As marés vão e vêm
Lembro-me bem da comédia que foi a geringonça para os socialistas. Então vocês não sabiam que o nosso regime é parlamentar? Não se vota para escolher o primeiro-ministro! Ah, vocês não sabiam! Mas pronto, agora já sabem. Cumprir as regras não escritas do regime? Para quê? O António Costa é que sabe andar nisto. Agora têm de amochar na oposição. É assim! Chama-se democracia. Embrulhem!
Escarnecer do adversário derrotado em democracia é muito mais civilizado do que o desmanche em postas em voga na Idade Média ou o fuzilamento como no caso da Fatah, mas as tradições de uma democracia decente devem ser respeitadas.
O apoucamento a que nos idos de 2015 a direita foi sujeita fez parte do jogo democrático, mas foi acrescido de uma taxa de arrogância razoavelmente elevada. Quantos dos que agora votaram Chega fazem parte dos que então tiveram de assistir à petulância dessa esquerda perante o montar da geringonça?
O algoritmo do Facebook de então ainda não o tinha tornado na rede social dos velhos. Lembro-me bem dos emojis sorridentes por todo o lado. O Passos para aqui, o Vítor Gaspar para ali, o escurinho até se portou bem, o irrevogável já foi, acabaram-se as maldades e a página da austeridade foi virada. Os resultados no estado dos serviços públicos e no estado do regime estão à vista
Não podemos despir ninguém da sua natureza humana, mas devíamo-nos lembrar que o pêndulo da história pode ser lento, mas é tão certo como a baixa-mar que se segue à maré cheia. Ventura e os seguidores da seita religiosa que fundou deviam lembrar-se disso. Importa saber perder, mas também é preciso saber ganhar, e isto não é exclusivo da política.
O espalhafato a que temos assistido nos últimos dias já está a render. Não sabemos quanto tempo durará a maré deles, mas lá chegará o dia em que os que agora escarnecem ficarão sem saber o que dizer às câmaras.
Confesso que também me alegrei com os afrontamentos do PS, não tanto pela menopausa em que parece ter entrado, mas pelo esbardalhamento do macho-alfismo que há muito exibiam - o wokismo que tanto proselitavam permite-me este jogo de palavras. É como se tivessem levantado voo no tempo de José Sócrates, conseguido fingir que iam em velocidade de cruzeiro com Costa e agora tivessem espetado os queixos no chão pela mão de Pedro Nuno Santos. Os resultados do dia 18, entre outras coisas, mostraram-nos que ripas a fingir que são tábuas nunca serão asas e as vacas nunca serão capazes de voar.
O caminho que o centrão agora enfrenta é muito estreito. Os erros acumulados durante décadas, em especial nos últimos anos, retirou-lhe qualquer margem de erro. Sem reformas substantivas e em prazo curto, tudo parece apontar para que o Chega venha a ser poder. Depois de Ventura mostrar que é tão incompetente como os outros e quão incapaz é o seu grupo parlamentar, rapidamente regressará à expressão que merece. Gostava de saber quem é que têm para preencher um Conselho de Ministros? É o tipo das malas para a Administração Interna? O Tânger Correia para os Negócios Estrangeiros? A Maria Vieira para a Cultura? O outro que angariava prostitutos menores on-line para a Educação? Espero estar enganado, mas cheira-me que aqueles que hoje batem com a mão no peito contra a privatização da RTP, um destes dias poderão ficar muito preocupados com o poder discricionário que o seu Conselho de Administração tem.
Esse dia chegando, o estrondo será inevitavelmente grande, mas já cá andamos vai para 900 anos e se já aguentámos (tivemos de aguentar por escolha de muitos) com José Sócrates, também aguentaremos com o “Escolhido por Deus para Salvar Portugal”. Livrar de isso coincidir com uma guerra.