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Delito de Opinião

Não acredito em bruxas...

João André, 21.04.25

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O Papa Francisco passou cerca de 60 anos sem parte de um pulmão, sobreviveu recentemente a uma infecção pulmonar com múltiplas complicações que levaram o mundo católico a preparar-se para o pior. Depois de receber alta voltou a casa, visitou o Vaticano, visitou prisioneiros, apareceu na varanda sobre a Praça de S. Marcos. Tudo isto aguentou.

Ontem concedeu uma audiência "relâmpago" a JD Vance. Hoje não está vivo.

Correlação, causalidade e tal mas... que las hay, hay!

Nota: não sendo católico, a morte do Papa Francisco não me afecta muito, haverá novo Papa em breve. Como pessoa, lamento a morte de um homem bom, que tentou trazer boa vontade a um mundo em mudança e demonstrou sempre enorme abertura de espírito para com os outros, mesmo - ou especialmente - quando não concordava com eles. O mundo ficará mais pobre sem ele.

A estupidez de Trump e acólitos

João André, 03.04.25

Donald Trump announces 27% tariffs on Indian imports, but others are hit  harder | Economy & Policy News - Business Standard

Tenho evitado falar muito de Trump, não só aqui no Delito, mas em geral. Deixa-me deprimido, saber que faz o que faz sem que alguém o controle.

Depois do anúncio das tarifas de ontem, tenho dificuldade em o evitar. A Cristina tem andado a listar algumas das atrocidades e fez-nos o serviço de publicar o artigo de Miguel Sousa Tavares que faz um apanhado de algumas das decisões ridículas que têm saído de Washington (e noutros posts de outros delituosos vemos mais). Há no entanto um aspecto na questão das tarifas que é difícil deixar passar em claro. Como foram decididas.

Trump falou na reciprocidade. Claro que não é isso que implementou, porque se o fizesse, o grunho Musk teria de recontratar toda a gente despedida e iniciar um enorme programa de emprego no Departamento de Comércio para poder replicar as tarifas em todo o mundo. Também não replicou simplesmente a tarifa média desses países sobre bens (manufacturados, os serviços estão isentos) adquiridos nos EUA.

O método foi este: dividir as o défice comercial (em dólares) para esse país pelas importações americanas desse mesmo país, obter esse rácio e, se positivo (ou seja, os EUA têm um défice comercial com o país), dividir esse rácio por 2 e aplicá-lo como tarifa.

Exemplo: se o país X exporta 100 mil milhões de dólares de bens para os EUA e os EUA exportam 75 mil milhões para o país X. O défice é 25 mil milhões. O rácio é 0,25 (ou 25%). Resultado: aplica-se uma tarifa de 12,5% (aparentemente arredondou tudo para cima, ou seja, seria 13%). Para não haver azares, a tarifa mínima fica-se pelos 10% (com o Reino Unido aparentemente há excedente comercial em favor dos amaricanos, mas levam com 10% na mesma).

Para quê estudar economia, micro ou macro, fazer matemática mais extensa que o 5.º ou 6.º ano, entender consequências, etc.? Não vale a pena. O génio estável de Trump e do seu bando de moluscos* é quanto basta para tudo.

 

* - tenho noção que com isto provavelmente acabei de impedir a minha entrada no país por vários anos. Não me parece que venha a ter pena disso.

Fazer frente a bullies

João André, 01.03.25

Um amigo escreveu-me ontem que futuros historiadores dirão que a reunião de ontem entre Zelensky e Trump (mais Vance e demais esbirros) marcará o fim da NATO. Não sei se concordarei, penso que terminou quando Vance se dirigiu aos antigos aliados na conferência de Munique.

Poderá no entanto marcar o início do fim do poderio americano. Não creio que haja ainda líderes europeus com um módico de inteligência e decência que creiam que os EUA os ajudariam em caso de necessidade. O Departamento da Defesa americano já indicou que irá reduzir os custos com bases e as europeias estarão quase certamente na lista de coisas a cortar (tal como os mísseis nucleares no continente). Sem esse poder dissuasor, aos europeus resta renderem-se à irrelevância ou descobrirem a vontade de se defender a si mesmos.

Só que os EUA perderão acesso aos recursos europeus e, de arrasto, aos de muitos outros antigos aliados. Mesmo na Ásia, será difícil imaginar a Coreia do Sul ou o Japão a confiarem em Trump ou Taiwan a acreditar que os americanos estariam dispostos a arriscar o seu sangue para os proteger. Acrescendo a isto os cortes nas missões diplomáticas (que provavelmente se irão reflectir nos "países de merda de África e Ásia"), e a influência americana irá desaparecer e ser substituída pela chinesa.

Todos perderemos (bem, talvez não os chineses) com um mundo onde os EUA abandonam os seus princípios (mesmo quando os defendiam apenas no seu interesse). Será um mundo de instabilidade e onde a - ainda - maior potência está dominada por bilionários infantis ou maliciosos que só têm interesse nos outros como clientes ou servos.

Na sequência do vergonhoso comportamento de Trump e Vance, temo (e ao mesmo tempo quase desejo) que os ucranianos acabem por remover Zelensky para lá colocar alguém que se mostre obsequioso ao ogre laranja. Temo porque demonstra que o bullying resulta. Desejo porque nos ganharia tempo. A questão é qual opção os ucranianos, como eslavos que são e como tal altamente orgulhosos, irão escolher: apoio e subserviência, ou orgulho e dificuldade. Uma oferece alguma segurança no curto prazo (embora nunca se saiba o que Trump e Putin, falsos como são, decidirão fazer no futuro). A outra oferece riscos claros, mas poderá ser a única forma de existir uma Nação ucraniana dentro de algumas décadas.

Sejamos claros: o momento de ontem poderá ter sido o fim da NATO e da ordem pós-II Guerra Mundial (ou mais um marco no caminho). Poderá ser o início de um conflito ainda mais alargado do qual os EUA se alhearão. Poderá no entanto servir como fundação para o estabelecimento de uma Nação e de mais uma fundação para uma Europa do futuro. É preciso querer (e saber, como cidadãos dessa Europa) que o caminho para isso vai ser duro e custoso.

Os protestos na Sérvia

João André, 20.02.25

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Num período de crescimento de nacional-populismo (como se o nacionalismo fosse de outro tipo) e do aumento de influência de líderes autoritários (para sermos brandos com os Órbans deste mundo), vale a pena olha para o que está neste momento a acontecer na Sérvia.

Para quem não tem acompanhado, tudo começou a 1 de Novembro do ano passado quando a pala que encima(va) a fachada da estação de Novi Sad (a segunda maior cidade do país) caiu, matando 15 pessoas. Esta pala tinha sido renovada a partir de 2021, com uma pausa em 2022 para "inauguração" antes das eleições e reabertura final a 5 de Julho (também do ano passado). Nem 4 meses depois, a pala renovada caiu.

A renovação da pala tinha sido conduzida ao abrigo da Iniciativa da Nova Rota da Seda (penso ser essa a tradução da Belt and Road Initiative chinesa) e integrada na actualização e melhoramento da linha de caminho de ferro entre Budapeste e Belgrado, que passava por Novi Sad e que integraria linhas de alta velocidade. Desde o início que as obras tinham sido alvo de acusações de favoritismo e corrupção, mas na Sérvia actual do Presidente Aleksandar Vučić, isso é quase o dia a dia e não chama muito a atenção.

Aleksandar Vučić (lê-se Vutchitch se escrito à portuguesa) é um político que chegou ao poder quase de mansinho. Num país que celebra os grandes líderes e que seguiria um líder carismático num cavalo branco até a um abismo, Vučić é uma pessoa algo apagada, que fala de forma muito suave e, mesmo quando irritado, não parece passar do registo de professor primário a corrigir uma criança. Veio do Partido Radical (que se pode descrever como de extrema-direita) e foi seguindo suavemente para o Partido Progressista da Sérvia (SNS), que se poderá colocar na direita, mas mais normal. Tem vindo a perseguir políticas de abertura económica do país, privatizando muitas das empresas estatais e tem promovendo a livre iniciativa, seguindo de certa forma a cartilha do liberalismo económico. Em termos sociais é mais pragmático, mantendo ligações a movimentos conservadores mas também demonstrando abertura a grupos anteriormente marginalizados (a sua primeira-ministra anterior e actual presidente do parlamento, Ana Brnabić, é lésbica assumida). É essencialmente um político extremamente hábil.

É também um político autoritário, que quando chegou ao poder prosseguiu os hábitos que tinha de quando era ministro da Informação nos tempos de Slobodan Milošević e em que suprimia meios de comunicação social e tentava controlar a informação que chegava à população. A isto acresce o controlo que tem tido sobre o aparelho político, trazendo alguns políticos da oposição para o governo ou cargos importantes enquanto suprime outros. O seu período no poder tem sido visto como caracterizado por uma deriva autoritária, onde vai acumulando cada vez mais poder em si mesmo e mantém um grupo de políticos ao seu redor que dele dependem para manter as suas posições - mesmo quando são teoricamente da oposição.

Como em todos os sistemas deste tipo, a única forma de manter tal rede de poder é com compadrios e corrupção. A corrupção é desde há décadas quase um facto diário na vida sérvia. Empregos são conseguidos e mantidos graças a cunhas, despachar processos administrativos requerem no mínimo uma boa dose de charme para com os funcionários e frequentemente acabam em pagamentos em dinheiro ou géneros, até um simples procedimento hospitalar poderá depender de o paciente trazer alguns dos materiais para ele necessário. Na vida económica, como se pode imaginar, isto amplia-se. E terá sido o caso com a reconstrução da pala da estação de Novi Sad.

Após a queda da pala e da morte das 15 pessoas, começaram a surgir alguns protestos, os quais foram fortemente reprimidos pelas forças policiais e deram origem a actos de vandalismo. O governo começou uma campanha de propaganda contra os protestos, apodando-os de "anti-sérvios", um epíteto que é quase do mais ofensivo que se pode usar num país onde os carros num cortejos de casamento têm sempre abundância de bandeiras sérvias. Só que a 22 de Novembro estudantes e alguns professores da Faculdade de Drama da Universidade de Novi Sad decidiram organizar uma vigília nas imediações da faculdade para homenagear as pessoas que morreram no desastre. Durante a vigília (que seguiu os trâmites da lei) foram atacados por um grupo não-identificado mas largamente considerado como ligado ao governo.

Depois disto, os restantes estudantes da universidade decidiram juntar-se aos estudantes de Drama e ocuparam pacificamente a universidade, colocando tendas, organizando a logística e apoiados por pais e pela população local, que lhes trazia comida, bebida e outras coisas que precisassem. Também começaram a organizar um bloqueio do trânsito da cidade por períodos de 15 minutos todas as sexta-feiras às 11:52, a hora do colapso da pala. Aos poucos, a população da cidade começou a juntar-se aos estudantes em sinal de apoio. Num destes bloqueios, um condutor investiu o carro contra os estudantes (após vários políticos do SNS terem defendido tais acções), atraindo condenação da população apesar de ser defendido pelo próprio Vučić.

Com o tempo, estes protestos foram-se estendendo a outras cidades sérvias e culminaram no protesto a 22 de Dezembro do qual tirei a fotografia que encima o post. Este protesto teve lugar na Praça Slavija, uma das mais emblemáticas de Belgrado e, crucialmente, não na Praça da República (Trg Republike) que fica perto do Parlamento e do Palácio Presidencial, e está associada aos protestos contra Milošević. Uma das principais características destes protestos é que são liderados pelos estudantes, mas sem uma única figura que esteja à frente deles, os represente ou seja porta-voz. Todas as decisões dos estudantes são tomadas em assembleias de estudantes e quando algum comunica as mesmas à imprensa é quase sempre alguém diferente de quem o tenha feito no passado. Ao tomarem esta decisão consciente, os estudantes resguardam-se contra situações passadas onde os líderes eram seduzidos e corrompidos e o movimento acabava por morrer devido a isso. Sem líderes para atacar ou seduzir, Vučić fica sem alvo concreto, tendo de se recorrer à cassete dos autoritários, que os protestos são patrocinados "pelo Ocidente" e anti-sérvios, e que os estudantes querem causar a queda do regime.

O problema é que os estudantes têm exigências mais simples. Primeiro que nada, recusam-se a reunir com Vučić, argumentando que ele é o presidente e, como tal, não tem poder real no país de acordo com a Constituição (em teoria é uma figura semelhante à do Presidente da República Portuguesa), antes querem discutir com o governo, coisa que se complicou por Vučić ter forçado a demissão do primeiro-ministro Miloš Vučević (quer era presidente da câmara de Novi Sad quando as obras na estação começaram). Querem também total transparência no inquérito ao colapso da pala, algo a que Vučić tem resistido por, de acordo com os protestantes, isso levar a que se conhecesse a escala da corrupção no país e implicar múltiplas pessoas em posições de poder. Outras exigências que os estudantes anunciaram foram a anulação dos processos contra estudantes e demais cidadãos detidos em protestos; a prisão de quem atacou violentamente os protestos; e o aumento do orçamento das faculdades em 20%.

Estas exigências demonstram também uma outra faceta dos protestos estudantis: não falam pelo país, antes e apenas por si mesmos. Não fazem exigências políticas para as quais não consideram ter legitimidade, apenas exigem algo que consideram ser senso comum (transparência no inquérito, processos legais a quem de facto comete crimes) e a algo que lhes diz respeito: as suas próprias faculdades. Esta é mais uma das razões porque recebem tanto apoio da população. Não só não se arvoram em líderes do país, mas pedem apenas condições para poder estudar condignamente e poder posteriormente ajudar a Sérvia, em vez de ir para o estrangeiro em busca de vida melhor. Nas declarações da população, o apoio aos estudantes recebe frequentemente o comentário "apoio-os porque são os nossos filhos e querem uma vida melhor".

Vučić, nisto tudo, está preso e parece tentar ir oferecendo migalhas aos protestantes - recentemente anunciando a prisão de uma administradora de uma clínica de testes clínicos por práticas de corrupção - e esperar que arrefeçam para ele voltar ao normal. Neste momento não é claro que isso venha a acontecer.

Dê por onde der, estes protestos têm demonstrado que há formas de resistir às derivas autoritárias e corruptas dos países. A opção que os estudantes sérvios têm demonstrado baseia-se em certos pilares: 1) união; 2) protestos completamente pacíficos; 3) ausência de líderes ou figuras; 4) manter as exigências circunscritas ao razoável e lógico.

Num mundo onde nos perguntamos constantemente "onde irá este mundo parar" relativamente aos jovens actuais (como se a pergunta não fosse feita desde sempre por todas as gerações), este tipo de protestos demonstra que, pelo menos num país e para já, o mundo talvez tenha possibilidade de ir parar a um lugar melhor. Haja vontade.

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Imagem com um dos símbolos do protesto. O texto é traduzível como "As vossas mãos estão ensanguentadas". Penso que não é preciso explicação.

Uma nova (des)ordem mundial

João André, 17.02.25

Há menos de duas semanas escrevi um comentário a um post do Pedro onde expressava o meu pessimismo relativamente a Trump e às consequências para Portugal e a Europa. O Pedro respondia que analisava (naquele caso) na perspectiva de cidadão português e expressava optimismo na resiliência europeia. Não voltei à discussão mas talvez uma nova reflexão faça agora algum sentido.

A verdade é que na presente estratégia trumpista (e da Heritage Foundation, que escreveu a estratégia, passo a passo) duas semanas são uma eternidade. Após a visita de Hegseth e Vance e algumas declarações extra de Trump, está neste momento claro qual a visão que a Casa Branca tem para o futuro. E passa por um elemento simples: a NATO é letra morta.

Primeiro vieram as declarações de Hegseth (segundo algumas notícias, algo diluídas da brutalidade inicial), que a Europa não mais seria o foco dos EUA, assim explicando que a defesa da Europa estaria a cargo dos Europeus, caso isso não fosse claro. Depois chegou Vance, que se apresentou numa conferência sobre segurança, falou durante 18 minutos sem tocar no tema, atacou a democracia europeia, demonstrou menosprezo pelo continente, foi embora assim que terminou, recusou reunir-se com o chanceler alemão sob o pretexto de não ir ficar no cargo muito mais tempo, e reuniu-se com a extremista líder da AfD que não tem a menor hipótese de ser eleita chanceler. De permeio surgiu uma declaração de Trump himself em que dizia querer procurar um processo de desnuclearização juntamente com China e Rússia. Por fim, há o facto de Trump querer ir debater o futuro da Ucrânia com Putin sem levar os ucranianos ou europeus em conta.

Ignorando o modo e focando-nos no conteúdo das mensagens, vemos aqui um tema essencial: os EUA vão dar prioridade a um mundo onde "might is right" ou, se quisermos, da lei do mais forte. Trump, já o sabemos, vê a política como transacional. Se não existe um quid pro quo - um toma lá dá cá em bom português - ele não está interessado. Trump quer portanto negociar com Putin, terminar a guerra, recuperar os recursos que puder, e deixar os ucranianos e europeus entregues a si mesmos. Note-se que nesta negociação Trump já disse que os ucranianos não podem esperar entrar na NATO nem recuperar as fronteiras de 2014 o que, mesmo que seja realista, é uma posição bizarra para iniciar negociações.

Excepto quando olhamos para o interesse de Trump: que quer ele em troca? Recursos minerais. O futuro da Ucrânia não lhe interessa, já que ele quer apenas e só acesso aos recursos do país. Já disse a Zelenskií querer condicionar ajuda futura ao acesso aos depósitos minerais em terreno ucraniano (especialmente terras raras, lítio, urânio, etc.), os quais estão parcialmente em territórios controlados pela Rússia. Disse inclusivamente que quer "tomar posse" de 50% desses recursos, como se fosse um extorsionista mafioso a dar a volta por Manhattan no início do século XX a exigir dinheiro em troca de protecção. Desta forma a sua posição ideal será a de "oferecer" à Ucrânia protecção em troca de pagamento e oferecer à Rússia o levantamento de sanções (e reentrada nos palcos internacionais) em troca de acesso aos restantes minerais (que obviamente se manteriam em mãos russas). O resto - reconstrução do país, defesa das fronteiras, defesa europeia - fica nas mãos de quem lá vive. O próximo passo será certamente a remoção de bases do continente. Se as eleições alemãs não correrem de forma que lhe agrade, as bases no país poderão muito bem ser as priemiras.

E quanto à desnuclearização? Do ponto de vista de Trump não faz sentido ter tantas armas nucleares quando existe redundância. Sendo uma mente que não entende subtileza, não percebe que as armas não foram todas criadas iguais e que muitas delas existem não para criar destruição mas para garantirem a possibilidade de retaliação ou "priemiro ataque" (First Strike). Se puder reduzir o arsenal nuclear, certamente que o irá fazer removendo muitas das armas do território europeu, assim ainda mais abrindo o flanco no continente. Além disso, um acordo deste género seria uma aceitação tácita que EUA, Rússia e China seriam as única potências internacionais e que cada uma teria a sua esfera de influência, na qual os EUA não interefeririam desde que possam beneficiar economicamente. Num tal cenário de desnuclearização (e note-se que a China provavelmente não reduziria o seu arsenal, antes o aumentaria para um nível semelhante ao americano e russo) os riscos de um conflito nuclear não diminuiriam (talvez se abrisse a possibilidade de vitória, algo impossível actualmente) e os riscos de conflito convencional seriam talvez superiores. E as probabilidades de China invadir Taiwan, EUA invadir Panamá e Gronelândia (o Canadá já duvido), e Rússia continuar a sua expansão para Oeste seriam muito elevadas.

E no que ficamos na Europa? Bom, como o Pedro diz noutro comentário no post, abre a possibilidade para a Europa finalmente fazer aquilo que já deveria ter feito há décadas (e perdeu a oportunidade de fazer no período de Trump45) e criar um sistema de defesa europeu. Isto não significa simplesmente aumentar os gastos em defesa. Significa também criar todo um sistema para poder sustentar a defesa. Diz-se habitualmente que o Pentágono tem a maior burocracia do mundo mas, mesmo que seja excessiva, é indicativo daquilo que a Europa tem que construir. Tem que criar um conceito, um sistema de liderança, de harmonização entre as diferentes forças armadas europeias, uma burocracia, processos de investigação e desenvolvimento, fomentar a indústria de armamento europeia, criar processos de compras de equipamento (não só de armas mas também de material extra - tendas, rações, roupas, veículos, etc.) e implementar uma forma de treinos conjuntos e criação de doutrinas conjuntas. Tudo isto é uma oportunidade, mas também demora muito tempo, custa capital financeiro, político e humano. E é muito difícil de vendar a uma população a quem não se é sincero sobre os problemas reais.

E o capital financeiro traz-me a um ponto no qual discordo algo da posição do Pedro. Ele escreveu a certo ponto «a Europa resistiu a um milénio de guerras violentas, epidemias mortíferas, catástrofes de todo o género» no que dá a entender que a resiliência europeia pode resistir a tudo isto novamente. Nisto deixo as minhas reflexões: a "Europa" não sovreviveu a nada disso. A "Europa" não existia, era um aglomerado de reinos, impérios, terras vistas como bárbaras, múltiplas religiões (que mesmo quando cristãs não impediam o morticínio) e era, essencialmente, o território menos interessante do mundo conhecido. A Europa é uma zona geográfica com pouco interesse. Não é particularmente fértil, rica em minerais, recursos naturais de outros tipos (madeira, especiarias) e tem pouco espaço disponível. É por isso que não era tão invadida como o Norte de África ou a Ásia. Tudo mudou com o período de conquistas ultramarinas (aquilo a que se chama habitualmente de "Descobrimentos") e expoliação dos recursos locais. Com o fim da época colonial, sem o guarda-chuva americano, sem recursos naturais significativos, sobra apenas o avanço tecnológico que o continente ainda tem sobre a maioria do mundo e a sua população (que é provavelmente a mais educada).

Como avançar? Sinceramente, o facto de não termos muitos recursos naturais poderá ajudar, dado que Putin não terá interesse no território europeu. O seu interesse expansionista está em obter os territórios que ele reclama serem "historicamente russos" (na mesma lógica com que Portugal poderia reclamar Angola como "historicamente portuguesa") e em criar zonas tampão entre a Rússia e uma região que lhe seja hostil. Aqui, se Trump criar realmente um mundo de esferas de influência onde a Europa seja ignorada, Putin poderá de facto ter pouco interesse em invadir muito mais. Ainda assim, o melhor cenário talvez seja os Europeus regressarem a África, desta vez sem se darem a poses ou atitudes sobranceiras, e criar parcerias reais e honestas. A Europa poderia obter os recursos e a África apoio para o seu desenvolvimento económico, humano, e tecnológico. A tal oportunidade de que o Pedro falava.

O problema é o que acontece até lá. A união na Europa é ténue - para ser diplomático - e será difícil ver Orbán, Meloni, Wilders, potencialmente Le Pen, Fico, e outros a apoiar tais acções. Por outro lado, imaginando que de facto a Europa decidiria colocar tropas na Ucrânia, que aconteceria quando Putin atacasse? Talvez nem atacasse as forças europeias, apenas as ignorasse e atacasse as ucranianas. Que fariam os europeus? Responderiam? Atacariam território russo? Fariam como as tropas neerlandesas em 1995 em Srebrenica? E se as forças europeias fossem atacadas directamente? Que fariam sem a ameaça do envolvimento americano? Alguém julga que Trump sancionaria uma resposta americana à invocação do famos artigo 5 do tratado da NATO?

Por isso me mantenho pessimista. Trump não quer saber e deixou-o claro. Talvez esteja a esperar um pouco antes de apertar ainda mais porque não tem o seu gabinete completamente formado, mas não irá tardar muito. Os EUA irão recuar dos palcos mundiais e concentrar-se-ão apenas no seu quintal (continente americano) e no que poderão obter economicamente. O resto do mundo que trate de si. Não discuto aqui se isso faz sentido para os EUA embora aminha opinião seja fácil de discernir, mas apenas nas consequências. Os EUA a controlar América do Norte e do Sul, China a controlar o sudeste asiático e parte de África, Rússia a controlar a Europa de leste, parte do Médio Oriente e algumas zonas de África, e restos para países/regiões como Índia, Europa e quem mais o conseguir.

A saída para isto estará nos EUA e na capacidade dos americanos de evitarem tal destino (que lhes seria adverso), mas da forma como as coisas avançam, não sei se Trump e o seu aparelho lhes dará essa escolha. Só que isso é assunto para outro post e este já vai longo demais.

Trump 2.0, oligarquia, e um mundo à beira de um caos de mudança

João André, 22.01.25

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Imagem da The Economist.

Ainda a segunda presidência Trump vai no adro e já estou farto das histórias. É como ver um enorme acidente rodoviário em câmara lenta. Estou horrorizado mas não consigo deixar de olhar. E no final vai haver muita gente a sofrer. Por isso escrevo agora com o desejo de não abordar Trump durante muito tempo (senão en passant porque o tema não o pode evitar, como quando possa escrever sobre as alterações climáticas).

Escrevi acima "segunda presidência de Trump" mas há já quem fale em primeira presidência de Musk. É obviamente exagerado - Musk não quer gastar tempo em gerir o país, isso é chato e ele nem saberia o que fazer - mas aponta uma direcção para o país: a oligarquia. Isto foi óbvio com a presença dos tech bros na inauguração e na enorme presença de Musk. Contribuíram financeiramente mas mais ainda contribuirão com a sua colaboração futura. Bezos domou o Washington Post, a Meta já anunciou o fim das verificações de factualidade e outras empresas (tech ou não) também anunciaram que estariam dispostas a trabalhar com Trump. Assim mesmo, «dispostas a trabalhar com Trump», num tom que indicaria subserviência. Só que não o será, pelo menos não exactamente. As empresas estão interessadas, acima de tudo, nos lucros e para tal farão aquilo que precisam de fazer. Os lucros, especialmente para os seus donos e CEOs, vêm na forma de cotação bolsista e acções detidas. Quanto mais estas sobem, mais as empresas valem, mais dinheiro podem ter disponível, mais dinheiro podem pedir e a lucros mais baixos, e mais poder acumulam. Foi assim que Musk, com um investimento de 43 mil milhões no Twitter e uns 220 milhões na campanha, conseguiu já aumentar em alguns 170 mil milhões a sua fortuna após a vitória de Trump. Entretanto, Trump anunciou já que irá investir 500 mil milhões em Inteligência Artificial, tendo ao seu lado uma das pessoas mais ricas do mundo - Larry Ellison, o líder de um dos maiores fundos de investimento do mundo - Masayoshi Son, e o "guru" da IA e líder da OpenAI Empresa apoiada pela Microsoft) - Sam Altman (que entretanto é também já um bilionário). Se lá tivesse também Jensen Huang (presidente da Nvidia e outro centibilionário) faria bingo. Teria também o perfeito grupo de gestores que não precisam de dinheiro do estado. Mas vão recebê-lo, à ordem de 125 mil milhões por ano.

Estes são os primeiros exemplos. A promessa de enviar americanos a Marte, quando ao lado de Musk, deve ter aumentado em mais uns 50% a valorização da SpaceX. O drill, babz drill, deve deixar os mercados bolsistas de acções de empresas de petróleo mais descansados, mesmo que isso não tenha importância porque os EUA já são o maior produtor mundial de petróleo e gás (deste também o maior exportador) e não há muito espaço para aumentar esses valores. Os cortes de impostos irão provavelmente ser feitos permanentes e não serão os últimos. O ridículo departamento de eficiência governamental foi entregue aos magnatas para partir o estado aos bocadinhos e dividir a pequena rede social que existia. As estúpidas tarifas irão aumentar os preços de tudo, mas irão provavelmente também reduzir o volume de importações, o que provocará um aumento da produção interna. Quem pagará? O consumidor comum. Quem beneficiará? Os magnatas, como é habitual. E ainda veremos as mudanças de regulamentações para reduzir a necessidade de conformidade por parte das grandes empresas. Regulamentos ambientais? Fora. Água limpa? Para quê? Litigação contra as grandes empresas? Provavelmente será reduzida ao mínimo.

E nem entramos no encher o aparelo executivo de lealistas que farão tudo o que ele mandar e perseguirão quem ele quiser. Olhar para algumas escolhas é criar a pergunta: qual destes é o membro do governo mais incompetente de todos os tempos? Será Hegseth? Patel? Kennedy? Ao menos Bondi e McMahon têm experiência nas suas áreas e em gerir organizações maiores que uma banca de limonadas. Vale no entanto a pena falar naquilo que este gabinete trará: um declínio futuro do país. A educação está entregue a alguém que pouco fará por ela. A ciência está ausente, foi outsourced a Elon Musk (que também pouco percebe dela). O investimento no Green New Deal e que seria usado para actualizar a infraestrutura do país desaparecerá. Não só irá o dinheiro para os bilionários que dele não precisam (mas que o aceitarão e nem dirão muito obrigado) como não será investido em assegurar o futuro do país, assegurando que está preparado para a transição energética que é cada vez mais inevitável. Ao mesmo tempo, as emissões de CO2 irão provavelmente disparar (se isso não acontecer será apenas e só porque há empresas que não são míopes e percebem a importância de investir agora na transição energética) o que fará com que algumas das áreas de principal apoio para os republicanos sejam afectadas: Florida irá afundando, o sudeste do país sofrerá cada vez mais furacões, or tornados no centro do país aumentarão de frequência e intensidade, etc. Suponho que desde que a Califórnia continue a arder, isso não os incomode.

E finalmente chegamos aos custos humanos. Milhões irão sofrer. Pessoas, seres humanos, cujo único crime foi fazer o que os antepassados de milhões de americanos fizeram: fugir em busca de uma vida melhor. Também muitos outros que não poderão pagar os custos com a saúde. E depois todos os outros de quem os republicanos não gostarem e que perseguirão sem piedade.

E o aparelho judicial não ajudará. No Supremo Tribunal imagino que Thomas e Alito se retirem para dar lugar a juízes semelhantes mas mais jovens. Sottomayor talvez aguente a sua saúde mas daí talvez não. Pode ser que no final da sua segunda presidência Trump tenha 7 juízes. E há que depois encher os restantes lugares de juízes federais com mais uns quantos lealistas (como Aileen Cannon) que o ajudarão no que puderem. E provavelmente apioarão medidas para restringir o voto de (em) adversários políticos, para cumprimir a promessa a um grupo de cristãos na campanha que não precisariam de voltar a votar. Claro que tudo isto poderá levar a reacções de protesto, por isso ajuda ter alguém como Hegseth à frente do Pentágono e que não hesitará (entre garrafas de vodka) em despedir qualquer militar que não cumpra ordens, inclusivamente de disparar sobre protestantes.

Internacionalmente ele irá provavelmente tentar de facto acabar com a guerra na Ucrânia sem pressionar excessivamente Zelenski, mas como Putin não quer saber, não consigo imaginar um cenário em que Putin não tenha o essencial daquilo que quer. Verdade seja dita que isso não será particularmente por culpa de Putin: se Biden queria de facto ajudar a Ucrânia devia tê-lo feito a tempo e horas. Neste momento o país já só quer sobreviver. Só que o acordo final irá provavelmente reforçar Putin, que verá muitas sanções desaparecerem aos poucos e acabará numa posição de força. Do outro lado da Ásia, os sul-coreanos e japoneses verão provavelmente Trump dizer-lhes que terão que se desenrascar sozinhos, o que os levará a desenvolver capacidade nuclear. Taiwan poderá ser invadida antes do final da década, dependendo daquilo que Trump faça (isso é mais provável hoje que em qualquer momento nos últimos 30 anos). Netanyahu irá possivelmente arranjar mais uns conflitos para se manter no poder e justificar atacar mais uns vizinhos (como já está a fazer na Cisjordânia, agora que tem uma trégua com o Hamas) e manter a temperatura no Médio Oriente elevada. Só não sabemos se irá atacar o Irão ou o Irão irá decidir meter todos os ovos no cesto de uma ofensiva antes que fique mais fraco. Mas é um facto que, pelo menos neste aspecto, Trump na Casa Branca reduz a possibilidade de um conflito (embora aumente a possibilidade que seja nuclear).

E, claro, as ordens mundiais foram às urtigas. Neste mundo futuro, em que os EUA irão declinar, a China continuará a crescer porque conseguiu - pelo menos até ver - a quadratura do círculo: compensar o declínio e envelhecimento populacional (inevitáveis depois de decadas de políticas de restrição da natalidade) com o outsourcing (esta palavra outra vez) de muitos dos recursos e mão de obra a outras partes do mundo.

A Europa? Bom, antes de mais tem que se armar e aprender que precisa de um exército europeu. depois precisa de compreender que só a tecnologia a safará. E finalmente necessita de entender que o seu período de dominância foi apenas umcurto período na História Humana e consequênica de uma colonização que sugou os recursos às partes do mundo que os tinham. A Europa é uma região com poucos recursos naturais e se não souber utilizar os seus recursos humanos (e absorver alguns novos) não avançará. A única coisa que se pode dizer é que, pelo menos por agora, ainda sabe que o caminho para o futuro é verde, até pelas tecnologias que está a abrir. Mas terá que aceitar que no jogo da corda entre EUA e China, e ameaçado por potências nucleares essencialmente nazis como a Rússia, terá que se submeter a um papel de subordinado pelo menos por ums décadas.

Sou um pessimista, sei-o. Espero que este post ainda aqui esteja daqui a uns 20 anos para me mostrarem a parvoíce, para eu mostrar aos meus filhos que a idade não confere necessariamente sabedoria, antes confere maus fígados. Mas...

É uma imagem desoladora? Sim, é, mas é a imagem que Trump está a dar.

Um apanhado de reflexões

João André, 13.11.24

1. Há pouco mais de um mês fez um ano do ataque (pogrom) do Hamas a Israel. Escrevi sobre o assunto na altura e citei uma frase que tinha lido: «o Anjo da Morte lambe os beiços». Um ano mais tarde a única coisa que dá vontade de dizer é que essa frase ficou aquém da realidade. Em Gaza a contabilidade de mortos anda nos 43 mil a 47 mil desde há uns meses, apesar de sempre que leio as notícias haver mais uns quantos a morrer (entre 5 a 50 em cada dia que leio). A maioria dos reféns continua em Gaza e os israelitas supõem que um terço deles terão perdido a vida. Não há solução à vista mas os generais parecem falar abertamente da expulsão de palestinianos do norte do território e ocupação do restante. Uma geração de palestinianos estará traumatizada/aleijada/radicalizada (não, não é um "riscar o que não interessa", todas serão verdade) para o resto da vida. Os israelitas estarão mais seguros por uns anos, antes do ressentimento ressurgir. Não falo em Genocídio como muitos fazem, porque siceramente não quero acreditar nisso, Mas parece-me óbvio que este governo israelita anda a dar tangentes ao conceito.

Pelo meio apareceram os outros episódios. Com o Irão, que tenta a todo o custo manter-se afastado do conflito (pelo menos de forma directa) e tenta apenas mostrar-se através dos seus facínoras de aluguer. Com o Líbano, que por causa de um exército de rebeldes radicais que não tem força para eliminar está a ser massacrado por um Israel que lhe diz para expulsar o Hezbollah (como se o conseguissem). E com os Hutis no Iémen, que às ordens dos aiatolás loucos de Teerão dão razões a Israel (e EUA e outros) para estenderem um confito que não podem ganhar.

E o Anjo da Morte enche a barriga.

 

2. Na Ucrânia chegou-se a um impasse onde a Rússia não tem conseguido ganhar território suficiente para acabar com os ucranianos mas sabe que o tempo joga a seu favor. Mesmo que os EUA conseguissem o seu apoio de forma indefinida (coisa que não acontecerá - já lá chego), os russos andam a trazer norte-coreanos e daqui a uns tempos se calhar também bielorrussos e outros para engrossarem as suas fileiras. Putin está à espera que a Ucrânia seja forçada a ceder ou que caia de podre. Não estará errado. A questão é o que fará depois, com forças armadas mais modernizadas, treinadas e uma infraestrutura mais fortemente orientada para a guerra, especialmente aquela que contorna a sanções internacionais. Se eu vivesse nos países fronteiriços não dormiria descansado.

 

3. No Sudão vai prosseguindo uma guerra civil que até ao momento poderá já ter matado até 150 mil pessoas, deslocado perto de 8 milhões e criado mais de 2 milhões de refugiados. Ao pé disto os outros que referi acima parecem ser da segunda divisão. Mas não ligamos, porque está mais longe e não queremos saber. Não há nada de especial que nos envolva a nós. A não ser... aquela coisa chata... de seres humanos a perder as vidas.

 

4. Nos EUA Donald Trump lá venceu as eleições. O primeiro criminoso condenado em tribunal, responsável por uma tentativa de subversão de eleições livres, que afirma ir ser ditador apenas no primeiro dia (nem precisaria de o ser nos outros), que tenta abertamente reduzir direitos de tudo o que não sejam as pessoas que ele entende serem as melhores: habitualmente brancos, depois os não brancos de quem ele goste, no fundo virão as mulheres em geral e especialmente as mulheres não brancas de quem ele não goste. Só que foi eleito de forma democrática e isso deve ser respeitado. Temo pelo seu país (embora não goste muito dele) e temo muito pelo mundo. Estou à espera de uma presidência transaccional, onde tudo é negociável desde que beneficie os EUA (ou a ele pessoalmente, esta opção é obviamente a preferível) e onde tarifas, saídas de acordos e mandar amigos e aliados às urtigas serão moeda corrente. A Ucrânia será atropelada e forçada a aceitar seja lá o que for. Taiwan deixará de receber garantias reais. Coreia do Sul e Japão poderão estar neste momento a avaliar a maneira mais rápida de obter armas nucleares. E quando Trump se for embora (se fosse mais novo talvez tentasse mudar a constituição para poder chegar ao terceiro mandato) terá tudo para ter deixado a extrema-direita ao leme do país.

 

5. Na Europa veremos o mesmo. Os bilionários europeus olharão para o que se passou nos EUA - a caminho de uma oligarquia - e perguntarão se não poderão implementar o mesmo programa. A extrema-direita será a segunda força na Alemanha a partir de Fevereiro. Na Holanda já é a primeira força e estará à espera de ver os seus parceiros de coligação a deitá-la abaixo para forçar eleições para reforçar o seu poder. Na França Le Pen poderá finalmente atingir o seu desejo de ser presidente. Na Itália já lá chegarão, talvez cedo de mais e a precisar de suavizar as coisas para já (Salvini não seria tão simpático como Meloni). Em Portugal estou para ver o que se passará. O que imagino no entanto é uma classe de super-ricos a financiar esses movimentos para que depois possam ter carta branca para fazerem o que quiserem sem esse inconveniente de regulamentos.

 

6. E nisto o planeta vai aquecendo. Podemos esquecer os 1,5 ºC, que já estão atingidos. Não de forma oficial, para isso é preciso ter uma ou duas décadas de temperaturas consistentemente nesse patamar, mas na prática já ninguém acredita realmente que escapamos. As ondas de calor continuam. As cheias também. O mesmo para tempestades e tornados e furacões. E não vamos parar aqui. Tudo o que os climatólogos andam a dizer há décadas começa a acontecer. E vai piorar. Porque não aprendemos.

 

7. Chegado aqui poderei ter tentação para culpar alguém. Talvez a esquerda, como neste post abaixo? Ou a direita, que adoptou bandeiras da extrema direita (como a imigração) sem perceber que o eleitorado tende a preferir o original à fotocópia? Ambos? Os social media que são hoje já meios de comunicação dominantes? Os bilionários que dão dinheiro a quem lhes prometer que podem continuar a enriquecer-se como quiserem? Não.

 

8. A culpa é de sermos essencialmente os mesmos seres humanos que há umas dezenas de milhares de anos ainda se escondiam em cavernas, tinham medo de fogo, comiam como se não houvesse amanhã quando encontravam a comida, se fiavam em grupos pequenos onde toda a gente estivesse ligada por laços de família ou fosse do mesmo clã, onde qualquer conforto era imediatamente agarrado quando surgisse. Somos humanos das cavernas mas dominámos o fogo, o átomo, aprendemos a atravessar oceanos, a voar, a ir ao espaço, a comunicar a enormes distâncias, a ligarmo-nos entre todos. E fizémo-lo de forma cada vez mais acelerada. Os nossos cérebros não estão construídos para isto. Agora acreditamos que construir cérebros externos (IA) ou melhorar os que temos (neurolinks) vai resolver o problema. Não irá.

 

9. Termino com a mensagem pessimista. Iremos provavelmente ter grandes catástrofes em breve. Sim, sou um profeta da desgraça e espero estar enganado. Mas creio que atingimos o limite do que podemos fazer da forma como o temos feito. A nossa história (humana) está repleta de picos de prosperidade, cultura, economia, etc., seguidos de uma catástrofe ou outra, natural ou autoinfligida. Acredito que estaremos lá perto. Mais uma vez, muito desejo que alguém me aponte este post daqui a uns 50 anos, comigo ainda vivo, e me demonstre como estou a ser estúpido. A sério que sim. Mesmo que isso signifique que toda a minha ideologia era uma parvoíce.

Só que...

Livros de cabeceira (9) - série II

João André, 21.09.24

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Há 11 anos, quando escrevemos a primeira série, apresentei a fotografia do meu monte de leitura (um pouco arrumado para se fazer à foto) ao lado da cama. Não existia cabeceira porque tinha um apartamento onde estava durante a semana perto do trabalho, na Alemanha, sendo a verdadeira casa (a Thuis no neerlandês e zu Hause no alemão, o bom e velho Lar português) nos Países Baixos, onde regressava ao fim de semana, feriados, férias e quando conseguia estender a estadia trabalhando a partir de casa.

Estando agora em minha casa, mesmo minha e verdadeiramente Lar onde está a família toda (se bem que continue a ser nos Países Baixos e o escritório na Alemanha), posso colocar uma fotografia com mesa de cabeceira, se bem que os livros se encontram na prateleira de baixo. Teve que ser reorganizada e tem vários livros não porque eu leia assim tanto - até leio menos que no passado, infelizmente - mas porque é partilhada com mais uma leitora. Por isso temos uma mistura algo eclética e só é estranho que não estejam ali mais línguas representadas.

Comecemos de forma sucinta com os da coocupante da mesa de cabeceira: East of Eden, de John Steinbeck e que não precisa de apresentações. Putt's Law and the Successful Technocrat, escrito por Archibald Putt (pseudónimo) e que retrata de certa forma o inverso mas também um complemento ao Princípio de Peter (que numa organização meritocrática as pessoas são promovidas até atingirem o seu nível de incompetência). A Lei de Putt tem duas bases, 1) a Tecnologia é dominada por dois tipos de pessoas: as que a dominam mas não a gerem, e as que a gerem mas não a dominam; e 2) uma hierarquia em organizações tecnológicas irá com o tempo expulsar para cima os incompetentes, para onde não podem fazer estragos na Tecnologia, e manter os competentes nos níveis inferiores, onde sabem o que estão a fazer. É um livrinho engraçado, curto e que se lê depressa, embora como em quase todos os livros deste género, quem o entenda bem também poderia ler o essencial num post de blog. O terceiro livro que ali cohabita é How Successful Engineers Become Great Business Leaders, livro que ainda não abri e por isso nada posso dizer sobre ele.

Quanto aos meus:
Ainda ali anda A Cidadela Branca, de Orhan Pamuk, que acabei há não muito tempo e ainda não me decidi a arrumar na estante. É livro que ainda vou digerindo e já dei por mim a voltar às últimas 15 páginas para as reler, que é onde Pamuk brinca com o leitor, o leva numa viagem da montanha russa mais estonteante que há e causa questões sobre a nossa sanidade. Neste livro, Pamuk cria todo um cenário e uma história sobre duas personagens, ambas sem nome, dinâmicas entre as duas, adiciona personagens secundárias - todas sem nome, apenas títulos - só para finalmente chegar ao que quer fazer nas últimas páginas. É quase um livro de suspense mas sem suspense, muito bucólico, até às últimas 20 páginas. Aí dá a volta ao leitor. Acabei-o por pura coincidência na Turquia, o que me pareceu muito adequado à situação.

Tenho depois o livro que comecei agora, O Segundo Coração, de Bruno Vieira Amaral. É um livro de pequenos textos - poderiam ser posts - sobre episódios e recordações da sua infância e juventude. Sendo o autor apenas uns 3 anos mais novo que eu - e tendo eu escrito também alguns textos sobre a minha infância e juventude - o tema atraiu-me bastante e os pontos de partida para as suas reflexões são facilmente identificáveis. Só que o livro sai-me agridoce. Como escrevi, reconheço muitas das experiências - as corridas de carrinhos, os jogos com bonecos, o hino nacional no final da transmissão da RTP1 - mas não me identifico de forma nenhuma com as reflexões que as recordações provocam e até as vejo como estranhas, como não compreensíveis - não a sua explicação, que é clara, mas a razão por Vieira Amaral pensar dessa forma. Claro que nada disto estraga o livro, mas reduz-me o prazer de o ler, pelo que vai aos soluços. Aquilo que me vai sempre maravilhando é não só a capacidade de Vieira Amaral de se lembrar de imensos pormenores dos episódios que descreve mas também de ser capaz de invocar tantos episódios. Isso é algo que tem dificultado a minha série e só pela inspiração já vale a pena ler o livro.

Tenho por último um livro que já referi antesThe Making of the Atomic Bomb, de Richard Rhodes. Um livro que recebeu o prémio Pulitzer em 1988. Tenho-o na mesa de cabeceira para ir lendo de vez em quando, porque já o conheço bem. Só que é tão rico em detalhes, tão dedicado às personagens, à Ciência, a todo o cenário da sua época e até ao pensamento e Filosofia de algumas das sua personagens, que é quase impossível ficar cansado dele (também tem cerca de 750 páginas sem referências).

Poderia talvez adicionar os audiolivros que vou ouvindo no telefone, mas não só não os ouço tanto na cama - prefiro o carro, comboio ou avião, quando em viagem - mas também não me apeteceu extrair as imagens para colocar. Deixo assim os títulos que ando a ouvir ou ouvi mais recentemente: The Martian e Project Hail Mary, ambos de Andy Weir; Gulag - a History, de Anne Applebaum; Molly's Game, de Molly Bloom; Look Who's Back, de Timur Vernes (ainda não comecei a ouvir a versão alemã); The Lord of the Rings, de J. R. R. Tolkien.

Em resumo: a minha cabeceira é local onde pairam livros durante semanas e às vezes meses e onde acabam também muitos livros infantis, embora de forma mais temporária. É um sítio onde gosto de ir perder uns minutos, infelizmente poucos porque o sono toma conta dos meus olhos com facilidade. Ainda assim, é uma bela forma de fazer descansar o cérebro e me levar a outros mundos e outros conceitos antes de dormir. E não se pode dizer que seja uma má forma de perder a consciência - e depois adormecer.

Ronaldo e Harden

João André, 11.09.24

Há nas análises à NBA um comentário que surge com frequència: a Época Regular (ER, Regular Season) não interessa. Claro que isto é rapidamente desmentido: são 82 jogos por equipa, os jogadores desenvolvem sistemas, química, dinâmicas, os treinadores afinam pormenores e procuram as melhores formas de explorar os seus pontos fortes e limitar os pontos fracos. São também a principal parte da acção do ano e ainda oferecem o interesse de atribuir os prémios da ER: MVP, DPOY, ROY, All-NBA, All-Defensive, etc. Para combater o menor interesse das equipas e audiências, a NBA até adicionou um torneio durante a ER para motivar mais as pessoas. No entanto toda a gente percebe o conceito da ER: as equipas mais fortes afinam motores para os play-offs (PO), as do meio tentam chegar aos PO, as mais fracas trocam jogadores, procuram jogadores no Draft e jogam com o tecto salarial para poder crescer no futuro. O interesse passa portanto muitas vezes para os cerca de 2 meses a partir de meados de Abril quando começam os play-offs.

Isto soa a algo que já vimos, não? Talvez nas competições europeias, especialmente na Liga dos Campeões, a uma fase de pré-eliminatórias que só interessam aos adeptos das equipas nelas envolvidas, a uma fase de grupos que queremos excitante mas regride habitualmente para um passeio para os mais poderosos - com uma ou outra surpresa a polvilhar a acção - e só começa realmente a excitar no final do Inverno, quando os jogos a eliminar surgem a sério. O mesmo se pode dizer dos jogos de selecções, os internacionais. Os Campeonatos da Europa e do Mundo têm crescido de tal forma em tamanho que só desastres eliminam os favoritos (olá Itália!) e mesmo quando não têm bons torneios, acabam por ter mais oportunidades para se apurarem através dos play-offs de "repescagem".

No entanto é nos play-offs (NBA) e fases finais (futebol) que os torneios são ganhos e é ali que tudo muda. Na NBA, a rotação de jogadores que anda pelos 10-12 jogadores na ER passa para uns 7-8 nos PO para evitar ter elos mais fracos a explorar. As fraquezas das equipas adversárias - jogadores que não defendem bem, jogadores com lesões, fraqueza nos ressaltos, etc., são exploradas impiedosamente para se obterem quaisquer vantagens. As tácticas das equipas são afinadas ao mais infímo pormenor e ajustadas de acordo com o adversário e o jogo anterior. No futebol, o mesmo se passa, especialmente nas fases finais de torneios de selecções. As semanas antes do torneio são o único período de tempo que seleccionadores têm para preparar as equipas e afinarem as suas tácticas. Nesses momentos, os mais bem sucedidos tendem a ser pragmáticos e adaptam tácticas aos jogadores que têm ou simplificam tudo e seguem para um estilo mais defensivo, dado que é mais fácil de preparar que movimentos atacantes mais fluidos.

O que também se vê em play-offs e fases finais é um desaparecimento de estrelas. Na NBA isso tem-se visto em jogadores como Joël Embiid, um enormíssimo jogador, altamente dominante, mas que tem o maus hábito de desaparecer nos play-offs, em parte devido a problemas com lesões. O mesmo se viu durante anos com James Harden, que marca pontos como se aquio fosse a coisa mais fácil do mundo na ER mas depois desaparece nos PO. Há razões individuais para isso, claro - Embiid tem frequentes lesões e Harden tem um jogo tão centrado em si mesmo (os americanos usam o termo heliocentrico) que poderá estar esgotado quando joga nos PO. No entanto também é verdade que se na ER as defesas não irão necessariamente dar 100% para evitar que um gigante de 2.13m, 127 kg e pés de bailarina chegue ao cesto, nos PO pará-lo será não só uma necessidade quando a parada sobe, mas é também um ponto de honra, mesmo para os jogadores mais modestos (assumindo que entram no court). E isto sem falar nas mudanças de tácticas para parar os melhores jogadores adversários (ou, no caso de alguns como Nikola Jokić, aceitar que não podem ser parados mas então limitar a produção dos companheiros de equipa).

A solução mais fácil surge quando o adversário é heliocentrico, ou seja, quando tudo anda à volta da sua estrela. É o caso das equipas dos Houston Rockets que tinham James Harden. A solução passava por lhe tornar a vida tão complicada quanto possível, atacá-lo na defesa para o cansar e esperar que implodisse. Só as equipas que saíam dessa lógica conseguiam depois ultrapassar os seus adversários, coisa que é difícil no basquetebol quando há apenas 5 jogadores de cada lado em cada momento.

No futebol podemos ver o mesmo. Os jogadores que destroem os adversários que têm pela frente, que dominam jogos, marcam golos, dão assistências e ganham prémios individuais. Alguns só o fazem com equipas mais fracas, outros fazem-no com qualquer tipo de adversário. No entanto, quando chegam às fases finais, quando cada jogo é de grande importância, o jogo torna-se mais difícil. Os espaços desaparecem. Os adversários lutam como se as suas vidas dependessem daqueles 90 minutos e trocados. Mesmo os adversários mais fracos tornam a vida mais difícil aos favoritos e podem, pelo menos num dos jogos, deitá-los ao tapete. É nesses momentos que as estrelas se vêem, costuma dizer-se, mas isso é mais cliché que realidade. Desde 1986 e 1990 (Maradona) que não há um jogador que carregue a equipa às costas para uma vitória ou final. Há, claro, jogadores que brilham em alguns momentos, até mais que uma ou duas vezes, mas nenhum carregou a sua equipa do início ao fim e/ou a salvou consistentemente quando precisava. Os vencedores são as equipas que se adaptam, onde as estrelas percebem quando se devem sacrificar para favorecer a equipa, onde o seleccionador faz ajustes para corrigir erros, reduzir riscos e explorar fraquezas adversárias. E, como o futebol tem 11 jogadores para cada lado, as estrelas serão menos decisivas que no basquetebol, onde tocarão na bola a cada 15-30 segundos.

Isto para falar de quê? De Cristiano Ronaldo. Ronaldo é um dos maiores jogadores da história do futebol e consensualmente o seu maior goleador. Os 900 golos (e 901º uns dias depois) oficiais que atingiu na carreira na semana passada é um número que nem sequer faz sentido escrever. Isto em cima dos restantes títulos individuais e colectivos que conquistou. A discussão sobre quem é o melhor do mundo de sempre (ou dos últimos 15 anos) continuará mas o seu nome estará sempre na discussão. Pegando na pergunta de Ronaldo «E o meu passado?», a resposta só pode ser: é único. A pergunta é: e o presente? É que a meu ver Ronaldo, hoje em dia, assemelha-se acima de tudo a um James Harden. Um jogador que continua a marcar muitos golos na sua liga (mesmo que de terceira categoria) e até nos jogos de qualificação internacionais, mas que quando chega às fases finais vai desaparecer, porque o jogo sobe de dificuldade, os adversários se preparam para ele e a equipa, sob as ordens de Martinez, parece jogar principalmente para ele. Note-se: Ronaldo não deixou de saber marcar golos. Só que a idade não é só um número, é uma ralidade. Se fosse só um número Ronaldo continuaria no Real Madrid e a ganhar Ligas dos Campeões. Isto nada tem de mal. Toda a gente envelhece, se torna mais lenta e menos capaz fisicamente, até espécimes únicos como Ronaldo. Só que fingir que assim não é dá em resultados como os do último Europeu: uma equipa pejada de talento (tanto que deixa em casa nomes que seriam titulares em mais de 50% das restantes selecções) que afunila o jogo para a sua estrela e torna o jogo fácil de defender.

Apesar de eu ser da opinião que Ronaldo, com o que deu à selecção, deveria anunciar a sua retirada da mesma, receber uma homenagem (idealmente no Estádio de Alvalade) com enorme festa, pompa e circunstância (talvez a 10 de Junho para receber meia dúzia de comendas de uma só vez), não significa que seja essa a única solução. Ronaldo ainda contribui de forma óbvia para Portugal. O seu jogo pode passar por sair do banco e jogar num sistema de dois avançados para poder sobrecarregar defesas ou, uma vez que continua a ter uma certa gravidade (no sentido físico de atracção de outros corpos), pode seguir para outros terrenos e arrastar defesas e assim abrir espaços para colegas (como Morata, Giroud e Guivarc'h fizeram pelas respectivas selecções quando venceram títulos). Ser portnto uma diversão. Mas isso significa sacrificar-se pela equipa, aceitar menos protagonismo para que a selecção beneficie*. Se é capaz de o fazer não sei, mas detestaria vê-lo como um James Harden, que à medida que envelhece e perde velocidade, as equipas adversárias passam a ver como uma vantagem, em vez de um risco.

* - já agora, isto lembra-me de um jogo de Portugal numa fase final. O adversário tinha identificado William Carvalho como o jogador que conduzia a bola a meio campo e como tal talvez o jogador chave a eliminar do tabuleiro. Para isso tinham designado um jogador para se encostar a William e nunca sair de perto, mesmo quando a bola andava noutros terrenos. Tendo percebido isto muito depressa, William Carvalho começou a arrastar o médio que o marcava para locais onde a bola não estivesse, assim criando um jogo de 9 contra 9 (jogadores de campo) que beneficiava Portugal e criando um buraco no meio campo adversário. Um exemplo claro de inteligência e sacrifício pessoal.

A fossa séptica social

João André, 30.08.24

Não tenho Twitter, Instagram ou Tiktok. Tenho Facebook mas com audiência altamente limitada e quase e só para manter contactos com amigos. Menos que 100 ligações (e algumas porque mo pedem com mais frequência que aquela que tenho paciência para recusar).

Tenho LinkedIn para assuntos profissionais e tento escrever o mínimo possível, até porque se tem vindo a tornar um novo Facebook. Fora isso só escrevo aqui, embora frequentemente pense em criar novo espaço para a minha escrita.

Sou assim porque a internet, e especialmente as redes sociais, se têm tornado uma fossa séptica de opiniões. Quando antigamente a comunicação era mais pessoal, a maior parte das pessoas demonstravam respeito uma para com as outras ou pelas opiniões, ou mantinham uma distância saudável em relação aos que não o faziam. A internet veio mudar isto. O anonimato, ou pelo menos a falta de contacto pessoal, tem feito com que o respeito por outros e opiniões se tenha reduzido. É quase universal e eu, por muito que o tente evitar, não sou alheio a isso.

No entanto isto custa-me muito. Comentários negativos não me custam, mas trolls com comentários parvos sim. O meu post abaixo (que entretanto decidi limpar) é um exemplo que até quase parece positivo. Se calhar o problema é meu. Certamente que o é. Por isso decidi acabar com isto de chafurdar na lama.

De ora e diante, os meus posts, poucos e raros que sejam, serão apontados a assuntos pouco controversos. Se abordar algum aspecto mais complicado (como fiz antes), ou deixarei os comentários fechados ou completamente abertos sem moderação. Deixarei de olhar para eles e deixarei de comentar. A minha saúde mental não mo permite. Quem quiser chafurdar, a caixa está abaixo. Eu abri a porta, mas não esperem que eu olhe para a fossa.

Quando 1960 parece ser mais distante que 64 anos

João André, 29.08.24

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Mulheres a participar na competição de Tiro com Arco nos Jogos Olímpicos de St. Louis em 1904.

Não me saiu bem o post e fartei-me do que li nos comentários. Quem quiser o post (não sei para quê), pode pedir-mo por mail que está guardado. Quem quiser comentar, que o faça, está a caixa ali em baixo, disponível. A minha sanidade mental faz-me apagar o texto do post. Obrigado pela atenção.

Nem Hollywood se atreveria

João André, 22.07.24

Hollywood anda a exagerar. Depois dos livros, videojogos, antigos filmes e séries e até bonecos, vem agora o uso de IP (propriedade intelectual) pública. Esta série sobre as eleições americanas de 2024 até prometia. Dois candidatos bem diferentes, com muito vinagre entre eles, numa dicotomia clara, mas com personagens cheias de histórias pessoais muito complexas e com personalidades pejadas de falhas. Um ambiente muito carregado e grande excitação. Até arranjaram actores muito parecidos com os políticos que representam.

Só que exageraram. Uma prestação ridícula num debate, um atentado, uma revolta de um partido, culto da personalidade noutro, exageros dos extremos nos dois lados e agora a história de um dos candidatos desistir a um mês da sua convenção. Ainda quero ver os próximos episódios, mas isto é o hábito dos produtores de meter todas as ideias no argumento. Aquilo não rola bem, não é verosímil, é coisa a mais. Espero que se foquem novamente no diálogo, que nisso estavam fraquitos.

E agora ler o jornal... O quê?!?!?!

Umas notas sobre o Euro de Portugal (pessimista e chato)

João André, 02.07.24

Há uns dias comecei um post com observações sobre este Europeu de futebol mas depois não o acabei. Vai agora para o lixo e deixo apenas umas outras sobre Portugal, que se apurou ontem para os quartos de final da competição.

Pessoalmente não gosto de dizer que "Equipa X é uma das 8 melhores da Europa" com base no apuramento. Primeiro porque se ser uma das melhores depende de penalties, então o critério faz pouco sentido. Segundo porque tal equipa não joga com nenhuma das que foram eliminadas e que, se tivessem defrontado outro adversário, talvez estivessem nos últimos 8. Digamos antes: Portugal está nos últimos 8. Penso que basta.

Seja como for, Portugal é em teoria uma das melhores 8 deste campeonato, até uma das melhores 5 (a par de França, Alemanha, Espanha, Inglaterra),. O chato é que é preciso mostrar isso em campo (coisa com que a França e a Inglaterra também têm tido dificuldade). O que torna Portugal uma equipa tão boa? Uma enorme quantidade de jogadores de altíssimo nível e em múltiplas posições. A única coisa que Portugal nãotem neste momento é - tem termos de qualidade futebolística actual - uma superestrela.

E é aqui que a discussão obviamente resvala para Cristiano Ronaldo. Quem me tenha lido no passado sabe que eu não gosto muito dele. Não gosto dos ares, da atitude de superestrela, da obsessão com recordes e individualismo. Não há no entanto que negar certas coisas: é de longe o melhor jogador português de todos os tempos, é um dos melhores jogadores do mundo de todos os tempos, talvez o melhor goleador puro de sempre, adora jogar pela selecção e é provavelmente o melhor jogador internacional de sempre, tem uma atitude profissional impecável que o mantém numa forma física incrível mesmo à beira dos 40 anos. Há no entanto mais 3 coisas que são para mim claras: 1) não é nem nunca foi um bom líder (exemplo sim, líder não); 2) já não tem nada que se pareça com a velocidade de ponta, aceleração e velocidade de execução do passado, e mesmo o salto só sai às vezes; 3) não tem a acuidade de antes de ter ido para a Arábia Saudita.

Tudo isto tem sido visível no Euro, onde os colegas de equipa o têm servido múltiplas vezes com excelentes bolas mas ele tem desperdiçado as oportunidades de forma que seriam vistas com incredulidade há apenas 3-5 anos. Para ser claro: não falo do penalty falhado. O penalty não foi mal marcado, foi ao canto e com força e só não foi alto. Só que Oblak adivinhou o lado, lançou-se bem e colocou bem os braços. Mérito de Oblak, difícil ver o demérito de Ronaldo. No entanto as suas declarações no final do jogo demonstram o problema: «Durante um ano não falhei um penálti». A maior parte deles terão sido na Arábia Saudita, um campeonato de terceira linha (para ser simpático) onde as estrelas (a maior parte delas em fim de carreira) estão para receber salários milionários enquanto fazem jogging e os restantes jogadores são ou estrangeiros medianos ou locais de nível habitualmente muito baixo. Isto ajuda a manter uma boa condição física (e é por isso que Ronaldo ou Kanté estão na sua melhor forma física desde há muito) mas não para manter os níveis de competição necessários. E isto vê-se vezes sem conta em Ronaldo, nos tempos de salto, na dificuldade de gerir a robustez dos defesas adversários, na incompreensão de não receber decisões em seu favor, etc.

Isto não é culpa de Ronaldo. Ele esforça-se sempre ao máximo e isso fica claro em cada jogo. Mas o facto de tudo isto resultar em Portugal estar muit abaixo das suas possibilidades é culpa de Martinez, o seleccionador. E sim, Portugal está a ter um Euro fraco. A República Checa foi vencida nos descontos e com alguma sorte. Os turcos venceram-se a si mesmos e Portugal perdeu com uma Geórgia que foi das minhas selecções preferidas mas tem um nível muito limitado (e não foram só os erros de António Silva, o qual até poderia já meter-se num avião e ir de férias porque não vai jogar mais). E nos oitavos uma Eslovénia bem organizada mas que deveria ter sido vencida confortavelmente.

Martinez infelizmente desenhou uma estratégia que começa em Ronaldo, passa por Ronaldo e acaba em Ronaldo. Quando a bola entra a área, há normalmente dois jogadores para a receber: Ronaldo e mais alguém. Não há um esforço para sobrecarregar os defesas na área com jogadores vindos de trás. Passa tudo por não confundir as coisas e meter a bola para Ronaldo. Também se vê que Martinez não só desenha a estratégia para Ronaldo como depois tem uma hierarquia definida, com Bruno Fernandes e Bernardo Silva logo a seguir. Ontem nunca na vida deveria ter tirado Vitinha, que era o motor do meio campo e mantinha a bola a mexer e conseguia sempre fazer passes a penetrar as linhas defensivas. Ou, se estivesse cansado, que metesse João Neves ou Matheus Nunes, jogadores semelhantes. Fazer recuar Bruno Fernandes para longe da área é um disparate. Se quisesse fazer aquela troca, a melhor opção teria sido meter Bernardo Silva no meio campo (faz a posição com frequência no Manchester City), manter B. Fernandes onde estava, enviar Jota (ou Ronaldo) mais para a esquerda e Leão para a direita. No entanto até deveria ter feito sair Fernandes ou Silva, que estavam em rendimento mais baixo nesse momento.

Outras coisas que não se entendem: Pedro Neto a lateral/médio/ala esquerdo, coisa que provavelmente nunca fez; Nélson Semedo a entrar e operar numa espécie de posição de avançado interior direito (!), Cancelo com liberdade para ser médio (tudo bem) sem jogador para compensar as suas subidas (Palhinha é excelente no centro, não é tanto jogador para dobras nas laterais).

E sempre, mas sempre, não permitir que Ronaldo, B. Fernandes e B. Silva sejam substituídos.

Para o jogo com a França, Mbappé provavelmente vai pensar que se encontra na A7 (autoestrada que vai de Hamburgo - lugar do jogo dos quartos - para o sul da Alemanha e seria provavelmente usada para quem se dirige para Munique - lugar do jogo seguinte das meias). Cancelo a subir, pouca compensação de outros e Portugal a tentar ter posse de bola. Penso que Mbappé estará a aquecer os motores. A única coisa que poderá estar a favor de Portugal é que a França também não marca: 3 golos, 2 foram autogolos e 1 foi um penalty muito jeitosinho. A ver vamos na sexta feira.

Os meus destaques para já: Diogo Costa (depois de ontem ele até tem direito a um frango), Pepe (a fífia de ontem veio quando estava exausto), Ruben Dias, Nuno Mendes, Palhinha, Vitinha. Os outros? Nem por isso.

Estatística contra-intuitiva

João André, 12.03.24

Noutras alturas publiquei alguns posts na área da ciência. Como engenheiro químico, a ciência e a tecnologia fascinam-me, desde a Química e Biologia até às Engenharias. Uma área que contudo habitualmente não me fascina é a Matemática. A Matemática nunca me deixou deslumbrado: nunca fui mau nessa área, mas também nunca tive um interesse particular nela que me levasse a ficar motivado a aprender mais. Aprendi o necessário para poder continuar o meu interesse nas áreas que dela faziam uso, mas não mais. Se a Matemática é a linguagem da Ciência, eu seria como que alguém fascinado em Literatura mas sem interesse em Filologia ou Etimologia (simplificação, eu sei, serve apenas para comparação).

Aparecem no entanto de tempos a tempos alguns casos que se tornam fascinantes do ponto de vista matemático, talvez porque têm sempre uma aplicação prática (parecem ser estes os casos que me fascinam). Um deles é o Problema de Monty Hall. Monty Hall era um apresentador de televisão nos EUA (embora ele fosse originário do Canadá) que tinha um programa chamado Let's Make a Deal. Neste programa os concorrentes eram colocados a certa altura perante a seguinte situação: Monty Hall mostrava 3 portas e explicava que atrás de uma delas estava um carro. Não só um carro qualquer, mas o carro dos seus sonhos, um descapotável vermelho, lindo e potente. Atrás das outras duas portas estariam cabras. O concorrente era então convidado a escolher uma porta.

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Depois de o concorrente escolher a sua porta (vamos dizer que era a porta número 1), Monty Hall abriria uma das outras portas. Sendo ele o apresentador e tendo ele perfeito conhecimento do que estava atrás de cada porta, abria sempre uma porta com uma cabra. Neste caso vamos dizer que abria a porta número 3. Teríamos então o cenário de a porta 1 estar escolhida, a porta número 3 ter sido aberta e revelado uma cabra.

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Neste momento surgiria a proposta de Monty Hall. Ele convidava então o concorrente a fazer uma escolha. Manter-se na porta número 1 ou mudar a sua escolha para a porta número 2. E é neste momento que deixo a pergunta aos leitores: qual escolha tomariam e porquê? Tenho a resposta abaixo, mas gostaria de saber o que os meus leitores pensam.

 

 

Como dizer pogrom em árabe?

João André, 13.10.23

Amanhã passará uma semana desde o maior massacre de judeus desde a II GUerra Mundial. A palavra pogrom, que se desejaria banida depois da criação do Estado de Israel, voultou a ser invocada para fazer referência ao massacre de mais de 1.200 pessoas - note-se, pessoas - por uma organização não apenas terrorista mas, especialmente depois de 7 de Outubro de 2023 (o qual já vi referido como Sábado Negro) - uma organização que pode ser cada vez mais descrita como fascista ou até nazi.

Não há desculpas para o que aconteceu e procurá-las nos últimos anos de política israelita (ou de outros países no Médio Oriente) é menorizar o sofrimento de quem morreu ou foi ferido ou raptado, é familiar destas vítimas ou qualquer outra pessoa com coração que não esteja demasiado dessensibilizada para reconhecer o sofrimento de pessoas que nada fizeram para ser assim atacadas.

Quando olhamos para estes actos é normal para certas pessoas procurar justificações e para outras apontar o dedo simplesmente ao Mal. A realidade é que há sempre explicações, por preversas e repugnantes que sejam, como neste caso, que são vendidas pelos responsáveis como "justificação". Se a política de Israel em relação à Palestina não tem sido justa há já décadas, não há forma de justificar a "retaliação" do Hamas à mesma. Especialmente quando, pelo que vou lendo de comentadores que se debruçam sobre as políticas na região e mais dela sabem que eu, o Hamas pretendia especialmente evitar uma aproximação da Arábia Saudita a Israel.

Há 9 anos escrevi sobre este assunto em dois posts, numa altura em que Israel entrou em Gaza. Na altura considerei que a ameaça do Hamas era menor. Talvez tivesse razão na altura, mas obviamente que o tempo ou me explicou o quanto estava enganado ou mudou a equação. O que não muda são as consequências: após massacre de israelitas que nada mais faziam que viver as suas vidas, o exército israelita (Forças de Defesa de Israel, FDI) vai entrar num território onde a esmagadora maioria das pessoas também apenas pretende o mesmo. Como li hoje num artigo, "o Anjo da Morte lambe os beiços".

Note-se que isto poderá também ser parte do que pretende o Hamas. Se o FDI empurrar os palestinianos para o Egipto, vai possivelmente acabar a colocá-los entre a espada e a parede e a levar à indignação do mundo árabe. Suponho que seja essa a intenção do Hamas, para quem a população palestiniana não mais é que um campo de recrutamento e fonte de mártires da causa. O ódio do Hamas levou ao massacre de israelitas inocentes*. Uma retaliação cega de Israel, especialmente por odem de um fraco e incompetente Netanyahu, poderá fazer o mesmo a palestinianos. O Anjo da Morte, de facto.

Pergunto-me então, se no meio do sangue que já foi derramado e à espera daquele que ainda correrá, se os facínoras do Hamas saberão como dizer pogrom em árabe.

 

* Nota: não aceitarei qualquer comentário que seja ofensivo para com judeus, israelitas em geral ou palestinianos. Posso aceitar pontos de vista distintos em relação ao conflito, mas não sobre a moralidade do massacre. Quem não quiser respeitar este ponto de vista terá o comentário eliminado.

O beijo que ajudou a limpar a toxicidade

João André, 01.09.23

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Depois do Mundial de futebol feminino estive perto de escrever um texto. Foi o mundial mais bem sucedido de sempre, com mais espectadores, com mais entusiasmo, foi expandido para 32 equipas e várias das equipas estreantes deram excelente conta de si. A qualidade do futebol foi excelente e deu-me muito mais prazer que a esmagadora maioria das competições futebolísticas que vi nos últimos 10 a 20 anos. Muito sinceramente penso que quaisquer investidores que coloquem o seu dinheiro no futebol feminino terão um retorno enorme dentro de apenas 5 anos.

No entanto tudo isto foi ofuscado pelo caso com Jenni Hermoso e Luis Rubiales. Não descrevo o caso em si além disto: ele deu-lhe um beijo na boca sem ter qualquer razão para isso fora a sua própria vontade. Mas posso adicionar elementos de que a maioria da imprensa portuguesa não parece ter feito caso.

Há cerca de 1 ano, 15 jogadoras da selecção espanhola escreveram uma carta à Federação indicando que não queriam voltar à selecção enquanto certas coisas não mudassem. Acusaram a falta de profissionalismo, respeito, apoio, etc. Houve também uma pouco velada crítica ao seleccionador e a exigência implícita que ele fosse demitido porque elas não tinham confiança nele. Na altura a Federação espanhola fez finca-pé e as 15 jogadoras decidiram não voltar, ao mesmo tempo que a Federação as afastou enquanto não renunciassem às exigências. 3 das jogadoras acabaram por o fazer e jogar nestes campeonatos do mundo.

Na altura, apesar de não terem subscrito a carta, algumas outras jogadoras solidarizaram-se com o conteúdo e as subscritoras. Uma delas foi Alexia Putellas, já 2 vezes considerada a melhor jogadora do mundo, e outra foi Jenni Hermoso, que era na altura também a capitã da selecção espanhola. O resultado para estas foram advertências e, no caso de Hermoso, ver retirada a braçadeira de capitão. Foi então punida por ter tomado uma posição.

Agora avancemos para este cenário. Uma empresa acaba de ter os melhores resultados da sua história e festejam esse feito. No processo, um dos empregados mais séniores, que no passado tinha sido líder de equipa mas depois despromovido após apoiar alguns dos seus colegas mais juniores numa reclamação, é beijado na boca pela presidente da empresa, a qual tinha diso responsável pela despromoção. O empregado decide ignorar, contente que está pelo que foi alcançado, mas depois queixa-se do ocorrido, afinal de contas, a presidente não lhe pediu para lhe dar um beijo e, mesmo que o tivesse feito, não era coisa para se fazer em público.

Após a queixa, a presidente inicialmente parece receptiva a pedir desculpas mas depois queixa-se das mentalidades, faz finca-pé, diz que a mentalidade de mariquinhas está a destruir a sociedade e que o beijo não foi mais que "um beijinho".

É óbvio onde quero chegar com isto - e se não for peçam ajuda que eu não estou para explicar. O chefe máximo abusou da sua posição e fez algo que não podia, de maneira nenhuma, fazer. Nem seria necessário falar de toxicidade masculina. Isto é simplesmente despropositado em qualquer situação. Mas o machismo que ainda é reinante na Espanha (e não só, Portugal não se escapa, nem a maioria dos países), apesar de menos proeminente que no passado, não pode ser removido da equação. Rubiales comportou-se assim porque entendeu que podia fazê-lo. Porque é o presidente e porque é um homem.

Jenni Hermoso decidiu de outra forma. As outras jogadoras, várias treinadoras e treinadores e até alguns jogadores, e muito da população também. E é o irónico disto, porque agora já não há outro caminho: ao cometer um acto de abuso, de toxicidade, Rubiales terá ajudado a limpar o ar.

Oppenheimer e a Bomba Atómica

João André, 19.07.23

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À esquerda, Robert Oppenheimer. À direita, Cillian Murphy em Oppenheimer.

Estreou esta semana Oppenheimer, o novo filme de Christopher Nolan. Não o vi ainda, embora tencione fazê-lo. Nolan é um cineasta que me enche as medidas quando vejo os seus filmes, embora raramente eu a ele regresse. Não é alguém que me deixe com vontade de esclarecer alguma coisa na história ou na mensagem. Nisso penso que ele é algo simplista (Nolan é um admirador de Michael Bay, cada um que tire as ilações que entender), mas é um cineasta fantástico no que diz respeito à imagem. Não espero que Oppenheimer seja diferente.

Não é no entanto o filme em si nem Nolan que me levam a escrever. É a história da construção da Bomba Atómica. É que esta é uma história incrível, com personagens fascinantes - Robert Oppenheimer talvez seja de facto a mais complexa de todas - e todo um cenário, desde o início do século XX até 1952, quando a primeira bomba de hidrogénio (ou bomba termonuclear, ou bomba de fusão) foi detonada. E toda esta história é contada majestosamente por Richard Rhodes na sua monumental obra The Making of the Atomic Bomb (link na Amazon, link na Wikipedia), um livro fenomenal que já li duas vezes (e ouvi em audiolivro outras duas) e que infelizmente não parece estar publicado em português.

Não vou eu contar num post uma história tão complexa que precisou de mais de 800 páginas para ser colocada em papel. No entanto aponto para pequenos pormenores como a dissolução de duas medalhas Nobel em Copenhaga (para as esconder dos nazis), as preocupações filosóficas de Bohr (que emerge como o maior gigante numa história de gigantes), uma visão de Leo Szilard que evocava um livro de HG Wells, um duo de tia (Lise Meitner) e sobrinho (Otto Frisch) que fizeram descobertas fundamentais no campo, um ataque às instalações da Norsk Hydro (revisitado em Hollywood anos mais tarde) seguido da história de um afundamento de um ferry e de um famoso violinista, descrições horrendas do resultado de bombardeamentos, uma narração em segunda mão das descrições de narradores infiáveis sobre um encontro entre Heisenberg e Bohr, a fuga de Bohr da Dinamarca, a origem de nomes de código, a escolha do cientista mais rápido na equipa de Fermi para levar amostras para análise, etc. O livro é rico em detalhes, explica os princípios técnicos com clareza e simplicidade e pouco a pouco para os leitores os poderem apreender e ainda nos leva mais longe que simplesmente Agosto de 1945, chegando então à "Super" de Teller e Ulam detonada em 1952.

O filme de Nolan foi baseado no livro American Prometheus, uma biografia de Oppenheimer. Será talvez a melhor fonte para o filme, dado que se debruça sobre especificamente Oppenheimer, não sobre a bomba. No entanto, para quem queira adquirir mais informação sobre aquele que terá sido o maior projecto científico da história da Humanidade, o livro de Rhodes será inultrapassável.

Pensamento da Semana

João André, 09.07.23

A cada geração se ouve uma variação de "no meu tempo é que era" numa crítica implícita às gerações mais novas. Não só se ignora que todos somos iguais com pequenas diferenças decorrentes de mudanças na sociedade como, e mais importante, se prefere ignorar que se uma geração tem determinada característica, isso se deve em grande parte às gerações anteriores.

Por isso, da próxima vez que quisermos queixarmo-nos dos millenials ou da geração Z ou seja lá qual for a designação deles, lembremo-nos que somos os pais ou avós e que a responsabilidade de os criar e educar é nossa. Se algo não correu bem, os culpados estão a olhar para nós no espelho.

 

Este pensamento acompanhou o DELITO DE OPINIÃO durante toda a semana