, se preparam para apoiar fechando os olhos a tudo o mais.

Nem todos os que dizem viver com Deus no dia a dia chegam a santos. E alguns não são nada recomendáveis, em especial se se apresentarem de avental a rigor.

Vale por isso a pena ler na íntegra o acórdão do STA, de 30/04/2025, proferido no Processo 0121/24.4BCLSB, cuja ligação aqui fica.

Pelo menos ficamos todos a saber com o que iremos contar e não haverá razão para depois se queixarem das escolhas que fizerem. 

Posso ter simpatia por uma pessoa, até ver nela uma pessoa cordata, educada, discreta, competente para muitas funções.

Porém, para se ser Presidente da República, num Estado de direito democrático, não basta não ser corrupto, e dizer meia-dúzia de banalidades para a populaça, ter boa apresentação e saber alinhar a tropa na parada. Para os discursos ou as vacinas. Convém, e não apenas, interiorizar os valores constitucionais, legais e políticos e ser capaz de respeitá-los sempre, em todos e quaisquer momentos.

Ainda mais quando se é militar, se exercem as mais altas funções de comando e se tem de ser um exemplo para os outros perante circunstâncias adversas. 

É nestas, aparentemente pequenas, coisas, e não valerá a pena por agora falar de outras, mas que contendem com a vida de todos, que se distinguem os grandes líderes e se vê quem não serve para determinadas funções, independentemente das escolhas serem livres e do veredicto popular ter de ser sempre respeitado.

No erro também há que ter humildade. E assumir que se errou para se poder avançar. E sobre isto ainda não ouvi do senhor almirante uma única palavra.

 

Nota: O que aqui fica não quer dizer que qualquer um dos outros candidatos, conhecidos ou que andam a ameaçar vir a sê-lo, atirando moedas ao ar, mereça o mais pequeno crédito, ou benefício da dúvida, para a função. São todos demasiado maus para que se possa, sequer, imaginá-los em Belém.

Nota 2: Confirma-se. Mais um naufrágio a caminho, tal como aqui referido.

Ainda acaba de bússola à procura do Bugio

Sérgio de Almeida Correia, 15.05.25

Marcelo Rebelo de Sousa condecora Almirante Gouveia e Melo com a Grâ-Cruz da Ordem de Cristo.(créditos: Expresso, Nuno Fox)

"Não quero contribuir nesta fase para um ruído que acho que é desnecessário na altura em que estamos concentrados nas eleições legislativas"

Pois bem, a frase acima transcrita foi dita pelo almirante Gouveia e Melo, ex-Chefe de Estado Maior da Armada, há pouco menos de dois meses. Consta de um despacho da LUSA e vem referida na notícia do Expresso, cujo link acima deixei.

Na altura, o senhor almirante justificou a sua posição esclarecendo, sobre "uma eventual candidatura", que não queria tirar o foco das legislativas, e que reservava uma posição para "depois das eleições", acrescentando que nessa altura seria "mais claro do que sou agora, porque o meu papel neste momento é esperar pelas eleições legislativas".

Ontem, o mesmíssimo almirante, qual D. Sebastião de dias soalheiros, resolveu anunciar a formalização da sua candidatura à Presidência da República no próximo dia 29 de Maio. E veio justificar a sua mudança de atitude e a oportunidade da intervenção com a sua vontade de "contribuir de forma muito decisiva para a estruturação da política de médio e longo prazo". Muito decisiva, diz o senhor almirante.

Não sendo candidato a primeiro-ministro, e avisando que só anunciará a candidatura em 29 de Maio, o almirante acabou por não acrescentar rigorosamente nada ao que já se sabia do putativo candidato.

Não se percebe, aliás, afinal não dizendo nada de útil, em que medida este anúncio, qual gato escondido com o lombo todo de fora a apanhar sol, contribui para a estruturação política de médio e longo prazo, a sua grande preocupação, embora se prepare para entrar no curto prazo em campanha, e não esteja prevista qualquer alteração dos mandatos presidenciais que possibilite, ao contrário do que sucedeu na China e na Rússia, que o senhor almirante depois de eleito transforme a sua passagem pelos aposentos do Palácio de Belém numa permanência de longo prazo, digamos, aí uns vinte ou trinta anos.

O futuro candidato presidencial esclareceu ainda que a escolha deste momento para o anúncio se prenderia, igualmente, imagine-se, com o facto de não querer "influenciar em eleições que têm a ver com os partidos políticos", mas que "o tempo para o anúncio da (...) candidatura começa a ser curto, porque preciso de enviar convites para a cerimónia". Ora bem.

O meu rico, mas efémero, convívio com as gentes da Marinha recordou-me o quão actual, verdadeira e genuína é esta última frase. Dir-se-ia talhada por um Boaventura Sousa Santos.

Eu gostava de não me rir, nem de fazer comentários menos próprios sobre a organização (militar, está visto), a arrumação de ideias e a credibilidade do senhor almirante, muito menos em público. Não quero que ele fique ofendido. 

Mas depois de sumariamente, ou não tão sumariamente, visto que o acórdão tem 230 páginas, o futuro candidato ter sido acusado de atropelar leis e regulamentos, e olhado como incompetente pelo Supremo Tribunal Administrativo, e de cessar o seu mandato na Marinha deixando como herança, dois meses depois, para o seu sucessor, os dois únicos submarinos ao serviço do país inoperacionais, para logo de seguida assistirmos ao afundamento de um navio-escola sem que sequer saísse para o mar, ali bem juntinho ao cais do Alfeite, temo que o senhor almirante esteja a falhar a estratégia e o planeamento de curto prazo, o que, na sua situação, seria o mais premente.

Estratégia e planeamento são os factores que nos dias de hoje mais dão nas vistas e enchem os jornais, d' A Bola ao Observador, o que nem sempre é bom para quem quer proteger a imagem. Os galões. E mantê-los enxutos. 

É evidente que os convites são importantes, e essa vertente de funcionário preocupado e manga-de-alpaca não será de desprezar para quem quer ser Presidente da República. O Américo estava sempre atento a detalhes. Mas é óbvio que assim, ainda que o invistam na função, não iremos lá. O senhor almirante poderia sempre começar a enviar os convites esta semana, pedindo sigilo aos destinatários, ou fazendo com que aqueles só começassem a chegar aos escolhidos após o dia 18 de Maio. Para não criar ruído antes do tempo. Chinfrim.

Enfim, pelo que leio da suas declarações, o senhor almirante queria mesmo era ser Presidente da República com funções de primeiro-ministro.

Por aí, a avaliar pelo passado recente, até nem estará mal visto.

Pese embora algumas minudências constitucionais, que Jorge Miranda, Vital Moreira, Reis Novais e Bacelar Gouveia poderão sempre analisar enquanto os convites não chegam, seria bom que Gouveia e Melo, se é mesmo esse o seu objectivo de vida para a reforma, não desperdiçasse tiros, para o que deveria contratar alguém que o ajude rapidamente a afinar a mira, a arrumar a casa e, em especial, as ideias.

Não é conveniente que Gouveia e Melo ande neste momento a atirar very ligths, estando o primeiro-ministro ainda a braços com a mudança da sede desse empecilho da Spinumviva depois de ter anunciado ao país que a sua mudança estava concluída há três meses

Estou convencido, embora possa estar enganado, que aquele inolvidável passeio do senhor almirante no Ártico não lhe fez nada bem, e a ida ao Bar Cockpit com o ministro da Defesa Nacional, Nuno Melo, só contribuiu para o agravamento da situação.

De qualquer modo, até os convites começarem a chegar ainda há tempo. Pelo sim pelo não, no seu lugar, era capaz de enviá-los com umas bóias e uns coletes salva-vidas. Com tanta água a entrar pela proa é mais do que natural que as coisas comecem a adornar. E se houver que ir ao banho convém estar preparado. Ele e a sua tripulação, que nestas coisas um tipo tem de se aviar em terra.

O Professor Marcelo gosta de nadar no Guincho, no Tejo, e noutros mares nunca dantes navegados, embora não conste que tenha vocação de nadador-salvador. Bem pelo contrário. E não me parece que se atrevesse a ir buscar um almirante em apuros em resultado de um naufrágio pré-eleitoral. Verdade que não tem andado bem em muitas situações, mas para ficar lelé-da-cuca ainda lhe faltam uns meses.

Ah!, e só mais uma coisa: no seu lugar, enquanto estiver a planear, a preocupar-se com o futuro, também evitaria almoçaradas com o Dr. Isaltino Morais. O senhor almirante que não vá na conversa dele. O tipo é melífluo, perigoso, e sabe disfarçar. Se Portugal fosse o Vaticano iria a Papa. E de avental.

Aquilo começa sempre com um favaios, petiscando uns queijinhos e uns salpicões lá da terra dele, para ganhar algum lastro e à-vontade. Prossegue com provas de vinhos brancos correntes, trincando umas morcelas e uns salpicões, antes de chegar o arroz de lavagante, começarem as anedotas, e vai por ali fora até ao final da tarde atrás de uma posta mirandesa, com os risinhos das empregadas, provando-se toda a gama de topo dos Douro Boys, antes de começarem a chegar os abades de priscos, as barrigas de freira, as trouxas e o pudim de Vinho do Porto.

Dos almoços com o Dr. Isaltino nunca se sabe que programa de campanha, e de governo – que ele é como aqueles pedreiros que gostam de andar com as mãos na massa e de fazer sempre a obra toda –, vai sair dali. Em especial se depois se lembrar de acender um charuto e lhe quiser oferecer um Macallan de 18 anos antes de ir para casa.

Ninguém gostaria de ver um almirante de bússola na mão à procura do Bugio. E sem saber da lista e dos convites para a posse. Que diria o Dr. Marques Mendes?

Pense nisso, homem. Cautela e caldos de galinha nunca fizeram mal a ninguém. Temo é que já vá tarde. E com demasiada água na casa das máquinas.

Nem no 13 de Maio se safam

Sérgio de Almeida Correia, 13.05.25

1600px-Caravaggio_(Michelangelo_Merisi)_-_The_CardCaravaggio, 1594, I bari (Os trapaceiros)

O resultado da sondagem do Barómetro DN/Aximage não engana. E mostra a consistência do juízo que os portugueses fazem dos seus dirigentes políticos. "[N]ão há um líder partidário com saldo positivo".

Estão ali, em São Bento ou na Gomes Teixeira, como podiam estar ao balcão de um banco, a receber formulários numa repartição qualquer, a tirar cafés ou a servir imperiais na tasca do pai.

São consistentemente maus aos olhos dos seus concidadãos para as funções que querem desempenhar. Mas estão convencidos de que nasceram para aquilo. Até tratarem da vidinha.

Incapazes de melhorarem a sua imagem, de apresentarem desempenhos decentes ou de suscitarem algum aplauso.

Os seus discursos vão permanentemente do irado ao monocórdico. São repetitivos, repletos de banalidades, desligados da realidade e das verdadeiras preocupações dos portugueses, recheados de frases feitas e lugares-comuns.

A grande pobreza vocabular das suas intervenções, o nível da linguagem, espelham a sua insuficiência formativa, o afastamento da realidade nacional, a falta de talento para a direcção política, a total ausência de carisma e de capacidade mobilizadora.

Nunca políticos carreiristas, semi-ignorantes, cábulas e com espírito de funcionário poderão alguma vez mobilizar um país, erguê-lo da mediocridade em que medra de eleição em eleição.

Ainda que a população fosse exclusivamente composta por bimbos com "sonhos de menino", o desencanto seria sempre o mesmo.

E isto já não é sina. É uma escolha consciente.

Porque até as crianças se recusam a nascer. E mesmo os mais capazes se conformam para não terem chatices e não se incompatibilizarem com os vizinhos.

Assim vamos seguindo, sem chama, sem apelo, sem horizonte, empurrando com a barriga, escovando os fatos, mudando a naftalina, seguindo atrás de uma elite de moribundos alegres.

Tivéssemos nós um Rimbaud e teria desertado para Java. Como um foi para a Índia e o outro para Macau. Para não terem de nos aturar. 

Cumprem obrigações como quem vai à missa dominical, virando as folhas do calendário, celebrando os aniversários, respeitando veneradamente as efemérides, sabendo que a seguir à Primavera virá o Verão, depois o Outono, antes de chegar o Inverno, enquanto se ensaia a ladainha seguinte e se cumpre a promessa ao longo da berma das estradas.

E no final dar-se-á a volta para que tudo se repita de novo. Com os mesmos e nos mesmos dias para que não se perturbe a paz dos mortos e a conformação dos vivos.

Venha então de lá o Dez de Junho.

Dias de Batávia (5)

Sérgio de Almeida Correia, 09.05.25

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Quando se viaja é difícil poder ver tudo o que se quer. Ou o que se gosta. E há ocasiões em que se acaba a perder tempo vendo o que não se quer, não se gosta e é inútil para o nosso enriquecimento ou bem-estar.

Daí que desconfie de quase tudo o que me aparece em panfletos publicitários e em grandes promoções logo à saída dos aeroportos, nos hotéis e nas ruas mais movimentadas, coisas do tipo “não perca esta experiência única”, “a world of shopping”, “unforgettable moments”. Um pouco como aquelas cantinas que anunciam pizzas, sushi, caril e cozido à portuguesa e das quais fujo a sete pés.

Apesar disso acabei por embarcar numa "aventura". Ficando aquém das minhas expectativas, ainda assim fez-me passar umas horas diferentes.

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O último grande aquário onde estive, há anos, foi o Vasco da Gama, que visitei com um sobrinho, mais neto, quando ele começou a descobrir o mundo em que vivemos. Normalmente prefiro ver a fauna e flora marinhas no seu ambiente natural, o que há mais de quarenta anos me leva a sítios mágicos nos cinco continentes.

Desta vez, em virtude de ter algum tempo livre, resolvi visitar o Jakarta Aquarium Safari. A surpresa foi descobrir que ficava dentro de um dos modernos e gigantescos centros comerciais da cidade, o Neo Soho, numa zona de saída para a periferia e sem luz natural. A novidade foi perceber que na bilheteira, estranhamente, não se aceitava dinheiro físico.

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Quem gosta de animais nunca dará o seu tempo por perdido. O espaço oferece bastante informação sobre espécies autóctones e importadas. Raias sul-americanas, piranhas do Amazonas, relas minúsculas e sapos esquisitos, focas e lontras é que não estavam no meu programa. Valeu por poder demorar-me a ver exemplares normalmente inacessíveis em condições de segurança, como diferentes tipos de lagartos, escorpiões e de tarântulas.

Há também outros animais inofensivos, corais, peixes exóticos, dos mais amigáveis aos que não se pode chegar perto, vulgares em inúmeros recifes na Austrália, na Malásia, nas Maldivas, nos Açores, em Palau ou no Havai, de todos os tamanhos, mais umas quantas moreias de várias nações, peixes-dragão, palhaços, peixes-folha, diferentes tunídeos, tubarões; sem esquecer a passarada e até uma pitão que por ali “hiberna” e se deixa acariciar por quem nisso tiver interesse. Encontrei inúmeras crianças, interessadas, simpáticas, acompanhadas pelos professores, em visitas de estudo, o que se repetiu noutros locais.

Passei por alguns mercados. Na Ásia têm sempre um colorido especial. Andei sem destino por diversos locais, descobrindo ruas típicas, zonas residenciais, a azáfama das lojas tradicionais e feiras de rua, sempre sem me demorar. Nada de novo. Confusão e calor.

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Há muitos cursos de água francamente poluídos e pestilentos que atravessam partes da cidade. Muitos gatos em jardins, outros vadiando, perto de comedores de rua e templos, espreguiçando-se ao sol, embora no geral se veja um esforço grande para elevar os padrões de higiene e salubridade. O clima não ajuda, vislumbram-se contentores e depósitos de lixo, não se vendo cães vadios.

Nas proximidades, traseiras ou mesmo no lado oposto da mesma rua, ainda se vêem hotéis superlativos, condomínios de luxo e lojas das melhores marcas em centros comerciais que convivem com nichos degradados e de águas residuais que precisavam de mais atenção. Lá chegará o dia.

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Como em qualquer grande cidade de um país em crescimento acelerado, económico e demográfico – é o quarto país mais populoso do mundo – vi muitos contrastes. Os carros e motociclos são em geral novos. Gente muito abastada – a taxa de crescimento de milionários é das mais elevadas do mundo –, outros que me pareceram francamente pobres sem que parecessem miseráveis.

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Em termos gastronómicos a oferta é rica e variada. E para todas as bolsas. Nas cozinhas e restaurantes de rua há uma clara predominância dos fritos. A evitar. Vejo imensa fruta, como é usual por estas bandas, cheirosa e de óptima qualidade, sumos naturais de tudo, mercados e supermercados excelentemente abastecidos, miríades de produtos gourmet vindos de todo o lado. E nos centros comerciais há tudo. Estabelecimentos de conhecidas brasseries, cerveja artesanal, restaurantes italianos, belgas, indianos, japoneses. E do melhor.

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Se de comida se fala, deixo aqui duas indicações. No 46.º andar do The Plaza, uma torre de escritórios que tem alguns restaurantes nos andares superiores, está o Altitude.  Um grill exemplar. Três pisos acima existe um terraço com um bar e uma esplanada magnífica, que os modernaços chamam de rooftop, com cocktails de confiança, um whisky sour profissional e vistas de cortar a respiração, antes ou depois de jantar, quando a noite se estica, a humidade se reduz, sopra uma ligeira brisa e a temperatura se torna mais amena.

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O Seribu Rasa é um restaurante com comida típica indonésia e alguns pratos de origem tailandesa ou malaia. Encontra-se nas traseiras do Pulman Jakarta, num local cuidado, extremamente aprazível, sem barulho e de uma qualidade notável na frescura e confecção.

Ambos com preços muito acessíveis, vinhos bons e aceitáveis. Quem preferir cerveja terá sempre a fresquíssima Bintang, local, e marcas europeias. Serviço impecável. E, mais importante, sem gente a falar alto e crianças mal-educadas correndo entre mesas perante a indiferença dos pais que falam ao telemóvel. A ambos espero voltar.

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Restaurantes, bares, música ao vivo e locais de diversão nocturna para os apreciadores do género também não faltam. Há uma zona em desenvolvimento a cerca de 24 Km do centro da cidade, relativamente próxima do Aeroporto Internacional, conhecida como PIK, com campos de golfe, inúmeros bares, restaurantes, discotecas, karaokes. A perder de vista.

Enfim, fiquemos por aqui.

Estes dias já vão longos para quem ainda se dá ao trabalho de aqui me aturar. A noite chega. Está na hora de refazer a mala, tomar um duche e preparar-me para um último jantar.

Antes disso ainda haverá tempo para um charutinho. E uma Guinness. It’s always time for a Guinness.

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Dias de Batávia (4)

Sérgio de Almeida Correia, 08.05.25

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Quando há dias cheguei ao hotel que durante esta semana me acolheu, logo percebi que estava numa zona central e movimentada.

Torres com uma arquitectura inovadora, denotando a sua ocupação por empresas petrolíferas, instituições bancárias e financeiras internacionais, passeios amplos, vastas zonas arborizadas, prédios residenciais com jardins tratados e entradas imponentes, algumas moradias de luxo nas artérias adjacentes, muita segurança nos acessos às habitações, aos edifícios de escritórios, aos hotéis e vários centros comerciais. Muitos homens circulando com fatos de bom corte em passo estugado. Profissionais liberais, talvez, diplomatas, empresários ou quadros superiores de multinacionais. Mulheres bonitas, arranjadas e impecavelmente vestidas, as que não seguiam de hijab e chador. É impossível ser insensível à beleza, à graça, à classe. As que vi de burca pareceram-me todas ricas e de outras paragens do mundo árabe. Percebi estar numa zona nobre da grande metrópole.

Não escolhi o hotel, mas fiquei satisfeito por estar alojado num belíssimo quarto com todas as comodidades de uma das minhas cadeias preferidas e já conhecida de outras andanças. O preço do quarto era irrisório para a qualidade do hotel e por comparação com os 300 e 400 euros que já me pediram nalguns lugarejos lusos por quartos minúsculos, decorados com incrível mau gosto e camas péssimas.

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Viajar é para mim uma obrigação. Se aos dezoito anos o fiz de comboio ou à boleia pela Europa fora, com um saco-cama, amealhando em campos de trabalho o que gastaria na semana seguinte, coisa de que nunca me arrependi, a partir de determinada altura passei a poder fazê-lo com outras condições de conforto e segurança.

Viajar devia ser para todos, mesmos para aqueles que são mais sedentários ou possuem menos recursos. Devia dar abatimentos no IRS fazendo-se prova da viagem e da sua utilidade. Pelos horizontes que abre, por aquilo que é capaz de nos fazer reflectir, a viagem obriga-nos a comparar, instrui-nos, educa-nos.

Não é o mesmo que fazer turismo. Viajar é mais do que passar pelos lugares e tirar umas fotografias para memória futura. É aprender a conhecer os outros, e ter tempo para isso.

Tempo para melhor os compreendermos e respeitá-los na sua identidade, coisa que não se faz à lufa-lufa, entrando e saindo de autocarros repletos, comendo a toque de caixa e decorando a matéria previamente preparada por outros até todas as noites se morrer estafado numa cama de onde se tem de saltar à alvorada sem que nos tenhamos sequer apercebido da cor das paredes do quarto e da textura do lençol. Verdade que não será sempre assim. Uma ou outra vez, em tempos, também “excursionei”, por razões logísticas e económicas. Ainda há locais onde só se pode aceder como "turista". Hoje evito-o. E a esses locais também.

E viajar é sempre uma oportunidade para fugir da rotina, pensar em Portugal à distância, e nos nossos semelhantes. Viajar é dar sentido aos sentidos. Importa pela gente que se vai conhecendo, que nos vai ensinando coisas novas noutras línguas, que connosco vi partilhando experiências, olhares, lições de vida, e que assim nos vai aproximando de novos horizontes, de outras maneiras, dando-nos generosidade, mundo, civilização, alma.

É verdade que nunca pensei ser rico para viajar; convenhamos que dá sempre um certo jeito. E quando se pode fazer isso a vida toda sem depender do partido, da autarquia, do governo ou da empresa, tanto melhor.

MayDay1.jpgVem isto a propósito do Primeiro de Maio de 2025, vivido em Jacarta. Saindo logo pela manhã do hotel em direcção às imediações do Monas, encontrei gente de múltiplas organizações. Uns marchando, outros cantando, alguns petiscando à sombra das árvores. Muitos chegaram de fora, em autocarros, outros de mota e a pé, trajando a rigor. Algumas ruas estavam com o trânsito interrompido.

Palavras de ordem, cânticos de megafone, que me recordaram outros dias iguais no rectângulo lusíada. Polícias, militares, descontraídos apesar de atentos. Vendedores ambulantes procurando a sorte. Depois do discurso do Presidente muitos partiram para o longe de onde haviam chegado horas antes.

Os manifestantes desfilaram diante da Embaixada dos EUA. Houve quem passasse pelas representações da Alemanha, da França e do Japão no seu percurso. Não foi preciso impedir ninguém de se manifestar ou controlar palavras de ordem. Não se retiraram cartazes, nem a polícia mandou despir t-shirts ou retirar livros das bancas. Era um dia de festa. Foi uma festa.

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Em contrapartida, em Macau, viveu-se mais um ano sem manifestações. Foi o sexto ano consecutivo sem Primeiro de Maio. Morreu. Finou-se. É a herança a meio do período de transição. Aqui está o exemplar cumprimento da Declaração Conjunta Luso-Chinesa sobre o Futuro de Macau.

Quando regressei, o Ponto Final noticiava que advertências da polícia fizeram recuar a única associação que pretendia manifestar-se no Primeiro de Maio. A associação de trabalhadores que a promovera, “por advertências da polícia, acabou por desistir da intenção”. Dizia o jornal que “as autoridades avisaram que a manifestação poderia até violar a lei de segurança nacional”. "Até"! Bendita lei. Ainda assim um homem foi levado para a esquadra pela PSP por protestar sozinho em frente à Direcção dos Serviços para os Assuntos Laborais. Ao que parece (os critérios são muito fluídos) violou a lei do direito de reunião e manifestação. Um homem. No Primeiro de Maio. Adiante. Aos portugueses, a Portugal e ao seu governo nada disto interessa.

Pois em Jacarta houve Primeiro de Maio. Ninguém violou a Lei de Segurança Nacional. Ninguém andou à procura de pretensas violações da lei para impedir as pessoas de livremente se manifestarem. Ninguém teve medo da sua própria sombra, não obstante o sol intenso e o calor que se fazia sentir.

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Aproveitei o resto da tarde para visitar uma pequena feira do livro, em Cikini, no Taman Ismail Mazurki Park, anteriormente conhecido como Jakarta Arts Center, actualmente gerido pelo Jakarta Arts Council. Trata-se de um complexo cultural, cujo nome se deve a um compositor e músico indonésio. O centro foi renovado em 2021e inclui a biblioteca da cidade, um planetário, teatros, um centro de arte e documentação, salas de cinema e de exposições.

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No dia seguinte, o Jakarta Post, num texto de Shinta Kamdani e Elly Rosita, respectivamente, dirigentes da Indonesian Employers Association (Apindo) e da Confederation of Indonesia Prosperity Trade Union (KSBSI), apelava ao diálogo social em tempos de incerteza, recordando que as crises se ultrapassam quando são enfrentadas por uma nação unida e com um único objectivo, através de acordos mútuos, evitando-se exacerbar os conflitos internos e mostrando-se empenho na resolução dos problemas. Patrões e trabalhadores não são adversários, mas sim parceiros de um mesmo ecossistema. Palavras sábias e actuais.

Só os fracos, os medíocres e os imbecis temem a democracia e as suas instituições, desconfiam dos estrangeiros, receiam qualquer manifestação e controlam toda a informação.

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Dias de Batávia (3)

Sérgio de Almeida Correia, 07.05.25

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O Monumento Nacional (Monumen Nasional), conhecido pelo acrónimo Monas, é um símbolo da Indonésia e um orgulho da cidade de Jacarta. Situado na zona central, está no final da Avenida de Sudirman-Thamrin, centro nevrálgico da capital, conduzindo à Merdeka Square. Fica no centro de um extenso jardim, assente sobre uma base quadrangular, sendo ladeado por uma alameda alcatroada que separa o monumento dos canteiros e das demais zonas ajardinadas.

É um local pleno de significado e que ocupava o primeiro lugar dos locais a visitar do meu roteiro.

Países com uma história recente de independência e um passado colonial violento tendem a exacerbar o sentimento nacional, exaltando-o, e a procurar nele encontrar a força que conduz à unidade da nação e à sua perenidade. Nem sempre será assim, havendo casos em que em causa não está o aprofundamento desse sentimento, funcionando esse apelo patriótico à defesa do regime. Nos estados autoritários tende-se a confundir tal sentimento e o amor à pátria com o a mor ao regime e ao partido no poder. Nas democracias são coisas inconfundíveis, e o sentimento nacional indonésio de que me apercebi nalgumas conversas envolve um apego aos novos valores da jovem democracia e o orgulho pelas conquistas económicas e a solidariedade nacional que tem feito o país crescer, com excepção do período da Covid, de forma consistente e a taxas entre os 4,6 e os 5% nas últimas duas décadas.   

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O Monas foi construído no local que era no tempo colonial o centro do governo e do poder neerlandês, era conhecido como a Koningsplein, ou Praça do Rei. Fica no centro de um parque com 80 hectares, aí se realizando muitos eventos oficiais. Em 1 de Maio pp., o chamado May Day, ali discursou o Presidente Prabowo Subianto.

A norte do monumento está a antiga residência dos governadores coloniais, actualmente ocupada pelo presidente e o seu gabinete. A sul ficam as instalações do vice-Presidente, do Governador de Jacarta, as instalações do parlamento provincial e o “bunker” que alberga a Embaixada dos EUA. A oeste situam-se o Museu Nacional, o Tribunal Constitucional e algumas importantes empresas, ficando a leste diversos ministérios e a sede do Movimento Pramuka, mais conhecido como a organização nacional dos escuteiros indonésios, que de certo modo deu continuidade ao escutismo iniciado em 1912 nas então Índias Orientais Holandesas.

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Com uma altura de 132 metros, a construção oficial do Monas só se iniciou em 1961, fazendo parte do projecto do primeiro presidente, Sukarno, tendo sido na ocasião objecto de muita controvérsia. A sua imponência e custo, numa altura em que o país alcançara num passado ainda demasiado próximo a sua independência, e lutava por criar infra-estruturas que permitissem o seu desenvolvimento, num período de grandes carências para a maioria da população, dividiram opiniões. Acabaria por só ser inaugurado em 12 de Julho de 1975.

O formato do Monas representa a união de um falo (liinga) e de uma vagina (yoni), símbolos de prosperidade e fertilidade, havendo também quem o compare com um pilão e um almofariz usados para triturar o arroz. O monumento é todo ele simbólico visto que foi inaugurado em 17 de Agosto, possuindo da base ao topo do graal exactamente 17 metros. A altura do interior do Museu de História é de 8 metros, número que corresponde ao mês da inauguração, e o comprimento de cada lado do graal quadrangular é de 45 metros, uma vez que o ano da independência foi 1945.

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A chama que está no topo, significando o espírito de luta contra o colonialismo, foi toda revestida com 28 Kg de ouro, doados por um homem de negócios de Aceh, ou Achém, em português, na ponta setentrional de Sumatra. Àqueles juntar-se-iam mais 35 Kg de ouro, que passariam a 50 Kg quando foi celebrado o cinquentenário da independência. Até 1991 era ali que também se realizava a Feira de Jacarta.

O museu que está no interior é local de peregrinação e romaria de turistas e de muitos estudantes, com vitrines cheias de reproduções de cenas históricas, batalhas, da ocupação, da libertação e da independência, mostrando-se os diversos períodos históricos e recriações da proclamação da independência, da aprovação da Constituição e de muitos outros acontecimentos de interesse nacional. Tem um local de culto numa das suas esquinas. Num dos lados da estrutura existe um elevador que leva os visitantes ao topo do monumento, de onde em dias claros se pode avistar quase toda a cidade e os edifícios das redondezas.

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No meio existe ainda uma sala, se bem me recordo o chamado Hall of Independence, onde se pode ver o brasão de armas do país, o mapa da Indonésia gravado a ouro no mármore, uma porta que simboliza a entrada de uma mesquita e um excerto da declaração de independência.

Nas proximidades do Monas ficam a Mesquita de Istiqlal e a Catedral de Santa Maria da Assunção, de aqui deixei anteriormente menção.

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Quanto à primeira importa referir que pode albergar até 120 mil fiéis. É a maior mesquita do sudeste asiático e a terceira do mundo. Inaugurada por Sukarno em 22 de Fevereiro de 1978, é um templo recente, curiosamente projectado por um arquitecto cristão, em 1954, Frederich Silaban, do norte de Sumatra. A mesquita levou mais de década e meia a ser construída e foi directamente supervisionada pelo presidente indonésio. Ocupa nove hectares e tem cinco pisos. A cúpula tem quarenta e cinco metros de diâmetro, assente sobre um rectângulo com doze colunas. Possui sete portas, cada uma delas simbolizando a entrada para um dos paraísos do Islão.

Catedral e mesquita são dois grandes símbolos da tolerância religiosa do país e a prova disso é que durante as celebrações e épocas festivas, num e no outro templo, os cristãos que se dirigem à Catedral podem estacionar no parque da Mesquita, e vice-versa, coisa que há umas décadas em Bruxelas seria impensável no parque de estacionamento da Televisão da Bélgica, onde valões não estacionavam os seus veículos nos locais habitualmente ocupados pelos flamengos.

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Se depois de passar por aqui ainda não tiver derretido com a canícula e a humidade, e tiver vontade de continuar a descobrir a cidade, o melhor é apanhar um táxi, aproveitar para se refrescar, e percorrer os cerca de 10 Km que separam a esquina da Jalan Lapangan Banteng da zona de Kota Tua, onde se encontra o Museu da Cidade de Jacarta, o Museu do Banco da Indonésia, o Museu de Cerâmica e a célebre Praça de Fatahillah, outrora conhecida como a Praça de Batávia. Se tiver tempo disponível e quiser poupar as 75.000 rupias que me custou a viagem pode sempre apanhar o autocarro da TransJakarta e seguir até ao fim da linha.

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Os locais das redondezas de Kota Tua, onde também existe uma Chinatown, a que por razões certamente compreensíveis não fui, estão bastante degradados. Como aliás sucede com o Museu da Cidade, a precisar de obras de restauro e de condições que ajudem a preservar o seu interior, em especial as pinturas, fotografias e as magníficas peças de porcelana da Companhia das Índias Orientais Holandesas e o mobiliário que ali precariamente se conserva. Não fosse a madeira do melhor que há no mundo e há muito que teriam ido para o lixo. Vale a pena a visita para se perceber como nasceu a cidade e a razão para muitos dos problemas de natureza ambiental que hoje enfrenta.

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Há alguns edifícios e armazéns de estilo colonial, que mereciam ser recuperados e onde se poderiam fazer coisas bastante interessantes. De restaurantes a bares, hotéis de charme e galerias de arte, mas o braço do rio que por ali se passeia tem demasiado lixo, o cheiro é não raro pestilento, e a rede de esgotos, digo eu que sou um leigo na matéria, precisa de ser totalmente renovada, o que não deve atrair muitos empresários.

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Cafés, alguns restaurantes de qualidade duvidosa, pequenas lojas de souvenirs e artistas de rua, a que se juntam centenas de crianças das escolas, utilizam o espaço da praça para se divertirem e andarem de bicicleta ou de skate, assim dando cor, luz e animação ao local, em particular ao final da tarde, quando aproveitam para tirar fotografias, se divertirem, meterem conversa com um viajante mais demorado que por ali ande, sempre rindo muito e mostrando as suas impecáveis dentaduras, enquanto se vão pendurando à vez nos canhões da praça.

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Dias de Batávia (2)

Sérgio de Almeida Correia, 06.05.25

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Um dos aspectos mais interessantes da Indonésia é a sua multiplicidade étnica, cultural e religiosa. As ilhas, a dispersão entre estas, as barreiras montanhosas e as distâncias entre comunidades do litoral e do interior terão contribuído para que cada uma daquelas mantivesse as suas características.

A extensão do território faz com que tenha fronteiras terrestres com três países – Timor-Leste, Papua-Nova Guiné e Malásia, na ilha de Bornéu, onde está a ser construída a nova capital, Nusantara. Ocupará uma área de 256.000 hectares, na região de Kalimantan Oriental, no estreito de Macáçar (ou, para alguns, Makassar), no lado oposto das ilhas Celebes, fazendo a ligação entre o mar de Java e o mar das Celebes.

Cinco das maiores ilhas do mundo – Nova Guiné, Bornéo, Sumatra, Sulawesi e Java — ficam na Indonésia. As suas fronteiras marítimas fazem a ligação entre o Índico e o Pacífico, e são com as Filipinas, com Singapura, no estreito de Malaca, com a Malásia, com as ilhas indianas de Andamão e Nicobar, com a Austrália e com Palau. Percorrer o país de lés-a-lés significa atravessar três fusos horários e mais de 5.000 Km. A distância entre Jakarta e Jayapura, na província de Papua, são 3.753 Km, que representam mais de 5 horas de voo. É mais longe do que ir de Lisboa a Istambul.

Por aqui se vê a extensão do país e do seu mar. As dificuldades que comporta a administração de um território tão vasto será uma das explicações, creio, para a sua diversidade populacional e manutenção das identidades locais.

Esta dimensão e a referida multiplicidade reflecte-se na existência de sete principais grupos étnicos, sendo o maior o dos javaneses que grosso modo constituem 1/3 da população. Mas também temos malaios, sundaneses, madureses, indonésios de origem e com fortes laços à China, compondo cerca de 4% da população, e muitos outros grupos de menor dimensão, num total de mais de trezentas etnias e sete centenas de línguas e dialectos.

A língua indonésia deriva do malaio, apresentando inúmeros traços de ligações ao português, presentes em numerosas palavras (bendera de bandeira, gerja de igreja, sekolah de escola, minggu de domingo, etc.), ao holandês, ao inglês e ao árabe.

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Com a chegada de Vasco da Gama à Índia, os navegadores portugueses continuaram para leste, em busca da canela de Ceilão, da pimenta de Sumatra e de Java, da noz-moscada e do cravinho que encontraram em Ambon.

Em 1522 foi assinado o Tratado de Sunda (Sunda Kalapa) entre Portugal e o Reino de Sonda, visando a construção de um forte a sua instalação. De acordo com a versão do historiador belga David Van Reybrouck, que escreve e publica em holandês e inglês, por volta de 1525 os portugueses já tinham criado a sua rede comercial, com bases em Ormuz, em Goa, em Colombo e em Malaca, de onde chegaram às Molucas.

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Aqui ergueram um forte, o primeiro de características ocidentais no que viria a ser o solo indonésio (cfr. Revolusi – Indonesia and the birth of Modern World, p. 26).

O referido historiador assinala que o navegador Cornelius de Houtman, de Gouda, foi o primeiro holandês a seguir a rota de Vasco da Gama chegando à costa de Java em 1596, com mapas e informação furtados no porto de Lisboa, estabelecendo-se depois em Bali, durante dois anos, onde deixou, à semelhança dos portugueses noutros locais, um rasto de destruição.

Seguiram-se várias expedições, a partir de 1588, assinalando-se que os navegadores que vinham de Zealand e da Holanda não chegavam em nome de nenhum rei, visto que os Países Baixos foram o primeiro país da Europa a assumir forma republicana, não sob a forma tradicional do Estado moderno, mas numa espécie de confederação que englobava sete províncias ou estados autónomos.

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A presença portuguesa está, aliás, bem presente, no Museu de História de Jacarta, erigido na antiga cidade de Batávia, no velho palácio do Governador holandês, onde fui buscar o nome para estas breves crónicas.

Ali está o padrão, ou a sua réplica, não consegui esclarecer este ponto, que assinala a assinatura do Tratado de Sunda. E uma referência aos portugueses que vieram de Malaca.

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Entre 1600 e 1942, as ilhas estiveram sob ocupação holandesa, a que seguiram entre 1942 e 1945, três anos e meio de ocupação japonesa.

Estas diferentes vertentes encontram depois reflexo no panorama religioso que, nalguns casos, tem sido fonte de vários conflitos, alguns bastante graves e com contornos terroristas.

Muitos ainda estarão recordados dos atentados de Bali, em 2002, que fizeram mais de duas centenas de vítimas, na sua maioria ocidentais que ali viviam ou estavam de férias, e do atentado de 14 de Janeiro de 2016, na zona central da capital, por um grupo extremista muçulmano, nas proximidades de hotéis, de embaixadas e de um escritório das Nações Unidas, atingindo estabelecimentos das cadeias Burger King e Starbucks.

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Jacarta tem numerosas mesquitas, havendo a curiosidade da mais importante estar situada mesmo defronte da Catedral de Jacarta, do outro lado da rua, sinal da convivência e do respeito mútuo.

Foi ali que em Setembro do ano passado esteve o falecido Papa Francisco, que ao sair da Catedral percorreu o túnel que liga os dois templos para assinar com o Grão Imame Nazaruddin Umar uma declaração conjunta.

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A Catedral de Santa Maria da Assunção, em estilo neo-gótico, tem uma zona exterior que abrange um estabelecimento de comidas, um pequeno museu, no qual se conta a história da sua construção e da implantação do cristianismo, se recordam muitos misionários e se guardam diversos documentos, paramentos, alguns objectos de arte sacra, as cadeiras usadas por João Paulo II e Francisco, talvez em condições de conservação que não serão as ideiais.

No exterior, fazendo a ligação entre o museu e a igreja, um pequeno pátio com esculturas regionais, um jardim com boas sombras e rodeado de vegetação, uma constante na Indonésia, junto a uma rocha onde sobressai um nicho. Aí se encontra uma imagem de Nossa Senhora, sempre enfeitada com flores.

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Aproveitei para me sentar nesse espaço. Aí me refresquei, fiz contas à vida, planeei os passos seguintes.

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Dei graças a esse Deus que não conheço e que sempre se ausenta nas horas de violência e perdição humana, deixando as almas e os mais fracos entregues à sua sorte, mas que me tem proporcionado horas incontáveis de viagem, o gosto de encontrar outros como nós, e de ver com os meus olhos e todos os meus sentidos o que ainda resta de tão belo e que, felizmente, o homem ainda não foi capaz de destruir.

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Dias de Batávia (1)

Sérgio de Almeida Correia, 05.05.25

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Quando há uma dezena de anos passei um Natal na ilha de Bali, após uma atribulada viagem que me obrigou a parar em Surabaia, devido a uma chuvada tropical, fiquei com vontade de conhecer a Indonésia.

A ilha dos deuses é para muitos um local de férias paradisíaco, dependendo para onde se vai e se está, mas não serve de referência social, política, cultural, económica ou mesmo religiosa do país a que pertence. 

Quanto a este último aspecto basta pensar na forte componente hindu da população de Bali. Mais de 80% dos seus residentes professa o hinduísmo, apenas 14% seguem o Islão, e 2,5% afirmam-se cristãos, por contraposição ao resto do território, onde os muçulmanos representam mais de 87% da população e os protestantes e católicos ultrapassam 10%.

Recentemente pude concretizar esse sonho antigo, graças à lembrança de um amigo que não se esqueceu de me perguntar se estava disponível para o acompanhar numa viagem de trabalho, que para mim seria mais de turismo e de descoberta de novos lugares. 

A perspectiva de visitar, ainda que uma ínfima parte, do maior país muçulmano do mundo, que depois de libertado das amarras do colonialismo holandês e da ocupação japonesa, no final da II Guerra Mundial, sobreviveu aos tempos de Sukarno e às três décadas da ditadura de Suharto, até começar a trilhar, a partir de 21 de Maio de 1998, na sequência da resignação do último em razão das manifestações e rebeliões populares, a estrada da democracia, não era oportunidade que pudesse desperdiçar.  

E de democracia se pode efectivamente falar. Em Fevereiro de 2024 realizou-se a 5.ª eleição geral democrática num universo de quase 205 milhões de eleitores, distribuídos por mais de 824.000 secções de voto, com uma taxa de participação superior a 80%, para escolher o presidente, o vice-presidente e eleger a câmara baixa do seu parlamento, DPR, a mais importante de um sistema que se tornou bicameral em 2004. À DPR compete a adopção de legislação, a aprovação do orçamento e a ratificação dos acordos internacionais em que a república seja parte, não podendo ser suspensa ou dissolvida pelo Presidente, nos termos do art.º 7.º - C da sua Constituição", o que revela bem o seu peso num sistema de governo presidencial.

Como qualquer democracia, em especial jovem, tem enfrentado alguns problemas. Não será de estranhar quando até as democracias consolidadas do velho mundo são fustigadas pelos ventos iliberais, nacionalistas exacerbados e populistas. E este país, que possui mais de 280 milhões de habitantes, tem quase dois milhões de quilómetros quadrados, e mais de 17 mil ilhas, no que constitui o maior estado arquipelágico do globo, não é excepção.

Isso não impede, todavia, a Indonésia de ser hoje considerada uma democracia robusta no contexto asiático, logo a seguir ao Japão, e país classificado como o “mais democrático do Sudeste Asiático”. Para tal concorre uma democracia eleitoral estável há mais de duas décadas, com eleições livres, competitivas, multipartidárias e regulares, onde não falta uma comunicação social plural, apesar de se ter assistido nos últimos anos a uma deterioração do ambiente geral da sociedade civil e ao aumento de algumas restrições, a que não será alheia a existência de partidos relativamente frágeis e muito dependentes das elites político-empresariais, onde ainda se nota uma forte influência militar, sujeito a elevados níveis de clientelismo e “compra de votos”, apesar de não se terem verificado regressões graves, ao contrário do que nos últimos anos sucedeu na Tailândia e nas Filipinas (Hicken, 2020, Indonesia’s in Comparative Perspective).

Com este pano de fundo, e sabendo que ali iria passar o Primeiro de Maio, desembarquei no recente Terminal 3, estando já em desenvolvimento o Terminal 4, do Jakarta Soekarno-Hatta International Airport, na ilha de Java.

Inaugurado em 2016, com capacidade para movimentar mais de 25 milhões de passageiros por ano, este terminal é um hino à arquitectura, ao ambiente e ao arrojo da construção.

Na retina ficou-me a amplitude dos espaços, em especial a sua organização, destinada a facilitar a circulação e a vida aos passageiros. Também a informação adequada, a luz, a presença constante do verde das suas plantas, e, para quem fica enojado de cada vez que passa pelo Aeroporto Humberto Delgado, o asseio de tudo, a começar pelas casas de banho permanentemente limpas, funcionais e bem cheirosas, onde nada falta.

À chegada, a saída das bagagens é feita por tapetes rápidos, silenciosos e imaculadamente limpos, não se ouvindo as malas a caírem desamparadas e a baterem com força nas protecções laterais, pois há bagageiros atentos e de luvas, sempre prontos a ajeitarem os volumes para que nada se danifique. Menos de cinco minutos depois de ali chegar recolhi a minha mala. Os responsáveis da ANA, e quem vai tutelar a construção – um dia, que espero ainda ver chegar em vida – do futuro aeroporto de Lisboa, deviam colocar os olhos no que ali e noutros locais de bom se fez, aprendendo alguma coisa que pudesse ser útil aos portugueses e a quem nos visita, algo que nos honrasse em vez de permanentemente nos envergonhar.

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A aerogare está relativamente longe do centro da cidade, o que não é impeditivo que os 20 Km que nos levam até ao coração de Jacarta se façam bem, por uma óptima auto-estrada e vias rápidas e sem buracos, nem sucessivas tampas de electricidade, juntas ou desníveis no pavimento que dêem cabo das suspensões e dos amortecedores dos veículos.

Saí de limusina, é certo, ao princípio da noite, mas há transportes públicos rápidos e eficientes, uma linha de metro (MRT) que faz a ligação ao centro da cidade, mini-autocarros, e os táxis da Blue Bird, da Silver Bird, da Grab e de outras empresas, que são novos, baratos, silenciosos, asseados e fiáveis, funcionando com taxímetro. Os motoristas são atenciosos, simpáticos, a maioria falando um inglês muito aceitável, garantido uma viagem tranquila, sem sobressaltos, sem que o passageiro se sinta assaltado ou intimidado pela rudeza de modos do condutor.

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Educação e simpatia, salvo uma ou outra raríssima excepção, que aqui escuso de referir, costumam ser uma marca distintiva dos asiáticos. E nisso os indonésios voltaram a comprová-lo. Se à chegada havia uma viatura à minha espera, depois pude andar sozinho, durante vários dias, incógnito por toda a cidade, usando os seus táxis, tuk-tuk, e os autocarros eléctricos da TransJakarta e de um outro operador.

Fi-lo na maioria das vezes com um passe recarregável, adquirido na bilheteira do Monas (Monumento Nacional) logo no dia seguinte à minha chegada. O cartão é válido por 30 dias e permite aceder a diversos serviços, incluindo a entrada nalguns museus, para o que contei com a ajuda do pessoal em serviço nas diversas estações e dos múltiplos jovens, estudantes, homens e mulheres com quem me cruzei e a quem tive de recorrer algumas vezes para me orientar numa área metropolitana que é quatro vezes maior do que Londres e com 34 milhões de residentes.

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Deixo já aqui nesta breve introdução uma nota para o serviço de autocarros da TransJakarta. Numa cidade que me diziam, há anos, ter um ar irrespirável, encontrei uma atmosfera muito mais limpa e pude ver o azul do céu, coisa que muitas vezes não consigo fazer na cidade onde vivo devido à poluição permanente e à constante insalubridade do ar que nos envolve.

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As linhas da TransJakarta funcionam como se fossem de metro ligeiro. Têm corredores próprios na maioria dos percursos, onde não entram táxis nem motociclos. Deslocam-se em boa velocidade, sem constrangimentos, com ar condicionado e praticamente sem ruído, sabendo-se sempre de antemão quantos minutos, aproximadamente, levaremos a fazer um percurso, ou quanto tempo falta para a chegada do autocarro que aguardamos.

No seu interior não se ouvem telemóveis a toda a hora, nem gente a falar aos altos berros contando as agruras da vida para todos os outros. Ninguém fala em alta voz, e não é preciso andar aos encontrões, ainda que à hora de ponta sigam cheios. Há sempre alguém com um sorriso que nos quer dar prioridade, se apresenta e pergunta de onde somos e para onde vamos, predisposição reforçada quando se apercebem da nossa origem, logo invocando os nomes dos novos heróis do futebol lusíada.

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E se ali mais acima falava em estações é porque em muitos locais disso mesmo se trata, visto que não são vulgares paragens de autocarro.

Construídas, por vezes, no meio das vias, possuem cafés acolhedores e lojas, havendo algumas com boas vistas e em locais emblemáticos da cidade, onde muita gente vai tirar fotografias. As mais modernas, como na zona de Thamrin, onde estão concentradas várias embaixadas e modernos hotéis, foram elevadas, como se fossem estações de metropolitano, com várias portas de vidro, que se abrem à paragem dos veículos, estando as diversas linhas de autocarros, consoante os números, alocadas a determinados pontos do cais. Solução prática e funcional que faz dos autocarros da TransJakarta, nos períodos de maior intensidade do trânsito, que é em regra constante, a melhor opção para uma pessoa se deslocar na grande metrópole. 

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Sérgio de Almeida Correia, 26.04.25

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Gostava de futebol, apreciou a beleza feminina, namorou, sabia saborear um bom vinho. Depois escolheu o seu caminho.

Atingiu o pináculo do poder terreno da sua tribo no trono de São Pedro. Dispensou os múleos papais vermelhos da Prada, não usava óculos Gucci, e viveu uma dúzia de anos no quarto 201 da Casa Santa Marta.

Encarou os erros, procurou corrigir, pediu desculpa quando importava fazê-lo. Não perdeu a face.

Sorria, ria com gosto, tinha sentido de humor.

Trabalhar, rezar, cumprir as suas obrigações, cuidar da sua gente, pensar nos outros, estender-lhes a mão, ajudar quem precisava a levantar-se, mantendo a postura, a dignidade, o carácter, a autenticidade, a humildade, o amor até ao fim.

Fé é isto.

Gostava de ter esperança.  De ter fé. Por eles – fiéis, infiéis e os outros –, também por mim.

Não sei se alguma vez haverá outro como ele. Mas seria bom.

Entre o horror e o paraíso há uma linha chamada liberdade

Sérgio de Almeida Correia, 25.04.25

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Em muitas das viagens que faço, seja em lazer ou em trabalho, no que não tem nada de inovador e acontecerá como muitos dos que por aqui e noutros lados me seguem, procuro conciliar as duas vertentes.

Por força da memória de um avô que não cheguei a conhecer, que foi despachado para o Tarrafal depois do golpe do 28 de Maio, a seguir deportado para Moçambique, e que hoje tem um largo no Barreiro com o seu nome, e de outros familiares e amigos que conheceram a agrura da prisão ou passaram pela António Maria Cardoso, no tempo da outra senhora, e que após o 25 de Abril de 1974 foram parar a Caxias, no PREC, ou estiveram à beira de um pelotão de fuzilamento em S. Paulo (Luanda), aprendi a dar o valor devido à liberdade que usufruo. Em quaisquer circunstâncias. Não só à física; também à de expressão e de manifestação. Talvez por isso também pague hoje o preço devido por essa liberdade, de que jamais abdicarei, para mim e para os outros, ainda que alguns sejam mais aparentados com vermes do que com humanos.

Ainda no meu tempo de faculdade fui algumas vezes jogar umas partidas de futebol a Caxias, dinamizadas por amigo e colega desse período.

E embora fosse bem acolhido pelo pessoal de serviço e os presos, para quem a nossa visita era sempre motivo de satisfação e de mais umas horas fora das celas enquanto decorriam os torneios de futebol, tive sempre uma sensação estranha: quando entrava sabia que algumas horas depois iria sair, de volta à minha vida, enquanto outros ali permaneceriam expiando as suas penas. Pagando a sua dívida, em muitos casos, por um erro não raro indesejado.

De muitos ouvi histórias, apesar de nunca me preocupar em querer saber a razão de ali estarem.

Eram homens, gente, como nós e que naqueles breves momentos apenas queriam jogar futebol, participar, conviver, falar com quem vinha de fora.

Mais tarde, já exercendo a profissão que ainda hoje tenho, continuei, contrariado a entrar em prisões. Vi as suficientes, em várias partes do mundo, para lhes ter um verdadeiro horror. Não há prisões boas, nem menos más. Há prisões. E há a liberdade. E homens livres.

Algumas impressionaram-me sobremaneira.

De duas, que visitei depois de reconvertidas em museus, conhecendo as suas histórias, jamais esquecerei: a infame “Hanói Hilton”, no Vietname, onde estive em 1995, e a sinistra Tuol Sleng, mais conhecida por S-21, em Phnom Phen, que há meia-dúzia de anos visitei no Cambodja e de que aqui um dia deixei registo.

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Pensava ter conhecido a história das piores. A semana passada entrei numa que vai directamente para o top 3 pelas piores razões.

Trata-se da antiga prisão de Phu Quoc, um local paradisíaco, a sul do Vietname, no golfo da Tailândia e muito perto do Cambodja. O nome por que ficou conhecida diz quase tudo: “Inferno na Terra” (“Hell on Earth”).

Nas suas imediações ficam algumas das praias mais fabulosas do mundo, como Khem e Sao, mas ali a tortura, que tanto era exercida sobre criminosos comuns como sobre presos políticos, não conhecia limites.

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A antiga prisão de Phu Quoc foi construída pelos franceses em 1949. Conhecida como Cang Cay Dua POW Prison Camp, passaria à história como “Coconut Tree Prison”.

No tempo dos franceses era considerada a maior prisão da Indochina, chegando a ocupar uma área de 40 hectares e albergando durante esse tempo cerca de 14 mil prisioneiros.

Na sequência dos Acordos de Genebra seria encerrada, em 1954, para logo no ano seguinte ser reaberta, até 1957. Não ficaria por aqui. O regime de Thieu reabriu-a em 1967 com o nome de “Vietnam-Phu Quoc Communist POW Prison Camp” e voltou a utilizá-la para albergar, torturar e matar prisioneiros políticos. Gente como quem me lê que pensava de uma maneira diferente.

Foi ali que vi as “tiger cages”. Não vale a pena descrever-vos o que então senti. Não vos quero incomodar durante o luto papal.

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Remeto-vos, por isso, para um pequeno filme que me poupará as palavras neste Dia 25 de Abril, 51 anos depois de 1974.

Aqui deixo-vos agora as fotos que ali tirei. E também a foto de uma praia do outro lado do inferno.

É preciso que todos e cada um de nós tenha sempre presente que o horror se encontra muitas vezes paredes-meias com o paraíso. E que há uma linha muito ténue que os separa. Eu chamo-a de liberdade. E em cada dia que passa tenho medo de deixar de a ver.

Saibamos valorizar a liberdade que temos. Sejamos dela merecedores. Sejamos gente. Sem pieguices.

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Liberdade

Sérgio de Almeida Correia, 25.04.25

Tomorrow-algarve-magazine-community-news-algarve-m(créditos: Salgueiro Maia the Captain of April)

I. − [Correspond à libre I] État de celui, de ce qui n'est pas soumis à une ou des contrainte(s) externe(s).

A. − [Correspond à libre I A; à propos de l'homme (de ce qui le concerne) en tant qu'individu particulier ou en tant que membre d'une société politique] Condition de celui, de ce qui n'est pas soumis à la puissance contraignante d'autrui.
 
1. [À propos d'un individu particulier]
a) Condition de celui qui n'appartient pas à un maître. Anton. esclavage, servitude. Racheter sa liberté. Si quelque puissance était assez morale pour se disposer la première à donner la liberté à ses nègres, ses voisins seraient forcés de l'imiter (Le Moniteur, t. 2, 1789, p. 514). La propriété et la liberté font aimer la terre à l'homme; la servitude la lui fait haïr (Hugo, Rhin,1842, p. 441):
1. Tant que l'individu [jusqu'au xiiiesiècle] avait travaillé isolément pour le service d'un château, d'une abbaye ou d'une maison royale, l'histoire de son existence s'était résumée dans le labeur quotidien du serf: il n'avait ni liberté, ni profit; il était, comme ce qui sortait de ses mains, la propriété d'un maître. Faral, Vie temps st Louis,1942, p. 68.
 
b) Condition de celui qui n'est pas retenu prisonnier, qui n'est pas détenu. Jean-Jacques dit avec raison qu'on peint mieux les charmes de la liberté quand on est sous les verrous (Delacroix, Journal, 1853, p. 91). N'est-ce-pas sous leur règne [de nos gouvernants] que Picquart, soldat fidèle à sa patrie, se voit refuser le droit, dont bénéficia le traître Esterhazy, de comparaître en liberté devant ses juges? (Clemenceau, Vers réparation, 1899, p. 261).Nicolaïeff a reçu les mots suivants, écrits en capitales: Si Ling n'est pas en liberté demain, les otages seront exécutés (Malraux, Conquér.,1928, p. 132).
(...)

Não há pachorra para tanta maré de estupidez

Sérgio de Almeida Correia, 24.04.25

SMM.jpeg(créditos: daqui)

Houve quem viesse criticar, quem se insurgisse, contra o facto das cerimónias do 25 de Abril – “agenda festiva”, escreveu-se –, tivesse sido "cancelada". Esta expressão surgiu em toda a comunicação social a que tive acesso após as declarações do ministro Leitão Amaro. João Gonçalves recomendou que “as vestais do “Estado laico” e do “fascismo nunca mais” fossem ler a legislação que define o luto nacional e as restrições que implica.

Eu, que não sou uma vestal do Estado laico, não emprenho pelos ouvidos nem participo em manifestações delirantes, tirando as que ocorrem de tempos a tempos no Estádio do Sport Lisboa e Benfica, onde mantenho – penso – sempre a distância e o bom senso –, pois que nem em pequenino gostava de “ajavardar”, fosse na linguagem ou nos actos – verifiquei a legislação e lá não encontrei nada que obrigasse ao cancelamento das “festividades”. Abrilistas ou outras.

O Governo veio depois "esclarecer" – não há nada que fique esclarecido à primeira – que afinal não havia cancelamento. Apenas um adiamento dos "momentos festivos". 

Cada vez estou mais longe, graças a Deus, de algumas das preocupações dos meus compatriotas. E como não alinho em arraiais, e também não deverei conseguir votar nas próxima eleições – porque na CNE não sabem ler a lei e encerraram mais cedo do que o devido a actualização dos cadernos, impedindo-me de votar presencialmente, sendo que até hoje também ainda não chegou sobrescrito com a documentação para poder votar –, tive o cuidado de verificar o que se irá fazer em Itália, cujo Dia da Libertação cai exactamente a 25 de Abril. Este ano comemorar-se-á o 80.º aniversário da Libertação.

Pois bem, tanto quanto numa pesquisa rápida me apercebi, as mais altas figuras do Estado italiano, e todo o país comunal, não deixarão de celebrar, leia-se festejar, o Dia 25 de Abril, dia da libertação do nazifascismo, embora com um programa "aligeirado" quanto às principais figuras do Estado.

Na verdade, nesse dia, o Presidente Sergio Matarella e a Presidente do Conselho, Giorgia Meloni, estarão ambos em Roma, no Altare della Patria, na piazza Venezia, onde depositarão uma coroa de flores. Depois, Matarella, ainda convalescente após alguns problemas de saúde, seguirá para Génova, onde decorrerão as comemorações oficiais. Aí almoçará, regressando mais cedo a Roma para receber os dignitários estrangeiros que começarão a chegar para as exéquias fúnebres do Santo Padre.

As cerimónias oficiais devido ao luto oficial serão “aligeiradas” – "hanno spinto il Quirinale a sfoltire le voci in agenda", escreveu o la Repubblica, isto é, salvo melhor tradução, a "reduzir os pontos da ordem do dia" –, o que é bem diferente de cancelamento ou adiamento, embora por todo o país, todas as comunas italianas, incluindo Roma, e com excepção, creio, apenas de Ponte San Nicoló, no Veneto, que cancelou todas as cerimónias, de Norte a Sul, não se deixará de festejar, sublinho, festejar, celebrar, comemorar, o 25 de Abril.  

Estou certo de que em Itália, onde o luto declarado foi de 6 dias, haveria muito mais razões, até pela proximidade ao Vaticano, para pura e simplesmente se anunciar o cancelamento ou o adiamento dos eventos oficiais. Não foi isso que aconteceu. E Meloni pode ter muitos defeitos, mas seguramente que não é de esquerda, menos ainda da esquerda radical. E também não é parva.

O Governo errante de Montenegro, se estava à espera do Conselho de Ministros, poderia ter enveredado pelo luto oficial a partir do próprio dia 26 de Abril – dia do funeral do Papa Francisco, em que talvez fizesse mais sentido iniciar o luto –, de maneira a não contender com o 25 de Abril. Não o quis fazer por mero tacticismo político, criando mais um motivo de discórdia e polémica em período pré-eleitoral. Aliás, bastaria observar o tom e o modo das declarações de Leitão Amaro para se perceber como a agenda e o estilo do “trumpismo” tomaram conta deste rebanho de ignaros e pastores sem mundo que, à direita hoje, à esquerda ontem ou amanhã, manda em Portugal. Governar é só para quem sabe.

E isto, refiro-me ao luto, não tem nada a ver com o facto de o Estado português ser por natureza laico, independentemente de o catolicismo ser a religião predominante no país e entrar pela nossa carne, de portugueses e ainda mesmo naqueles que se reconhecem como ateus, e só parar no tutano. Em causa está o respeito pelo falecimento de um Chefe de Estado de um país estrangeiro com o qual Portugal e os portugueses têm relações diplomáticas e de amizade há séculos. É válido para o defunto ou para outro qualquer.

Francesco, Francisco, Francis, qualquer que seja a língua em que pronunciem o seu nome foi um homem que marcou o seu tempo. Dentro e fora da Igreja. E não foi pelas más razões.

Pela sua bondade, pelo seu carácter, pela sua generosidade, por tudo aquilo que nos trouxe, a católicos, ateus, agnósticos, gente de outros credos, na recuperação de valores do humanismo cristão, na lealdade ao próximo e na entrega aos outros, no exemplo, no desprendimento, na genuinidade e lhaneza de carácter, na sua autenticidade de dimensão universal, usando a palavra e o credo como factor de união, e não de criação de conflitos, protegendo quem tem de ser protegido, procurando lavar e desinfectar o chão da sua Igreja, livrando-a de escaravelhos e delinquentes, criticando os dogmas, a estupidez, a imbecilidade e a criminalidade instalada, recebendo todos no seu seio, fazendo diferente até na hora da sua partida, mostrando ser capaz de com toda a lucidez voltar a escolher a sobriedade, a discrição, a herança e o recolhimento de Santa Maria Maggiore, não merecia que este fosse mais um momento de profundo atavismo moral dos matumbos que governam o nosso país.

Nunca, nos tempos mais recentes, se diria com mais propriedade que quiseram ser, e mostrar que são, "mais papistas do que o papa”.

Os Pauliteiros de Miranda virão a 1 de Maio. Os novos trauliteiros já estão em Lisboa. 

 

P.S. Estou fora. Não me revejo nestes broncos, nem nos antecessores. E aqui, onde 25 de Abril não é feriado, a não ser na minha alma e no Consulado de Portugal e conexos, embora se celebre, muitos choram a perda de Francisco. Mas estou exausto, cansado, farto de tanta estupidez, de tanta discussão estéril, de tanto conflito inútil que me chega da Pátria. Na Igreja de Francisco havia lugar para todos. No Portugal de hoje, onde não se distingue o escrutínio da difamação, só há lugar para os sonsos, para os labregos, para os chicos espertos, para estas abencerragens, sejam eles quem for, que se revezam na ocupação da cadeira do poder, enquanto esperam que os governados, os lorpas, lhes ofereçam os votos e os aplausos, e veneradamente lhes dêem lustro aos sapatos “marron clarinho”.

Estórias de portugueses como nós

Sérgio de Almeida Correia, 11.04.25

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Há uns dias tive oportunidade de fazer uma visita ao Museu de História de Hong Kong. No programa estava mais uma exposição da série “Multifaceted Hong Kong” com o título “Estórias Lusas – Stories of the Hong Kong Portuguese”. E que estórias.

O meu amigo e saudoso Luís Sá, que ficará sempre entre os melhores, os mais sérios e os mais competentes que por estas terras passaram, e que deixou obra publicada, já nos tinha legado o magnífico “The Boys from Macau – Portugueses em Hong Kong”, pelo que foi com bastante curiosidade, aumentada com a passagem que por lá fez há umas semanas, na sua viagem de propaganda eleitoral, o cantinflas que faz de ministro dos Negócios Estrangeiros, que me predispus a programar a visita.

Em boa hora o fiz. Trata-se de um trabalho cuidado e que merece bem o tempo que lhe puder ser destinado.

Começando por um pequeno vídeo colocado à entrada, que traça o percurso dos portugueses desde que iniciaram a epopeia das Descobertas, com Ceuta à cabeça, em 1415, descendo ao longo da costa de África, até à chegada à Índia, e daí ao delta do Rio das Pérolas, a exposição inclui inúmeros elementos didácticos, fotografias, reprodução de documentos, réplicas, mobiliário, dando-nos a conhecer os rostos, as famílias e os percursos de alguns dos mais notáveis lusos, muitos constituindo já fruto da miscigenação cultural, ali deixando prolífica descendência, mas que jamais ocultaram, sempre se orgulhando dessa condição de portugueses e de luso-descendentes, honrando e dignificando a sua memória, muitas vezes em contextos de hostilidade, como aconteceu no período da ocupação japonesa durante a II Grande Guerra.

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Achei curioso, sendo a exposição preparada por chineses, num período pós-colonial, em que para se poder lá chegar é preciso, primeiro, passar por uma outra mostra dedicada à Segurança Nacional e aos valores patrióticos do país anfitrião, que no vídeo inicial e nas imagens projectadas não faltassem sequer os painéis de São Vicente, o Infante D. Henrique, Vasco da Gama e Afonso de Albuquerque, contrariando-se assim algumas narrativas imbecis que confundem a obra e a época histórica com as leituras feitas à luz dos dias de hoje por alguns ignorantes para quem tudo o que constitui herança colonial é mau, sendo incapazes de separar o trigo do joio, o muito mau e o péssimo daquilo que não nos envergonha como povo e como nação aberta ao mundo e que em qualquer latitude sabe respeitar e fazer-se respeitar para ser respeitada.

Na sua esmagadora maioria foram portugueses de Macau os primeiros etnicamente não-chineses, o que ali é sublinhado, que se fixaram em Hong Kong. Proficientes em inglês e cantonense já na antiga colónia portuguesa eram contratados por empresas inglesas, ainda antes de se virem a fixar em Hong Kong, por serem fluentes na língua, para  desempenharem funções como tradutores e intérpretes, e por se afirmarem como conhecedores profundos da cultura e dos costumes chineses.

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Em Hong Kong ocuparam posições relevantes, embora sem nunca poderem ascender a lugares de chefia na administração colonial britânica, sobretudo a partir de finais do século XIX, bem como no comércio e na indústria, destacando-se quanto a esta última a sua herança nas artes gráficas, onde dirigiram importantes casas editoriais e  chegaram a dominar o sector, caso das famílias Noronha e Xavier.

A presença de portugueses na área jurídica foi desde sempre importante. As linhagens dos Remédios e os D’Almada Castro – Francisco Xavier D’Almada e Castro, Leonardo D’Almada e Castro Sr., Leonardo D’Almada e Castro Jr. e Christopher D’Almada e Castro – como mais recentemente Ruy Barreto, também com direito a uma fotografia, ou Albert T. da Rosa Jr., actualmente, deixaram nome e história no foro local. Leonardo D’Almada e Castro Jr. ocuparia aos 33 anos um lugar no Legislative Council, antes pertenç de J. P. Braga, vindo a tornar-se no primeiro português a integrar o Conselho Executivo. Em 1953 ser-lhe-ia atribuído o título de “Commander of the Most Excellent Order of the British Empire” (CBE).

Outros portugueses sobressaíram na arquitectura, estando na génese do chamado “Garden City Movement”, como sucedeu com Francisco Paulo de Vasconcelos Soares, ou projectando casas em Ho Man Tin e na área residencial de Kadoorie Hill, como foi o caso de José Pedro Braga, por volta de 1931. Este último também jornalista e editor, se bem recordo, foi, aliás, o primeiro  português do Conselho Legislativo de Hong Kong, em 1929, tornando-se em 1935 no primeiro português local a receber o título de “Officer of the Most Excellent Order of the British Empire” (OBE).

Mas também nas artes, os lusos e seus descendentes gravaram o seu nome na história local através das pinturas de Marciano António Baptista Sr., aluno do famoso George Chinnery, de seu filho com o mesmo nome e Jr. no final, de “Naneli” Baptista e de Alfonso Orlando Barreto, e nas emissões radiofónicas do lendário “Uncle Rey”, que entrevistou os Beatles quando estes passaram por Hong Kong, ou nas músicas popularizadas pelos “The Mistycs” e Joe Junior a partir da década de 60 do século passado.

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Instituições contemporâneas como a Escola Camões – fundada em 1947 –, que a partir de determinada altura cresceu graças aos alunos chineses e de origem indiana que a frequentaram, acabando em 1996, antes da transferência de soberania de Hong Kong para a RPC, por ser confiada pela Portuguese Community Education and Welfare Foundation  à Escola Po Leung Kuk, que lhe mudou o nome, relocalizou-a e adaptou-a aos programas curriculares locais, ou o Clube Lusitano não foram esquecidos.

Merecem, igualmente, destaque todos os portugueses que integraram o Hong Kong Volunteers Defence Corps, a partir de 1854, e os que com a ocupação japonesa se alistaram, a partir de Dezembro de 1941, para a defesa da cidade.

Muitos foram feitos prisioneiros, torturados e morreram às mãos do invasor, mas como aí se diz nunca perderam a esperança e espalharam optimismo junto dos outros prisioneiros para lhes elevarem o moral.

Na retaguarda, atrás das linhas inimigas, foram fundamentais para o trabalho dos serviços secretos, na passagem de informações, homens como Eduardo Liberato Gosano e, mais tarde elevado à categoria de “Sir”, Rogério Hyndman Lobo (Roger Lobo), havendo alguns que no pós-Guerra, depois do final da ocupação japonesa, integrariam os tribunais militares.

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Incontornável é o nome de Arnaldo de Oliveira Sales, homem de negócios que em 1957 foi nomeado para o Urban Council, onde se tornou no seu Unofficial Chairman, depois conhecido como “Mayor of Hong Kong”, servindo a instituição até 1981. O reconhecimento pela excelência do seu trabalho é ainda hoje visível em muitos locais da cidade.

Sales foi um dos homens mais influentes do desporto de Hong Kong e asiático, chegando a liderar até ao final do século XX o seu Comité Olímpico, e sendo presidente da Commonwealth Games Federation, da Asian Games Federation (AGF) e do Comité Olímpico da Ásia (OCA). Quando faleceu, o South China Morning Post disse dele ser o “Pai do Desporto de Hong Kong”.

Presentes estão ainda as ligações a Macau, com fotografias e uma velha bandeira com as armas da cidade e do Leal Senado, e a culinária de raízes portuguesas, onde não falta um vídeo com a falecida D. Aida de Jesus e a sua filha Sónia Palmer.

Nota final neste brevíssimo apontamento para um espaço dedicado ao relevante papel dos portugueses nas famosas corridas de cavalos – em 1863 foi criada a Lusitano Cup – e à figura e aos troféus dessa lenda chamada Tony Cruz, jockey filho de outro jockey.

Considerado o maior representante do desporto português em Hong Kong, coleccionou o número espantoso de 946 vitórias. Desde 2016, com a criação de um troféu anual, o Hong Kong Jockey Club homenageia-o. O Tony Cruz Award destina-se a premiar o jockey com mais vitórias numa temporada. Como treinador do Silent Witness, Tony Cruz conquistou 17 vitórias consecutivas. Na temporada de 2010/2011 venceu 72 corridas com o Beauty Flash, que só em apostas rendeu quase 80 milhões de HK dólares. Um palmarés rico e impressionante.

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E mais não vos digo. Os que puderem, e que se aventurarem por estas paragens, que não deixem de passar pelo Museu de História de Hong Kong enquanto lá estiver esta exposição.

Como português, quando de lá saí, não pude deixar de me sentir agradecido, esmagado, comovido, e ao mesmo tempo satisfeito e honrado por poder fazer parte desta gente simples, trabalhadora, corajosa, para muitos incógnita, que tanto engrandeceu, e continua a honrar, tão longe e quase sempre sem quaisquer apoios, o nome de Portugal.

Século após século. Contra ventos e marés.

E, o que é mais espantoso, não obstante a gritante mediocridade, ignorância, falta de sentido ético, político e de Estado da tropa trauliteira que tomou conta dos partidos e das suas instituições e que nas últimas décadas nos (des)governa e diariamente nos envergonha.

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Paupérrimo

Sérgio de Almeida Correia, 03.04.25

Confesso que sem grande entusiasmo, e ainda menos ânimo, que há demasiado tempo os escuto sem qualquer novidade, sem golpe de asa que os retire da mediania, alguns, e da mediocridade, outros, que lhes traga alguma luz e um pouco de azul, lá os vou ouvindo.

Os jornalistas, e aqui refiro-me aos que fazem entrevistas para as televisões aos líderes políticos, ajudam cada vez menos a disfarçar a jactância, desfaçatez, melhor diria o cinismo, e por vezes a impreparação de alguns entrevistados. Quando não raro são eles próprios, entrevistadores, manifestamente fracos, enviesados, cumprindo sabe-se lá que agendas. 

A última entrevista que vi foi a da SIC Notícias a Pedro Nuno Santos, conduzida por Nelma Serpa Pinto. Os entrevistados podem não ajudar, mas quando os jornalistas são fraquinhos é difícil dizer qual dos dois conseguiu ser mais previsível, mais entediante, mais monótono, e mais desinteressante durante mais tempo. No extremo oposto temos Clara de Sousa ou Rodrigues dos Santos, que gostam de fazer de entrevistadores e de entrevistados, convencidos como estão de que será uma grande injustiça se acabarem a carreira sem receberem, pelo menos, três ou quatro Pulitzer em diversas categorias.

Viver este pesadelo durante mais uns meses – que não terminará em 18 de Maio, entrando pelo Verão, Outono e Inverno –, com um debate político que pede meças aos programas sobre o "chuto-na-bola", com uma miríade de programas de pseudo-comentário e pretensa análise política, protagonizados por comentadores que de tudo sabem e sobre mil e um assuntos falam de cátedra, destilando insolência, é expiação demasiado pesada, embora merecida para todos os milhões que alheando-se de quase tudo durante décadas hoje se queixam, na primeira rede social ao alcance dos seus dedos, dos políticos, dos partidos, do sistema político, do regime, das sondagens, das cançonetas dos festivais, dos árbitros, da extensão das homilias, da corrupção, do centralismo, dos imigrantes, dos assaltos, dos pedófilos, das polícias, dos sindicatos, dos empresários, dos piropos, dos candidatos presidenciais que ainda não são e se fartam de dizer o que um dia farão se alguma vez formalizarem os sonhos e conseguirem a eleição, ou da falta de água, da chuva que cai, dos transportes que não há, são poucos, não andam a horas, vão sempre cheios e nunca chegam; enfim, do calor, do frio, de tudo.

Pior só mesmo a perspectiva de ouvir Carlos Moedas em campanha autárquica a falar de jacarandás.

Quando ainda estamos a mês e meio das eleições legislativas tudo isto é tão mau, tão pobre, triste e vil que se ficassem quietos e calados até 18 de Maio seria uma mais-valia para todos. A nossa sanidade iria agradecer.

Blogue da semana

Sérgio de Almeida Correia, 30.03.25

Anda nesta aventura dos blogues há mais de década e meia, de forma um tanto ou quanto discreta. Ultimamente tem dado atenção ao que se passa nas terras do Tio Sam e ao que vai acontecendo na cena política internacional. Muitas das suas preocupações são também as dos muitos que passando por esta vida consideram que não se está por cá só para comer, dormir e bailar. E isso nota-se diariamente no que escreve. Quem o lê sabe que não confunde o arguido com o acusado. E embora nem sobre tudo possa escrever, escreve sobre quase tudo de forma escorreita, com oportunidade e alma. Além de que é um dos mais antigos e fiéis leitores desta casa. Por tudo isso, mais não posso fazer do que vos recomendar uma visita ao Pedro Coimbra e aos seus Devaneios a Oriente, a minha escolha para esta semana. 

A governabilidade está garantida, o resto logo se verá

Sérgio de Almeida Correia, 24.03.25

1963833.jpeg(créditos: Homem de Gouveia/LUSA, daqui)

Quando em 17/12/2024, o parlamento regional fez cair o Governo regional da Madeira, encabeçado por Miguel Albuquerque, poucos acreditariam que três meses volvidos a mesma pessoa e o mesmo partido (PSD) aumentariam substancialmente o número de votantes, de 49104 para 62085, e ficariam a um deputado da maioria absoluta, engrossando os seus eleitos de 19 para 23, num contexto de redução da abstenção (de 46,6% para 44,02%).

Mais a mais numa lista de candidatos que apresentava "nos primeiros quinze lugares quatro candidatos que são arguidos em processos que investigam suspeitas de corrupção e prevaricação na região autónoma".

Contudo, foi isso que aconteceu, o que logo levou Luís Montenegro, para lá da natural satisfação do êxito das suas hostes, a prognosticar idêntica vitória para si e o seu PSD nas legislativas de 18 de Maio. Pode ser que os eleitores lhe venham a dar razão, embora antes disso convenha discorrer um pouco sobre os resultados de ontem.

Se, por um lado, foi inequívoca a vitória de Miguel Albuquerque, passando o PSD a dispor – pelo menos com o CDS – das condições para garantir o apoio parlamentar necessário a toda a legislatura, importará perceber, por outra banda, até onde e quando poderá ir o novo governo regional.

Sem se saber em que ponto estão as investigações do Ministério Público, nem qual será a sua agenda regional, o PSD-Madeira e a sua futura muleta e parceiro de ocasião ficarão na contingência de a qualquer momento ser deduzida acusação, pronunciando-se o presidente do Governo Regional, com o que se tornará inevitável nova queda e o regresso antecipado às urnas.

Tirando isso, o PSD tem na Madeira as condições mínimas para governar de forma estável nos próximos quatro anos.

Atendendo ao que aconteceu em 2024, e às circunstâncias que ditaram a queda do anterior Executivo, é muito pouco provável que haja mais algum partido disponível para qualquer tipo de acordo, parlamentar ou de governo, com o PSD-M. Nenhum dos demais, com excepção do CDS, estará disponível para chegar a entendimento com um partido cujo líder é arguido num processo por suspeitas de corrupção.

Os restantes resultados mostraram um aumento de mais de 7 mil votos para o JPP, que passou de 9 para 11 deputados, e um acréscimo irrelevante e sem consequências práticas na votação da CDU e do Livre, que continuam fora do hemiciclo.

O IL conseguiu manter o seu deputado, embora com uma redução do número de votos. O eleitorado potencial do BE tirou-lhe cerca de 17% dos sufrágios que lhe tinha dado há um ano. O CDS-PP ficou com menos um deputado e menos votos, tal como Chega, que viu evaporarem-se cerca de 5 mil eleitores, perdendo 1 deputado. O PAN perdeu o único deputado que possuía. Todos estes, ao lado do PS, foram os indiscutíveis derrotados.

O caso do PS é particularmente significativo dada a dimensão do "afundanço" inerente à perda de mais de 6500 votos e de 3 deputados, passando percentualmente de 21,77 % para 15,64%, números indisfarçáveis e que colocam em causa a liderança e a gestão do partido na Madeira, onde continua a ser visível, e risível, o desfasamento deste do eleitorado, o irrealismo das metas – para quem aspirava ser alternativa de governo e afastar Miguel Albuquerque o resultado é medíocre – e a incapacidade de se renovar, modernizar e encontrar alguém com ambição, dinamismo, inteligência e carisma que seja capaz de dar resposta às exigências do eleitorado madeirense, tirando o partido do poço onde se instalou e de onde continua a ver os votos voarem e a abstenção a subir. 

As lideranças nacionais dos partidos que se apresentaram a sufrágio na Madeira procurarão agora valorizar ou desvalorizar os resultados das eleições regionais com o pensamento nas próximas legislativas, embora fosse avisado que não o fizessem. No território continental não existe o mesmo grau de caciquismo, dependência, isolamento, ignorância e alheamento das grandes questões nacionais e internacionais que existirá em algumas regiões da Madeira, onde tudo é diferente, das preocupações locais às tradições e à influência da Igreja Católica, do presidente da Câmara ou da Junta de Freguesia.

E se nesta eleição regional vimos uma redução da abstenção, não só isso não é garantido para as legislativas que aí vêm, como a luta será bem mais renhida de Norte a Sul.

Se o eleitorado na Madeira está mais preparado para aceitar como natural a presença nas listas de candidatos arguidos em processos de corrupção, condescendendo nesse convívio entre as maçãs boas e as amostras cheias de lagartas que vão passando de umas para outras, nada garante que a falta e incompletude das explicações de Luís Montenegro sobre as suas muitas e variadas trapalhadas, incluindo em autarquias cujos dirigentes também são arguidos em processos de corrupção e/ou há suspeitas de favorecimento, para além do que entretanto acontecer com a operação Tutti Frutti, não venham a ter reflexos nos resultados eleitorais.

Faltam quase dois meses para o acto eleitoral. O comentador-arguido José Sócrates continuará por aí. Os majores-generais russófilos idem. O ambiente favorece este tipo de actores secundários. O cenário internacional manter-se-á imprevisível e efervescente, com uma série de conflitos em curso sem perspectivas realistas de terminarem num prazo razoável. O Presidente Marcelo, perante um governo de gestão, e com Marques Mendes a espreitar em todas as esquinas, adquirirá renovado protagonismo. E verve. Pedro Nuno Santos reinventará com a sua gente as listas de deputados, a ver se não ficam reduzidas a funcionários do partido e coveiros. André Ventura tentará encontrar alguns sósias que o ajudem a preencher lugares numa futura bancada do Chega e adaptar os seus serviços de logística para assegurarem a entrega das encomendas e da correspondência aos seus destinatários. Rui Rocha, para desespero do PAN, não largará nem por um minuto as ovelhas que se aventurem a sair dos currais nas próximas semanas. A CDU,  inclusivamente, abalançar-se-á a sonhar com uma vitória eleitoral, uma maioria de esquerda que lhe dê um sopro de vida e a presença de Maduro na Festa do Avante. Como Rui Tavares gostaria de triplicar a bancada do Livre, o que admito que não será difícil se o BE continuar à procura de "defuntos" para encabeçarem as suas listas enquanto as suas dirigentes se forem esvaindo a falarem dos direitos das mulheres trabalhadoras. Até António José Seguro poderá anunciar uma candidatura presidencial. Ou ex-ministro Costa e Silva assinar um novo romance desenvolvendo o tema das "bundas caloríficas". Mesmo a RTP poderá, um dia, nunca se sabe, fazer Fátima Campos Ferreira regressar do Vaticano, no que constituirá um verdadeiro milagre.  Tudo é possível.

E quando digo tudo é mesmo tudo, incluindo uma vitória eleitoral de Luís Montenegro. O que nunca acontecerá, estou certo, é que esta, alguma vez, a acontecer, qualquer que seja a sua dimensão, traga consigo a sua absolvição. Ou a absolvição da responsabilidade do Ministério Público e dos tribunais no caos em que hoje vive a política portuguesa.

Isso jamais acontecerá. Nem que Cristo desça à Terra.

E ainda que, como escreveu o Caeiro, o fizesse, o que seria sempre desculpável, só para limpar o nariz ao braço direito, atirar pedras aos burros ou roubar a fruta dos pomares.

Mais um mau serviço do PR, do Governo e dos partidos políticos

Sérgio de Almeida Correia, 19.03.25

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(créditos: EFE/EPA/JOSE SENA GOULAO)

Por diversas vezes, nomeadamente em artigo publicado no Público em 10/02/2022, chamei a atenção para o que estava a acontecer com o voto nos círculos da emigração e com os problemas atinentes aos sufrágios remetidos por via postal e ao voto presencial em eleições legislativas.

Os eleitores que residem no estrangeiro podem escolher entre uma das duas modalidades: nos temos do art.º 79.º, n.º 4, da Lei Eleitoral para a Assembleia da República, “[o]s eleitores residentes no estrangeiro exercem o direito de voto presencialmente ou pela via postal, consoante optem junto da respe[c]tiva comissão recenseadora no estrangeiro até à data da marcação de cada a[c]to eleitoral.” O art.º 79.º-F desse diploma esclarece que a “opção entre o voto presencial ou voto por via postal por parte dos eleitores residentes no estrangeiro é feita junto da respe[c]tiva comissão recenseadora até à data da marcação de cada acto eleitoral.”, não podendo essa opção ser alterada “entre a data da marcação e a de realização de cada a[c]to eleitoral.”

O voto por correspondência têm funcionado mal. Ou não funciona de todo. A consequência tem sido o desperdício de centenas de milhares de votos. O tempo necessário para a preparação e envio dos boletins é excessivo, a burocracia envolvida é pesada e os envelopes com os votos demoram uma imensidão a chegar a Lisboa, acabando uma grande parte, quando não a maioria, por chegar depois de decorrido o prazo de recepção para que possam ser contabilizados. 

A opção que os eleitores recenseados anteriormente fizeram pelo voto por correspondência podia ser agora mudada para o voto presencial se o pudessem fazer até à data da marcação das eleições, isto é, salvo melhor opinião, até à publicação no Diário da República do decreto presidencial que fixa a data do acto eleitoral. 

Entre a data do anúncio do PR de que iria dissolver a AR e convocar novas eleições – 13 de Março – e o dia escolhido – 18 de Maio – havia 66 dias, o que permitiria, se o diploma fosse publicado até 55 dias antes (prazo limite a respeitar nas situações de dissolução, face ao art.º 19.º, n.º 1, da Lei Eleitoral da Assembleia da República) da data agendada para as eleições, que houvesse uma janela de cerca de dez dias, prévia à suspensão de acesso informático ao sistema de recenseamento eleitoral, pois que só através deste sistema, a funcionar junto dos consulados portugueses, seria possível proceder à escolha da opção pelo voto presencial. 

Com a rejeição do voto de confiança pedido pelo governo de Luís Montenegro, e a subsequente dissolução da Assembleia da República e a marcação da data das eleições para 18 de Maio p.f., tudo se precipitou e a possibilidade de muitos poderem optar pelo voto presencial, para que desta vez o seu voto fosse contado, fechou-se num espaço de tempo muito curto, inviabilizando-se o exercício desta opção. 

Será por essas razões – atraso no envio dos boletins de voto, encerramento quase imediato do sistema de recenseamento e morosidade da chegada dos sobrescritos a Lisboa – mais do que certo que muitas centenas de milhares de eleitores não exercerão o seu direito de voto e muitos milhares de votos se perderão, ficando impedida a sua contabilização, aumentando-se os valores da abstenção, distorcendo-se a vontade dos eleitores e o resultado final. 

Impunha-se que o Presidente da República, que apenas se preocupou com os partidos políticos concorrentes e o tempo necessário à preparação e apresentação das listas de candidatos, tivesse também pensado nisto quando anunciou ao país, em 13 de Março p.p., a data para as eleições legislativas de 18 de Maio. 

E do Governo, através do Ministério da Administração Interna e da Secretaria de Estado das Comunidades Portugueses, esperava-se que, através dos postos consulares e dos canais próprios, de imediato procedesse à difusão de informação, alertando os emigrantes e potenciais eleitores para a necessidade de procederem com urgência às operações de recenseamento e de actualização dos cadernos eleitorais, ainda que num curtíssimo período, de modo a que não ficassem de fora no próximo acto eleitoral. 

Nada disto aconteceu. Os direitos e deveres cívicos dos portugueses residentes nos círculos da emigração foram pura e simplesmente desprezados e ignorados. 

E se houve alguns consulados que, não obstante essa breve janela temporal, procederam à difusão de avisos em redes sociais, os quais terão chegado a alguns eleitores, a maior parte não teve conhecimento do que se impunha e vai sujeitar-se, de novo, a ficar limitada a um voto por correspondência, se chegar a tempo, que não só de nada servirá como, nalguns casos, voltará a potenciar a fraude. 

A situação é tão triste, e ao mesmo tempo tão caricata, que ainda ontem, 18 de Março, em Macau, o Telejornal do único canal em língua portuguesa anunciou a possibilidade dos portugueses residentes na RAEM poderem realizar a opção pelo voto presencial hoje – quarta-feira, 19 de Março – ou amanhã – quinta-feira, 20 de Março –, quando se verificou que a suspensão do sistema informático de actualização dos cadernos terá começado às 00:00 horas de Lisboa, pelo que os portugueses que, face a essa notícia, quisessem exercer esta manhã a opção pelo exercício presencial do seu direito de voto nas próximas eleições, e tivessem assistido ontem ao jornal televisionado da TDM, bateram com o nariz na porta. 

Do Ministério da Administração Interna, cuja ministra mostrou ser politicamente inepta, muito pouco havia a esperar. De José Cesário, o secretário de Estado das Comunidades, que exerce o cargo pela quarta vez, era de admitir que ao fim de tanto tempo tivesse aprendido alguma coisa. E que nos últimos doze meses se preocupasse, face ao sucedido em anteriores actos eleitorais, em "dar corda aos sapatos". Não para ir aos bailaricos das comunidades, mas para contribuir para o inadiável processo de reforma, evitando a repetição do sucedido. Porém, não foi isso que sucedeu.

A vida deste Governo foi curta. Por culpa própria ou das oposições logo se verá. Só que em matéria de reforma das leis eleitorais, enquanto durou, voltou a impor-se a propaganda ao serviço público.

E quanto aos demais partidos, a começar pelo PS, estou convicto de que nenhum deles pensou no assunto.

Assim se perderam mais doze meses num processo inadiável, com as consequências que estão à vista de todos e que se confirmarão quando forem conhecidos os resultados do próximo acto eleitoral.

Siga a marcha.

Este programa de lavagem exige centrifugação

Sérgio de Almeida Correia, 14.03.25

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(créditos: daqui)

Cumpriu-se o prometido. Ou a ameaça, dependendo da perspectiva. O Presidente da República anunciou a dissolução da Assembleia da República e convocou eleições legislativas para 18 de Maio.

Como todos estavam avisados, ninguém se admirou com a decisão de Marcelo Rebelo de Sousa. Preferem tremoços em vez de amêndoas? Pois aqui os têm. E logo veremos quem fica com as cascas.

Na breve alocução que fez, o Presidente não se afastou daquela que tem sido a sua leitura das condições de governabilidade e do exercício da autoridade política elencadas noutras ocasiões. Uma vez mais, como fizera durante a crise do ministro Galamba, trouxe à liça o problema da confiabilidade, ou seja, da "ética da pessoa exercendo a função". E, oportunamente, assinalou que "não se pode ao mesmo tempo confiar e desconfiar". Não há meio-caminho. Tem razão.

Com a concordância dos partidos políticos e do Conselho de Estado vamos iniciar novo ciclo eleitoral. O calendário é bastante apertado corre-se o risco de aumentarem os sinais de exaustão dos portugueses para com os partidos e a classe política. A seu tempo se verá.

O incómodo de muitos autarcas será grande. O resultado das legislativas traz consigo o risco de influenciar decisivamente o resultado das eleições autárquicas do início do Outono nalguns municípios em que pela sua dimensão e proximidade ao centro do poder político as influências deste são mais profundas, os factores de crispação maiores e a luta político-partidária mais agressiva.

Neste contexto, a postura dos candidatos apresentar-se-á como fundamental para retirar animosidade ao discurso, introduzindo serenidade ao combate eleitoral, evitando o eriçamento do tom. O modo como decorrer este período até às eleições, e em especial a campanha eleitoral, poderão contribuir para aproximar ou afastar ainda mais as pessoas da política. Os níveis de abstenção vão em muito depender da forma como a campanha decorra. A democracia e a saúde do regime voltam a estar em xeque.

Para além da necessidade de se escolher a composição do novo parlamento e aquele que será o futuro primeiro-ministro, seria bom que os partidos percebessem uma coisa: os portugueses só irão às urnas sentindo-se esclarecidos, por um lado, e confiantes de que continua a fazer sentido votar.

De há muito que o aumento de personalização das campanhas e um sistema eleitoral fechado, incapaz de se renovar e aproximar dos eleitores, assente num caduco sistema de listas, em que tirando os primeiros nomes poucos sabem quem são os fulanos que se vão sentar em São Bento, o que fazem e o que pensam, de onde vêm e para onde querem ir, pouco contribuem para o esclarecimento. Muitos deixaram de votar por convicção e apenas para não terem de escolher aquele que lhes parece ser no momento o menor dos males.

Uma coisa é ter dificuldade em escolher um de entre dois hotéis igualmente bons, com óptimo preço, serviço magnífico e excelente localização. Outra é ser obrigado a olhar para propostas que muitas vezes pouco se diferenciam, em virtude de condicionamentos externos e internos, escritas em mau "politiquês" por uns ignaros com passado nas "jotas" e que acabaram a escolaridade obrigatória em gabinetes ministeriais escrevendo ofícios que começam com "somos a apresentar", subscritas por gente de quem à partida se desconfia, e que poucas razões dá para nela se confiar, e em que o factor decisivo residirá na contagem do número de arguidos, manhosos, medíocres e analfabetos mais conhecidos de cada uma das listas para se acabar votando na que apresentar menos em cada uma dessas categorias.

Sem querer ser ingénuo, gostaria de ver uma campanha centrada em propostas apresentadas por pessoas em quem se possa confiar, o que é cada vez mais raro.

Mas como há muito perdi as ilusões, que não a esperança, ainda acredito que será possível transformar os próximos dois meses e meio num ciclo de lavagem acelerado.

Admitamos, pois, o princípio de que a partir de segunda-feira o país e as ilhas se transformarão numa gigantesca máquina de lavar roupa, onde enfiaremos os líderes dos partidos concorrentes às eleições e os candidatos à primeiro-ministro, mais os respectivos rebanhos.

Creio que as rádios, as televisões e os jornais estão mais do que habituados a estes ciclos de lavagem, muito embora os detergentes que têm usado, culpa das agências de comunicação, sejam normalmente muito rascas, e os candidatos continuem a sair de lá dentro, no final de cada programa, pouco perfumados, já desfiados e ainda encardidos devido à ausência de pré-lavagem.

Como depois seguem directamente para o estendal de São Bento, só quando começam a secar e a ser impiedosamente expostos e batidos pelo vento é que nos apercebemos do seu estado e da má qualidade do material que nos impingiram, ultimamente mais visível nos que por lá se têm agitado.

Preparemo-nos então para enfiar os melhores trapos que os partidos nos oferecem dentro de uma boa máquina de lavar – também se pode aproveitar para lá meter umas becas e uma batinas que andam muito ruças e com pouco préstimo –, sujeitando-os a uma boa barrela.

Para isso, podemos começar com um bom programa de pré-lavagem, a que se seguirá um ciclo longo de oito semanas, sempre na máxima rotação da máquina, e com uma dose generosa de detergentes, tão bons que não permitam aos mais esgaçados, no final do programa, saírem dali para mais lado algum. A seguir, aos sobrantes, dê-se--lhes uma boa centrifugação. Sempre acima das 1200 rpm.

Estou convicto de que com a ajuda da comunicação social e da PJ, que tanto contribuíram para nos revelarem, entre outras preciosidades, os mistérios de Paris, a ilustre casa de Espinho, as marquises do interior, o enxoval do Arruda, os canudos da Lusófona, as coutadas do macho latino, os vinhos do Isaltino, os estafetas de Alcochete, os clientes do Calor da Noite, e até recapturarem uns hóspedes de Vale de Judeus que tinham ido mudar uns pneus, será possível fazer uma boa lavagem.

Esperemos é que até lá aquelas rolas e corvos que nidificam nos pisos superiores do Palácio Palmela não se lembrem de interromper o programa de lavagem para irem à procura de uns talões de Multibanco e de uns bilhetes para a bola que saíram pela janela, num dia de ventania, porque uma das mulheres da limpeza se esqueceu dela aberta.

Se assim for, virá toda a roupa limpinha e bem cheirosa para, salvo avaria de última hora no leme ou encalhanço no nevoeiro do Bugio, hipótese que nunca se poderá excluir, aconchegar o senhor almirante.

Naufrágio à vista de terra firme

Sérgio de Almeida Correia, 13.03.25

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Quem tiver acompanhado em directo a discussão da moção de confiança que o Governo de Luis Montenegro levou ontem à Assembleia da República, certamente que não deixará de reflectir, por pouco tempo que seja, sobre o que ali aconteceu. Para lá dos discursos, as expressões faciais e corporais dos protagonistas, os gestos, a colocação da voz do primeiro-ministro, o estilo do discurso e em particular o olhar, à medida que a sessão avançava, eliminavam as poucas dúvidas que ainda restassem sobre a sua rejeição.

Na bancada do Governo, tirando alguns esgares e sorrisos de circunstância, perdera-se a pose impante e altiva de quem manda e vai governar durante quatro anos. Olhares perdidos, longínquos, rostos fechados, circunspectos, denotando um misto de preocupação e de resignação.

Creio que muitos dos ministros do XXIV Governo teriam preferido que a moção nunca tivesse sido apresentada. Ou, então, que Montenegro a tivesse retirado antes da votação final. Provavelmente não o saberemos nos próximos tempos, mas dia virá em que essa parte da história será desvendada. Ali havia que mostrar solidariedade, ainda que só pela presença física, que o espírito e alma de cada um não se entregam assim, nem se conformam com a simples ritualização procedimental.

O primeiro-ministro procurou cumprir o seu papel sem a confortável ousadia de quem está convencido de que leva a razão pela mão. O desgaste das últimas três semanas, a compressão do olhar, muitas vezes ausente, mostravam que o seu tempo se aproximava do fim. A teatralização perdeu eficácia. O que ao longo dos últimos dias foi conhecido era afinal demasiado grave e contundente para não fazer mossa.

À medida que o debate progredia, aumentava o incómodo à sua direita e à sua esquerda, embora não tão eloquente como na bancada do PSD, onde as paupérrimas intervenções de Hugo Soares e Paulo Núncio em nada contribuíam para a desejada continuidade do Governo. A aflição tornou-se maior quando se percebeu que a desvairada proposta de uma CPI por 15 dias ou uma negociação de bastidores com o PS estaria condenada ao insucesso. E à vergonha.

Ventura fez o número habitual. Tom crispado e desafiador, naquela pose de marido enganado que vai fazer justiça, atirando culpas a tudo e a todos sem que os outros lhe dessem importância. Naquele momento o Chega já riscava muito pouco. A arenga, depois secundada pelo seu número dois, era irrelevante.

Mariana Mortágua, Rui Rocha e Rui Tavares estiveram bem na defesa das suas posições. A primeira, em ritmo pausado, com um discurso bem articulado, claro e incisivo, fez uma intervenção demolidora, colocando as questões cruciais. O líder do IL assumiu a pose de Estado, mostrando a sua disponibilidade para futuros entendimentos à direita. Rui Tavares procurou ser pedagógico. Inês Sousa Real referiu o óbvio. As intervenções da bancada do PCP, muito longe do brilho e de fulgor de outras eras, pouco acrescentaram, chegando a ser penoso ver como o grupo parlamentar minguou.

O líder do PS, que normalmente recorre a um discurso repetitivo, em tom monocórdico e excessivamente palavroso, por uma vez cingiu-se ao essencial sem demasiado espalhafato. Foi bem apoiado por Alexandra Leitão e Pedro Delgado Alves. Intervenções sem demasiado floreados, directas, numa linguagem compreensível para todos, são sempre muito mais eficazes, e tornaram irreversível o sentimento de rejeição da confiança pedida pelo Governo. 

Quando os telefones começaram a ser usados com mais frequência,  viu-se aquele número tosco do líder parlamentar do PSD, desesperadamente querendo fazer de ponto de Montenegro e salvador do Governo. Aí percebeu-se que tudo estava terminado. A intervenção final do esforçado Miranda Sarmento já não terá sido ouvida por ninguém. O apelo que fez naquela altura destinava-se a um saco roto.

Formalmente, a AR rejeitou o voto de confiança pedido pelo Governo. Substancialmente não foi este quem perdeu a confiança. O Público trazia esta manhã a fotografia do primeiro-ministro e o título, pouco rigoroso, dizia apenas "Caiu".

Na verdade, Montenegro não caiu. Nem se estatelou. O primeiro-ministro naufragou. E o mais incrível é que tudo aconteceu a 200 metros de terra firme. Levou com ele toda a tripulação, mais os passageiros, os clandestinos, as baratas e os ratos. Ninguém escapou.

Incapaz de perceber os muito sinais que lhe chegavam dos faróis e das bóias ao longo da costa, que o alertavam para um provável naufrágio ante o aumento das vagas que lhe entravam pelo convés, e que antes já o tinham deixado todo encharcado na ponte, confiante nas suas capacidades de Capitão Nemo da Costa Verde, Montenegro persistiu em manter o rumo enquanto mastigava um douradinho da Pescanova.

Há muito que se convencera de que o facto de os anteriores inquilinos da São Caetano à Lapa lhe terem confiado o navio era mais do que garantia de que aqueles marujos que o acompanhavam e o ajudaram antes a preparar a documentação para responder ao anúncio da Duck Cruises – Holidays and Trips Limited, mais conhecida como Cruzeiros à Pato – Férias e Viagens, Limitada, constituíam uma tripulação experiente e habituada a navegações oceânicas.

O primeiro-ministro ignorou os avisos de perigo iminente do faroleiro Santos e as indicações que este lhe dera pelo rádio para fazer um bordo de 90.º, a estibordo, e assim fugir das vagas e do nevoeiro, afastando-se das redes do pescador Arruda. Recusou alterar o rumo. Quando o seu compincha, em terra, agarrado aos binóculos de visão nocturna embaciados pelo nevoeiro, mas que ele só usava no olho direito para não pensarem que era um radical de esquerda, lhe começou a dizer para tirar a água que entrava pela amura de bombordo, já era um Capitão Montenegro em pânico que fugia da vaga em direcção à costa, correndo à frente daquela, sem perceber que o imediato Duarte e o cabo Leitão ainda andavam à procura dos coletes e dos remos dos salva-vidas que, afinal, tinham ficado esquecidos num armazém da Solverde, misturados com os sacos de golfe, as facturas da Spinumviva, os recados do Soares e o projecto de arquitectura que o Moedas pedira para justificar as obras na mansão da Travessa do Possolo.

O que se seguiu é do conhecimento de todos. Uma multidão de repórteres e operadores de imagem, de microfone em riste, com a jornalista Felgueiras à cabeça nas suas garridas galochas amarelas, estavam a postos para transmitirem em directo o naufrágio e os primeiros testemunhos dos náufragos.

Recolhidos pelo que restava de pessoal operacional do INEM e os mirones do Correio da Manhã, receberam algumas mantas, agasalhos secos e umas caixas de refeições ligeiras, antes de serem transportados até São Bento, onde iriam pernoitar. Quando aí chegaram, estranhamente, ninguém lhes franqueou a entrada. Na porta estava colado um aviso que dizia ter o senhorio resolvido o contrato devido à prática de actos ofensivos dos bons costumes.

Impedidos de ali se instalarem, onde entretanto haviam começado as obras para acolhimento dos futuros inquilinos, rumaram ao hotel de um velho conhecido. Esperavam aí obter um quarto duplo onde se acomodassem os três, com um preço aceitável e sem necessidade de grande conversa. Lamentavelmente não lograram os seus intentos. O contrato com o armador do navio e a seguradora caducara e os estalajadeiros não tinham quartos disponíveis. E, ao contrário do habitual, os fulanos recusaram liminarmente o regateio. O bispo Irineu Lavador que nessa manhã chegara a Lisboa num jacto privado procedente de Corumbá, carregado de dólares, tinha o hotel por sua conta e dos familiares e fiéis que se juntariam nessa noite numa celebração da sua seita no Estádio do Restelo, cujas portas abririam, milagrosamente, graças aos bons ofícios do deputado Almeida.

À hora a que escrevo estas linhas recebi informação de um amigo sapador, que festejava a sua recente promoção e o aumento salarial anunciado pelo chefe Sarmento com umas gambas e umas cervejolas, nas proximidades de Santa Apolónia, que me referiu ter visto os náufragos entrarem numa viatura da PSP, chamada de emergência ao local, depois daqueles terem sido corridos de Belém, onde pretendiam pernoitar, imaginem, à pedrada.

Essa recepção inusitada encaminhou-os daí para o Largo do Caldas, na esperança de que ainda lá estivesse um porteiro conhecido que lhes desse uma chávena de chá e os abrigasse. Sem sucesso. A electricidade e a água tinham sido cortadas por falta de pagamento. Entretido com os submarinos, o menino Nuno nunca mais se lembrara das contas.

Àquela hora, desesperados, com o Panteão Nacional ainda fechado, sem comboios para o Porto que parassem em Espinho e assegurassem ligação a Braga, refugiaram-se na Santa Casa da Misericórdia. Valeu-lhes um telefonema do Santana da Figueira. O que ninguém imaginava é que os deixassem ficar sentados nas escadas até ao nascer do dia. É que eram tantos os náufragos, devido à sobrelotação do navio, que nem ali havia mais camas disponíveis.

Sem palavras

Sérgio de Almeida Correia, 11.03.25

"O primeiro-ministro, Luís Montenegro, revelou que fez um acordo com o grupo hoteleiro Sana para conseguir pagar “250 euros por cada noite” passada num hotel de cinco estrelas no centro de Lisboa. E para garantir ainda que o alojamento estaria “disponível” “sempre que fosse necessário".

Um primeiro-ministro em funções faz um acordo destes? Tinha necessidade? Tendo uma residência oficial? E um apartamento em Lisboa?

Este tipo terá noção do que diz? Estará no seu perfeito juízo?