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Delito de Opinião

Colónia e o Carnaval

João André, 18.02.23

(E-Mail a uma velha amiga escrita de rajada na noite de quinta-feira passada)

Cheguei hoje de Colónia. Fui ontem, para uma feira e conferência. Colónia no Carnaval é algo louca. É uma cidade em si estranha, tem um sabor das velhas cidades portuárias, com bêbados, prostitutas e prostitutos e emigrantes e cheia de humanidade, no sentido de seres humanos, com todas as virtudes e defeitos que daí chegam. No Carnaval fica engalanada. Verdade, não cheguei na semana do Carnaval, mas na Alemanha e especialmente na Renânia do Norte Westfalia o Carnaval começa na quinta feira e prolonga-se enquanto há cerveja o que em Colónia, na terra da Kölsch, é mesmo muito tempo. Fiquei num Hotel da cadeia Accor e isso notava-se na generalidade, mas mesmo em tais sítios franchisados se notava a influência da cidade, na venda de senhas para a bebida, no stand a vender entrada para as festas da cidade, na mesinha de onde se ia vendendo a cerveja na festa dessa noite - ontem, quarta feira - no bar do hotel e que por uma noite se transformou de aguadeiro de hotel de viajante profissional para se transformar em festa do bar de direito ou das matemáticas, que até a mesa fazia lembrar as nossas dos convívios. As pessoas passavam vestidas, algumas mascaradas de alguma coisa, bombeiros, polícias, soldados, putas, enfermeiras, sei lá o quê, outras pessoas apenas punham uns fatos coloridos com as cores da festa, com uns galões a indicarem serem algum príncipe da festa local ou do grupo específico a que perte cem, com uns chapéus a fazerem lembrar aquelas boinas de sargento da GNR em pequeno ou aqueles chapéus que se faziam dobrando uma folha de papel e que noutras circunstâncias serviam de barco de papel mas sem a outra parte no centro. Estas pessoas também gostam de se adornar com penas coloridas, azuis, amarelo, vermelhas. E outras pessoas ainda não se mascaram de nada, apenas pegam nas roupas mais coloridas que tenham e que não combinem e vai tudo junto, talvez com o colete de visibilidade do carro para compor o conjunto e umas coisas pintadas nas bochechas. Tudo anda pela rua e a sensação é a de irem sempre a caminho de alguma festa, de algum ajuntamento. Fora a cor parecem ir simplesmente juntas, sem grande barulho, sem grande agitação. Não há cervejas ou outras bebidas nas mãos, curiosamente, mas o cheiro a charro é muito óbvio, provavelmente comprado uns dias antes em viagem específica à Holanda para os ir buscar e esperar escapar ao controlo da polícia alemã na fronteira que não gosta desta importação, mas só esta, que de fruta ou vegetais já não se importam. Ontem à noite fui jantar a um daqueles restaurantes feitos a partir de uma cervejaria local. Comida típica destes sítios, com as carnes, as salsichas, as couves, em sauerkraut ou couve roxa, mais as batatas em forma de fritada com cebola e muito molho em cima de tudo, mais umas saladas assim assim e mal escorridas com a água a passar para o resto do prato. Sentaram-me numa mesa para 8 inicialmente ao lado de um casal que ainda não o era, ou seja, um homem e uma mulher nos seus vinte e muitos, claramente a tentar descobrir o que o outro poderia ser, com as discussões sobre aquilo que gostam ou não na comida e com a trapalhice na voz, palavras e gestos que vem de quem ainda não sabe bem como se comportar, especialmente ele. Quase lhe disse com ternura que ela estava para já interessada nele e que escusava de meter os pés pelas mãos mas provavelmente só lhe fazia pior e além disso faz parte da dança, sem vermos as figuras de urso dos outros como saberemos aquilo que queremos neles, como saberá ela o que tem que fazer para o melhorar, para o fazer crescer. Os homens sem as mulheres não crescem, somos crianças eternas, mesmo com elas somos crianças, cheias de importância e de sentido de valor, que os atribuímos nos mesmos uns aos outros, claro está, mas continuamos e continuaremos a ser crianças, mesmo quando aprendemos a ser mulheres (sim, mulheres). Mas claro está que não disse nada, só me ri para dentro e apreciei o espectáculo ouvindo de soslaio e desejando-lhes um bom jantar e uma boa noite quando acabei - muito depressa porque estava com sono e queria ir-me deitar - e saí para voltar ao hotel. O caminho entre o hotel e o restaurante reflectia também o carácter da cidade, de Colónia, Köln, com ruas escuras, meio sujas e pouco recomendáveis, onde salões de beleza, bares e restaurantes obviamente de escalão elevado, conviviam lado a lado ou uns metros adiante de salões de massagens tailandeses, salões de tatuagem e sex shops gay com anúncios de sexo e filmes.

 Todo um microcosmos numa caminhada que não durou mais que 10 minutos para cada lado. Hoje de manhã a sala de pequeno almoço estava mais ou menos normal, excepto os mascarados a beber cerveja nas travessas com buracos para fazer caber os copos que iam bebendo e recolocando depois de vazios. Na cervejaria restaurante era o mesmo. O empregado ia trazendo a cerveja, não havia pergunta sobre qual, era sim cerveja ou não cerveja e se sim ele ia adicionando marcas no encosto para saber quantas tínhamos bebido, havias de gostar. No hotel depois quando fui sair e entregar a chave lá estavam as mesmas pessoas do dia anterior, mas desta vez mascaradas. A miúda que me atendeu estava mascarada de pirata e ficava engraçada com o estilo que tinha. Não cabia naquele cenário de hotel de cadeia, mas para isso também não cabia a instalação para a festa dessa noite e onde já ia bombando a música de carnaval de algum palco onde tinha já começado a celebração e de onde iam fazendo transmissão ao vivo e que eles tinham nos ecrãs do bar do hotel juntamente com a música. Na feira havia também alguns sinais, nalguns stands de empresas alemãs algumas pessoas tinham cedido à tentação de levar uns adereços, nada de extremo que somos alemães e isto é um ambiente profissional e mais logo sim posso ir emborcar-me à grande mas agora não posso exagerar, o que para mim tudo bem, não gosto de Carnaval. Mas era engraçado ver. No final do dia voltei. A estação cheia de mascarados, algumas grades de cerveja já se viam e o comboio já tinha música de festa em alguns lados. Aachen também festeja em grande por isso havia quem se preparar-se para festa por lá mas vamos ser sinceros, ir de Colónia para Aachen para o Carnaval era o mesmo que ir de Roma para Pisa na semana santa.

Agora estou aqui, prestes a ir dormir e quis partilhar contigo. E só me vem um pensamento: estou velho.

Natal e Fim de Ano

João André, 23.12.22

Desde que era pequeno que tenho festejado de uma forma ou outra o Natal. Tinha até uma certa sorte de ter duas noites de Natal, dado que o meu avô paterno era sacristão e, como tinha que estar de serviço à missa a 24, só reuníamos a família paterna na noite de 25. Duas noites de Natal consecutivas e, tendo eu o meu aniversário em Dezembro, até tinha direito a receber múltiplas prendas porque toda a gente se lembrava "ah pois, o Joãozinho fez anos há pouco tempo".

Devo notar no entanto que nunca foram noites de Natal muito religiosas. Lá havia a referência a prendas "do menino Jesus", coisa que me deixava confuso com a logística dele e do Pai Natal em entregar as prendas - lá me convenci que o Pai Natal deixava Portugal para o Menino Jesus e que dividiam territórios - mas fora a história de o meu avô ser sacristão, não tínhamos grande presença da religião. Era uma festa de família. Com os anos isso não mudou. Cresci não crente (que é uma maneira mais simpática de dizer ateu até à medula num blogue povoado de bons cristãos cuja Fé não quero incomodar) e como tal a religião sempre foi como a água num submarino: está ali em todo o lado mas não entra. É o ambiente em que me movo neste período - não nego a religiosidade do Natal, como é óbvio - mas deixa-me indiferente. Adiante, isto não era para falar de religião especificamente. Esclarecimento feito.

Hoje, numa Holanda que dá relativamente pouca importância ao Natal no sentido que nós o damos, numa família internacional onde a minha cara metade não liga ao dia 25, e com os preços dos bilhetes de aviões a tornarem uma viagem a Portugal um custo ridículo para 7 ou 8 dias passados essencialmente em casa, acabei por ir ligando pouco. Temos as prendas, a árvore, amanhã haverá Bacalhau e os telefonemas à família e... já está. Aproveitarei o dia 26 ser feriado por cá, tirarei o resto da semana porque também preciso de descansar e estará feito o período festivo. Penso que esta falta de espírito natalício advém também de não ver televisão (as transmissões, que temos o aparelho) e não ser inundado pelos votos de Boas Festas! a cada 5 minutos. Nas ruas ao redor não há decorações festivas, as lojas não fazem grande esforço (as prendas foram no período do Sinterklaas - São Nicolau - a 5-6 de Dezembro) e a atmosfera não existe.

O fim do ano torna-se assim apenas isso, um final de ano. Um momento para balanços do ano, de pensar no que foi e vai ser, de enviar os votos de boas festas a amigos e colegas e de desejar que este mundo louco melhore.

Então, e respeitando esta lógica, deixo aqui os meus desejos de um Santo Natal a quem o festeje de forma religiosa, bom período festivo a outros que festejem o Natal, feliz Hanukkah (tenho dois amigos que o festejam e como tal lembro-me dele) a quem o celebre e votos que para o ano de 2023 as coisas não piorem - já seria um passo em frente em relação aos últimos anos. Gostaria de ser mais festivo, mas talvez me falte o espírito ou talvez eu seja simplesmente um pessimista. Seja como for, bom Natal, bom Ano Novo e muita saúde para vós e vossos, co-autores e leitores.

Cem Prémios Nobel justamente atribuídos (65)

João André, 21.11.22

1982, Prémio Nobel da Literatura

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Gabriel García Márquez, «pelos seus romances e contos, nos quais o fantástico e a realidade são combinados num rico mundo compósito e imagnário, reflectindo a vida e conflitos e um continente».  

Foi um dos grandes autores da minha vida, daqueles que me agarraram do início e nunca me largaram. Cen Anos de Solidão continua a ser o meu livro preferido dele, embora O Outono do Patriarca ou O Amor nos Tempos de Cólera sejam talvez obras superiores. Ainda hoje regresso a ele a espaços e não é por acaso que foi nele que fui encontrar a minha inspiração para esta série de posts (a que tenho de voltar um dia). 

Cem Prémios Nobel justamente atribuídos (63)

João André, 20.11.22

1956, Prémio Nobel da Física

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John Bardeen, Walter House Brattain, William Bradford Shockley, «pelas suas investigações sobre semicondutores e a sua descoberta do efeito do transístor».

Simplesmente: sem este trabalho, não poderíamos ter este post.

Bardeen tem ainda a distinção de ser a única pessoa a ganhar o Prémio Nobel da Física duas vezes. A primeira foi esta, a segunda em 1972 pelo seus trabalhos no campo de superconductividade.

Cem Prémios Nobel justamente atribuídos (62)

João André, 19.11.22

2003, Prémio Nobel da Química

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Peter Agre, Roderick MacKinnon, «por descobertas acerca de canais nas membranas de células». No caso de Agre, explicitou-se a sua «descoberta dos canais de água» e no caso de MacKinnon, os «estudos estruturais e mecanísticos dos canais de iões».

Este prémio teve um significado especial para mim, por ter sido atribuído na altura em que iniciei o meu doutoramento em tecnologia de membranas. O trabalho de Agre e MacKinnon permitiu a descoberta das Aquaporinas, proteínas que controlam a passagem de água e iões pela parede das membranas. Estas proteínas foram, depois de isoladas, incorporadas frequentemente em membranas sintéticas para melhorar o seu desempenho e aumentar o rendimento das mesmas. Há mesmo uma empresa dinamarquesa, precisamente com o nome de Aquaporin, que incorporou estas proteínas nas suas membranas para as utilizar em processos de purificação de água.

Cem Prémios Nobel justamente atribuídos (61)

João André, 19.11.22

1954, Prémio Nobel da Física

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Max Born, «pela sua investigação fundamental em mecânica quântica, especialmente pela sua interpretação estatística da função de onda».
Walther Bothe, «pelo método de coincidência e as suas descobertas feitas com ele».

O trabalho de Born a descrever matematicamente o campo emergente da Física a nível quântico foi de suprema importância. Por curiosidade, foi a Born que Einstein terá dito pela primeira vez, por carta, que "Deus não joga aos dados". A frase mais correcta seria traduzida de forma mais completa na correspondência como «Mecânica Quântica é deveras imponente. No entanto algo me diz que não é a completa verdade. A teoria oferece muito, mas não nos aproxima dos segredos d'"O Antigo".  De qualquer forma, estou convencido que Ele não joga aos dados».

O método de coincidência não deve ser entendido como "coincidência" em termos coloquiais, como algo que acontece por acaso ao mesmo tempo. Na física e no trabalho de Bothe, a coincidência deve ser lida como "co-incidência", significando duas coisas que acontecem ao mesmo tempo - ou no caso de partículas, são co-incidentes no mesmo detector - o que significa que não existe coincidência em termos coloquiais, ou seja, algo acontece por ser resultado da mesma acção. Não vou explicar a Física subjacente porque está algo para lá da minha capacidade de o fazer, mas foi de fundamental importância para o estudo de Física de Partículas.

Um último momento de deslumbre

João André, 18.11.22

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Na carreira de Cristiano Ronaldo houve um momento que me deslumbrou completamente, daqueles que me deixou encantado. Foi no jogo do play-off de qualificação para o mundial do Brasil, na segunda mão, na Suécia. Foi em parte um jogo publicitado como Ronaldo contra Ibrahimović mas que acabou demonstrando que embora o sueco fosse de facto excepcional, Ronaldo estava a outro nível.

Talvez seja estranho lembrar um jogo já tão antigo (amanhã faz 9 anos) e para um Mundial onde Portugal não se cobriu de glória, mas foi a memória mais indelével que tenho de Ronaldo como jogador e especialmente ao serviço da selecção. Sei que podemos lembrar outros jogos excepcionais, onde Ronaldo foi o ataque da selecção portuguesa, ou aqueles onde os seus esforços arrancaram vitórias ou empates mesmo no fim ou cujos esforços mantiveram a selecção portuguesa num jogo, mesmo quando ele próprio não marcou. Poderíamos falar nos 3 golos à Espanha no último mundial, no salto estratosférico para marcar de cabeça ao serviço do Manchester United contra a Roma, na energia, no desejo e na intensidade que transmitiu (às vezes) sentado no banco durante a final do Euro 2016, no pontapé de bicicleta ao serviço do real Madrid contra a Juventus e que levantou as bancadas.

Todos esses momentos e muitos outros são memoráveis e emblemáticos de Ronaldo, mas eram momentos que Ronaldo parecia estar sempre a postos de oferecer, de mostrar como podia mudar um jogo, deslumbrar espectadores, companheiros de equipa e até adversários. Momentos que nunca imaginámos estarem fora do alcance dele. Só que, por alguma razão, eu nunca senti em momento nenhum de Ronaldo que ele seria inevitável, que fosse o que fosse que sucedesse em campo, ele acabaria por marcar ou fazer outra coisa qualquer que garantisse uma vitória. Excepto nessa noite de Novembro de 2013 na Suécia.

Portugal tinha chegado a esse jogo com uma vantagem de 1-0 do jogo em Lisboa e ampliou-a no início da segunda parte. Só que Ibrahimović acordou, marcou dois golos e deu a sensação que poderia mudar o jogo. Por apenas um segundo. Porque havia algo em Ronaldo naquela noite que o fazia intocável. Não era aquele seu gesto de "calma, eu estou aqui". Era uma leveza nos movimentos, na corrida, uma determinação que não parecia pesar-lhe, como se já soubesse qual seria o resultado. Não vinha da sua inacreditável determinação mas de outra fonte que ele nem sempre demonstrou: serenidade. A partir do momento em que Ronaldo arrancou para o seu segundo golo da noite e para o 2-2 que na prática já deixaria a eliminatória entregue, eu soube que não haveria problemas. Poderia descer um exército de Klingons para o parar e ele acabaria por marcar. Foi um jogo algo transcendente que eu só tinha vivido como adepto uma única vez.

Lembro isso hoje quando olho para a forma como Ronaldo teve a sua carreira. Em tempos li um artigo que avançava a teoria de um psicólogo de Federer, Nadal e Djoković serem psicópatas (mas de uma boa forma). Sem entrar em detalhes técnicos que não domino, o essencial é que esses 3 grandes do ténis teriam uma obsessão tão grande de vencer que não tinham problemas em destruir quem lhes aparecesse pela frente e que tal obsessão continuava bem viva ao fim de quase 20 anos. Penso que Ronaldo é semelhante. O desporto é colectivo e não individual, mas a obsessão de Ronaldo é individual e arde da mesma forma hoje quanto ardia quando há pouco mais de 20 anos marcou o seu primeiro golo sénior pelo Sporting. Será talvez esse o aspecto que o aproximou tanto a Alex Ferguson, outro obsessivo pela vitória.

A dificuldade que tal obsessão acarreta é no entanto a compreensão dos limites. Seja da idade (Federer) limites do próprio corpo (Nadal) ou da sua influência em aspectos não desportivos (Djoković). Costuma-se dizer, quando vemos atletas a prolongar a carreira, que "a idade é só um número. A alternativa é a expressão "o Pai Tempo é imbatido". Como em tudo, a entropia vence e há um momento em que o número passa mesmo a ser idade. A dificuldade para certos atletas é compreendê-lo e, para atletas excepcionais e que sempre dependeram tanto de um corpo afinado até ao mais ínfimo detalhe e de um desejo obsessivo de ser o melhor, tal facto torna-se impossível de aceitar. Creio ser isso o que vemos hoje com Ronaldo.

Não vou discutir os méritos do Ronaldo de hoje nem se de facto ainda é o melhor ou um dos melhores do mundo. Deixo-me pela simples observação: o Ronaldo de hoje já não é o Ronaldo de há 15 anos, nem de há 10 ou 5 anos e direi que nem sequer o de há um ano. Ronaldo vai ficando mais lento e vai conservando a sua energia cada vez mais, o que reduz a sua contribuição para um jogo cada vez mais focado em pressão alta e contribuição constante. Não é justo, mas é um facto. Não é o único. A isto poderão acrescer outros aspectos privados sobre os quais não especularei, mas realço apenas um: a perda de um filho durante o parto, algo que pode deitar abaixo qualquer ser humano. Não vou imaginar como Ronaldo se sentiu, mas é difícil não imaginar que tal situação não o tenha afectado também a nível profissional.

Temos então a partir de domingo o início de um mundial que nunca deveria ter sido atribuído ao Qatar mas que seja como for vai ter lugar. Será quase de certeza o último da carreira de Ronaldo. Penso que ele possivelmente já não deveria jogar de início e deveria guardar a sua energia para atormentar defesas adversárias já cansadas na segunda parte (especialmente no calor do Médio Oriente) e ir motivando os seus companheiros de equipa, mas eu não sou seleccionador nem sequer jogador. Sou apenas adepto. E como adepto, espero apenas que Ronaldo, no seu declínio, possa ainda oferecer uma repetição dessa noite sueca de há 9 anos e me deslumbre. Possivelmente uma tal exibição não seria o suficiente para trazer um troféu, mas é talvez o meu maior desejo para esse mundial: um jogo em que Ronaldo é intocável. Já me bastaria.

 

PS - este texto foi sendo escrito ao longo de várias semanas, com mudanças e correcções. Não quis incorporar quaisquer referências à entrevista de Ronaldo que foi transmitida nos últimos dois dias. Deixo apenas um desejo para o seu futuro pós-mundial: que regresse ao seu Sporting para fechar o ciclo, nem que seja por uma época antes de ir ganhar milhões para os EUA. Faço este desejo também como benfiquista.

Cem Prémios Nobel justamente atribuídos (58)

João André, 13.11.22

1978, Prémio Nobel da Fisiologia ou Medicina

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Werner Arber, Daniel Nathans e Hamilton O. Smith, «pela descoberta de enzimas de restrição e a sua aplicação nos problemas de genética molecular».

Este trabalho permitiu o desenvolvimento de técnicas (ADN recombinante) que hoje permitem manipulação de ADN para induzir a produção de compostos que um determinado organismo não produziria. Um exemplo disto é a produção de insulina, que antes era obtida a partir de animais (como porcos) e hoje é produzida usando bactérias modificadas para produzir insulina humana.

Outros tipos de uso estão no diagnóstico e análise de laboratório e até mesmo na modificação de organismos mais complexos como animais modificados geneticamente. Apesar destes usos mais estranhos e aberrantes (p.e. peixes fluorescentes), a tecnologia melhorou muito a nossa sociedade e a qualidade de vida de muitas pessoas.

Cem Prémios Nobel justamente atribuídos (57)

João André, 13.11.22

1997, Prémio Nobel da Química

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Paul D. Boyer e John E. Walker, «pela sua elucidação do mecanismo enzimático referente à síntese de adenosina trifosfato (ATP)».
Jens Christian Skou, «pela primeira descoberta de uma enzima transportadora de iões, a Na+, K+ -ATPase».

Creio que devo uma clarificação pelo salto de 34 anos entre o último Prémio Nobel da Química que escolhi e este. Estas escolhas reflectem dois factores:
1) a Química entrou numa era muito mais específica e que requer um entendimento mais profundo não só da disciplina como das subdisciplinas e especialidades que aquele que eu possuo. Isso leva-me a não ser capaz de distinguir suficientemente bem a importância de muitos dos trabalhos distinguidos;
2) muito do trabalho distinguido foi-o por refinamentos em trabalhos mais gerais e mais fundamentais (no sentido de "ciência fundamental", como em "fundações de uma casa") e como tal receberá menos atenção. Há também mais tentação de dar atenção aos grandes pioneiros do passado em detrimento dos grandes cientistas da actualidade. Estas minhas escolhas reflectem também essa tendência, à qual não sou imune.

Haveria outros trabalhos que poderiam estar aqui. Apenas dois anos antes foi distinguido o trabalho que explicou a decomposição da camada de ozono, uma das descobertas com maior impacto no nosso mundo nos últimos anos. Porque não o ressalvei aqui? Talvez para evitar discussões políticas. Preferi antes apontar para descobertas que entram em campos onde existe muito do trabalho em Química que tem sido laureado: a bioquímica.

Neste caso, a importância de compreender os mecanismos ligados às moléculas de ATP e à sua importância para as células de seres vivos. O trabalho de Skou é, para mim, ainda de maior importância, por identificar a forma como as nossas células controlam a entrada e saída de iões.

Cem Prémios Nobel justamente atribuídos (56)

João André, 12.11.22

1952, Prémio Nobel da Física

 

Felix Bloch e Edward Mills Purcell, «pelo desenvolvimento de novos métodos de medição precisa de magnetismo nuclear e descobertas em relação a estas».

O trabalho abriu caminho à Ressonância Magnética como a conhecemos hoje e ao seu uso no diagnóstico médico. A tecnologia tem imensos outros usos, desde ser fundamental para a análise de substâncias, determinar a qualidade de produtos e processos numa variedade de indústrias, servir como um dos instrumentos de análise do subsolo e muitas outras aplicações que mal compreendo.

Felix Bloch foi mais um dos muitos cientistas que abandonaram o seu país natal (no seu caso a Suíça) devido a serem judeus ou terem raízes judias e encontrou o seu refúgio pessoal e profissional nos EUA.

Cem Prémios Nobel justamente atribuídos (52)

João André, 10.11.22

1963, Prémio Nobel da Química

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Karl Ziegler e Giulio Natta, «pelas suas descobertas no campo da química e tecnologia de polímeros».

O trabalho e descobertas destes dois investigadores levaram à criação de uma classe de catalizadores que recebem o seu nome ("Ziegler-Natta"). São usados para permitir a polimerização de alcenos (compostos de carbono com uma ligação dupla entre dois átmoso de carbono) e assim criar cadeias muito longas de monómeros (imaginemos os polímeros como uma corrente e monómeros como cada anel na mesma). Os catalisadores são compostos que aceleram e facilitam a reacção química, como que um intermediário que permite uma transacção.

Os catalisadores Ziegler-Natta são utilizados essencialmente em poliolefinas (polímeros obtidos a partir do petróleo) e são portanto responsáveis por uma enorme parte dos plásticos usados no mundo. Hoje em dia poderemos não os ver com bons olhos, mas mudaram o mundo.

Cem Prémios Nobel justamente atribuídos (50)

João André, 09.11.22

1939, Prémio Nobel da Física

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Ernest Lawrence, «pela invenção e desenvolvimento do ciclotrão e pelos resultados com ele obtidos, especialmente relacionados com elementos radioactivos artificiais».

O trabalho de Lawrence não só permitiu a construção de aceleradores de partículas viáveis, como terá sido aquilo que iniciou a transição de ciência "pequena" - com investigadores a trabalharem em laboratórios individualmente ou com no máximo meia dúzia de colaboradores - para a ciência "grande" - com largas equipas de investigadores em áreas e com especialidades distintas. Se os primeiros cilotrões tinham apenas algumas polegadas de perímetro, hoje vemos o Large Hadron Collider do CERN com mais de 26 km de perímetro.