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Delito de Opinião

Nabeiro

Sérgio de Almeida Correia, 20.03.23

Rui_Nabeiro_5.jpg(foto daqui, do Público)

Tal como muitos portugueses, fui ontem surpreendido pela notícia do falecimento de Manuel Rui Azinhais Nabeiro, o visionário da Delta Cafés que projectou Campo Maior muito para lá das suas fronteiras geográficas.

Durante os meus anos de faculdade tive a sorte de conhecer algumas pessoas que se viriam a tornar dos meus melhores amigos, entre eles o Rui, que era sobrinho do senhor Nabeiro e que durante aqueles anos de solteiro e estudante habitava na sua vivenda da antiga Av. do Aeroporto, depois baptizada de Almirante Gago Coutinho, onde por aquele tempo também ficavam os escritórios da Delta em Lisboa.  

Nos intervalos das aulas, por vezes ao final da tarde ou à noite, lá íamos uns quantos jantar a casa do Rui, que se encarregava de invariavelmente nos fazer, na maior parte das vezes, um saboroso bacalhau à brás de cujas batatas nunca mais me esqueci, de tão bem que me sabiam. Era sempre uma festa. Com o convívio e a camaradagem cresceu a amizade, e lá fui ouvindo as histórias que o Rui me tinha para contar do tio e da sua família.

Um dia, logo após os nossos últimos exames, e terminado o curso, o Rui convidou-me para irmos ao Porto. Ele lá trataria do transporte, com alguém da Delta que tivesse carro, fosse para o norte e nos pudesse dar uma boleia, e do alojamento, em casa de amigos, ou de amigas que nos pudessem acolher, que nesse tempo todos tesos. Eu ainda sou, embora um pouco menos do que naqueles tempos de estudante recém-licenciado à espera do que a vida me trouxesse.

Lá fomos até à Invicta, e depois a Paços de Ferreira, onde o Campomaiorense jogava para a Taça de Portugal e o meu amigo iria representar o clube da sua terra. Ficámos os dois, que nem uns perus, no camarote destinado ao visitante, quase directores, na ausência destes devido ao facto de ser um dia de semana. Foi uma jornada memorável, que se completou com a viagem do Porto até Campo Maior, nos carros da Delta, ele num, eu noutro, por ocasião de uma caçada em Espanha e de um convívio oferecido pela Delta, no fim-de-semana seguinte, aos seus melhores clientes, creio. Foram tempos inesquecíveis de camaradagem e amizade, que perduram até hoje.

Graças ao Rui conheci os pais, os irmãos, os tios, os primos, a amiga Beatriz, o João Manuel, a Helena e o saudoso Joaquim Bastinhas, a quem numa dessas noites fomos visitar para conhecer a sua nova quadra, logo aproveitando para "cravar" um jantarinho na Pousada de Elvas, e mais uma série de gente de cujos nomes já não me recordo, mas cujos sorrisos permanecem tão vivos na minha memória como se tivesse sido ontem.

Recordo-me de uma outra vez ter sido convidado para visitar a nova fábrica, quando a Delta deu o salto que a tornaria num verdadeiro portento em Portugal e em Espanha, onde pude apreciar óptimo café e aprender alguma coisa de útil desde o processo de produção à distribuição. 

De uma outra vez, tendo sido convidado para o baptizado de um dos netos, o Rui lá tratou de me instalar, como habitualmente, na Estalagem de Campo Maior, gerida pela sua mãe. Quando nessa noite, ao jantar, chegou o senhor Nabeiro e o fomos cumprimentar, logo ele perguntou ao sobrinho quando chegáramos e onde é que eu, o amigo vindo de Cascais, o "pendura", iria dormir, e se estava bem instalado.

Ontem, quando estava a ler os jornais do dia e fui surpreendido com a triste notícia do falecimento do senhor Nabeiro, a quem não sabia enfermo, e à noite vi as notícias nos vários canais de televisão, não pude deixar de me recordar de tudo isto, e de muito mais que não posso nem seria adequado aqui contar porque diz respeito à nossa intimidade e aí ficará; porque há coisas que só aí podem ser devidamente preservadas e recordadas.

Um destes dias, quando puder, hei-de voltar a Campo Maior, para rever a terra, as gentes e os amigos. E nesse dia, quando aí levar a M.T., se voltar a haver Festa do Povo, hei-de poder mostrar-lhe todos aqueles lugares que um dia me fizeram feliz, mostrando-lhe o tanto que a vida nos dá, pela simples, desprendida e genuína amizade, tantas vezes sem que nada façamos para merecermos tamanhas honras e privilégios. Tudo em razão da grandeza, da bonomia, da simplicidade e da ternura de um homem por todos aqueles que o rodeavam, que por uma razão ou por outra o faziam feliz, e que jamais deixarão de lhe estar reconhecidos.

Houve um dia em que o Rui e mais uns amigos de Campo Maior vieram aí a um congresso qualquer e aproveitaram para me fazer uma visita. Levei-os a jantar ao Clube Militar, no tempo em que o José Manuel Braz-Gomes ainda marcava o ritmo do compasso, e a casa, que ainda não se tornara numa cantina barulhenta, se preocupava em fazer boa figura. Recordámos então dias curtos e noites longas de interminável amizade.

Que Manuel Rui Azinhais Nabeiro, o senhor Comendador – um dos poucos, num país que distribui medalhas como quem oferece caramelos de Badajoz, verdadeiramente merecedor e digno do título –, depois de uma vida dedicada aos outros, criando riqueza e melhorando o dia a dia de todos, possa agora finalmente descansar e tomar em paz e sossego a sua chávena de café, sentindo aquele aroma tão característico das coisas que nos dão prazer e nos inebriam. Das coisas que valem sempre a pena. Como a autenticidade, a discrição, a preservação do carácter na adversidade e a amizade.

Ao meu amigo Rui e a toda a família vai daqui, dos cafundés de uma Macau que se foi perdendo e que eles não reconheceriam, um agradecido, forte e sentido abraço.

A cruz do procurador

Sérgio de Almeida Correia, 10.03.23

7A924702-688A-428E-AE85-0A74A3E538D5-1392x1044.jpe(créditos: Macau Business)

A propósito desta notícia, e deste "patriótico" despacho da LUSA, importa que os portugueses não fiquem com as imagens do filme atinentes ao momento em que entraram na sala.

O filme já tinha começado em 15 de Outubro de 1997. Agora é só mais um capítulo, mas convém que todos tenham o devido enquadramento para não participarem no filme "Maria vai com as outras". Que ningém perca o que está para trás e ficou por contar, pois não convém que os leitores, e os contribuintes, venham um dia a sentir-se enganados. A começar pelo Dr. João Gomes Cravinho, mas sem esquecer Augusto Santos Silva, o Presidente da República e o deputado Sérgio Sousa Pinto, que um destes dias terá de voltar a Macau para jantar, mais a dupla  "Pisco & Cesário", para todos se actualizarem sobre a realidade local com a sempre bem informada Comendadora Rita Santos e o empresário Chan Meng Kam

A epopeia do senhor Cross daria uma boa série da Netflix.  Um título apropriado seria "A cruz do procurador".

Facilitanço e afins

Sérgio de Almeida Correia, 07.03.23

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(créditos: NM, daqui)

"Embora a renúncia não careça de aceitação, deveria ter sido comunicada por carta dirigida ao Presidente do Conselho de Administração, só produzindo efeitos no final do mês seguinte àquele em que tivesse sido comunicada, requisitos que não foram estritamente cumpridos" (...)

"Apesar da informalidade na transmissão da concordância quanto ao montante acordado e à respetiva saída da Eng.ª AR, parece evidenciado que esta anuência foi conferida com base em pressupostos de conformidade legal de tais atos, transmitidos pela CEO Eng.ª CW – decorrente do acompanhamento jurídico a que a Administradora cessante e a TAP tinham recorrido – que não terão sido objeto de confirmação por parte dos anteditos ex-membros do Governo." 

"[A] factualidade descrita evidencia a inobservância dos normativos legais aplicáveis às empresas públicas e às sociedades comerciais, bem como das regras estatutárias e regulamentares do Grupo TAP por parte dos administradores envolvidos (CEO Eng.ª CW, PCA Dr. MB e Eng.ª AR), a qual deve ser avaliada e ponderada no âmbito do exercício da função acionista" 

(...)

"C1. O Acordo de cessação de relações contratuais celebrado entre a TAP, S.A. e a Eng.ª AR, envolvendo uma compensação global de 500 000 euros, é nulo exceto nas partes relativas à cessação do contrato individual de trabalho (CIT) e à respetiva compensação (56 500 euros). O Acordo previa igualmente o pagamento da retribuição do mês de fevereiro de 2022 (17 500 euros) que se considera devido. 

C2. Com efeito, o EGP não prevê a existência da figura formalmente utilizada para a cessação de funções da Administradora, ou seja, a “renúncia por acordo”, sendo que a renúncia constante do EGP não confere direito a qualquer compensação financeira, pelo que o valor auferido encontra-se desprovido de fundamento legal (vd. artigo 27.º). 

C3. Mesmo no caso de configuração da cessação de funções como um ato de demissão por mera conveniência, tal ato teria sido praticado por entidade incompetente, na medida em que este careceria de deliberação acionista, em AG ou através de DUE (vd. n.º 2 do artigo 37.º e alínea c) do n.º 1 do artigo 38.º do RJSPE e n.º 2 do artigo 26.º do EGP). 

C4. Neste último cenário, também o negócio jurídico subjacente ao Acordo, incluindo a totalidade dos benefícios elencados no seu Anexo II, dos quais já foram utilizados, pelo menos, o correspondente a 6 610,26 euros, não tem fundamento legal, na medida em que não observa o requisito temporal de 12 meses de exercício de funções no respetivo mandato, nem a forma de cálculo da indemnização (vd. n.º 3 do artigo 26.º do EGP)." 

 

As partes transcritas, cujos negritos são da responsabilidade do autor deste texto, dizem respeito ao Relatório n.º 24/2023, elaborado no âmbito do Processo n.º 2023/324/M6/36, pela Autoridade de Auditoria da Inspe[c]ção-Geral de Finanças.

Muito do que ali vem já era do conhecimento público, e nalguns casos decorria das declarações conhecidas de alguns dos protagonistas. No entanto, não há nada como ler um documento devidamente estruturado contendo os factos essenciais e as necessárias referências e transcrições dos normativos aplicáveis.

As conclusões acabam por dar razão àquele que era o sentimento público de muitos cidadãos relativamente à forma como assuntos deste tipo  são tratados ao mais alto nível pelos responsáveis políticos e empresariais.

O relatório que agora conhecemos é todo ele um espelho da cultura política e empresarial instalada há várias décadas em Portugal, e não apenas na TAP e no universo das empresas públicas e/ou participadas com capitais públicos.

Uma cultura nacional de informalidade, "agilização", "alavancagem" e "facilitanço", que impregna todo o tecido social, dos mais novos aos mais velhos, que é uma variante da cultura do "golpe e do gamanço generalizado", do desprezo pela norma e pelo estrito cumprimento de regras e procedimentos, devidamente atamancado com a participação de "mercenários" pagos a peso de ouro que tentam albardar os burros de acordo com as exigências dos clientes, fazendo o pino jurídico para acomodarem as pretensões destes, sempre na expectativa de que fechados os acordos ("negociatas") nunca mais se fala no assunto, porque neste país há muito que nada nem ninguém é normalmente escrutinado em devido tempo, todos se calam para poderem comer, as "coisas têm de andar para a frente" e só os tansos é que não tiram partido das falhas do sistema.

É claro que a demissão do Presidente da Comissão Executiva e da CEO da TAP, tal como as anteriores demissões do fedayin da JS que exercia funções de ministro e dos seus subalternos, não resolvem o problema, nem limpam a folha dos restantes, incluindo de todos aqueles que ao longo de quase cinquenta anos de democracia contribuíram para este estado de coisas. De ex-primeiros-ministros e presidentes da república a líderes partidários, deputados, advogados e multinacionais da advocacia, banqueiros e empresários do regime, não há quem não tenha contribuído para este caldo que tem servido para a transformação do país numa espécie de choldra, para que alguns enriqueçam e todos empobreçam, onde cabe sempre mais um, e cujas verdades só são conhecidas quando a escandaleira rebenta e se puxa a batina ao padre.

O espectáculo de ter a CEO da TAP, uma empresa pública, falante de francês, a responder em inglês numa comissão da Assembleia da República cujos deputados se exprimem em português, é só por si revelador do surrealismo inerente a tudo isto, que depois da prestação de informações falsas à CMVM, com uma renúncia que afinal nunca foi, se completa agora com o conhecimento do relatório acima citado e de todos os atropelos cometidos com a devida anuência das eminências do regime. 

Sem prejuízo dos desenvolvimentos que esta novela terá proximamente, se há algum coisa de útil a retirar do que aconteceu é que enquanto imperar esta mentalidade, dentro das instituições, dos partidos e das empresas, em todos e em cada um de nós, será muito difícil mudar o país, reformá-lo e racionalizá-lo, tornando-o finalmente moderno, rigoroso, saudável e livre de eventuais "esquemas" e emplastros.

Ah!, e também que a TAP já devia estar fechada há muito tempo, digo eu, embora quanto a isto a culpa não seja seguramente dos seus pilotos, tripulações de cabine, do pessoal de manutenção e da maioria de todos os outros que ao longo de uma vida garantiram, e garantem, a segurança dos seus passageiros e se esforçam por prestar um bom serviço a quem servem: o empregador e os seus utentes.

Se querem uma transportadora aérea de bandeira, então o melhor será criar uma nova, sem vícios. Uma que funcione. Suíços e belgas encerraram a Swissair e a Sabena, não constando que os parentes lhes tenham caído na lama, ou que sejam piores do que nós.

Sempre, sempre, ao lado dos torcionários

Sérgio de Almeida Correia, 17.02.23

A nota de imprensa do Partido Comunista Português sobre a condecoração que o Presidente da República atribuirá ao Presidente ucraniano não desilude.

Independentemente da maior ou menor justeza da sua atribuição, e há fortes motivos para discordar da sua imposição neste momento, o PCP faz sua a linguagem e a adjectivação putinista para manifestar a sua indignação pela imposição da Ordem da Liberdade a um líder político eleito democraticamente, internacionalmente reconhecido, cujo país foi invadido pela Rússia dos oligarcas, autocratas e ex-KBG, estando parcialmente ocupado e destruído pelo exército russo e os mercenários do grupo Wagner, e cujo povo sofre as maiores provações e privações, acumulando milhares de mortos para defender aquilo que é legitimamente seu e o seu direito a viver em paz na sua própria terra sem estar sob constante ameaça dos vizinhos.

Fosse essa condecoração atribuída a Maduro, a Ortega, a Kim ou a Xi, ou a um ditador sírio ou cubano, e isso seria motivo da "mais ampla" satisfação para o PCP.

Blogue da semana

Sérgio de Almeida Correia, 13.02.23

Este não é um daqueles blogues convencionais que normalmente aqui se escolhem. Mas nos dias que estamos a viver, quem se interessa por política ou economia à escala global não pode deixar de consultá-lo. Tem gente informada, conhecedora e que domina os temas que aborda, tendo a virtude de nos querer esclarecer sem a pretensão de nos moldar. A propaganda fica à porta. E isso é válido tanto para o blog dos EUA, como para a versão que aqui escolho.

O Politico é incontornável, razão que faz dele, no registo europeu, o meu blogue da semana. 

Olh'ó balão

Sérgio de Almeida Correia, 08.02.23

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(créditos: Reuters/BBC)

Se há coisa que neste momento a opinião pública internacional saiba é que o caso dos balões chineses traz “água no bico”, e há uma guerra de propaganda e desinformação em curso.

Que chineses e americanos se espiam mutuamente há muito tempo não constitui novidade alguma.

Que balões chineses fizeram no passado incursões sobre o espaço aéreo de outros países, incluindo os EUA, também é verdade. Que estes também são useiros e vezeiros em actividades de espionagem e contra-espionagem é igualmente conhecido.

Diz o dono dos balões que os agora detectados são civis, com fins pacíficos e para recolha de informação meteorológica.

Se assim for, então não se percebe qual o interesse, como agora aconteceu, de andarem a sobrevoar zonas militares sensíveis. E que no passado isso também tivesse sido feito sobre a Índia, Vietname, Japão, e Filipinas, por exemplo. Quanto a Taiwan o problema não se coloca, pelo menos nos mesmos termos, visto que é território chinês.

Independentemente do que tem vindo a saber-se, o "statement of regret" das autoridades chinesas soou a falso.

Convém ter presente que cada Estado “tem a soberania completa e exclusiva sobre o espaço aéreo que cobre o seu território” (cfr. art.º 1.º da Convenção sobre a Aviação Civil Internacional) e está internacionalmente convencionado que o limite do espaço aéreo superior de um Estado se situa a 100 km de altitude, na chamada linha de Karman, ou Kármán, nome do engenheiro e físico que estudou a densidade da atmosfera terrestre. É esta linha que define os limites entre a aeronáutica e a astronáutica.

Sabendo-se isto, que não é objecto de grande discussão quanto ao que aqui está em causa, embora os EUA admitam que o espaço aéreo superior se situe aos 80 km, não há qualquer dúvida que os balões chineses violaram o espaço aéreo dos EUA e de outros países sobrevoados.

Recorde-se, ainda, que o art.º 8. da Convenção prevê que “as aeronaves susceptíveis de ser comandadas sem piloto só poderão sobrevoar sem piloto o território de um Estado contratante mediante autorização especial desse Estado e nas condições estipuladas na autorização”. Não foi o caso.

Mesmo admitindo tratar-se de aeronaves não tripuladas, e que nem sempre será fácil o seu controlo, podendo acontecer que se desviem das suas rotas por factores imponderáveis (admitamos que sim), não é crível que o Estado que envia um balão com equipamento sofisticado (caro) para realizar actividades de pesquisa meteorológica, perdendo o controlo e sabendo que a sua aeronave entrou no espaço aéreo de terceiros, estando de boa fé, não avise de imediato o Estado sobrevoado, dando notícia de que a sua aeronave invadiu o seu espaço aéreo por factores fora do seu controlo, e pedindo desculpa pelo incidente, até para minorar prejuízos e poder recuperar a aeronave e o respectivo equipamento – para fins pacíficos – na primeira oportunidade.

Não deixa de ser estranho que o balão se tivesse “desviado” para zonas sensíveis, sobrevoando instalações militares de alta segurança de um terceiro Estado. E que nada se dissesse até que o incidente fosse público. O mesmo acontecendo com um balão que apareceu na América Central e do Sul.

Considerando a recorrência de situações deste tipo por parte do proprietário dos balões, e havendo razões, do ponto de vista da espionagem, para o uso destas aeronaves (um balão livre sem tripulação ou tripulado é para todos os efeitos uma aeronave), em vez de satélites, não será internacionalmente aceitável o silêncio até à descoberta.

Já quanto à natureza, excessiva ou adequada, da reacção, que é aquilo de que os chineses se queixam, talvez a investigação ao equipamento recolhido possa vir a trazer alguma luz sobre essa matéria. Estejamos atentos.

Pois então que venha o Rui

Sérgio de Almeida Correia, 26.01.23

(créditos: Bruno Colaço/Sábado)

A Iniciativa Liberal terminou a sua Convenção Nacional e consagrou Rui Rocha como o seu novo líder. Vitória indiscutível.

Não é que a mudança de líder de um partido seja um acontecimento fora do normal, ou a que não estejamos todos habituados nos anos de democracia que levamos. De boa e de má democracia. Se a democracia é sempre boa em si, acredito, verdade que a nossa nem sempre foi boa nos frutos, e ultimamente até tem sido má em muito do que germina, mas nem por isso deverá deixar de ser sublinhada a mudança de direcção nesse partido ainda jovem que é a IL.

Há aspectos para os quais importa chamar aqui a atenção, até porque o Rui Rocha por aqui andou delituando durante alguns anos, o que a todos permitiu conhecê-lo melhor e às ideias que hoje transporta para a liderança da IL. Independentemente da simpatia pessoal que possa ter por ele, não obstante o mar ideológico que nos separa, enquanto estudioso interessado do sistema político, do regime e dos seus actores quero aqui dar-lhe os parabéns e deixar umas breves notas.

Importa realçar que pela primeira vez temos um partido perfeitamente integrado no sistema, ao contrário do Chega que sempre se assumiu como anti-sistema, que toma a posição de querer mudá-lo por dentro.

Bem ao invés de PS, PSD, PCP e do defunto CDS-PP, para já não falar no BE que se tornou numa muleta do status quo, a IL há muita que manifestou o seu descontentamento com o rumo tomado pelo regime, embora comungue dos valores e dos princípios básicos que enformam a nossa democracia. Uma coisa é querer reformar o sistema político-constitucional; outra bem diferente é querer destrui-lo na corrida para o poder, minando a democracia e os seus alicerces enquanto se cavalga a onda populista e se promove a ignorância. 

Um segundo ponto que merece nota é que o novo líder, tal como o anterior, tem um passado, um percurso académico e profissional antes de chegar a S. Bento e à liderança do partido, reconhecidamente íntegro e discreto. Basta olharmos para alguns figurões que fizeram carreira na política e nos negócios pós-vida política para se perceber a diferença entre este e outros que por aí circulam.

Depois, o novo líder da IL tem uma história de vida que não será muito diferente da de inúmeros cidadãos deste país. O que faz dele uma pessoa normal. Passou por África, sentiu na pele o drama dos refugiados, integrou-se, cresceu, tornou-se um cidadão de corpo e alma, ciente dos seus direitos e das suas obrigações, saído de uma cidade periférica num país dominado pela macrocefalia de Lisboa, do Porto e das suas regiões metropolitanas, que chega à política numa idade em que ainda pode fazer alguma coisa e sem o permanente cheirinho a cueiros daquela rapaziada que passou pelas jotas e chegou aos partidos, ao parlamento e ao governo sem nunca ter aprendido nada e feito na vida algo que se visse e os pudesse recomendar para alguma coisa.

Posto isto, talvez seja de os outros partidos do sistema começarem a arrumar a casa, se não quiserem saltar borda-fora.

Do atavismo do PCP e do BE já ninguém espera nada, a não ser os seus crentes. Tal como do PAN ou do Livre que pese embora algumas boas ideias jamais adquirirão dimensão para as poderem concretizar, salvo casos pontuais e marginais de intervenção política. Reformar os outros partidos duvido que seja possível enquanto estiverem enxameados pela tropa de Montenegro e de Coelho, de Santos e de Costa, por essa gente moluscular cujo único ideal é fazer carreira na política e resolver vitaliciamente, se possível com pouco ou nenhum esforço, os seus problemas de emprego e da família, tornando-se rentistas ou lobbyistas de qualquer coisa, seja do partido, de uma autarquia, de uma empresa pública, de uma construtora ou de um canal de televisão.

Se a meta de alcançar os 15% pode nesta altura parecer distante, o que acontecer nos próximos meses nos partidos e no Governo poderá torná-la facilmente alcançável, provocando a reestruturação e reconfiguração do actual sistema de partidos. Com o seu posicionamento e o discurso actual, a IL pode beber à direita e à esquerda, provocando problemas acrescidos a PSD e PS, seja por via de uma radicalização do discurso ou de serem empurrados mais para a direita e mais para a esquerda em virtude do espaço que a IL for capitalizando no eleitorado do centro para atingir o objectivo agora definido de romper com o bipartidarismo, o que não será seguramente fácil com o actual sistema eleitoral.

Finalmente, não obstante a pressa com que vem, convém que o novo líder tenha em atenção as pessoas de quem se vai rodear, posto que este tem sido um dos cancros das actuais lideranças. Será muito importante saber de onde chegam, para onde querem ir e como querem lá chegar aqueles que vão ajudar o líder a concretizar os objectivos definidos para o partido. Seria certamente muito mau que o partido se visse inundado de arrivistas e de pessoas sem convicções que num dia apoiam líderes autocráticos, o regime chinês, o russo ou o que estiver mais a jeito, e no outro se apresentam como "liberais" empenhados na mudança do país. O país e os seus potenciais eleitores não lhe perdoariam isso, nem o deslize para a ineficiência.

Que a IL e Rui Rocha, com o seu humor cáustico, preparação e inteligência contribuam para uma renovação do sistema partidário, das mentalidades e da democracia, tornando o país menos cinzento e menos carreirista, trazendo gente mais interessada, mais bem preparada, mais adulta e de convicções para a política são os meus votos.

As últimas sondagens são enganadoras, e podem não representar nada neste momento.

Eu cá estarei para dizer de minha justiça, tendo sempre presente a minha declaração de interesses. Que, aliás, é pública há muitos anos, conhecida dos leitores desta casa, e não muda ao sabor de ventos e marés.

Que farei com esta maioria?

Sérgio de Almeida Correia, 24.01.23

Image.jpeg(créditos: Indranil Mukherjee/AFP)

Na sequência das eleições de 30 de Janeiro de 2022, o líder do PS e actual primeiro-ministro afirmou no seu discurso de vitória que os portugueses tinham acabado de mostrar um cartão vermelho a qualquer crise política e que desejavam estabilidade, “com certeza, segurança e um Governo do PS para os próximos quatro anos”.

Volvido praticamente um ano sobre essa data, o mínimo que se poderá dizer é que vivemos num estado de crise e conflitualidade permanentes, sem estabilidade, sem certeza de nada e na maior das inseguranças.

Ninguém sabe quando cairá o próximo membro do Governo, nem que outras revelações surgirão até que António Costa tire alguns minutos para reflectir sobre o que quer fazer com a actual maioria e de quem se quer rodear para os próximos três anos, levando o ciclo de governação até ao fim, cumprindo o seu programa e dando resposta às muitas e cada vez mais incontornáveis dificuldades dos portugueses. De todos.

O grande perigo da maioria absoluta, de todas as maiorias absolutas, é o fechamento do partido que governa, o seu afastamento da sociedade e a entrega da governação aos velhos fiéis, a jovens que já saem esclerosados e com todos os vícios desagradáveis das juventudes partidárias, e aos amanuenses que embora nada saibam fazer viveram e vegetam à sombra do partido.

Apesar de tudo o que aconteceu anteriormente, em vez de aproveitar a maioria absoluta para alargar o campo de influência do partido e a base de apoio do Governo, uma vez mais se viu o partido maioritário “encolher” rapidamente e proceder à distribuição de lugares no aparelho de Estado com pouco ou nenhum critério.

As situações sucedem-se umas a seguir às outras a uma velocidade estonteante. E quando os problemas não são no Executivo, logo surgem no parlamento ou nas autarquias as habituais confusões.

Os erros são sempre os mesmos. O padrão de actuação, protecção, explicação e “confissão” repete-se sem que se compreenda se quem os comete está convencido de que os eleitores são estúpidos ou se o objectivo é apenas o de que os seus vizinhos não fiquem com tão má imagem da peça, da encenação, da coreografia e dos figurantes.

O último episódio da recuperação da “fita do tempo” pelo ex-ministro Pedro Nuno Santos é mais um daqueles episódios que raia a imbecilidade política. Porque de um quadro partidário com a sua experiência e responsabilidade política não é aceitável que cometa tantos erros em tão pouco tempo. Porque não é crível que numa matéria tão sensível como a da TAP e num prazo tão curto se esquecesse de tanta coisa. Porque não é normal que um ministro, um chefe de gabinete e um secretário de Estado se esqueçam todos ao mesmo tempo de uma situação como a de Alexandra Reis, a tal ponto que só as declarações da Presidente da Comissão Executiva da TAP lhes fizesse regressar a memória.

Se o objectivo era não passar por incompetente, desatento ou mentiroso, então teria sido preferível que Pedro Nuno Santos tivesse ficado calado. Para mal já estava bem.

Há situações que não podem ser previstas, nem são à partida previsíveis, e a que será sempre preciso atalhar e resolver ao longo do percurso antes que resvalem encosta abaixo.

Mas também há outras em relação às quais se espera que um primeiro-ministro e líder partidário experiente e com visão de Estado seja capaz de antecipar antes que ocorram, evitando futuros problemas ou minorando o seu eventual aparecimento e efeitos nefastos.

Um governo de maioria absoluta não pode ser, durante quatro anos, uma espécie de carro de bombeiros lotado, com as luzes a piscar e as sirenes sempre a apitar e à procura da ocorrência, com a tripulação a tentar segurar-se enquanto cai aos trambolhões de cada vez que descreve uma curva; atravessando cruzamentos sem saber quem vem lá nem qual a direcção que deve tomar, enquanto o condutor vai virando a cabeça e olhando para todos os lados sempre à procura de ver onde está o Presidente da República, qual polícia-sinaleiro de braços no ar e apito na boca sorrindo para todas as câmaras. 

Diamante

Sérgio de Almeida Correia, 20.01.23

Como escreveram Gomes Canotilho e Vital Moreira, "o princípio democrático-representativo inerente à representação parlamentar justifica também o status representativo do deputado e do correspondente mandato livre cfr. art.º 155.º-1) que hoje justificará o seu estatuto autónomo perante instruções ou ordens dos colectivos partidários ou grupos parlamentares, inclusivamente, a manutenção do seu mandato apesar da saída de partido ou apesar da sua não disponibilidade para aceitar o << princípio da rotação >> erguido por certos partidos a princípio estruturante da sua actividade parlamentar"(Constituição da República Portuguesa Anotada, II Volume).

Pensar que o mandato é livre quando se está dependente de terceiros para quase tudo, até para se poder ter uma vida profissional fora da política, é demasiado mau. Quantos deputados poderão hoje reclamar um estatuto de liberdade?

O problema é político, mas mais do que isso é essencialmente ético. Não querer vê-lo é politicamente desqualificador porque as pessoas, os eleitores, não são estúpidos. 

Com uma maioria absoluta e tudo sob controlo e a correr sobre rodas, perante uma sucessão interminável de problemas internos no governo, no parlamento e nas autarquias, o último dos quais é o caso da deputada "lobbyista", o líder parlamentar do PS entende que este caso "não afecta a imagem nem fragiliza a direcção" da bancada.

Claro, acredito mesmo que não há nada, rigorosamente nada, que afecte a imagem do PS.

E quanto à direcção de bancada, o brilho tem sido tão intenso que mais parece uma mina de diamantes a céu aberto.

É mesmo caso para dizer que se tratou de mais uma tirada brilhante.

Um maná de equívocos

Sérgio de Almeida Correia, 16.01.23

Quando ouvi o primeiro-ministro lançar, durante o debate na Assembleia da República, a ideia de um questionário a preencher por todos aqueles que um dia viessem a ser convidados para integrar um governo, fiquei de imediato com a convicção de que essa luz devia ter acabado de acender-se no calor da discussão.

Sempre pensei que não passasse daí e que depois houvesse humildade e bom-senso suficiente para dar a volta ao texto. Não houve, e à boa maneira chinesa, para não se perder a face avança-se com a asneira. Depressa e em força.

Não caiu o Presidente da República na esparrela, mas essa asneira foi publicada sob a forma de Resolução do Conselho de Ministros com o n.º 2-A/2023, em 13 de Janeiro, no D.R. 10/2023, I série, I Suplemento, que "estabelece um questionário prévio à integração de novos membros no Governo".

Começa logo no título, porque se a resolução está destinada a vigorar apenas a partir do dia seguinte ao da sua publicação, isto é, para quem vier a ser recrutado, não sendo pois retroactiva, não havia necessidade de se dizer que é só para os "novos" mancebos e noviças. 

Evidentemente que concordo com a necessidade de se "assegurar a transparência e o controlo da integridade do sistema democrático", coisas pelas quais há muito me bato. Porém, não me parece que a forma escolhida seja a melhor. Não é o preenchimento do questionário que vai conferir rigor, idoneidade, integridade e seriedade a quem não a tem. Estes são atributos que resultam dos próprios, do seu carácter, ou da sua falta.

A prova disto está logo no preenchimento das declarações de registo de interesses dos próprios membros do Governo, que não obstante estarem obrigado a apresentá-las e depositá-las na Assembleia da República, de 56 membros do Executivo, só 23 tinham apresentado as declarações e feito a sua inserção no sistema informático do parlamento. Se uma coisa tão simples não é acatada e cumprida pelos membros do Governo, como querer que depois seja feita a confissão de outras situações, envolvendo assuntos porventura mais sérios e alguns que só dirão respeito a outros familiares?

Já com o regime actualmente em vigor houve quem se esquecesse de sociedades comerciais de que fazia parte e de abandonar sociais que integrava, o que não os impediu de assumirem e se manterem nos cargos. 

E se bem me lembro, no passado, dentro da própria Assembleia da República houve deputados que em matéria de preenchimento das suas habilitações nas declarações de registo de interesses dos deputados, se arvoraram titulares de licenciaturas que ao tempo não possuíam, o que não os impediu, depois, de chegarem ao Governo, se tornarem eminências do regime e agora até botarem faladura nos canais de televisão a criticarem os últimos demissionários.

O caso da ex-secretária de Estado do Turismo é mais um exemplo paradigmático da inutilidade de alguns regimes vigentes. Valeu apenas a censura pública para acautelar o que entrava pelos olhos de qualquer cidadão com um mínimo de decência e de inteligência.

O processo de escrutínio deverá ser transparente, o que é pouco compatível com o secretismo conferido ao questionário aprovado. Ou é público, como o registo de interesses dos deputados, pelo menos nos seus aspectos mais relevantes, ou então não permite o escrutínio. Apenas os dados pessoais sensíveis é que devem ser protegidos, tudo o mais deveria poder ser público. Se quem convida não sabe, e se quem é convidado esconde, quem faz o escrutínio? Para que serve pedir aos visados o que não é publicamente escrutinável? Ou será que depois o primeiro-ministro ou o ministro, assim como quem não quer a coisa, vai contratar uma equipa de "detectives amigos" para confirmarem o que leram nas respostas? Não se vê por aqui em quê que este mecanismo contribui para o robustecimento do processo de verificação, aumentando o escrutínio e a confiança dos cidadãos. Pelo contrário, aumenta a burocracia e instala a desconfiança em permanência na vida pública, partindo do princípio, errado, que todos os que são convidados são parte da jagunçada militante que por aí circula.

Quanto ao momento da destruição dos questionários não fiquei ciente, falha minha, sobre quando tal ocorrerá, nem sei se será adequada a destruição imediata logo após a cessação de funções porque há coisas que, muitas vezes, só quando as comadres ficam desavindas é que se vem a saber.

Mas aquilo que me faz mais confusão é o preenchimento prévio da declaração subsequente ao eventual convite. Convite que após a entrega da declaração poderá vir a ser retirado. Ou seja, o primeiro-ministro convida o senhor Y e diz-lhe: Gostava de poder contar consigo para o meu governo, mas já sabe que antes tem de preencher esse formulário. Leve lá isso e mande entregar amanha ao meu gabinete.

O convidado fica todo satisfeito e vai a correr contar a novidade lá em casa. Quando começa a preencher o questionário depara-se com a pergunta sobre se "presta, ou desenvolveu nos últimos três anos, atividade de qualquer natureza, com ou sem carácter remunerado ou de permanência, suscetível de gerar conflitos de interesses, reais, aparentes ou meramente potenciais com o cargo a que é proposta/o?". E que faz o convidado no seu criterioso juízo, que poderá ser o de algum dos camaradas demissionários dos últimos meses? Mesmo que haja um conflito de interesses entende que não há. Aliás, no momento do preenchimento, fala com o cônjuge que lhe diz logo para colocar a cruzinha no "não" e aconselha o parceiro a falar assim que possa com duas ou três pessoas amigas para avisá-las de que vai ser ministro e que sobre o assunto X "nem uma palavra", para não o tramarem.

Se ao fim de seis meses se descobrir uma qualquer situação que leve à demissão, o primeiro-ministro daí lava as mãos, o ministro também, o Presidente da República assobia para o lado e diz que não é nada com ele (e não é), e no final vem uma qualquer moçoila saída do infantário do partido dizer que no seu prudente critério nunca viu qualquer incompatibilidade, nunca recebeu qualquer remuneração, que o apartamento não era seu e que estamos perante mais uma cabala como a do outro figurão que encomendou a tese ou o dos ajustes directos numa autarquia amiga. 

Conheci muitos que a tudo se prestavam. De vários partidos. De caciques das eleições partidárias, às recorrentes cunhas e à falsificação de currículos, há de tudo. Há um que queria à força ser cônsul honorário e quando sabia que havia um lugar disponível, ou que determinado país andava à procura de alguém que pudesse assumir as funções, enviava dois currículos. Um com o o primeiro e o último nome, o outro com os dois nomes do meio. Um dia, alguém de uma certa embaixada veio perguntar-me se eu o conhecia o fulano. Enfim, nada que o impedisse de ser promovido no partido, nomeado para várias sinecuras e, finalmente, cônsul honorário de uma qualquer república das bananas, o que lhe daria a oportunidade de ostentar um "CC" no carro. Para um fulano destes, militante de partido a vida toda, com carreira na jotinha, próximo de secretários-gerais, de deputados e manipulador de estruturas locais do seu partido, um questionário como o proposto seria preenchido (se é que um dia não irá ser) de forma a não perder a hipótese de mais um saltinho na carreira, pese embora a sua reconhecida incompetência.

É claro que há outros problemas que se podem colocar, como a não aceitação das respostas, a devolução do formulário ao convidado e uma palmada nas costas ("olhe, tente para a próxima preencher de outra forma"), com o subsequente convite a um segundo ou até um terceiro candidato ao lugar, até que se encontre um disponível que esteja "virgem" de tudo e complete o questionário. Agora imagine-se este processo repetido com uma dúzia dos convidados. Quando estaria o Governo formado? Quando tomaria posse?

Outra questão, por exemplo, é o "tem a situação fiscal regularizada?". Bom, qualquer cidadão a deverá ter, mas até ser notificado da instauração da execução abusiva tem sempre a sua situação fiscal regularizada. Se a execução for instaurada antes da notificação da liquidação do IMI (já me aconteceu e valeu-me um pedido de desculpas há um ano, sem devolução das despesas, parte sobre a qual a Autoridade Tributária nem sequer se pronunciou), o questionário foi fielmente respondido, mas o convidado podia não ter sido ainda notificado da execução precipitadamente instaurada. De nada valeria a desculpa porque no dia seguinte aparecia um matutino, desses bons que temos, titulando "Ministro não pagou o IMI e tem execução à perna".

É escusado continuar. Nao se percebe como tendo o PS um Gabinete de Estudos, o Governo coloque cá fora uma aberração destas.

Tudo isto é um disparate pegado que não contribui, em nada, para a melhoria da transparência. Só por pura demagogia poderá ser afirmado o contrário.

Como também não serve para desresponsabilizar politicamente qualquer primeiro-ministro ou um ministro convidante pelas escolhas que faça. Poderá, isso sim, ser motivo de gozo e chacota por parte do Presidente da República. Do actual ou de outro parecido.

Pensar que questões de personalidade, carácter e seriedade, de educação e formação se resolvem respondendo a questionários beras é não perceber a essência dos partidos que construímos, das elites que formamos e de muitos dos que lá estão a mandar ou sentados em São Bento.

E isto ainda é o mais triste disto tudo.

Reciprocidades inconvenientes

Sérgio de Almeida Correia, 10.01.23

WSJ.jpg(WSJ, 05/01/2023)

Há dias, no noticiário da TDM-Rádio, ouvi que a "Liga dos Chineses em Portugal não vê razões para testes de COVID obrigatórios" para quem chega a Portugal. O seu presidente, o simpático e sempre solícito Y Ping Chow, veio logo dizer "que se trata de uma medida política, em muito má hora, nas vésperas das celebrações do Ano Novo Lunar". 

Como estava meio-ensonado àquela hora fiquei na dúvida se o sujeito estava a falar a sério ou a fazer humor.

Confesso que não percebo a sua indignação, tanto mais que não me recordo, ao longo de quase três anos, a ele em Portugal e a muitos outros patriotas, "patriotas" e mercenários acomodados, em Macau, de o ouvir, ainda que ao de leve, criticar as políticas do Governo da RAEM e do Governo Central em matéria de controlo da pandemia. Além do mais, depois de eu próprio ter ficado seriamente limitado na minha liberdade e nos meus direitos ao longo de mais de dois anos e meio.

Perante a situação catastrófica que se vive na China ["Hundreds of millions of people have been infected in the space of just a few weeks, and many experts now expect the death toll to exceed one million. Chinese social media are being flooded with harrowing accounts of personal loss and images of overwhelmed hospitals. While the exact infection and mortality figures are unclear, the big picture is undeniable: the Chinese people are fighting to survive."], com milhões de infectados, com aviões a chegarem à Europa com doentes de Covid e com eventuais variantes que se desconhecem no ar, aquela eminência da comunidade chinesa em Portugal veio a correr dizer que "se trata de uma medida política", quando é certo que a Organização Mundial de Saúde já se queixou da falta de informação das autoridades chinesas, cujos dados, como aliás se tem visto em inúmeras reportagens, não têm correspondência com a realidade.

Também em Macau, de acordo com os relatos da imprensa com base em informações prestadas pela Câmara de Comércio dos Negociantes Funerários de Macau (a morte e a doença sempre foram bons negócios para alguns), o número de mortos é 10 vezes superior ao normal. Curiosamente, com tantos mortos, o número dos que morrem de Covid é ridículo na China continental e em Macau, o que me leva a pensar que se um indivíduo tiver o azar de ir parar a um hospital com uma unha encravada, lá contrair a infecção e depois falecer, as estatísticas dirão que morreu por causa da unha.

No entanto, os países europeus, os Estados Unidos, o Japão, a Coreia do Sul e outros, estão, em geral, apenas a pedir a apresentação de testes negativos e a realizar testes, aleatoriamente, aos passageiros que chegam. Não me parece que isto seja uma medida política e discriminatória em função da nacionalidade ou da etnia. Bem ao contrário do que aconteceu anteriormente, em que os estrangeiros foram simplesmente banidos de entrar na China e em Macau, e os que entravam por aí serem residentes eram obrigados a longas e dispendiosas quarentenas, pagando séries de testes e alojamento em hotéis, durante dezenas de dias, ainda que vacinados e testando sempre negativo à doença, antes, durante e depois de saírem das quarentenas.

Ao longo de todos estes anos, não obstante as medidas draconianas das autoridades de Macau e da China, nunca o senhor Y Ping Chow se manifestou contra as políticas discriminatórias do Governo central e das autoridades da RAEM, podendo até tê-lo feito em Portugal, esquecendo-se que as que agora estão a ser impostas só se devem à falta de transparência e/ou à ausência de informação que é prestada pelas autoridades chinesas.

Podia, igualmente, ter-se questionado sobre as razões – de saúde pública ou políticas – para que seja rejeitada a oferta de vacinas da Europa e dos EUA, quando se sabe que são bem mais eficazes do que as produzidas na sua pátria.

Já se percebeu, e é pena, que nestas alturas falte a algumas pessoas o discernimento – noutras alturas faltar-lhes-á a liberdade e a coragem, sobrando-lhes em hipocrisia, oportunismo e "patriotismo" – para dizerem aquilo que é correcto e justo, rapidamente esquecendo as verdadeiras razões (científicas) e os exemplos recentes, optando antes por se tornarem em megafones da propaganda oficial (que de um momento para outro descobriu que o vírus afinal já não era letal), em vez de adoptar idênticas regras, como a obrigatoriedade da realização de testes PCR antes da chegada ao destino, prefere retaliar suspendendo a emissão de vistos para quem se queira deslocar em turismo ou negócios, medida esta sim claramente desproprocional.

Talvez que se a Europa tivesse anteriormente usado da mesma bitola, ou imposto medidas retaliatórias, o senhor Y Ping Chow agora já não estranhasse a exigência de testes.

E ninguém o leva a sério?

Sérgio de Almeida Correia, 10.01.23

2.-brasil-1536x1022.jpg(créditos: Ponto Final)

Portugal deve enviar as suas forças especiais para estabilizar e reassumir a soberania do Brasil”. “Tiveram 200 anos de recreio e é hora de acabar com os fugitivos de Portugal para o Brasil e vice-versa para se fugir à extradição”, lê-se na publicação, que é acompanhada de uma imagem das Armas do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves, que vigorou entre 1815 e 1823. (...) “[E]m respeito pela democracia, Lula da Silva deve ser nomeado Presidente do Governo local e o Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, nomeia o Governador-Geral do Brasil e assim a Polícia Judiciária Portuguesa deverá estar pronta e atenta para caçar os fora-da-lei e demais foragidos em polícia única nas duas margens do Oceano”.

 

Amigo de José Cesário e da conselheira Rita Santos, mandatário de Pedro Santana Lopes, eleito para a assembleia municipal de Proença-a-Nova, membro da Comissão das Relações Internacionais do PSDcontinua de vento em popa.

Não sei por que raio, em Portugal, tirando o PSD, ninguém o leva a sério. Mas talvez Montenegro o queira incluir na próxima lista de deputados, quem sabe se pelo círculo do "fim do mundo". Se, entretanto, é claro, não lhe derem outro destino, não o nomearem para a TAP ou o Presidente da República não o chamar para seu conselheiro.

Este país tem cada vez mais falta de humoristas capazes na política, mas olhem que este é dos bons. Em S. Bento, sempre nos faria rir. 

Pensamento da semana

Sérgio de Almeida Correia, 08.01.23

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"Qualquer que seja a opinião ou a fé professada pelos homens, aquilo que os distingue é sobretudo a presença ou a ausência, no seu pensamento e na sua pessoa, deste além, o seu sentimento de habitarem um mundo acabado e que se esgota em si próprio, ou antes incompleto e aberto sobre um outro lado. (...)

[N]ósa língua em que escrevo é pobre, a sua gramática não conhece o dual necessário para conjugar e declinar sem equívocos a substância contínua da vida – ficámos um pouco para trás." – Claudio Magris, Danúbio

 

O ano que findou mostrou que o maior desafio de uma cidadania activa é o de ser capaz de se despir de modas e preconceitos e de fazer um exercício de auto-análise, de introspecção objectiva e subjectiva, em todo e cada um dos momentos em que se exija um juízo crítico da acção política e da intenção subjacente à intervenção e à decisão.  

Os sistemas de pesos e contrapesos não existem nas autocracias; são uma pura farsa destinada a iludir os ignorantes e a confortar os vermes. Nos regimes democráticos esses sistemas estão a funcionar cada vez mais deficientemente.

Mas ainda assim, mesmo naquelas, esse juízo crítico, não obstante ser muitas vezes ofuscado, desvalorizado e gozado acaba por existir. Olhe-se para a forma como no seguimento da reafirmação da política de tolerância zero no XX Congresso do PCC, em poucas semanas a China mudou radicalmente a sua política em relação ao controlo e combate à pandemia. Porquê? Simplesmente porque morreu gente em consequência dessa política. Mortes que se poderiam ter evitado. A isso juntou-se o cansaço generalizado, o desastre económico e social que mostrou o falhanço do modelo, para quem ainda tivesse dúvidas, e a mentira e vacuidade do discurso político. Com dezenas de cidades em ebulição, com centenas de milhares nas ruas, ou se reeditava o 4 de Junho de 1989, à escala nacional, ou se fazia marcha-atrás para salvar a face e o regime.

Em situações de crise, com dificuldades crescentes a nível interno e internacional, com mais e melhor informação, que se propaga à velocidade da luz, nenhum regime político sobrevive sem escrutínio, seja ele qual for.

Numa democracia cada vez mais fragilizada, com um Estado refém dos egoísmos político-partidários, da crescente imbecilização de elites políticas deficientemente educadas, culturalmente impreparadas, eticamente destituídas de princípios e moralmente amorfas, onde qualquer fedayin ou camaleão carreirista saído das juventudes partidárias e politicamente promovido é visto como um estadista consistente, só uma intervenção cívica corajosa, altruísta e despojada de mercenarismo é capaz de obrigar à reforma do regime e à reestruturação do sistema de valores, de prioridades e de escrutínio.

Talvez, por isso mesmo, valha a pena começar pelo último.

Todo os processos relevantes das últimas décadas, ocorridos em Portugal, qualquer que seja a sua natureza – BES, Banco de Portugal, BANIF, CGD, TAP, EFACEC, CP,  GNR, Ministério da Defesa, Millennium-BCP, BPN/SLN, Sócrates, PPP, corrupção nos meios judiciais, futebol, arbitragem, utilização de fundos europeus, fundações, empreitadas de obras públicas em geral, autarquias, empresas ligadas a estas, investigações e decisões judiciais aberrantes, para só referir alguns e sem esquecer os problemas nas universidades que empurram muitos dos melhores para o estrangeiro e um ostracismo sem retorno – onde o país enterrou, e enterra diariamente, a esperança, energias e milhões de euros devidos às próximas gerações, mostra que a ausência de escrutínio atempado, de transparência na vida pública e de sancionamento adequado à opacidade, conduzem-nos à moscambilha, à tragédia, à revolta, e a um sentimento aviltante de humilhação pública e regular que nos retira inteligência, tolerância e humanidade. Os custos têm sido astronómicos em tempo e recursos.

Depois, continuamos a não saber verdadeiramente quais são as nossas prioridades. Elites acomodadas e cafrealizadas hesitam entre a defesa dos direitos humanos ou o apoio à selecção nacional de futebol, entre o respeito pela autonomia da instituição religiosa e a defesa das vítimas da insânia, entre o combate à corrupção sem quartel e a condescendência com o segredo de justiça e a defesa do in dubio pro reo, como se essas fossem realidades comparáveis, auto-suficientes e estanques numa sociedade moderna e civilizada.

E há, ainda, a opção pelos valores.

Há que decidir entre o redescobrimento ético e a persistência na aviltação e no acanalhamento, entre o rigor e o abandalhamento, entre a solidariedade nacional e o amiguismo carreirista, entre a integridade e a acomodação, entre a lealdade e a fidelidade, entre a educação e a chico-espertice, entre a cultura e a superficialidade pavorosa, entre o jornalismo e o rumor, entre a seriedade e a frivolidade, entre a água limpa que nos refresca o rosto e o charco barrento onde as mãos se perdem, entre a verdade e a mentira. Enfim, há que optar entre partidos desfigurados e a nação, entre o indivíduo e a comunidade.

Um organismo tomado pelos fungos não sobreviverá. Um regime político que convive com os fungos, e os acarinha, está destinado a humilhar-se e a desaparecer. 

Na aurora de 2023, a única opção viável é a da sobrevivência com dignidade, é investir num combate sem quartel aos fungos e às moléstias que nos enfraquecem a mente e a personalidade colectiva. Em casa, no trabalho, nas empresas, nos partidos, na banca, nas entidades de supervisão, nas instituições de solidariedade social, nas polícias, nas autarquias, em todos os órgãos de soberania. Enfim, mais importante, na nossa consciência cívica.

Esta é uma escolha como qualquer outra que nos coloca perante nós e o outro. Precisamos de uma escolha que nos faça olhar para a responsabilidade que se posiciona à nossa frente e sem claudicar nos obrigue a reagir e decidir. Sem vacilar, cientes de que cada um de nós existe, onde quer que esteja, e será capaz na sua humanidade de distinguir claramente a noite do dia, a obscuridade da luminosidade, a opacidade fluída da transparência, a saúde da enfermidade.

Não há, não conheço, não concebo, outra maneira de ser livre sem me atraiçoar. Sem respeitar os outros e a minha consciência. De ser humano e português, mantendo a universalidade em tempos de nacionalismo serôdio, hipocrisia, soberba e cinismo. Sem com isso confundir o amor ao próximo com a amizade, a emergência climática e ambiental com o fanatismo degradante, a procura pela igualdade de género e o respeito pelas minorias com a insensatez, a gratidão por quem nos faz bem com o respeito pela crítica, a tolerância com a decência integral, a complacência com algumas fraquezas menores com a fragilidade do carácter. 

É preciso resistir. É preciso escolher. É preciso estar à altura do futuro. E ver para além dele com olhos de ver.

 

Boa semana para vós que tendes a paciência de me ler. Não vos maço mais. Bom Ano.

 

Este pensamento acompanhou o DELITO durante toda a semana.

Primeiro a negação, depois a remodelação permanente

Sérgio de Almeida Correia, 06.01.23

40087469-1600x1067.jpg(LUSA, daqui)

Perdi, é este o termo adequado, algumas horas nos dois últimos dias a acompanhar a apresentação e debate da moção de censura ao Governo.

O voluntarismo, nalguns casos, a impreparação e a exaustão, noutros, dos que botaram faladura em nome da oposição foi notável.

Do inenarrável Sarmento – líder da bancada do PSD – ao deputado "Mr. Músculos" Duarte Pacheco (enquanto está na Mesa sempre passa mais despercebido), do discurso requentado de Catarina Martins ao esforço da bancada da IL para mostrar serviço, dos diamantes da bancada socialista à lengalenga mofienta do que resta do velho PCP e ao deslocamento da deputada do PAN, dir-se-ia estar-se perante uma reunião magna de estudantes de qualquer academia. Com excepção de Rui Tavares (Livre), de Cotrim de Figueiredo (IL) e do sempre truculento Ventura (Chega) foram raros os momentos de algum interesse. 

Os discursos perdem-se em chavões, lugares-comuns, gracejos desajeitados, leituras apressadas de notas que pouco interessam. Não há ali ponta de substância. 

O primeiro-ministro acaba por embarcar no estilo, e confortável na sua maioria absoluta, que apenas se mantém compacta pelo cheiro do poder, vai tentando defender o indefensável.

As oportunidades perdem-se como quem devolve ao mar cestos de peixe miúdo. Alguns sucessos recentes em matéria de finanças públicas ou emprego numa conjuntura difícil não escondem o deserto de ideias, e de gente, de que se faz hoje a acção política e governativa.

Mas o que é mais surpreendente é que, ao arrepio de tudo o que seria previsível e mandaria o bom-senso, até mais o faro político, o líder da maioria esteja de tal forma enredado no aparelho do partido que dispense os melhores e se sinta na obrigação de defender quem nunca deveria ter escolhido para integrar um governo, gente que pouco tempo volvido, no último caso algumas horas apenas, se vê obrigada a apresentar a demissão do cargo em que acabara de ser empossada pelo Presidente da República.

Não sei, até porque estou longe, o que pensam e comentam os portugueses, mesmo os que apoiam ou se revêem nas políticas do PS, e que nos cafés, no trabalho, nos transportes públicos ou em casa vão olhando para os títulos dos jornais, ouvindo os protagonistas e assistindo a demissões e remodelações em catadupa num executivo formado por um partido que ainda há menos de um ano venceu as eleições com maioria absoluta.

Também não sei quando é que o próximo se demitirá – há um na calha que ontem foi referido, embora ninguém saísse em sua defesa –, mas o espectáculo que está a ser revelado é mau demais para que as próprias estruturas do partido não se manifestem.

Entregue, de norte a sul e ilhas, aos caciques dos aparelhos das concelhias, começa a ser difícil encontrar uma linha de rumo sem turbulência que permita cumprir o programa de Governo sem sobressaltos até ao fim do ciclo legislativo.

A não ser que o primeiro-ministro, a seguir à peregrina proposta de querer ir discutir com o Presidente da República "um circuito" que "permita evitar desconhecer factos" relacionados com as pessoas que escolhe para os seus governos [🤦‍♂️], comece a adjudicar a escolha dos futuros membros dos governos da República a uma dessas empresas de recrutamento de altos quadros.

O grande e saudoso Pedro Baptista, que um dia me disse, perante a minha desconfiança e depois de com grande mágoa se afastar da militância no PS-Porto, que o partido era irreformável, não está cá para assistir a nada disto. Teve a sorte (Soares e Sampaio também) de ser poupado a este espectáculo de desgoverno político, mas imagino o que ele não diria, depois de uma vida de combate por um Portugal decente, sobre o que está a acontecer. Não haveria na nossa língua vernáculo suficiente para expressar com rigor os seus, e os meus, sentimentos nesta hora.

Lula

Sérgio de Almeida Correia, 02.01.23

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Lula não é, à partida, um nome simpático. O molusco cefalópode não é um bicho atractivo no seu aspecto viscoso e fusiforme, com a enorme massa visceral que faz parte do seu corpo, colocando-se entre a cabeça e os tentáculos. Confesso, porém, que, quando frescas, jovens, viçosas e macias, aprecio saboreá-las. 

Ora, isto é tudo o que não se pode dizer de Lula. Não do cefalópode, mas do operário metalúrgico que pela terceira vez, depois de libertado da prisão e politicamente ressuscitado, tomou posse como presidente do Brasil. Este Lula não tem seguramente a elegância, a beleza, os olhos ou o bambolear gingão de uma garota de Ipanema ou do Leblon. Não é fresco, nem jovem, nem viçoso, nem consta que seja macio. 

Bem pelo contrário, este vem já curtido por dois mandatos anteriores, por vários escândalos ou situações menos claras, processos judiciais, prisão e, perdoe-se-me a expressão, muita "sacanagem" que também lhe saiu ao caminho, como foi a de um tal Moro de triste memória, que aparentemente impoluto e incorruptível usou técnicas de cafajeste, atropelando a lei ao jeito bolsonarista para levar a água ao seu moinho, até ser politicamente recompensado, o que de nada lhe serviu. 

Não sendo neste velho samba-enredo apreciador do personagem Lula – o derrotado Ciro Gomes faz muito mais o meu estilo de político –, admito que, todavia, esses possam ser os seus grandes trunfos no mandato que ontem iniciou, desde que tenha sabido aprender com os erros passados.

Dele não se espera que enverede pelo populismo boçal do seu antecessor, nem que se comporte como uma elegante misse, distribuindo sorrisos e carícias à direita e à esquerda como forma de manter equilibrado o difícil presidencialismo de coligação – uma particularidade brasileira – em que vai ser obrigado a acomodar-se e mover-se para poder governar e dar aos brasileiros aquilo que tanto desejam e merecem.

Se o vice-presidente Alckmin, seu opositor nas presidenciais de 2006, e agora investido em funções que poderão ser essenciais para garantir os necessários apoios nos trade-off do Congresso, com o Senado e a Câmara dos Deputados, poderá ser um trunfo precioso, só o tempo o dirá.

Registo, para já, a forma como foi recebido e investido, a clareza das suas palavras nos discursos proferidos, que não permite segundas interpretações e lhe condicionará o mandato, bem como a presença, no que foi um record, de dignitários estrangeiros à sua posse.

E quanto a este ponto não posso deixar de sublinhar a forma como o Brasil, depois do modo indigno e humilhante como se comportou nos últimos anos o tropa-trolha que ocupou o Palácio do Planalto, voltou a cumprimentar, antes e depois da posse, e a tratar e receber o Presidente português. Não por ser Marcelo, mas apenas porque lá esteve em representação de Portugal, num gesto que também não passou despercebido aos milhares de brasileiros que vivem no nosso país.

E também a referência carinhosa que lhe foi feita pelo presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, sem soberba ou complexos coloniais, imbuído do espírito que devia, deve, sempre presidir às relações entre dois países que partilham a mesma herança secular, a língua, muitas vezes as paixões e até os defeitos.

Não será fácil reerguer um país que caminhava a passos largos para o desmantelamento das suas estruturas, e ao mesmo tempo devolver a esperança e o pão aos favelados da vida, reentrando no caminho da normalidade, devolvendo dignidade ao Estado e às instituições, cumprindo o desígnio de desmatamento zero da Amazónia, reerguendo os alicerces do estado de direito, da legalidade e da justiça, reforçando a autoridade do estado federal, a segurança de pobres e ricos, de brancos, pretos, amarelos e mestiços, qualquer que seja o seu credo, opção ideológica ou preferência sexual.

O Brasil é demasiado grande, diferente (bastou ver o minuto de silêncio por Pelé e o Papa Bento XVI, que antecedeu a posse, ou ouvir o episódio da caneta de Lula vinda do Piauí) e importante no contexto mundial para poder ser governado à balda, distribuindo "propina" a torto e a direito, escondendo o lixo debaixo do tapete ou promovendo o garimpo ilegal.

Lula da Silva tem uma hipótese única de ser recordado pelas melhores razões. Oxalá que não a desperdice, porque também não consta, mesmo sendo Deus brasileiro, que Este esteja disposto a escrever uma segunda vez sobre linhas tortas.

Não deixe o samba morrer, moço.  

Boa sorte, Brasil.

Uns pândegos

Sérgio de Almeida Correia, 30.12.22

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(créditos: Macau Daily Times)

Até há algumas semanas, os estrangeiros estavam impedidos de entrar na China, qualquer que fosse a porta e a razão para quererem entrar, mesmo não estando infectados com Covid e com todas as doses e reforços de vacinas que a Medicina colocou aos dispor das nações. Pais ficaram anos sem poder ver os filhos, casais foram separados, filhos impossibilitados de acompanharem os pais à sua última morada. Mesmo aos nacionais e residentes permanentes que se ausentassem para o estrangeiro foram impostas quarentenas de 28, 21, 14, 10 e 5 dias, códigos vermelhos e amarelos, e inúmeras despesas supérfluas para se garantir a política de tolerância zero ou "zero dinâmico".

Agora, perante uma vaga de infectados sem precedentes na China, com milhões doentes, sem qualquer controlo, e com vacinas de eficácia muito questionável, há dois aviões procedentes deste país que à chegada a Itália apresentam cerca de 50% de infectados. E que faz o país de destino? Impõe restrições à entrada de viajantes, sem discriminação de nacionalidade, exigindo que sejam feitos testes de despistagem. Os EUA fazem o mesmo, anunciando que a partir de 5 de Janeiro de 2023, quem quiser entrar nesse país, procedente da China,  de Hong Kong ou Macau, terá de apresentar um teste PCR negativo. E tal como estes, outros mais (Espanha, Malásia, Coreia do Sul, Japão) farão o mesmo.

Não me parece que seja algo de excessivo ou incompreensível perante a situação que actualmente se vive e que os próprios órgãos de comunicação chineses têm difundido. A TDM tem passado no seu Telejornal algumas reportagens bastante esclarecedoras, algumas da CCTV, como sucedeu, por exemplo, nos passados dias 26 (minuto 12:40), 28 (minuta 13:40) e 29 de Dezembro (minuto 07:50). Repare-se que apresentar testes com resultado negativo para se entrar num país não é o mesmo que fechar fronteiras aos estrangeiros e não-residentes permanentes, ou criar obstáculos à saída de nacionais e obrigar os residentes a fazerem quarentenas pagas em hotéis e baterias de testes PCR à sua custa e com pagamentos antecipados para se poder viajar.

Curiosamente, depois de tudo aquilo que as autoridades chinesas fizeram, e das limitações que impuseram às suas próprias populações, aos residentes estrangeiros e a todos os nacionais de outros países que queriam entrar no país, até por razões humanitárias, veio o porta-voz do MNE chinês, Wang Wenbin, naquele estilo e com o adorável tom a que já nos habituou, com a maior desfaçatez deste mundo, dizer que, "para todos os países, as medidas de resposta à COVID têm de ser baseadas na ciência e proporcionais, e aplicar-se igualmente às pessoas de todos os países sem afectar as viagens normais e o intercâmbio e cooperação entre as pessoas", esperando que "todas as partes sigam uma abordagem de resposta baseada na ciência e trabalhem em conjunto para assegurar viagens transfronteiriças seguras, manter estáveis as cadeias industriais e de fornecimento globais, e contribuir para a solidariedade global contra a COVID e a recuperação económica mundial".

Para quem fez exactamente o contrário daquilo que afirma, inclusive contra as recomendações da Organização Mundial de Saúde, e que ainda em Outubro, no XX Congresso do PCC, reafirmava a linha da tolerância zero, não deixa de ser curioso que perante uma situação de quase catástrofe interna haja quem queira, agora, que os outros países deixem entrar livremente os seus infectados, com todas as variantes e mais algumas, e que façam aquilo que a China não fez durante quase três anos: acreditar na ciência, respeitar a proporcionalidade das medidas de contenção do vírus e não discriminar.

É só olhar para os exemplos recentes de Macau e de Hong Kong e para os custos sociais e económicos que foram impostos a estas regiões e às suas populações.

Há coisas que, de facto, não lhes faltam. Mas hoje vou respeitar a quadra, e o Pelé, e poupar-vos a lê-las.

Bom Ano para todos. Sem Covid, com saúde.

Bilhete para a eternidade

Sérgio de Almeida Correia, 30.12.22

Os dedos de uma mão deverão ser suficientes para se contar os verdadeiros génios que o mundo conheceu no último século. Houve gente magnífica, excepcional, extraordinária nalguns dos seus feitos. Génios, poucos. E não será fácil reconhecer e atribuir esse estatuto a alguém. Seja em que campo for. Da ciência à literatura, da pintura à música, da cultura em geral ao desporto. Não me atrevo, até porque isso poderia ser injusto para outros, a elencá-los, mas sou capaz de reconhecê-los. Sei quem são quando me surgem ao caminho.

Se Edson Arantes do Nascimento foi um homem normal; Pelé foi um génio. Aquele partiu hoje, o segundo ficará para a eternidade.

E de todas as homenagens, deixo aqui as palavras que lhe foram dirigidas por Maurizio Crosetti, no La Repubblica, adiante parcialmente transcritas, e a recordação da sua passagem por Hong Kong, no South China Morning Post, quando com a camisola do seu Santos recusou, para poder ficar com os companheiros, a penthouse suite que lhe estava destinada no mítico e saudoso Hong Kong Hilton, onde há três décadas, antes da sua demolição, ainda tive o privilégio de algumas vezes jantar.

Como alguém escreveu, olhando para tudo o que os outros fizeram, Pelé fez primeiro. Que descanse em paz.

"Può esserci un mondo senza Pelè? Artista e comunicatore istintivo, senza però l'aura maledetta di un Maradona che per sempre gli contenderà il giudizio di mezzo genere umano: meglio Pelè o Diego? Risposta impossibile, è come dover scegliere tra Leonardo e Michelangelo. Pelè è arrivato prima, in un calcio diversissimo e non ancora mondializzato. Pelè era il nome di un sogno, il nome di dio. Aveva una voce profonda e cavernosa da contrabbasso, e quel suono usciva da un corpo per nulla impressionante, un metro e settanta di altezza, neppure 75 chili di peso. Ma si trattava di un'illusione ottica, perché la struttura fisica di Edson Arantes do Nascimento era invece l'assoluta perfezione: gambe ipertrofiche, potenza in ogni gesto e insieme agilità, equilibrio sublime. Qualcosa di esplosivo ed elastico. E poi la tecnica mostruosa, il dribbling unico al mondo, la precisione nel tiro e nel colpo di testa, la visione di gioco che gli permetteva ogni volta di celebrare due partite insieme, contemporaneamente, una al servizio dell'altra: la sua e quella della squadra, cioè il Santos in maglia bianca oppure il meraviglioso Brasile. Mai nessuno così, mai più. Ci ha lasciato dopo un'agonia lunghissima, eppure ne siamo stupefatti."

De que estão à espera?

Sérgio de Almeida Correia, 12.12.22

portugal-vs.-marrocos-mundial-800x400.jpg(créditos: daqui)

É óbvio que o senhor embaixador de Portugal no Japão está cheio de razão, apesar do seu escrito na rede Linkedin ter entretanto desaparecido e se poder questionar se nas funções que ocupa e numa rede profissional deverá emitir opinião sobre o "chuto-na-bola".

Atendendo ao que regularmente assistimos, em que temos um Presidente da República que por vontade dele estaria a disputar audiências a Cristina Ferreira, à Tânia ou ao Malato, e que comenta tudo e mais alguma coisa a pretexto de todos os pretextos e mais alguns, daí não virá mal ao mundo, tanto mais que o senhor embaixador, na sua área profissional, até tem dado provas de competência e profissionalismo, prestigiando o nome de Portugal.  

E ademais sabemos que as críticas ao seleccionador nacional de futebol não são de hoje nem de ontem, o que não fica em nada prejudicado pelo facto de Marrocos merecer os parabéns e de com este treinador se terem conquistado dois títulos internacionais. Estes resultados não nos fazem, nem à Federação Portuguesa de Futebol, eternamente reféns da gratidão devida e que, pelos valores amealhados pelos trabalhadores ao longo dos anos, está mais do que paga.

Agora que o campeonato do mundo de futebol acabou para Portugal; e independentemente daquilo que o embaixador de Portugal no Japão escreveu, importa seguir em frente e preparar a próxima campanha.

Mas, antes disso, convirá não esquecer o embróglio em que o senhor Fernando Gomes e a Federação Portuguesa de Futebol se meteram.

Para qualquer cidadão minimamente informado, é verdade que esquemas como o descrito no acórdão do tribunal arbitral não servem para fazer caridade.

E jamais seria de esperar que uma associação com estatuto de utilidade pública desportiva andasse a celebrar contratos com sociedades unipessoais ou afins para preencher cargos infungíveis de representação nacional.

Não falei nisso antes, não viesse aqui-d'el-rei alguém dizer que estão a desestabilizar a equipa antes de uma competição importante. Parece-me, pois, que chegou o momento de se tratar deste assunto.

Como ainda ninguém se demitiu, embora o assunto seja em si escabroso e ofensivo da maioria dos portugueses que levam uma vida inteira a pagar impostos, talvez o "comentador" Marcelo, o primeiro-ministro e o responsável pelas Finanças se queiram pronunciar; darem os seus "bitaites".

E, já agora, dizerem como deverão as federações desportivas e quaisquer outras entidades públicas, ou com estatuto de utilidade pública desportiva, comportar-se no futuro. 

A não ser que a FPF já esteja a pensar, nesta altura, em contratar um seleccionador "pro bono" para substituir Fernando Santos, reservando para os filhos os dividendos.

Lamento de quem admira o génio

Sérgio de Almeida Correia, 07.12.22

thumbs.web.sapo.io-2.webp(créditos: SAPO/Fabricce Cofrini/AFP)

A cena não é nova. De vez em quando, o tipo amua, torna-se ordinário, e comporta-se como um vulgar badameco desmerecedor do seu talento, sucesso, honras e encómios.

Confesso que não percebo porquê.

Todos temos os nosos egos. De um modo ou de outro vivemos os nossos momentos, os bons e os menos bons. Mas há alturas em que se exige a todos e a cada um de nós a superação. Não tanto enquanto desportistas ou heróis; antes como simples e discretas peças de um todo muito maior, que em cada dia nos obriga a elevarmo-nos, a procurar fazer sempre mais, a dignificarmos a nossa herança e a preparar o futuro das gerações vindouras na base do trabalho, da preserverança e do exemplo.

Vê-lo sair assim do campo, como se a festa não fosse também dele, como se não tivesse contribuído para o êxito, torna-o pequenino e distante. Como se afinal não fosse mais um de nós, um dos poucos que conseguiu elevar-se da medriocridade institucionalizada pela força do trabalho e carácter.

Os portugueses, a Nação, dispensavam estes amuos em final de carreira.

Tudo perdoamos, tudo esquecemos, e muitas vezes ignoramos o que não pode passar despercebido. Porque não somos ingratos e continuamos a acreditar. 

Certamente que não deixaremos de fazê-lo, de enaltecer os seus méritos e virtudes, porque os possui, dando-lhe toda a gratidão pelo que de bom fez e tem feito, talvez elevando-nos, algumas vezes, muito acima daquilo de que efectivamente somos merecedores. Mas depois de tudo o que dias antes aconteceu, que de tão feio deverá ser rapidamente esquecido, ao ver a atitude dos seus companheiros, sempre, que nunca lhe regatearam estatuto, apoio e aplausos, exigia-se outra grandeza na hora da celebração, dispensando-se desculpas estafadas, respostas para cretinos.

E quando se olha para a forma como um Hajime Moriyasu se dirigiu aos adeptos que acompanharam a sua equipa na hora da derrota, e o modo como os outros o viram, não deixa de ser penoso e triste, para mim, ver o princípe abandonar o campo da maneira que o fez.

É nos momentos difíceis que se reconhecem os que são capazes de se elevar acima do mundo, os que pela criação se fizeram e aprenderam a perdurar para além do tempo, os que à sua dimensão e no seu lugar, com a sua humildade e génio, foram absolutamente excepcionais. Em quase tudo; sempre no que é essencial, estruturante e nos define.

Eusébio foi um deles. Pelé também, uma espécie de segundo nós quando não havia mais Eusébio.

Gostava que Cristiano também o tivesse sido. E gostava, ainda mais, que fosse capaz de ainda o ser. Para bem dele, dos seus filhos, e satisfação de todos nós quando um dia falarmos dos seus feitos aos nossos, aos que um dia hão-de vir para nos ajudarem a recordá-lo. De sorriso largo e reconfortante. Como tantas vezes o vimos.