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Delito de Opinião

Segunda edição

Luís Naves, 07.02.25

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No orçamento americano para 2025 estavam inscritos 268 milhões de dólares para apoiar "meios de comunicação independentes e a livre circulação de informação". Em 2023, números oficiais, a agência USAID formou e financiou 6200 jornalistas, deu dinheiro a 707 órgãos de comunicação e 279 organizações da sociedade civil que suportavam o "jornalismo independente", isto em 30 países. O presidente Trump escreveu num post da sua rede social que o jornal online Politico recebeu 8 milhões de dólares. Estamos a falar sobretudo de jornais de oposição nos seus países, críticos de governos que Washington considerava hostis, ou de jornais favoráveis à estratégia americana, como era o caso da Ucrânia, onde nove em cada dez órgãos de comunicação tinham a USAID como principal fonte de subsídios. Estes factos agora são conhecidos, após a administração Trump ter decidido encerrar a USAID, sendo provável que o assunto provoque um enorme escândalo na América. Em Portugal, isto ainda não é notícia, embora confirme as acusações que, ao longo de décadas, ouvimos a críticos dos EUA: A USAID ajudava a financiar operações da CIA e Washington influenciava eleições e derrubava governos. A esquerda que dizia estas coisas está agora indignada com Trump, por demonstrar que a teoria da conspiração era parcialmente verdade. O mundo dá muitas voltas.

imagem gerada por IA, Night Café

Tarifas

Luís Naves, 03.02.25

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Os comentadores olham para a ameaça americana de impor tarifas aduaneiras sobre produtos europeus como uma loucura de Donald Trump. Ninguém procura explicar os motivos da estratégia e, sobretudo, não se mencionam as vulnerabilidades europeias. O objetivo do presidente americano é reduzir o défice comercial com a UE, de 213 mil milhões de dólares em 2024, reindustrializar a América e aumentar as exportações para a Europa. Para se ter uma noção, os EUA exportaram em 2024, para a União Europeia, produtos no valor de 341,9 mil milhões de dólares, tendo importado da UE 555,6 mil milhões de dólares.

O problema europeu é mais visível quando se olha para os produtos deste comércio. Os países da UE vendem mercadorias diversificadas, sobretudo medicamentos, veículos, máquinas, química, plásticos, bebidas, papel, entre muitos outros. Os americanos são fortes na exportação de energia, petróleo ou gás natural, pois os europeus substituíram a sua dependência da Rússia por um forte aumento das compras de energia cara aos americanos. Como é que se impõe uma tarifa sobre importações de petróleo? Não é possível. Deixa-se de comprar? Isso é música celestial. A guerra comercial será por isso resolvida depressa, com expansão das fábricas de automóveis que os europeus têm na América e a promessa de compra de mais armas americanas, já que pelo menos dois terços do armamento que os europeus adquirem são fabricados do outro lado do Atlântico.

imagem gerada por IA, Night Café

Algumas perguntas desalinhadas

Luís Naves, 23.01.25

Ao longo dos últimos trinta anos ocorreu um sistemático subfinanciamento das forças armadas. Portugal nem sequer cumpre o compromisso assumido pela NATO em 2014 de gastar 2% do PIB em defesa. Na Europa, os principais exércitos foram reduzidos ao osso. Visto de outra maneira, segundo números da própria NATO, os países da UE gastaram em defesa 370 mil milhões de dólares em 2024, tendo a aliança orçamentado 1474 mil milhões de dólares, quantia difícil de imaginar, de quase bilião e meio, seis vezes o PIB português. Os contribuintes americanos pagam o grosso da fatia.
A NATO gasta dez vezes mais do que a Rússia, país em guerra com um orçamento de defesa equivalente a 140 mil milhões de dólares. Os países da UE, isolados, têm uma despesa duas vezes e meia superior à da Rússia; se juntarmos o Reino Unido, dá uma fatura acima daquilo que gasta anualmente a China (292 mil milhões), que é considerada um colosso militar.
Estes são os factos, mas todos os dias lemos declarações de dirigentes europeus a preverem catástrofes: ou gastamos mais ou teremos de aprender russo. A retórica é incompreensível. Para onde foi o nosso dinheiro? Além disso, fala-se cada vez mais num hipotético exército europeu, mas todos os líderes sabem que isso é uma fantasia. Quem fazia o comando político de tal força? A Comissão Europeia não eleita, chefiada por Ursula von der Leyen, que para poupar dinheiro desmantelou as divisões mecanizadas alemãs? E o exército nacional, o que lhe acontece?
Em resumo, para atingir a próxima meta da NATO, no mínimo 3% do PIB, Portugal terá de gastar em defesa o dobro do dinheiro que gasta atualmente e as lições da guerra da Ucrânia implicam que a Europa vai comprar armas americanas para equilibrar a balança comercial com os EUA. Qual é o objetivo? A reindustrialização do ocidente? A criação de um bloco militar ofensivo? Serve para convencer a opinião pública?

Houve duas oportunidades para a paz

Luís Naves, 20.01.25

Escrevia anteontem o bem informado New York Times que o líder da diplomacia americana, Antony Blinken, rejeitou no final de 2022 a sugestão do então chefe do estado-maior, general Mark Milley, de ser proposta uma negociação de paz com a Rússia num momento em que o exército ucraniano estava em situação relativamente favorável no campo de batalha. A opinião de Blinken venceu a do Pentágono e a guerra da Ucrânia continuou.
Meses antes, em abril de 2022, quando o conflito levava semanas, houve uma negociação em Istambul entre russos e ucranianos, com o documento já finalizado e uma reunião prevista entre Putin e Zelensky. A Ucrânia aceitava a neutralidade e perdia a Crimeia. Faltavam as assinaturas, mas em visita relâmpago a Kiev, o PM britânico, Boris Johnson, convenceu os ucranianos a prosseguirem a guerra. Teriam o apoio incondicional dos EUA e da Europa.
Sabemos agora que houve duas oportunidades para acabar com a guerra da Ucrânia. Também sabemos que, centenas de milhares de mortos depois, Kiev teve um resultado péssimo. O país está de rastos, com a infraestrutura destruída, e não escapará a perdas territoriais e, na melhor das hipóteses, ao estatuto de neutralidade. Apesar dos noticiários enganadores, no campo de batalha a situação é muito difícil para o exército ucraniano, que estará perto do colapso: não há recrutas nem munições; as unidades da frente estão a recuar em muitos setores ou arriscam-se a perigosos cercos; as deserções e baixas em combate contam-se em larga escala.
Os países ocidentais gastaram mais de 450 mil milhões de dólares, forneceram armas e treino militar, arriscaram a III Guerra Mundial, forneceram as receitas do Estado, pagaram os salários e fecharam os olhos a abusos graves, como repressão religiosa, corrupção, proibição de partidos. A estratégia ocidental falhou de maneira evidente. A ideia era partir o império russo em pedaços e gerir os países resultantes. Seria um dos maiores triunfos geopolíticos da História, mas revelou-se um perfeito disparate. A Rússia foi subestimada, tornou-se mais forte, juntou-se à China, numa aliança de que ouviremos falar muitas vezes nas próximas décadas.
Após a paz, a Ucrânia será um país sem qualquer soberania ou até um Estado falhado e caótico, com um quinto do território ocupado pela Rússia (habitado por russófonos) e o resto inviável, dependente dos subsídios ocidentais e com uma crise demográfica sem paralelo. A Ucrânia "independente" terá menos de 30 milhões de pessoas (tinha 51 milhões em 1991). Será um país pobre, com elevada proporção de órfãos e viúvas. Integração europeia? Isso levará pelo menos uma geração.
A Europa é o outro grande derrotado deste conflito, pois perdeu acesso às matérias-primas baratas da Rússia. A indústria europeia usa energia cara e deixou de ser competitiva. A UE terá de gastar fortunas na sua defesa e na reconstrução da Ucrânia. Dinheiro emprestado, naturalmente, que as gerações futuras vão pagar. Países como Portugal terão de mudar de vida, pois perdem os generosos subsídios europeus.

O novo ciclo

Luís Naves, 19.01.25

A tomada de posse do novo presidente americano, amanhã, pode tornar-se o momento simbólico do fim da ordem internacional que começou com a queda do Muro de Berlim, em novembro de 1989. Nos próximos trinta anos, veremos o regresso dos impérios e do mundo multipolar, com Rússia e China a formarem um bloco quase tão poderoso como o americano. No ciclo de 36 anos que agora acaba, tivemos migrações, desigualdades, dívida, Estados falhados e a criação de novas oligarquias financeiras; no futuro, vamos provavelmente assistir a mais nacionalismo, recuo da globalização e substituição das elites políticas. Neste último ponto, a Europa é o laboratório: as atuais chefias vão ser trocadas por governantes que os novos senhores de Washington possam aceitar. Centristas e progressistas incapazes de trabalhar com Donald Trump darão o seu lugar a conservadores menos favoráveis a migrações em larga escala. Muitos interesses já se estão a adaptar à nova situação, que não será nenhuma revolução ideológica, como pretendia a fação extrema do movimento que elegeu Trump. Nos próximos trinta anos, haverá menos guerras e menos comércio, relações mais pragmáticas entre as potências e um grande projeto heróico de ir a Marte, idêntico à corrida da Antárctida no início do século XX. Até meados do século, vamos ouvir falar menos vezes em alterações climáticas ou direitos das minorias. A nova ordem inclui a contestação do controlo burocrático sobre os eleitos e a redução da capacidade de impor limitações à liberdade de expressão em nome da democracia.

Um erro grave

Luís Naves, 17.01.25

Em 2013, havia 4260 freguesias em Portugal, muitas delas com escassas centenas de habitantes. Este poder autárquico ineficaz custava imenso dinheiro e envolvia cargos políticos desnecessários. Sob pressão da troika foi feita uma reforma administrativa e esta foi contestada pelos pequenos interesses e pelos meios de comunicação que detestavam o governo da época. O número de freguesias baixou para 3092, ainda eram muitas, mas a vida das populações melhorou nos locais onde houve fusões. Esta boa reforma vai agora andar para trás, sem estudos nem motivo, com decisão do parlamento e a criação de mais 303 freguesias inúteis. É um erro político grave. Das 124 freguesias desagregadas, 8% têm menos de mil habitantes e um terço entre mil e 3 mil habitantes. Será mau para as populações e para os contribuintes, mas bom para uma classe política devorista que já tem as eleições autárquicas no horizonte. É preciso satisfazer clientelas. Nos países europeus mais racionais não há freguesias, um modelo administrativo jurássico, de quando não havia estradas ou internet, mas Portugal é diferente, está blindado contra as reformas.

O debate impossível

Luís Naves, 13.01.25

Ao equipararem a racismo qualquer opinião negativa sobre o estado da imigração, os partidos de esquerda matam à nascença um debate urgente. A mentalidade portuguesa tem destas coisas: por não poderem ser discutidos, os problemas arrastam-se e agravam-se. Durante alguns anos, houve uma situação de bar aberto e entraram no país centenas de milhares de imigrantes. Muitos não falam português, alguns nem sequer entendem inglês. O anterior governo piorou a situação, ao extinguir o serviço que tratava do tema, o SEF. Quando as reformas são difíceis, desfaz-se o que está feito e inventa-se a pólvora.

Os números oficiais sobre imigração sugerem um fenómeno fora de controlo. Em 2018, havia 480 mil estrangeiros residentes, em 2023 já tinham passado o milhão (1,044), ou seja, mais do dobro em apenas cinco anos. Existe porventura uma explicação económica para a aceleração abrupta, pois nos últimos dez anos foram criados 800 mil empregos em Portugal. Infelizmente, há muito emprego precário, que pode não durar, sobretudo com os efeitos da estagnação alemã. A comunidade imigrante que aproveitou a oportunidade é explorada até ao osso, tem baixos salários e vive em condições precárias (um terço em risco de pobreza e exclusão, também números oficiais).

Os partidos da esquerda aplaudem este fluxo de carne para canhão, que contribui para manter os salários baixos nos empregos de baixas qualificações. As multinacionais ficam contentes e o centro de Lisboa transforma-se progressivamente num enclave de kitsch multicultural. Portugal fez numa década os mesmos erros que a Suécia levou meio século a cometer. Não existe ligação entre criminalidade e imigração, diz o coro da esquerda. Por enquanto, não existe, mas temos de olhar para as sociedades onde a proporção de imigrantes ultrapassou a barreira dos 10% da população e onde esta afirmação não é verdadeira. Os benefícios do curto prazo pagam-se um pouco mais à frente, mas a duplicação em tão pouco tempo significa que o fenómeno é demasiado rápido para que a sociedade portuguesa o consiga absorver.

Ordem defunta

Luís Naves, 12.01.25

É possível argumentar que a ordem liberal agora defunta foi fantástica, mas a realidade parece ser mais sombria. Essa época nunca foi pacífica, pelo contrário, houve conflitos violentos no Iraque, Afeganistão, Gaza, Síria, Ucrânia, entre outros que não despertaram a curiosidade mediática, como a guerra civil do Sudão, exemplo mortífero de descida aos infernos. Exércitos poderosíssimos fizeram mais ou menos o que queriam a bombardear camponeses rebeldes mal armados.

O resultado em matéria de liberdades é duvidoso: o novo governo francês, por exemplo, rejeita à partida a opinião de 70% dos eleitores; um ex-comissário europeu disse anteontem que Bruxelas tinha contribuído para anular as eleições presidenciais na Roménia e que, se for necessário, fará o mesmo nas legislativas alemãs; um pouco por todo o ocidente industrializado há um ataque objetivo à liberdade de expressão. As redes sociais foram controladas por algoritmos que impediam a circulação de certas ideias, tudo em nome da democracia. As desigualdades económicas criadas nas últimas três décadas são tremendas e a oligarquia que nos governa acumulou uma riqueza absurda. Há imensa literatura sobre isto, é comum a quase todos os países. Na realidade esta ordem nunca foi liberal, mas instável e controlada por privilegiados, agora contestada pela população, que considera tudo isto um fracasso.

A ordem liberal a que me refiro começou em 1991, quando a URSS perdeu a Guerra Fria e o acordo de Ialta ficou desatualizado. O breve período histórico de hegemonia americana terminou com o conflito na Ucrânia, onde a Rússia está a alcançar uma vitória militar contra um exército treinado, armado e financiado pela NATO. A eleição de Trump torna menos provável a guerra generalizada entre potências nucleares e mais provável o novo acordo global, que exigirá um encontro semelhante ao de Ialta, em 1945, entre Estaline, Roosevelt e Churchill. A nova ordem internacional será provavelmente definida numa cimeira entre Trump, Putin e Xi, em 2025.

Portugal foi um ator menor na chamada ordem liberal, mas o facto é que depois do estoiro nos anos Sócrates não conseguiu sair da cepa torta. A crise financeira foi para nós a crise das dívidas soberanas, uma humilhação coletiva que nos condenou ao pelotão traseiro da UE. O país está desindustrializado e vive de rendas e turismo, as desigualdades aumentaram e a rede social tem buracos por todo o lado. A Europa gastou em três anos 140 mil milhões de euros na guerra da Ucrânia, o dobro do que emprestou a Portugal no período da troika, com imensas restrições, dinheiro que pagámos. O da Ucrânia foi para um buraco negro de corrupção e derrota, para pagar salários e manter uma ficção militar. Isto é liberalismo?

Com os olhos no Ártico

Luís Naves, 11.01.25

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A Imprensa tem apresentado a questão da compra da Gronelândia pelos EUA como um capricho alucinado de um presidente eleito, a concretizar com uso da força. Basta olhar para um mapa e escavar a informação para perceber que o caso tem explicação racional. Durante a II Guerra Mundial, quando a Dinamarca foi ocupada pelos nazis, os americanos controlaram completamente o território. Depois da guerra houve uma tentativa de compra, recusada pela Dinamarca, mas os EUA ficaram com uma base que ainda hoje existe e pela qual não pagam direitos. Trump quer comprar a ilha, fala em novo Estado americano e a Dinamarca recusa vender. No entanto, o território é uma região autónoma e os partidos independentistas representam 80% dos 50 mil nativos, sobretudo Inuit. A independência será um processo provável e natural, concretizado por referendo. Segue-se uma fase de associação, que dará maior influência aos americanos. A imagem de satélite esclarece o que está em causa: o controlo do Oceano Ártico e a rivalidade com a Rússia, o que implica acesso a matérias-primas não exploradas e controlo de potenciais rotas marítimas que resultam do degelo e que podem encurtar as viagens entre Europa e Ásia.

A imagem tem dez anos e mostra a placa de gelo mínima e máxima (linha amarela), no inverno e verão. A Gronelândia, à direita, adiciona os direitos americanos à plataforma continental. Os EUA têm acesso ao Ártico pelo Alasca, território comprado à Rússia no Séc. XIX por 7,2 milhões de dólares.

Trump

Luís Naves, 10.01.25

Muito do que se escreve sobre Donald Trump concentra-se no folclore, em frases fora do contexto ou ideias feitas que não procuram entender as intenções deste movimento político. Alguns comentadores usam o sorriso condescendente da superioridade intelectual. Outros não duvidam de que o fenómeno é fascista e não parecem compreender que esta afirmação é negacionista ao extremo, pois se Trump é fascista, então o fascismo nunca aconteceu como consta nos livros de História. Trump poderá concluir uma viragem na América, tornando a república imperial mais oligárquica, libertária e nacionalista. Os três elementos são contraditórios, como é a tensão entre república e império que tem dilacerado os EUA. Trump terá de respeitar os interesses dos trabalhadores que o elegeram, mas também dos interesses oligárquicos dominantes. Terá de preservar a hegemonia americana deixando de intervir em todos os conflitos. Fará talvez uma partilha do mundo com a China e a Rússia, procurando demolir o estado profundo das burocracias não eleitas que em Washington controlam a diplomacia, a segurança e a regulação estatal. Trump também vai desprezar os europeus que não o acompanharem, sobretudo Bruxelas.

O enigma da estagnação das artes

Luís Naves, 08.01.25

Um dos enigmas contemporâneos é a estagnação secular das artes no planalto pós-moderno. Da era clássica ao modernismo, sucederam-se movimentos e ruturas. Cada geração inventava uma nova maneira de escrever, de pintar ou de fazer música. A partir da II Guerra Mundial, as mudanças estéticas foram absorvidas num vasto bolo de gelatina. Há uma estimativa credível segundo a qual se publicam por ano mais de 2 milhões de novos livros, número de obras que inclui autopublicação, publicação digital, volumes anónimos, diferentes traduções. Desde a invenção da Imprensa, a contagem vai em 160 milhões de títulos, mas a aceleração na nossa época está a produzir quantidades que ninguém consegue absorver. A leitura é hoje para todos, mas a literatura continua a ser um interesse de minorias. As salas de concertos de música antiga estão cheias, não há falta de público, mas como se explica o marasmo na música popular nos últimos 50 anos? Aliás, podemos ouvir milhares de vezes uma obra que alguém do século XIX ouvia uma vez na vida, mas a música contemporânea não produziu nenhuma vanguarda escandalosa desde meados do século passado. Talvez isto seja também uma crise de espiritualidade, da nossa vida materialista e sem tempo para pensar.

Imprevisibilidade

Luís Naves, 07.01.25

Os comentadores políticos vão dizendo nas televisões que não se pode mexer na ordem internacional existente e parece escapar-lhes a constatação do óbvio, que estamos a assistir a uma crescente desordem e que os grandes atores tentam alterar a realidade a seu favor. A Rússia foi subestimada, a China procura assumir um papel mais relevante, há até conflitos pequenos que mostram a imprevisibilidade da turbulência, como é exemplo a revolta no Iémen que alterou os cálculos de bloqueios navais, dando nova importância aos pontos de estrangulamento do comércio, como Mar Vermelho, Estreito de Ormuz ou Canal do Panamá. Foi demonstrado que um poder menor consegue perturbar o fluxo de mercadorias e de energia para as indústrias do mundo. A corrida aos armamentos, a fragilidade dos governos democráticos, a discussão sobre "desinformação", maneira de dizer que não se controla a opinião pública, tudo isto são indícios da perturbação antes da nova ordem que será negociada entre os impérios, como tantas vezes aconteceu na História. Haverá estadistas à altura do momento? Essa é a grande incógnita. Em alguns países parece estar a ocorrer uma substituição veloz de elites fracas.

 

A estranha crise europeia

Luís Naves, 06.01.25

Há profundas crises políticas nos principais países europeus. No Reino Unido começa a borbulhar um escândalo capaz de derrubar o governo, na Alemanha teremos eleições que podem ser inconclusivas e, em França, 37% dos eleitores dizem ser "muito favoráveis" à demissão do Presidente Macron, enquanto 24% são bastante favoráveis. Podia adicionar outros países à lista, Espanha, Polónia, Áustria, Roménia. Não existe memória recente de tantas crises simultâneas. O que se passa? A guerra da Ucrânia teve efeitos económicos devastadores e prolongou-se além do previsto; os países industrializados têm dificuldade em manter a sua competitividade; alguns estão endividados até ao osso; as mudanças tecnológicas foram demasiado velozes; Bruxelas cometeu erros graves na transição energética, na alimentação da corrupção em Kiev, na legislação sobre automóveis com motores de combustão. Mesmo assim, com tudo somado, a explicação ainda é insuficiente. Muitos europeus estão a compreender que foram enganados pelas suas fracas elites, na crise financeira, na pandemia, nas políticas migratórias. Há setores da sociedade zangados e demasiada gente a votar sob o efeito hipnótico dessa emoção.

Viragem

Luís Naves, 04.01.25

Os progressistas recuam em todo o lado e vamos assistir a viragens políticas a favor dos chamados populistas, que no fundo respondem à revolta eleitoral dos perdedores da globalização. Os trabalhadores cansaram-se da arrogância elitista, das mentiras mediáticas e da hipocrisia das migrações. As políticas de fronteiras abertas trouxeram para o interior das sociedades industrializadas os quase-escravos que tudo aceitavam e cuja exploração desenfreada colocou o prego definitivo no caixão da influência sindical. Os progressistas abraçaram guerras culturais estéreis e passaram a ver os trabalhadores como reacionários, quando estes protestavam contra os efeitos das migrações em larga escala. Neoliberais e globalistas defenderam a desindustrialização ocidental e impediram medidas de compensação para os perdedores. Orçamentos equilibrados implicaram menos rede social e menos impostos para os ricos. Vinte anos de políticas progressistas deram nisto: diferenças sociais gritantes, metade da classe média a deslizar para a pobreza, estagnação económica, líderes alheados da realidade e uma comunicação social domesticada e conivente.

Tudo mudou

Luís Naves, 03.01.25

O New York Times publicou no dia de Natal um artigo de Nate Cohn (disponível para assinantes) onde se argumenta que a América está desde 2016 a viver uma nova era política, na qual os papéis tradicionais dos dois partidos se inverteram. O movimento populista e conservador de Donald Trump quer defender as classes trabalhadoras e ataca as elites, nomeadamente o anterior consenso sobre intervenções externas, que ficou uma das bandeiras dos democratas, que assumiram o sistema e as causas progressistas. O texto analisa as diferentes coligações eleitorais e termina com a ideia de que os temas do debate americano serão segurança, energia, migrações, comércio com China e redução da regulação económica. Em resumo, tudo mudou. Trump não é um revolucionário, mas já rompeu com a era de Reagan. O seu mandato de quatro anos pode durar apenas dois, pois o Senado deve virar nas intercalares e haverá uma luta pela sucessão entre os republicanos. Até 2026, teremos duas questões centrais: até que ponto o presidente cumpre a promessa de desmantelar o Estado dentro do Estado (a poderosa burocracia que verdadeira manda) e a que velocidade este fogo na pradaria do novo conservadorismo vai conquistar a Europa.

Tsunami

Luís Naves, 02.01.25

As discussões políticas do futuro vão convergir na questão do trabalho, que a inteligência artificial mudará de forma ainda difícil de compreender. Será provavelmente necessário repensar o sistema de pensões, os impostos, as migrações e a distribuição da riqueza. A inteligência artificial deve destruir milhões de empregos a médio prazo, talvez em apenas dez anos. A vaga de desemprego promete ser inimaginável. Com menos impostos pagos, imagine-se o que sucede ao Estado Providência e ao sistema de pensões. As sociedades terão multiculturalismo ou vão ser mais fechadas? É bem provável que, antes de 2035, sejam redundantes os novos escravos sem qualificações importados do sul global. Os imigrantes ficam a cargo do Estado ou são devolvidos aos países de origem? Também sabemos que as novas tecnologias exigem grande número de engenheiros, mas a juventude sonha com trabalhos de glamour e haverá poucos empregos desses. As empresas industriais vão robotizar e despedir, os serviços podem ser automatizados e dispensar pessoas. Teremos populações desocupadas, pensões reduzidas, alta produtividade, lucros mais altos para as empresas. Vem aí um tsunami social.

Feliz Ano Novo

Luís Naves, 01.01.25

O ano de 2024 foi um momento de transição e segue-se a aceleração da mudança. A Guerra da Ucrânia deverá terminar nos próximos meses e será difícil ocultar a derrota estratégica do Ocidente, sobretudo de uma Europa abalada pela constatação da sua fraqueza. A Ucrânia é a perdedora, com uma geração inteira sacrificada no altar das ambições dos impérios. O país está destruído e mutilado, tem um quinto da população no exterior e levará mais de 30 anos a recuperar. A Europa vai pagar a conta, mas já foi vítima de uma profunda modificação, pois perdeu acesso à energia barata e aos minerais abundantes da Rússia. Por quanto tempo? Não sabemos, mas deve ser pelo menos uma década.

Kiev cortou hoje o gás natural russo que ainda passava pela Ucrânia. A Rússia é vendedora de 17% do gás natural que os europeus consomem, vendia 45% antes da invasão. O produto vem agora liquefeito e muito mais caro, com origem sobretudo nos EUA, Noruega e Argélia. O suicídio ao vivo e a cores da UE, que aceita pagar a sua energia ao triplo do preço. As sanções viraram-se contra quem prometia submeter a Rússia em duas semanas.

O resto são incógnitas. O Médio Oriente é uma zona de alta instabilidade. Damasco ou Bagdade, cidades outrora civilizadas, mergulharam na anarquia. Iraque e Síria, que foram potências regionais, ficam fora de jogo. Os Estados falhados serão um dos elementos centrais deste mundo em mudança. Com Donald Trump, a América vai certamente mudar de política externa, concentrada na China e menos interessada em conflitos secundários ou em manter a NATO. A Rússia recuperou o seu lugar entre os impérios dominantes, enquanto os chineses querem ter um papel mais ativo na divisão do mundo.

O massacre de Gaza, essa vergonha da humanidade, deve também continuar. Não se pode viver naquele território, vamos talvez assistir à limpeza étnica dos sobreviventes.

As velhas redacções

Luís Naves, 31.12.24

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Nas redações era comum usar a expressão "encher chouriços", pois as páginas do jornal eram enormes, o corpo da letra pequeno e naquele tempo escrevia-se muito. Os redatores antigos usavam de cor e salteado uma técnica de escrita que permitia alongar os textos sem sair do tema ou sem maçar os leitores. Estes jornalistas veteranos sabiam "virar frangos" e escreviam a uma velocidade estonteante. As máquinas de escrever enlouqueciam e os dedos cravavam-se no teclado com uma fúria que se ouvia na sala ao lado, enquanto a redação se ia enchendo com as nuvens de fumo do tabaco e se iluminava a penumbra com o olhar em brasa dos repórteres em plena euforia da escrita. Ainda chamavam "linguados" às folhas que iam saindo dactilografadas e que quase voavam para longe quando o jornalista impaciente rodava o cilindro para colocar um novo papel. Não se perdia tempo, um texto normal podia ter sete ou oito páginas de 150 palavras, se fosse metade era matéria para novatos como eu, que não sabiam fazer aberturas decentes e não conseguiam prolongar a prosa a descrever ambientes, factos laterais e personagens secundárias da história.

imagem gerada por IA, deep dream generator, curioso como a máquina não compreende o assunto, o jornal a sair já impresso, o repórter bem vestido e penteado, ainda por cima de gravata.  Esta é mesmo uma memória que se perde.

O Mundo de Agora

Luís Naves, 03.09.24

Gosto imenso de um livro extraordinário de Stefan Zweig, O Mundo de Ontem. É uma obra estranhamente actual. As passagens sobre a Primeira Guerra Mundial, por exemplo, fazem lembrar o clima de intolerância provocado pela Guerra da Ucrânia ou o conflito de Gaza, sobre os quais é bem difícil, nos dias de hoje, manter uma discussão serena ou ter uma posição favorável à diplomacia.

Podemos ler nestas memórias que no Verão de 1914, numa transição de poucas semanas, os amigos de Zweig estavam transformados em fanáticos, "anexionistas insaciáveis", que diziam as frases mais disparatadas e acusavam o escritor pacifista de já não ser austríaco. "Só restava uma solução: retirar-me para dentro de mim e guardar silêncio, enquanto os outros bramavam exaltados. Não era fácil, porque nem sequer viver no exílio, que conheci até bem de mais, é tão mau como estar sozinho na pátria". (o livro foi escrito muito mais tarde, em 1942, pouco antes do suicídio do escritor).

Dizer que aquela guerra era um crime tornara-se uma opinião perigosa, que muitos dos antigos amigos achavam merecer ser denunciada. Um pouco mais à frente no livro, Zweig conta os episódios de 1915: era sargento trintão e velho para combater, recebeu um posto burocrático de retaguarda, mas viu pessoalmente a desgraça dos soldados numa viagem em comboio hospital que vinha da frente para Budapeste (a frente ficava naquilo que é actualmente território ucraniano). Esta experiência provocou-lhe o impulso de denunciar a guerra: "Tinha reconhecido o adversário contra o qual se impunha combater - o falso heroísmo que prefere enviar os outros para o sofrimento e para a morte, o optimismo barato dos profetas sem consciência, tanto políticos como militares, que, prometendo sem escrúpulos a vitória, prolongam a carnificina. (...) Quem lutasse contra a guerra, na qual eles próprios não sofriam, era rotulado de traidor. Era o eterno bando, o mesmo através dos tempos, que chamava cobarde aos prudentes, fracos aos humanos, para depois ficar sem saber o que fazer na hora da catástrofe que levianamente provocara".

Sabemos como é que a história acabou, a Áustria foi derrotada, Zweig foi um vencido dentro do desastre. Infelizmente, o autor austríaco não escreveu apenas sobre o Mundo de Ontem, mas de maneira trágica também sobre o de agora, como se a humanidade não conseguisse aprender nunca. Somos pois testemunhas de duas calamidades simultâneas e tudo aquilo que ouvimos, dos políticos e dos militares, é essencialmente a mesma profecia de outrora sobre a necessidade de continuar o massacre.

Este livro O Mundo de Ontem, Recordações de um Europeu, é fácil de encontrar nas livrarias, em edição da Relógio D'Água, tradução de Ana Falcão Bastos.

Os debates tóxicos

Luís Naves, 03.09.24

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Deixou de existir ambiente propício à discussão política. Os debates são agora tóxicos. Governos com escassa legitimidade eleitoral tomam decisões sem consultar os partidos de oposição. Mente-se com a cumplicidade da imprensa, a qual há muito tempo desistiu do seu papel de controlo do poder. Esta é a situação e não vale a pena pensar que a democracia vai melhorar, pelo contrário. Os regimes ditos liberais estão a resvalar com rapidez para sistemas sem liberdade. Burocratas não eleitos dizem coisas que podem levar países para a guerra, enquanto dirigentes em pânico fazem emendas piores do que os sonetos. Como será Portugal daqui a dez anos? Uma incógnita, pois é difícil fazer previsões para Portugal no próximo ano. Muito provável que haja recessão, instabilidade política, marasmo. O mesmo se pode dizer sobre a Europa. Dez anos? Uma eternidade. É quase impossível antecipar o que será daqui a um ano: a economia no fundo, a guerra da Ucrânia perdida, o insuportável clima de repressão da opinião pública, com redes sociais proibidas. A crise dos regimes liberais europeus estará a acentuar-se em cada nova eleição. Os dirigentes parecem baratas tontas, com as suas linhas vermelhas, a reclamação de pureza ideológica e os cordões sanitários, que mais não são do que tapar o sol com a peneira.

imagem gerada por IA, Night Café