A poesia acontece naquela estação etérea do coração humano onde as palavras ainda existem, mas já escapam. Canaldepoesia é um blogue de poesia e alguma prosa, onde podemos ir apanhar essas palavras que escapam, sem as quais a vida profunda nos escapa a nós. Há lá palavras para todas as estações do habitar humano. Não sei quem é o autor deste blogue que publica poesia desde 2004, mas sou uma frequentadora assídua. Hoje fui lá buscar este poema de Wislawa Szymborska, poetiza polaca que ganhou o prémio Nobel da Literatura em 1996:
Uma gente em fuga de outra gente, num país debaixo do sol e de algumas nuvens.
Deixam para trás um tal seu tudo, campos semeados, umas galinhas, cães, espelhos, justamente nos quais o fogo se mira. Levam às costas os cântaros e as trouxas, quanto mais vazios mais pesados com o passar dos dias. É em silêncio que alguém desfalece, é na algazarra que alguém arranca o pão de alguém e alguém sacode o filho morto. Nunca é pela estrada que têm à frente, nem é esta ponte sob a qual passa um rio estranhamente avermelhado. Em redor, disparos, ora longínquos ora próximos, ao alto, um avião errante rodopia. Oportuna seria a invisibilidade, uma parda rochosidade, ou ainda melhor a inexistência durante um pouquinho ou por mais tempo. Mais ainda está por acontecer, apenas onde e o quê. Alguém lhes sairá ao caminho, apenas quando e quem, de que forma e com que intenções. Se puder escolher, talvez não queira ser inimigo e os deixe com alguma vida. wislawa szymborska instante trad. elzbieta milewska e sérgio neves relógio d'água 2006
Este blogue é do meu amigo Derek Sivers. Ex-músico de uma banda norte-americana, fundou em 1998 uma companhia -CD Baby- para vender directamente a sua música, online. Outros músicos souberam e pediram-lhe para vender também as músicas. A CD-Baby fez tanto sucesso que passados uns anos ofereceram-lhe mais de duas dezenas de milhões pela companhia e ele vendeu. Começou a falar em TED-talks e depois foi ser empresário em Singapura. Viveu na Nova Zelândia e por uns tempos pensou viver em Portugal. Introvertido, tornou-se também um escritor. Escreve sobre música, sobre programação informática (fez sozinho toda a programação da empresa), sobre empreendorismo e sobre a vida em geral, com muito insight. É um ávido leitor e numa das páginas do blogue (book) vai pondo as centenas de livros que lê com uma apreciação crítica sobre os pontos fortes de cada livro. Não escreve todos os dias mas o que escreve vale a pena ler.
Só acredita nas palavras do nosso ministro da educação quem anda mesmo a leste do que se passa na educação e só a conhece dos títulos dos jornais.
Tenho notado que, apesar dos triunfalismos do ministro quando diz que agora todos pensam criticamente, os alunos, em geral, têm cada vez menos capacidade de concentração continuada. Se têm de ler um texto de uma página para fazer um trabalho qualquer, desanimam antes mesmo de começar porque não conseguem concentrar-se tanto tempo.
Estão habituados a ler na internet frases curtas e a saltar de assunto em assunto, não completando nunca um raciocínio complexo, uma argumentação com fundamentação, um discurso de dissertação sobre um tema, uma descrição pormenorizada. A maior parte das avaliações escolares são de preenchimento de espaços e identificação de palavras ou construção de definições curtas, decoradas. Não têm nenhuma experiência de terem que discorrer sobre um tema de modo coerente, objectivo, fundamentado e completo, tendo de relacionar conceitos, encadeá-los numa arquitectura, já nem digo elegante, mas pelo menos robusta.
Como consequência, quando chegam às aulas e ao trabalho escolar, não sabem pensar porque nem sequer são capazes de seguir um raciocínio complexo e isto advém de não terem hábitos de concentração continuada.
Reparo que a esmagadora maioria não consegue sequer concentrar-se para ver um filme, o que até há uma meia-dúzia de anos lhes era muito fácil. Pois agora não é, talvez por estarem habituados a consumir exclusivamente vídeos do YouTube que não requerem mais do que dez ou quinze minutos de atenção continuada. Ao fim de vinte minutos de filme já estão cansados de tomar atenção.
Há pouco tempo comentava isto com uma turma e explicava-lhes -mais uma vez- os benefícios de aumentarem o seu poder de concentração e os prejuízos de não o fazerem - para ver se conseguia convencê-los a ler um livro. A certa altura disse, 'qualquer dia também deixam de ser capazes de ver um jogo de futebol inteiro e só vêem os resumos'. Diz uma aluna, 'Não é qualquer dia. Eu não consigo ver um jogo inteiro. É muito tempo. Às vezes vejo a primeira parte e depois espero que o resumo caia no YouTube e vou ver os golos e as jogadas mais importantes'. Confesso que fiquei estupefacta porque tinha dito aquilo meio a brincar.
Era preciso haver uma campanha de esclarecimento aos pais (e ao ministro da educação que tem um pensamento infantil, do tipo mágico) que, calculo, não fazem ideia de como deixarem os miúdos nos telemóveis e internet logo desde muito novos lhes estragam as capacidades de concentração, de aprendizagem da complexidade da língua e portanto, de raciocinar e pensar.
Depois saem relatórios do IAVE a dizer que os alunos não sabem pensar. Isso de saber pensar, ponderar e criticar é um processo longo que leva tempo a aprender e interiorizar e que se alcança através de outros processos que o ministro tirou da aprendizagem escolar para que todos possam passar mesmo sem saber nada, para ele ficar bem no cozido à portuguesa das estatísticas nacionais.
Tenho seis irmãos -quatro raparigas e dois rapazes. Nós raparigas, excepto a mais nova, temos um ano ou dois de diferença umas das outras. Não faltam histórias para contar. Hoje lembrei-me destas duas:
1. Um dia, éramos ainda muito miúdos, devia eu ter uns seis anos, fomos chamados para ir almoçar e quando chegámos à mesa faltava a minha irmã Maria. Onde está a Maria? A Luíza disse que a Maria estava muito doente. A mãe pediu a uma empregada para buscá-la. Passado uma bocado ela volta e diz, 'a menina Maria está na cama e não quer sair. Diz que foi a Luíza que mandou.' Fomos ao quarto ver o que se passava. A Maria estava escondida dentro da cama. Nessa altura tínhamos peles em cima das colchas. Eram peles de vaca ou de cabra, às vezes cosidas umas às outras e faziam de cobertura. A da Maria era de cabra malhada, com enormes manchas escuras. Sentámo-nos na cama dela e saltavam cabelos de todo o lado da cobertura. Quando a cabeça da Maria apareceu de debaixo dos lençóis, parecia saída de um hospício ou de um campo de concentração. Em vez do cabelo comprido, tinhas uns tufos raquíticos espalhados pela cabeça meio careca. Então, a Luíza tinha resolvido fazer de cabeleireira e quando viu o que tinha feito escondeu o cabelo dela no pêlo escuro da coberta e mandou-a ficar na cama. Ahah
2. Outra vez, numa altura em que vivíamos numa herdade, no campo, andávamos pelos onze, doze anos, saímos logo a seguir ao almoço e fomos para a ribeira que atravessava a herdade, brincar. Éramos seis: eu, mais duas irmãs, duas amigas que eram irmãs uma da outra e mais um amigo. Passámos a tarde na ribeira, de galochas, a apanhar sapos, rãs, uma cobrinha pequena, pedras com musgo e voltámos para casa todos molhados, emporcados de terra e com sacos com os animais. Entrámos em casa delas e fomos à procura de um sítio para pôr a bicharada. Nesse dia estava tudo num certo alvoroço. A casa estava a encher-se porque era o início da época de caça e esperava-se muita gente sendo um deles o presidente da República. Mas nós não sabíamos disso, nem ligávamos nenhuma porque a casa estava sempre cheia em certas alturas do ano. Só queríamos pôr os animais na água. De maneira que fomos à procura de um quarto que já estivesse arranjado para não sermos incomodados e fechámo-nos na casa-de-banho. Enchemos a banheira de água e despejámos os animais, as pedras, etc. As rãs saltavam por todo o lado e sujavam tudo de modo que usámos as toalhas para secar o chão. Como os sapos faziam um chinfrim e nós também, alguém ouviu e foi avisar a minha mãe. De repente ouvimos a voz da mãe no quarto, 'Está aí alguém?' Fizemo-nos de mortos, mas as rãs denunciaram-nos. Quando ela abriu a porta e viu aquele caos com rãs a saltar por todo o lado ia tendo uma apoplexia. Aquele era o quarto para o Presidente. Por isso já estava todo arranjado. A Luíza (outra Luíza, não a minha irmã) só dizia, 'ó tia Palmira, os animais estavam a morrer, precisavam de água. Não podíamos deixá-los morrer'. Ficámos de castigo e proibidos de várias coisas ao mesmo tempo. O que nos rimos a lembrar disto...
Ainda nem sequer passaram três meses de quando Putin tinha uma reputação a defender. Escrevia em letra grande na cena internacional. Agora é um infame, uma borracha que apaga anos de escrita a cada passo que dá. Como dizia Boris Pasternak, “Os homens no poder estão tão ansiosos por estabelecer o mito da sua infalibilidade que fazem o seu melhor para ignorar a verdade.”
Este pensamento acompanhou o DELITO durante toda a semana.
A propósito de ter lido no texto da Dulce que hoje é o dia da biodiversidade, lembrei-me de Dürer, um dos meus pintores preferidos, cujo aniversário se celebrou ontem (aqui num famoso auto-retrato de 1500) e que foi um grande desenhador e pintor da natureza e da sua diversidade.
Dürer, era um grande apaixonado pela natureza em toda a sua diversidade e, se bem tenha viajado pela Itália para se inteirar das obras dos mestres renascentistas e tenha observado a recorrência deste tema nas suas telas, ninguém, à época, deu tanto destaque à natureza e à sua multiplicidade de formas como ele.
Foi um dos primeiros pintores a interessar-se em pintar animais e plantas por si mesmos. Naquele tempo era costume pintar-se estes temas como estudos que se vendiam a outros artistas -ou os próprios usavam- para incluir como pormenores em telas grandes, mas Dürer desenhou-os e pintou-os como obras acabadas. Atribui-se-lhe a frase, "É de facto verdade que a arte é omnipresente na natureza e o verdadeiro artista é aquele que consegue revelá-la".
Toda a gente conhece obras suas: a Lebre, a Asa de Um Rolo Azul, O Grande Turfo de Ervas, o Rinoceronte (cujo desenho está ligado ao início da construção da calçada portuguesa) e muitos outros desenhos e pinturas onde ele mostra a sua paixão pela natureza, a sua atenção ao detalhe (ao contrário dos italianos que usavam então o sfumato, Dürer preferia os traços bem definidos - dizem os entendidos que talvez por ter começado a sua carreira como gravador). Mesmo em obras sobre outros temas, estou a lembrar-me do Massacre dos Dez Mil, a natureza não está pintada como um mero pano de fundo, não: está pintada como um suporte de vida independente, em grande pormenor, ao ponto de podermos ver num ramo, por exemplo, um pássaro a fazer o ninho.
Já me aconteceu viajar para ir ver uma exposição deste pintor ou até uma obra só. Como outros pintores, mais até que muitos, as obras de Dürer têm que ver-se ao vivo. As nuances nos traços, na cor e na textura e outros aspectos, porque Dürer não deixava nada ao acaso na sua obsessão pelos detalhes e seus significados, perdem-se nas reproduções, por muito boas que sejam.
Uma obra dele que gostava muito de ver ao vivo é o desenho do escaravelho, Lucanus cervus ou Vaca-Loura, como o conhecemos, popularmente.
É uma vaca-loura macho, como se vê pelo tamanho das mandíbulas. Tem a cabeça levantada e o corpo erguido, como que a preparar-se para a luta ou para a defesa de algum inimigo. A sombra por baixo dele dá movimento ao corpo e faz parecer que está a sair do papel.
Aqui não se vê mas quem já viu ao vivo este desenho fala da mudança de cor e de textura no corpo do bicho e da definição de todos os pelinhos das suas patas.
Dürer assinou a obra, com o seu monograma, AD (Albrecht Dürer), como sempre fazia, mas acrescentou aqui as garras da vaca-loura às pontas do 'A', o que na opinião de um crítico de arte sugere que ele talvez se visse como um insecto, antecipando Kafka ou que talvez se indentificasse com o espírito lutador da vaca-loura, tendo tido muitosinimigos. Será? É verdade que não era comum, no século XVI, dar-se atenção a insectos, pois na obra do Criador que era a natureza, estavam no fundo da hierarquia das criaturas de Deus. Esse comentador acrescenta que a letra, 'D' que se forma com a sombra da pata mais próxima da assinatura e data não são uma casualidade, pois Dürer não deixava nada ao acaso, mas que é uma afirmação filosófica de Dürer se ver como um homem em consonância com a sua sombra - o seu lado sombrio. Isso não sei, mas parece-me um bom pretexto para fazer uma viagem a Los Angeles, na Califórnia, ao Museu Getty, onde o desenho se encontra.
Ontem fui ao São Carlos ver o «Fausto» de Gounod. Uma ópera grande, em cinco actos, baseada na primeira parte da obra homónima de Goethe. Desde que o «Fausto» veio à luz, por assim dizer, nunca mais deixou de inspirar obras, tanto na literatura como na música. Há muitas peças musicais baseadas no poema de Goethe e três grandes óperas, sendo esta de Gounod a mais popular e a que mais vai à cena nas casas de ópera. É uma peça muito melódica e que se desenvolve com muita profundidade.
A peça abre com o Dr. Fausto velho, doente, em fim de vida, a reflectir sobre a falta de sentido do mundo, mas incapaz de se desapegar, revoltado e tentado pelo suicídio, «Nada. Em vão interrogo a Natureza e o Criador», diz Fausto, antes de invocar Satã, com quem fará um pacto de vender a alma em troca da juventude. Este início é muito melódico.
A encenação não começou muito bem, para o meu gosto. Vemos Fausto, já muito velho, entrar numa cadeira de rodas empurrada por uma enfermeira, parar diante de uma banheira gigante no meio do palco (que tem um pêndulo gigante a balouçar para indicar a passagem inexorável do tempo), despir a camisa e ficar nu, de costas para nós. Depois, enquanto ouvimos aquela música impregnante e melódica estamos a ver a enfermeira lavar o rabo do Fausto... não havia necessidade. Percebe-se a ideia do peso da carnalidade humana na superficialidade da vida, mas... enfim, passado este início, foi tudo muito bom.
O tenor, Mario Bahg, cantou a sua parte com muito lirismo, muita sensibilidade, sobretudo nas partes mais íntimas. Mefistófeles, um baixo, Rubén Amoretti, aparece como um dandy fantástico, sempre seguido por dois demónios visualmente insidiosos e maléficos nos seus movimentos (no final, já nos agradecimentos, desmascaram-se e vamos que são duas mulheres) é como um mestre de dança que comanda todas as almas para a perdição eterna. A cena da danação de Marguerite é verdadeiramente impressionante. Num ambiente escuro e fantasmagórico, Marguerite reza, perto de um padre, aos pés de uma pietá. Eis que aparece Mefistófeles e um monte de gente que ele possui, como marionetas momentaneamente animadas, contra ela - a própria escultura ganha vida e Cristo e sua Mãe começam numa dança erótica, bela na sua decadência obscena, tudo cantado com grande beleza e profundidade dramáticas. A cena da dança das bruxas também é impressionante, uma espécie de bacanal dos infernos a acompanhar o enlouquecimento de Marguerite.
Marguerite é a personagem que mais evolui ao longo da peça. Começa como uma donzela cheia de excitação pela vida, pelo amor e pelas riquezas e no fim da obra é uma mulher desiludida, abandonada grávida por Fausto que se esgota -ele, não ela- na busca ávida de prazeres e na satisfação dos desejos.
O soldado, Valentin, irmão de Marguerite que canta uma das árias mais bonitas e famosas da ópera -avant de quitter ces lieux - é um barítono português com uma voz cheia e de grande dimensão, vencedor do prestigiado concurso alemão de Heidelberg, DAS LIED.
Enfim, desde os cenários, muito inteligentes (como têm de ser sempre no São Carlos que é uma casa de ópera muito pequena e não tem espaço para grandes construções em palco), a movimentação das personagens em cena, o coro do São Carlos (excelente), o jogo de luzes que ajudou na perfeição ao ambiente temático da ópera, até à prestação da Orquestra Sinfónica Portuguesa e ao seu maestro, foi tudo muito bom e no fim gritámos todos em ovação como acontece quando as óperas são boas e há um frisson na assistência.
Adoro esta ópera, conheço-a de cor e em casa estou habituada a cantar à medida que ouço música, de maneira que estava a fazer um esforço para acompanhar a melodia só com os ouvidos e a mente.
Para quem gosta de ópera, um espectáculo que quando é bom é insuperável, porque completo, já que inclui tantas artes diferentes, recomendo vivamente uma noite na ópera, no São Carlos, a ouvir o «Fausto» de Gounod.
(André Baleiro canta aqui bem, mas ontem cantou, ainda, muito melhor)
Hoje é o dia do enfermeiro oncológico. Os enfermeiros oncológicos têm uma associação própria - a AEOP. O pessoal da saúde que trabalha com doentes oncológicos é mais atreito do que os de outras áreas clínicas a cair em depressão devido à pressão em lidar com doentes incuráveis, em estado de grande ansiedade e/ou depressão, por conta de quadros clínicos complexos e muitas vezes fatais. Porém, os enfermeiros em particular são mais atingidos. O médico oncológico é quem decide do tratamento do doente e traça o seu plano, mas quem o implementa é o enfermeiro oncológico.
Os enfermeiros oncológicos são parceiros essenciais que se ligam emocionalmente aos doentes -os tratamentos duram meses, às vezes anos- ajudam-nos a navegar nos complexos protocolos de tratamento e a gerir os sintomas e os efeitos secundários. Vi doentes a manifestar súbita alergia ao medicamento da quimioterapia, incapazes de respirar, por exemplo, e observei a rapidez e precisão com que os enfermeiros avaliam a situação, param imediatamente o tratamento e fazem o necessário para a recuperação; vi pessoas não aguentarem emocionalmente o tratamento e enfermeiros a conseguirem que a pessoa faça o tratamento; vi pessoas cheias de dores e enfermeiros a lidarem com elas; vi mulheres a passarem a mão no cabelo e ficarem com ele na mão e desatarem a chorar e enfermeiros a recuperarem emocionalmente a pessoa; vi pessoas desesperadas por ser a 3ª ou a 4ª vez que recidivam a apoiarem-se na força dos enfermeiros; vi pessoas perderem o controlo sobre o próprio corpo devido aos tratamentos (tentarem pôr-se em pé e caírem - as pernas desconjuntadas como efeito dos tratamentos) e enfermeiros a lidar com a situação e com o desespero da pessoa; tive enfermeiros radio-oncologistas a ajudarem-me numa altura em vacilei na vontade por ter ficado com uma grande queimadura e dores insuportáveis; vi enfermeiros lidarem com a perda de doentes que seguiam há muito tempo. O trabalho do enfermeiro oncológico é particularmente difícil.
Os enfermeiros oncológicos travam conhecimento com o acompanhante dos doentes, geralmente um familiar e estabelecem relação com essa pessoa também, para saber mais do doente e antecipar problemas. Por vezes também prestam suporte emocional aos familiares dos doentes, eles mesmos sob enorme pressão. Os enfermeiros antecipam as necessidades dos pacientes e dos cuidadores familiares e trabalham com os gestores dos casos e por vezes com os assistentes sociais para assegurar que os pacientes tenham apoio adequado e ajuda profissional nas suas casas e comunidades.
O tratamento de uma pessoa na luta contra o cancro passa por muitas fases e geralmente tem vários profissionais de diferentes especializações médicas dado os efeitos colaterais da doença e dos tratamentos. Muitas vezes, são os enfermeiros oncológicos que fornecem informação e orientação consistente ao longo do plano de tratamento. Têm formação para avaliar as necessidades médicas da pessoa. Os doentes oncológicos, com muita frequência sabem mais da sua doença do que médicos de outras especialidades não-oncológicas, aprendem muito jargão médico, aprendem a ler o resultado das análises e dos exames que têm de fazer, o que às vezes leva a juízos errados e só piora o seu estado de espírito e quem lida com isso tudo é principalmente o enfermeiro oncológico.
Os enfermeiros oncológicos têm sempre um sorriso calmo e uma palavra de empatia com os doentes -essa é a minha experiência de um ano e meio a frequentar o espaço da medicina nuclear e hospital de dia onde se fazem os tratamentos- e isso não tem preço. São pessoas por quem tenho grande respeito e deixo aqui o meu reconhecimento público a esses profissionais.
Estava a ler na Philomag as conclusões de um inquérito que fizeram em França sobre a felicidade: "a satisfação geral com a vida é maior no final da adolescência e diminui continuamente até aos 50 anos de idade, altura em que aumenta lentamente até aos 65 anos de idade", quando as preocupações com as escolhas de vida, juntamente com as dificuldades de conciliar a vida profissional com a vida familiar, desaparecem. "Depois desta idade, a satisfação cai rapidamente" até ao fim da vida. A deterioração das capacidades físicas é um factor importante. Os meios financeiros também desempenham um papel, assim como a dimensão da habitação, a sua localização, o acesso a actividades de lazer e a riqueza das relações sociais."
Estes dados falam-nos das condições necessárias, mas não suficientes, para uma vida feliz. A felicidade é outra coisa diferente de estar satisfeito com as condições da sua vida. Determinar o que é a felicidade é muito difícil. Este ano tenho um aluno um bocado obcecado com a questão da felicidade ser impossível face à nossa condição de mortais. Outro dia perguntou-me, "como é que eu sei se sou feliz? Qual é o critério para se aferir da felicidade?" E depois acrescentou, "e de qualquer maneira, que interessa ter uma vida com momentos felizes se acaba tudo na morte?" Na verdade, tocou em dois pontos fundamentais da existência: o da felicidade, que não sabemos ao certo o que é e a do sentido da felicidade numa existência breve, mortal.
Aos políticos exigimos o trabalho da justiça social para que possamos ter acesso às condições necessárias a uma vida feliz, mas isso não garante a felicidade, que é particular e subjectiva. A condição das condições de acesso necessárias a uma vida feliz é a liberdade. Talvez por isso na Ucrânia se batam até à morte pela liberdade.
O Presidente Macron exortou a Europa a poupar o seu homólogo russo da "humilhação" e disse à Ucrânia que tem de esperar décadas para aderir à UE como crítica montada à sua incapacidade de seguir outros líderes e visitar Kyiv. @thetimes
Evidentemente... para quê haver um tribunal internacional que julga criminosos de guerra? Não vamos humilhar os criminosos... porquê responsabilizar Putin pela guerra injustificada à Ucrânia, por Bucha, por Mariupol, pela perda de milhares de vidas, pelas violações de mulheres e até de bebés, pela condecoração de assassinos, torturadores e violadores, pela destruição do país, pelos campos de filtragem, pelos 5 milhões de refugiados, pela devastação da economia e das vidas dos ucranianos?
Desde quando a responsabilização dos criminosos pelos seus crimes é humilhação? Foi com esta ideia de não ofender Putin que o deixaram à solta e chegámos onde chegámos.
Macron não aprendeu nada com estes últimos dois meses e ainda julga que estamos no 23 de Fevereiro quando a Alemanha e a França mandavam em todos os países da UE e diziam o que cada um podia ser. As coisas mudaram e em grande parte pela pobre e medrosa resposta destes dois líderes à invasão da Ucrânia.
"A Ucrânia tem de esperar décadas para aderir à UE." Décadas? Porquê? Para não pôr em causa as quotas da França? A Ucrânia serve para defender os valores europeus e a paz na Europa mas não serve para entrar na UE?
"A segurança é um pré-requisito para o desenvolvimento; e a Humanidade é uma comunidade de segurança indivisível" – afirmou o Presidente chinês.
Xi Jinping propôs uma iniciativa de Segurança Global, propondo-se contribuir, “com a sabedoria e a experiência chinesa”, para enfrentar as mudanças sem precedentes que ocorrem no Mundo. No Forum deste ano, as questões de segurança são ainda mais evidentes, por causa da situação internacional – referem os dirigentes chineses, apontando “a eclosão da crise na Ucrânia, devido à contínua expansão da NATO”.
A proposta abrange seis pontos: 1."aderir a um conceito comum, abrangente, cooperativo e sustentável de segurança"; 2."aderir ao respeito pela soberania e integridade territorial de todos os países e à não ingerência nos assuntos internos de outros países”; 3."adesão aos objectivos e princípios da Carta das Nações Unidas"; 4."adesão à importância das legítimas preocupações de segurança de todos os países"; 5."adesão à resolução de diferenças e disputas entre países por meios pacíficos através do diálogo e consulta”; 6.“insistir na manutenção da segurança tanto em áreas tradicionais como não tradicionais, de forma integrada".
Por outro lado, opõe-se claramemte ao unilateralismo, à política de blocos e ao confronto entre campos, ao abuso de sanções unilaterais.Sendo o continente asiático um importante motor do crescimento económico global, o Mundo está melhor quando a Ásia está melhor.
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Este artigo sobre a proposta da China inscreve-se na discussão sobre a crescente inoperância da ONU e da urgência da sua reforma, a que este artigo, Terão António Guterres e as Nações Unidas realmente poder para travar a guerra na Ucrânia? se refere focando, nomeadamente, o problema do poder de veto dos membros do Conselho Permanente e os bloqueios que provoca, como acontece actualmente com a Rússia.
Porém, a proposta da China não resolve este problema e parece ter o propósito de evitar que, no caso de anexar Taiwan, seja alvo das sanções que estão a asfixiar a Rússia [O Mundo está melhor quando a Ásia está melhor, dizem] e tentar sabotar a NATO criando dúvidas quanto à sua legitimidade: a eclosão da crise na Ucrânia, devido à contínua expansão da NATO”. É preciso dizer que a Europa mais os EUA têm, em conjunto, 1075 mil milhões de pessoas, sendo que a China sozinha tem 1402 mil milhões de pessoas e se lhe juntarmos a Rússia chegam aos 1500 mil milhões. Militarmente, a Rússia, juntamente com a China, formam um bloco ou aliança equiparada, senão mais poderosa ainda, que a NATO.
Os dois primeiros pontos da proposta da China são [intencionalmente?] ambíguos.
O primeiro ponto da proposta da China seria pacífico se não fosse o termo, 'sustentável' que é sujeito a muitas interpretações, como por exemplo, entender-se que impedir um país de declarar zonas de influência é insustentável em termos de segurança.
O segundo, 'respeitar a soberania e integridade dos territórios', seria pacífico se não estivesse em conjunção com a, 'não ingerência nos assuntos internos de outros países', pois no caso presente, a Rússia não considera a Ucrânia como território independente mas uma parte integrante do seu território e exige a não ingerência num assunto que considera da sua soberania. Daí que peça insistentemente ao Ocidente para deixar de enviar armas para a Ucrânia se defender.
Os pontos, 4, 5 e 6 são mais ou menos pacíficos.
O 3º, que é o que mais interessa, isto é, a adesão aos objectivos e princípios da Carta das Nações Unidas, dito desta maneira, não adianta nada nem resolve nada. A virtude da ONU -ser uma adesão voluntária de países a princípios comuns- é também o seu maior problema: não ter maneira de impor uma conduta ética àqueles que quebram a obediência a esses princípios, como é o caso presente da Rússia e como já foi recentemente o dos EUA.
O pragmatismo que governa as relações internacionais, desligado de princípios éticos do direito internacional que tem dominado o campo tem levado a realidades de falsa paz pela subjugação de uns países -os mais fracos- a outros -os mais fortes. Foi com esse cálculo, aliás, que a Rússia contou, ao desencadear esta guerra.
Se muitos países que votaram nas Nações Unidas contra a agressão da Rússia depois não impuseram sanções foi porque uns não têm poder económico para isso, outros verem a guerra como uma continuidade da fricção entre a Rússia e o Ocidente que marcou o século XX (a Índia, por exemplo) e outros ainda olharem para a Europa com o ressentimento de colonizados e para os EUA como vítimas de intervenções semelhantes às da Rússia, recentemente, no Médio Oriente.
Por estas razões, uma reforma da ONU tem que introduzir a questão ética e a questão da responsabilização de quem viola gravemente os princípios de segurança internacional que fazem parte da Carta comum, que pode melhorar-se e adaptar-se à realidade de hoje e de amanhã. As instituições têm de evoluir sob pena de anquilosarem-se e perderem completamente a capacidade de movimento e intervenção.
Para esse efeito seria necessário criar um, 'protocolo de vigilância de quebra de segurança' com consequências imediatas. Falo de critérios escritos (políticos e jurídicos) que permitam identificar e classificar a actuação de um país como uma violação de soberania, por exemplo, uma agressão não provocada, uma anexação, uma intervenção ilegítima em um país, isto é, sem o acordo das NU.
De cada vez que um país actuasse de maneira a caber nesse critério -fosse que país fosse, do menos ao mais poderoso- seria considerado em clara 'violação da Carta' e sofreria imediatamente sanções, também previstas e acordadas nesse protocolo, desde logo a perda do direito de veto, mas também outras que se acordassem como necessárias e urgentes no sentido de defenderem a parte lesada.
Evidentemente que estas disposições de violação teriam de ser actos muito graves para que não acontecesse um país ter um diferendo com outro e imediatamente sofrer sanções como as que a Rússia está a sofrer. Isso seria uma emenda pior que o soneto.
No entanto, sem esse protocolo de responsabilização imediata, nenhum acordo e nenhum princípio jurídico internacional é respeitado pelos poderosos e cada um interpretará a sua actuação apenas segundo os seus interesses (o mundo está melhor quando a Ásia está melhor - podíamos substituir 'Ásia' por outro continente... ) e usando-se das prerrogativas de veto ou outras que a riqueza e a força lhes garante pragmaticamente.
Se as democracias valorizam o Estado de direito e as leis acima da força, têm de ser as primeiras a dar o exemplo e a pugnar por uma ordem internacional onde a lei seja mais forte que a espada.
A série é baseada no podcast Slow Burn de Leon Neyfakh e é sobre o escândalo Watergate. O que diferencia a série de outros filmes sobre o Watergate é o facto de ser, não um desenvolvimento dramático do género policial político, com as grandes personagens do jogo -o rei, a rainha e os bispos- na construção da conspiração, mas sim uma sátira negra que incide sobre os cavalos e os peões.
A série é contada a partir do ponto de vista da personagem de Martha Mitchel, uma célebre sulista e vedeta social, mulher do Procurador Geral de Nixon, John N. Mitchell. Martha Mitchel, de quem nunca tinha ouvido falar, era uma mulher exuberante e desbocada que estava sempre nas notícias por dizer o que pensava dos políticos e das políticas do seu partido, o que causava, amiúde, grandes embaraços ao governo e, evidentemente, ao marido. Foi ela quem primeiro ligou o nome de Nixon ao caso Watergate e fê-lo publicamente de maneira que obrigou o marido a uma escolha de lealdade entre ela e o Presidente e acabou fechada e isolada num quarto de hotel na Califórnia, guardada por seguranças e impedida de ver notícias e de falar à imprensa. Daí o nome da série, a relembrar o famoso filme de George Cukor com Ingrid Bergman.
Acompanhamos John Dean, um típico político menor sem grandes escrúpulos sempre a tentar ver o melhor ângulo para vender os seus talentos e conseguir aproximar-se das cúpulas do poder; Gordon Liddy, um zelota do FBI que comanda a operação de assalto à sede de campanha do Partido Democrata e outros peões menores.
A série mostra-nos o ridículo e o patético das personagens políticas nos seus jogos de enganar e de ganhar vantagem sobre os adversários, o absurdo das situações, a cegueira dos lacaios que vêem no seu líder alguém mais que humano e a pequenez moral dos grandes actores políticos que governam os países. A farsa que a maioria representa para si mesmo e para os outros. Uma trágicomédia onde pessoas menores e fúteis, envolvidas em jogos labirínticos nos corredores do poder, decidem do destino de todos. Tem cenas e diálogos deliciosos que vemos sempre com um sorriso nos lábios.
Quem representa o papel de Martha Mitchel é Júlia Roberts, numa prestação muito boa, como nunca a tinha visto. Sean Penn tem o papel de John N. Mitchell. Está irreconhecível por conta das próteses na cara que lhe retiram, a meu ver, capacidade de expressão. Dan Stevens é um John Dean excelente, oleoso e sem moral. Shea Whigham constrói um Gordon Liddy completamente fanático, dedicado à causa e ao seu Presidente.
A série vai no segundo episódio que acaba com Martha Mitchel a perceber que foi levada para a Califórnia com um falso pretexto para a afastarem de tudo e a trancarem num quarto de hotel. Sabemos o que se vai passar a seguir e mesmo assim queremos ver.
A propósito de andar a trabalhar a ética kantiana nas aulas fui reler este livrinho de, De Quincey, sobre os últimos dias de Kant.
De Quincey (autor do famoso, Confessions of an English Opium-Eater (1821), o primeiro relato, na primeira pessoa, sobre a dependência de opiáceos, neste caso do láudano) limita-se, praticamente, a traduzir o livro de Wasianski, um grande amigo de longa data de Kant que o acompanhou nos últimos anos de vida e a quem se deve a maioria das histórias que se contam sobre a pessoa de Kant. No entanto, mesmo na Alemanha, é este livro de De Quincey e não o de Wasianski que é apreciado e editado.
Como diz, De Quincey, logo nas primeiras linhas, tem-se por certo que qualquer pessoa medianamente instruída reconhecerá algum interesse na história pessoal de Immanuel Kant, dado ter sido um dos maiores filósofos de sempre, um pensador que influenciou a maioria das áreas do conhecimento humano.
Kant nasceu e viveu em Königsberg, antiga capital da Prussia Oriental, anexada pela URSS após a Segunda Grande Guerra, depois expurgada de alemães e colonizada com russos soviéticos, e que é hoje um enclave russo, chamado Kaliningrado, entalado entre a Lituânia e a Polónia, à borda do Mar Báltico.
Kant foi um filósofo com um intelecto formidável, um homem de hábitos muito rígidos, sistematizados intencionalmente com princípios de racionalidade para servirem à manutenção da saúde e à máxima produtividade filosófica, de maneira que é muito interessante, neste livrinho, vermos o homem por detrás do filósofo.
O livro tem partes cómicas, como a cena de Kant a ler, à noite, com a cabeça demasiado próxima das velas e pegar fogo à touca e tem partes comoventes como o relato das estratégias que adoptou para manter alguma normalidade de vida, quando se apercebeu que estava a ficar senil, uma tragédia para um indivíduo com a sua natureza intelectual.
Infelizmente, nos dias que correm, Kant é muito criticado mas, a meu ver, pelas razões erradas, quer dizer, criticam-no, não no valor das suas ideias, que se mantêm em tantas áreas (por exemplo, o opúsculo de Kant, «A Paz perpétua», de 1795, defende a possibilidade de paz, a relação necessária entre ética e política por intermédio do Direito Internacional e desenha um projecto de união de todos os povos na defesa dos seus territórios que está na origem do que hoje é a ONU), mas por ter sido um homem machista (quem não o era no seu tempo? Ainda hoje a maioria, sobretudo de uma certa idade, o é), por ter sido etnocêntrico, não em princípio mas em prática e por aquilo que fizeram, em termos de política europeia, com o seu «criticismo racionalista».
Enfim, o livrinho é pequeno e lê-se muito bem enquanto se bebem duas chávenas de chá.
As sanções criam dificuldades à vida dos russos e algumas sanções impedem-nos de exercer as suas profissões. Os russos, em contrapartida, impedem os ucranianos de viver, de existir, de serem livres, de viverem no seu país, de terem uma casa, de viverem nas suas terras, de educarem os seus filhos na sua língua, na sua cultura, no seu lar, de terem um futuro, de terem um passado inscrito nos monumentos da sua existência colectiva, para já não falar de perderem todos a profissão e terem sido obrigados a fugir ou transformarem-se em soldados. Nesta medida, as sanções parecem-me um preço irrelevante a pagar.
É caro que podem dizer-me que os tenistas estão na sua vidinha e não estão a atacar os ucranianos e até podem ser contra a guerra. Porém, a questão está em que são parte do povo que mantém, sustem e apoia Putin e não podem dizer que nada têm que ver com isso.
Repare-se que em meu entender todos, na medida em que, internacionalmente, vimos Putin crescer em agressividade e crimes e deixámos impune essa sua agressividade temos uma responsabilidade indirecta neste assunto, embora em graus diferentes: eu tenho muitíssimo menos que o chanceler Schröder, que o Presidente da Comissão Europeia ou o Presidente dos EUA, etc. Aqueles que têm a maior responsabilidade são os russos e cabe-lhes a eles fazer qualquer coisa para parar a guerra e os crimes que estão a ser cometidos em seu nome. Se estão contra, que o digam e assumam. O que não pode ser é quererem continuar com a sua vidinha enquanto o seu Presidente diz publicamente a todos os russos que vai acabar com a Ucrânia, que é um país que não existe, que o povo não tem direito a existir e que no fim da guerra nem o nome vai sobrar.
Eles não são sancionados por terem uma nacionalidade, mas porque sustêm um déspota e os seus crimes. Eles, russos, é que estão a atacar as pessoas de um país apenas por terem uma determinada nacionalidade cuja existência Putin não aceita.
Portanto, sim, penso que os tenistas devem ser impedidos de jogar, a não ser que tomem uma posição pública sobre o assunto.
Eu, se fosse russa e não tivesse coragem de tomar uma posição pública ou não pudesse, sei lá, por ter filhos pequenos e não ter ninguém que cuidasse deles indo para a cadeia ou isso, agradecia as sanções dos estrangeiros. Agradecia que, não havendo coragem dos russos para agir contra um presidente criminoso, alguém de fora o fizesse, e o forçasse a desaparecer ou a que os militares ou outros que têm meios para o afastar que o afastarem, e consideraria as sanções um sacrifício irrelevante a pagar, face ao horror que os ucranianos estão a sofrer.
Adaptado de um conto de Haruki Murakami é um filme sobre ser-se humano, sobre as relações entre as pessoas, sobre as cicatrizes que nos marcam, os fantasmas dos mortos que carregamos, os estilhaços do passado que nos ferem, as traições que fazemos, não só a outros mas a nós próprios para alimentar as mentiras que dizemos a nós mesmos para aguentar "a inevitável angústia de viver uma vida breve num mundo absurdo". Sobre a redenção que vem de não mentirmos a nós mesmos e vivermos uma vida genuína, e das relações genuínas que estabelecemos -se temos coragem- com outros também capazes de não mentir a si próprios. Sobre sermos como Karataev, a personagem do «Guerra e Paz» de Tolstói.
São três horas de filme. Ao fim de mais de meia-hora aparecem os créditos iniciais do filme e percebemos que estávamos a ver apenas o prólogo. O prólogo acaba com a morte da mulher do actor e encenador de meia-idade à volta do qual o filme se passa. O filme [re]começa passados dois anos desse acontecimento trágico que encerrou uma situação difícil de um casamento de vinte anos, de uma relação genuína que descarrilou depois da morte da filha pequena, da traição da mulher com outros homens (por razões que no filme se percebem), e da traição dele a si mesmo quando finge não saber e não se importar com a traição da mulher para evitar o aprofundamento da dor.
A maior parte do filme passa-se dentro de um carro vermelho vivo que ele estima muito e conduz, às vezes com acidentes (simboliza a própria vida em marcha) e que passa a ser conduzido por uma rapariga motorista que lhe atribuem quando vai a Hiroshima encenar a peça de Tchekhov, «O Meu Tio Vânia», uma peça difícil de representar sem que se olhe para dentro de si, como ele mesmo diz. A relação do actor-encenador com os outros actores, com o texto da peça e, sobretudo, com a motorista que lhe guia o carro durante esse tempo e com quem estabelece uma relação genuína -dois seres humanos que se reconhecem e mostram como são-, transformam-no. A ela também.
É um filme para se ver com atenção e vagar, para não perder os pormenores simbólicos, a cinematografia, o trabalho dos actores, os diálogos e os monólogos, excelentes a mostrar o humano em nós.
F. Scott Fitzgerald disse, mais ou menos, esta frase e lembrei-me dela a ler um artigo do comunista Pedro Tadeu, Ninguém duvida do massacre de Bucha?, onde afirma que como é muito esperto e tem muita experiência de vida e profissional, sabe que numa guerra ambas as partes desinformam e mentem e por isso é preciso ver os dois lados.
Se ele tomasse a sério a advertência de Scott Fitzgerald já tinha pensado:
1. Quem invade e ataca é que forja mentiras para justificar o seu ataque ilegítimo. Quem é invadido sem nenhuma declaração de guerra prévia e até com várias garantias (de Putin) de não haver intenção nenhuma de invasão e ser tudo uma histeria do Ocidente não precisa de inventar nada. Não estão no mesmo plano: um é o agressor e outro é o agredido.
2. Quanto a ver os dois lados: um dos lados, o de Putin, esconde-se, mente no seu país, escreve na imprensa de Estado que vai destruir a Ucrânia e nem o nome vai sobrar, não deixa que jornalistas independentes acompanhem as tropas e vejam no terreno o que se está passar, mata jornalistas se os apanha no terreno, não permite que ninguém saiba o que fazem, prende os da Cruz Vermelha, não permite corredores humanitários, queima os cadáveres para não deixar provas (Anabela Alves, a jurista portuguesa que trabalhou no massacre de Srebrenica e que tem, de facto, experiência deste tipo de agressão é muito clara nos indícios que já são visíveis), deporta civis à força para a Rússia, etc. A outra parte, a de Zelensky, anda com a imprensa atrás, convida jornalistas, procuradores, juristas, independentes, observadores internacionais, deixa os cidadãos filmarem tudo com os telemóveis, deixa entrar a Cruz Vermelha e outras organizações internacionais. Seria difícil, senão impossível, encenarem valas comuns e centenas de mortes com tortura e violações e outras barbaridades, sem ninguém, no meio desta gente toda que anda lá à vontade, ver alguma coisa - para além da obscenidade de acusar os ucranianos de chacinarem o seu próprio povo só para provocarem a Rússia.
3. Quando houve notícia de que soldados ucranianos tinham fuzilado soldados russos, o presidente Zelensky, mesmo sem saber se seria propaganda russa, fez imediatamente sair um comunicado a avisar as suas tropas que deviam cumprir a convenção de Genebra no tratamento dos prisioneiros de guerra ou seriam acusados e julgados. Quando há indícios evidentes (a tecnologia dos nossos dias torna difícil a mentira e o embuste) de que os russos estão a matar indiscriminadamente civis e a queimá-los, para ser difícil identificá-los, Putin apressa-se a dizer que é mentira, que nenhum soldado russo alguma vez tocou num civil ucraniano... total falta de transparência e pendor para a mentira compulsiva até ao ridículo.
4. Os russos já vão na quarta ou quinta narrativa acerca dos massacres nas cidades ucranianas. Entretanto bombardeiam hospitais, igrejas, edifícios onde se abrigam civis, silos de cereais - matar ucranianos à fome é um hábito que vem de Estaline.
Enfim, nem é preciso estar muito informado para reparar logo nestas diferenças de postura e nas inconsistências de Putin, o esconso, que faz tudo às escondidas, pela calada e sempre a mentir.
De facto, os comunistas portugueses não precisam de ser atacados por nenhum partido porque são exímios a acabar consigo mesmos. Ainda nem sequer perceberam que a Rússia há muito que deixou de ser comunista e que Putin entrou para o clube dos déspotas fascistas-imperialistas. Estão contra Zelenski ser convidado a participar numa sessão do Parlamento. Têm medo que Putin se zangue com eles, talvez. Esta devoção religiosa e fanática a um fascista, por parte de quem está sempre a gritar contra o fascismo, se não fosse patética, era só cómica.
Relativamente à teoria segundo a qual a invasão da Ucrânia é da responsabilidade da NATO e do Ocidente, duas notas:
1º Essa teoria assume um ponto de vista sociológico e descreve os eventos como resultado de forças sociais, assentes em pressupostos deterministas segundo os quais a realidade é um encadeamento de causas e efeitos cuja força é inexorável. O indivíduo filosófico e psicológico que decidiu tal e tal acção está ausente dessas explicações, como se as suas acções particulares nada tivessem que ver com a sua identidade, a sua consciência, a sua intenção e o seu livre-arbítrio, mas fossem meras reacções à força necessária da corrente dos acontecimentos em que se insere amorfamente. Porque a NATO fez isto e aquilo e o Ocidente teve esta e a outra atitude, Putin foi levado a invadir a Ucrânia. Ora, se há coisa que esta guerra mostrou foi a parcialidade ou falta de objectividade dessa teoria. Contrariamente aos vaticínios dos primeiros dias desta guerra, tanto de teóricos, como de dirigentes de países -incluindo Putin- ou de diplomatas, a Ucrânia não só não se rendeu como recusa ser um tronco à deriva arrastado pelo rio da realidade sociológico-determinista. Ora isso deve-se, sobretudo, à decisão livre, da pessoa do seu Presidente. Gostava de ver as teorias da força inexorável da corrente histórica explicarem uma pessoa como ele e a resistência, o moral, o espírito e a vontade do povo ucraniano que são um tronco, não a seguir impotentemente a corrente, mas a mudar-lhe a orientação.
2º Essas explicações parecem só funcionar para um dos lados. Putin justifica a sua decisão (que não foi um impulso, foi calculada e preparada durante muitos anos) com as acções da NATO e do Ocidente e muitos aceitam essa justificação. Da mesma maneira explicam Lenine e Estaline culpando o imperialismo dos Czars, primeiro e, depois, o imperialismo do Ocidente; também Hitler é explicado pelo imperialismo arrogante dos ocidentais. No entanto, quando se trata de acções dos ocidentais, nunca a responsabilidade é alocada a forças deterministas da História, mas aos próprios indivíduos. Ninguém explica a decisão de Truman de largar a bomba em Hiroshima como uma reacção inevitável à corrente dos eventos históricos; ninguém justifica a decisão de Bush, o filho, de invadir o Iraque, como uma reacção inevitável aos acontecimentos do 11 de Setembro. Tanto num como noutro caso assume-se que essas decisões foram tomadas com a liberdade da vontade e plena consciência individual das pessoas em questão, tal como no caso das decisões da NATO. Podíamos citar muitos outros exemplos. De há uns tempos para cá, quando se trata do imperialismo dos ocidentais a culpa é da pessoa que decidiu, quando se trata do imperialismo dos outros (neste caso de Putin), a culpa é das forças da História postas em marcha pelos decisões individuais dos ocidentais.
Portanto, os ocidentais são pessoas livres que tomam decisões conscientes e voluntárias, os outros déspotas são agentes determinados e amorfos da História que reagem às forças negativas postas em marcha pelos ocidentais?
Dias com árvores é um blogue de dois professores de Matemática da Universidade do Porto, dedicado à flora e à natureza, sobretudo de Portugal, mas não só. Neste mês de Março, por exemplo, têm andado pelas Canárias. Nas suas viagens, que partilham connosco, exploram a flora e natureza da zona. A ilustração da flora e natureza que observam vem acompanhada de textos, muito bons e cativantes, acerca das características científicas de cada espécie e acerca da natureza e paisagem em que estão inseridas. Em Abril do ano passado descobriram uma nova espécie da flora portuguesa nos bosques húmidos do vale do rio Mente, no norte do país, a Symphytum tuberosum.Sigo este blogue, activo desde 2004, há mais de dez anos, quando os descobri a fazer uma viagem pelo Arquipélago dos Açores.
Esta ideia de que os europeus são racistas até à medula pela maneira como recebem os refugiados ucranianos e como receberam os refugiados da Síria faz-me lembrar aquela piada,
Na segunda-feira bebi quatro bagaços e uma Coca-Cola e acordei com dores de cabeça. Quarta-feira bebi três Brandys e três Coca-Colas e fiquei cheio de dores de cabeça. Sexta-feira bebi seis uísques e duas Coca-Colas e mais uma vez fiquei com dores de cabeça. É evidente que tenho de deixar de beber Coca-Cola senão nunca mais me livro das dores de cabeça.
O que fica evidente nesta piada é a facilidade com que se raciocina pela superfície sem olhar a elementos não visíveis. E é exactamente o que se faz neste twitt: como os ucranianos são brancos e os sírios não, assume-se que esse foi o elemento diferenciador (a coca-cola) do tratamento dos refugiados desses países.
Acontece que há diferenças grandes entre os refugiados sírios e os ucranianos e não têm que ver com a cor da pele. Em primeiro lugar, os ucranianos que fogem da guerra são quase todos mulheres e crianças.
Não há, entre os ucranianos, uma percentagem de bombistas radicais que entram misturados para criar células de terroristas contra os europeus, homens que enchem as mesquitas de ódio e incitamento à violência contra os europeus. Os refugiados sírios -mas também afegãos e de outros países do Médio Oriente- são muçulmanos enquanto os ucranianos são cristãos. Esta é uma grande diferença, porque os muçulmanos trazem consigo um modelo cultural quase medieval que choca com o europeu: não valorizam sociedades laicas e por isso, não reconhecem a autoridade política como sendo superior à religiosa, logo, não respeitam os princípios organizadores das sociedades democráticas, da mesma maneira que não reconhecem as mulheres como cidadãs de pleno direito e como seres humanos dignos de respeito; não são capazes de revisão racional em questões sócio-culturais e por isso, também, proíbem ou restringem o contacto dos filhos, sobretudo as raparigas, com os europeus, por medo de revisão racional e afastamento da sua mundivisão. São culturas que não valorizam o conhecimento e a educação, não religiosa, dois grandes valores que definem os europeus.
Perturbam imenso as escolas com exigências de abandono do princípio do laicismo e de respeito pelos dogmas do islão: ora as raparigas têm que sentar-se atrás para não perturbar a educação dos rapazes, ora as professoras não podem vir de saias, ora não podem ralhar com os rapazes por serem mulheres ou exigem que as raparigas sejam separadas dos rapazes nas aulas de educação física ou da natação, ora querem proibir que os professores critiquem a religião do Profeta e os seus líderes religiosos... há um ano um aluno decapitou um professor, em França, por os pais acharem que o professor tinha criticado o islão. Em França, os professores têm medo dos alunos muçulmanos. Nós, europeus, valorizamos a discussão e a crítica, os muçulmanos valorizam a obediência e ainda praticam a justiça de Talião.
São pessoas que têm dificuldade em integrar-se na cultura ocidental e criam imensos problemas sociais e culturais como temos visto que o fazem, na Alemanha, na França, na Suíça, etc, sobretudo quando as comunidades são muito grandes, como em Marselha, por exemplo. Por conseguinte, se calhar não é a cor da pele o elemento diferenciador, mas outras considerações sociais e culturais.
Aqui na Europa levámos séculos a estabelecer sociedades laicas, democráticas, com valores de respeito universal pela dignidade humana e de direitos sociais. É um trabalho que custou muitas vidas humanas e que ainda não está acabado. Os refugiados muçulmanos, os homens, sobretudo, ao contrário dos ucranianos, são estressores culturais porque trazem consigo um modelo quase medieval de sociedade e cultura: teocrático, teocêntrico, violento na justiça, desigual nas oportunidades, sem respeito pela dignidade humana - não por causa de um líder despótico que, de vez em quando, sobe ao poder, mas pela própria estrutura organizacional teocrática e ditatorial das suas sociedades. Daí a resistência em receber refugiados sírios e de outros países muçulmanos. Não quero dizer com isto que não há racismo na Europa, que o há, mas a Europa não se reduz a racismo, não é o que a define. Temos muitos valores positivos de hospitalismo. Há muita auto-crítica, há vontade de melhorar, há uma constante revisão racional, valores que os refugiados ucranianos também partilham e respeitam e os muçulmanos em geral não, sejam sírios, afegãos, sauditas ou de outro país qualquer.
Estrangeiros dirigem-se à Ucrânia para formar uma legião estrangeira contra o fascismo de Putin como no século passado o fizeram dirigindo-se a Espanha, pouco tempo antes da Segunda Grande Guerrra, com o mesmo objectivo de lutar contra o fascismo. Para quem estranhe que se faça um diagnóstico de fascista a Putin, sendo um ex-KGB, é só avaliar os sintomas visíveis: populismo; distorção da História para engrandecer o povo; apelo e exaltação dos valores da mística da Nação russa; propaganda de demonização do Ocidente; identificação do Estado ao líder messiânico (ser contra Putin é ser contra a Rússia); identificação do líder com a alma do povo russo; vitimização; fabricação de narrativas de mentira com ocultação sistemática dos factos; agressividade.
Outros povos também tiveram líderes de perfil fascista, alguns recentemente, mas o seu sucesso foi sempre limitado devido a viverem em democracias com instituições que resistiram a esse assalto do poder por uma pessoa e a sua clique, o que é uma razão acrescida para não deixar Putin sair vitorioso desta guerra que impôs à Ucrânia, um país democrático e para reforçar a união das democracias no mundo.