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Delito de Opinião

Foi engano

José Meireles Graça, 09.07.25

Há uns tempos manifestei num artigo algumas dúvidas sobre o Ministério da Reforma do Estado. Acabava assim:

Enganei-me no passado mais vezes do que gostaria e, é claro, como qualquer cidadão temente a Deus arrependo-me. Desta vez também apreciaria vir a arrepender-me. Não me parece.

Premonitório: Passou pouco mais de um mês e o ministro já diz sem rebuço ao que vem: “… o Governo está ‘a trabalhar numa reforma administrativa assente na simplificação, digitalização, articulação e responsabilização, não para reduzir o Estado, mas para fortalecer a sua relevância e legitimidade".

Fantástico: A reforma do Estado é afinal uma reforma administrativa que vai assentar na simplificação e digitalização mas consumindo o mesmo número de horas de trabalho dos funcionários, articulação e responsabilização mas sem ganhos nenhuns potenciais em despesas, além de não se fazer ideia do que querem dizer na prática estas proclamações – vai articular o quê com o quê e responsabilizar quem e de que forma?

Tudo com o objectivo de retirar do pescoço do cidadão a canga da via dolorosa das exigências absurdas ou redundantes, de uma administração fiscal intrusiva, prepotente e inimputável, ou da geral irresponsabilidade dos serviços públicos por atrasos, informações deficientes, descasos e exigências ilegais?

Que nada, para que o Estado fique “mais relevante e mais legítimo”, diz ele.

Tenho más notícias para o ministro: O Estado não precisa de ser mais relevante, já o é em demasia; e a sua legitimidade ninguém discute, o que se discute é a forma como funciona, quanto custa, e o seu grau de interferência na vida das pessoas e das empresas.

Em suma, mais um simplex. Para isso não era preciso um ministério, uma ignota direcção-geral cheia de computadores e moços a escarafunchar as meninges servia perfeitamente.

Um equívoco este ministério, parece. Que infelizmente não é o único:

A ministra do Ambiente lembrou-se de dar prova da sua existência supranumerária e resolveu implicar com os bares de praia. Estes, ficamos a saber, pagam um valor muito pequeno ao Estado, pelo que os preços das águas, cafés, sandes e o mais que more na ministerial cabeça, devem ter limites máximos.

Que a ministra se limitasse a garantir o acesso às praias, que aliás tem valor constitucional, muito bem. Agora que se meta a interferir com o mercado limitando preços sob pretexto de que há toldos caríssimos (só são caríssimos porque há quem os pague) é que faz com que tenhamos, salvo seja, a burra nas couves.

Aqui há muitos anos havia no Algarve um bar de praia reputado por servir um peixe grelhado excelente e ser frequentado por famosos. Não me lembro do nome da praia e creio que o restaurante se chamava Gigi – não sei se ainda existe. Fui lá uma vez e achei cómicos os preços – coisa de fugir, ademais porque havia muitos outros sítios onde o peixe era igualmente bom, e alguns onde talvez não fosse mas a conta não interferia com a digestão. Quer isto dizer que os preços deveriam ser tabelados, impedindo quem não faz contas ou gosta de fingir que não as faz de ter lugares próprios para si? Que ideia, a inveja será natural mas não é fundamento que se aceite para orientar políticas.

Que o diabo leve a ministra se também estabelecer um preço máximo para a sandes de presunto belota. Que já estou daqui a ver o comerciante a impingir presunto salgadíssimo debaixo da etiqueta aldrabona. Mas como o Estado sabe muito mas o comerciante ainda mais, por baixo do balcão lá estará a sandes legítima, para aqueles clientes com discernimento e gosto mas que não precisam da facturinha.

É o que temos. Quem ousar dizer que este Governo é liberal ou não sabe o que é o liberalismo ou não conhece o Governo. Eu começo a conhecer.

A guerra*

José Meireles Graça, 29.06.25

De um lado temos uma democracia exemplar, com um líder eleito que os tribunais se permitem pôr a depor enquanto em exercício; e do outro um grupo terrorista, mesmo ao lado, que não admite qualquer oposição interna e se permite atacar o vizinho mais poderoso porque conta com um grande país, que o apoia e que explicitamente não reconhece a Israel o direito de sequer existir, comprometendo-se a, logo que para isso tenha poder, limpar a região de Judeus – infiéis à verdadeira religião, intrusos numa terra que não lhes pertence e aliados da América, o Grande Satã.

O grupo terrorista que governa Gaza lançou em 7 de Outubro de 2023 um ataque que provocou mais de mil mortos civis (e à volta de três centenas de militares), capturando cerca de 200 reféns (ou 250, em tudo o que diga respeito a este conflito os números variam consoante as fontes), que foram sendo libertados a conta-gotas por troca com prisioneiros palestinos em Israel, invariavelmente não cabeça por cabeça mas um múltiplo (às vezes mais do décuplo) de palestinos por cada refém israelita.

Alguns dos devolvidos foram-no no estado de cadáveres. E hoje ainda há reféns presos, dos quais se ignora quantos estão vivos.

Tínhamos portanto um bom (tanto quanto se pode falar de bons) nesta história e um mau.

De maus secundários há avonde, como o Hezbollah a Norte, no Líbano, ou os Houthis no Iémen, reconhecidos como terroristas por quase todas as capitais do execrado Ocidente, com o denominador comum de serem financiados pelo Irão, alguns países árabes e até noutro vizinho, a Cisjordânia, um governo relativamente hostil.

Mas o Irão é que é a sombra negra. Anda há muito tempo (o programa nuclear começou nos idos de 60, com o apoio dos EUA, na altura no contexto da Guerra Fria, mas evoluiu com o regime aiatolesco para mais do que prováveis intenções belicosas) com a jigajoga de, no meio de sanções, acordos, denúncias, avanços e recuos, desenvolver armas atómicas. E como Israel não pode ter a certeza, como tem em relação ao Paquistão, ou à Índia, ou à Rússia, ou até à Coreia do Norte, ou qualquer das outras potências que actualmente detêm a bomba, de que o regime iraniano não cometa a loucura de o tentar obliterar de uma vez, vive com a compreensível obsessão de liquidar as pretensões da teocracia iraniana.

De modo que reage taco-a-taco a ataques do Irão, que em Abril se fez lembrar com mísseis que despejou em Israel como retaliação a um ataque à embaixada iraniana na Síria, que por sua vez respondia a outras picardias. Quem começou o quê depende de quem conta a história e se forem especialistas vão muito lá atrás, até ao ponto em que quando chegam à raiz já o curioso esqueceu o início do conto.

Começou a guerra. E desta vez Israel tinha na presidência dos EUA um amigo, que como os antecessores não nutre pelo Irão qualquer simpatia mas ao contrário daqueles acredita instintivamente pouco no mérito de diálogos com gente abominável, de que desconfia. Aliás, que o amigo seja Trump, e não por exemplo Obama, é um adjuvante para a rejeição das esquerdas, de que se falará adiante – Trump não pode, por definição, ter razão em nada. De modo que Israel, tendo acumulado sucessos na eliminação de estruturas militares, membros da Guarda Revolucionária e cientistas ligados ao desenvolvimento da arma, acabou por tropeçar na incapacidade de chegar aos subterrâneos a grande profundidade onde se faz o processo de enriquecimento de urânio, percalço que a América resolveu com o expediente de para lá mandar bombas com a surpreendente inclinação de primeiro perfurarem e só depois, muito lá em baixo, explodirem. O qual desenvolvimento, segundo uns, já estava a 40%, segundo outros a 60% ou 80%, nuns casos a meses de chegarem à bomba, e noutros a anos.

Nada disto interessa, como aliás a maior parte das argumentações de um lado e outro, porque como é normal em guerras e talvez Ésquilo tenha dito, a primeira baixa é a verdade.

Estava o Irão a desenvolver a bomba atómica? Estava, hoje já poucos defendem o lero-lero de que os fins do programa eram pacíficos. Pode Israel confiar na sua sobrevivência com um inimigo declarado que não lhe reconhece o direito à existência, se este detiver uma arma letal cujo uso, mesmo com retaliação do mesmo tipo, permite a loucos suicidas e fanáticos pensarem que, porque Israel é minúsculo e com poucos cidadãos, e o Irão imenso e com nove vezes mais habitantes, um ficava deserto e o outro suficientemente funcional? Não pode.

De modo que saber se o programa foi atrasado um ano, cinco, dez ou vinte, interessa muito a analistas e pouco a pessoas de senso. O problema talvez venha a ser resolvido, se vier, com uma mudança de regime; e entretanto Israel continua em guarda, e a guerra pode continuar mas com baixa intensidade, por intermediários, ou renascer.

Mas coisa curiosa: Como se explica que num conflito cujo herói e vilão deveriam ser evidentes o mundo muçulmano não seja todo a favor do Irão, e no Ocidente nem toda as pessoas de direita estejam do lado de Israel, do mesmo passo que à esquerda quase toda a gente reza, salvo seja, pelo Irão?

O caso do mundo muçulmano é simples: nem o Irão é Árabe, nem a partilha de uma religião comum é pacífica porque entre xiitas e sunitas há tanto ódio e conflito como em tempos pregressos houve entre católicos e protestantes, nem as realidades geoestratégicas permitem a convivência sem rivalidade de vários poderes regionais. O pan-arabismo é uma miragem e os governos de vários países árabes só não confessam o seu desejo de que Israel ganhe porque não podem desagradar à rua que, essa sim, nutre um atávico ressentimento contra os infiéis do Ocidente que são mais ricos, mais poderosos e têm leis e costumes heréticos, não rezando a Allah, não aplicando a sharia e permitindo às mulheres escandalosas liberdades.

Que a esquerda apoie o Hamas, sob a piedosa capa de em teoria achar a organização deplorável mas na prática lhe compreender as queixas, não deve surpreender: os habitantes de Gaza são pobres, os Israelitas ricos, Israel cria constrangimentos à vida na região em vez de aceitar com magnanimidade que os locais (ou melhor, quem os governa) se dedique tranquilamente a atentados, e historicamente o nascimento de Israel nunca deveria ter sido permitido, pelo menos ali. Talvez na Namíbia, hipótese que chegou a ser formulada mas os Judeus arrogantemente não aceitaram.

Empregados têm sempre razão contra os patrões; pobres contra ricos; fracos contra fortes; e países débeis contra poderosos, excepto se estes últimos tiverem como propósito realizar o céu na terra a golpes de igualitarismo, como sucedia com o sol da URSS que infelizmente se finou na última década do século passado.

Não é que faltem abusos e exacções, manchas no passado, males e tormentos; é que a superioridade moral de que a esquerda é, segundo ela, depositária, só se pode manifestar debaixo de bandeiras de causas e decerto não é uma causa defender quem é perfeitamente capaz de se defender a si mesmo.

E para certa direita há também o medo: a guerra pode evoluir para um confronto generalizado de resultados trágicos ou pelo menos penosos mesmo para quem nela não esteja envolvido, de modo que o melhor é adiar e, em vez de bombas, despejar perdigotos, aos quais se chama diplomacia – é o que tem feito a Europa.

Sucede porém que as guerras são admissíveis em dois casos: no de defesa contra ataques; e para prevenir outras maiores. Israel quer liquidar, ou ao menos enfraquecer, o Hamas, o seu inimigo à porta; e evitar que o seu principal inimigo distante tenha meios para cumprir a sagrada promessa de palestinizar todo o espaço do Jordão até ao Mediterrâneo.De modo que se pode estar a favor, ou contra, Israel; mas não se pode estar a favor defendendo que se lhe amarrem as mãos.

* Publicado no Observador

10 de Junho

José Meireles Graça, 13.06.25

No Natal e na Páscoa todos, incluindo ateus e agnósticos, celebram as efemérides na certeza inconsciente de que são as da nossa identidade enquanto cristãos. Não muçulmanos, nem budistas, nem sikhs, nem outra coisa qualquer – cristãos.

Larga pertença, essa. Há outras, como a nacional, que consiste em, por ter nascido aqui e crescido no meio de modos próprios de ser, de falar, de pensar, de comer, de conviver, e de crer e descrer, sabermos que somos irremediavelmente Portugueses, até mesmo os que arrastam pela vida o grande desgosto de não terem nascido Ingleses ou Americanos.

Ser Português quer dizer muitíssimas coisas para muitíssimas pessoas agudas, mas para mim, que sou simples e chão, basta-me o saber que em qualquer lugar no estrangeiro sou estrangeiro. E é claro que não tenho dúvidas de que, em que pese o justificadíssimo desporto nacional que os melhores de nós tradicionalmente praticam, e que é o de cascar em todos e em tudo o que achamos explica o nosso atraso relativo, nós Portugueses não temos qualquer problema de identidade – se alguma coisa temos é identidade a mais, não a menos.

De modo que há algumas datas em que se celebra esta identidade. E mesmo que nelas o comum do cidadão não ouça os discursos, nem tenha excessiva curiosidade pelas cerimónias, uns e outras tradicionalmente chatas, e prefira ir à praia, ao passeio ou à batota, ninguém levaria a bem que não se fizesse nada. Temos uns mestres de cerimónias que elegemos para esse efeito, entre outros, dos quais o Presidente da República é o mais representativo.

O 10 de Junho é um dia desses. O pretexto é a data da morte de Camões, o poeta da portugalidade por antonomásia, e está muito bem assim.

Sucede porém que este ano o discurso do  orador convidado (oradora, a escritora Jorge) causou repulsa a muitíssimas pessoas de direita e, imagino, a algumas de esquerda que não deem nada para o peditório da autoflagelação. Repulsa porquê? Vamos ver.

O admirável João Pedro Marques, aqui, demoliu metodicamente tudo o que de factualmente errado a arenga continha, e é muito.

O que sobra, além da floresta de erros? Começa bem, com um longo e muitíssimo bem escrito exórdio sobre a vida, obra, importância e actualidade de Camões, sem esquecer o que dizem investigações recentes sobre a sua vida e obra.

Mas depois começa a psicologizar os três monstros literários da época e de sempre (além do próprio, Shakespeare e Cervantes) e não é que, com citações criteriosamente escolhidas, os preclaros anunciavam os malefícios para a humanidade dos três impérios de que eram nacionais, e antecipavam o opróbrio e a ignomínia com que a historiografia revisionista e woke hoje, a golpes de ignorância e descontextualização, cobre as impressionantes realizações das Descobertas e da expansão e conquistas que se lhes seguiram? Quais conquistas o quê? As crueldades, a subjugação, a exploração, a pilhagem, tudo o que caracterizou a história da humanidade e que quando se “deram novos mundos ao mundo” se amplificou gigantescamente, precisava mesmo era de um tribunal internacional de Haia, que infelizmente não estava disponível à época. Não faz mal, realizamos agora o julgamento e, no caso de sermos brancos e de nacionalidades com passado imperialista, devemos fazer um acto de contrição e expiar a nossa culpa indemnizando os tetranetos das vítimas, mesmo que não saibamos bem quais dos nossos ascendentes andaram a pôr o mundo a ferro e fogo, e quais dos habitantes das regiões antigamente oprimidas descendem dos Adões e Evas que naqueles tempos pregressos gozavam em aldeias de palhotas os benefícios das suas inocentes, pacíficas e tranquilas existências.

Lídia Jorge sobre os Romanos não disse nada. Fez muito bem porque no tempo deles Portugal não existia e Portugal era o assunto do discurso. Mas na verdade a lógica que amarra ao pelourinho da abominação os conquistadores vale por maioria de razão para a civilização Romana, que assentava na escravatura, e não sei se na prosa de Cícero, ou nos versos de Virgílio, não haverá condenações avant la lettre – é procurar bem.

Camões está afinal entre nós hoje não porque a sua epopeia faça parte da nossa história e da nossa memória colectiva, mas porque anunciava “o fim de ciclo que se seguiu ao tempo da Renascença malograda”, que evidentemente se relaciona com os dias que estamos a viver.

“O poder demente, aliado ao triunfalismo tecnológico, faz que a cada manhã, ao irmos ao encontro das notícias da noite, sintamos como a Terra redonda é disputada por vários pescoços em competição, como se mais uma vez se tratasse de um berloque”.

Confesso: quando de manhã vou ao encontro das notícias da noite no meu “écran de bolso” não vejo nada desses pescoços e pavores e portanto peço licença para não seguir a opinião que Lídia preopina de ser contra isso, e por isso, que vale a pena que Portugal e as Comunidades Portuguesas usem o nome de um poeta por patrono.

Nem compro o resto do discurso, um longo arrazoado segundo o qual a cultura digital subverteu a regra da exemplaridade. “O escolhido passou a ser o menos exemplar, o menos preparado, o menos moderado, o que mais ofende”.

É verdade. A essa escumalha infecta que pulula nas redes sociais deu-lhe ultimamente para guinar para a direita. Deve ser por não lerem Camões. Nem Lídia Jorge.

Velho Governo*

José Meireles Graça, 07.06.25

Vai, como é natural, grande curiosidade sobre o novo Governo. Há alguma comoção sobre umas mudanças que não têm qualquer relevo, e uma para a qual vale a pena olhar.

As primeiras:

A Economia (o nome do ministério que se ocupa da torrefacção dos fundos europeus, em tempos fazendo parte, como devia, da pasta das Finanças) fica associado à Coesão Territorial. Esta tem um pretensioso e amplíssimo escopo – tutela a execução das políticas públicas respeitantes à gestão territorial. O que, na parte em que quer dizer alguma coisa, bem podia estar na Administração Interna.

Os fundos europeus são um veneno que enxundia a economia: financiam a concorrência desleal, potenciam a corrupção, facilitam a assunção de riscos empresariais insanos, alimentam agências caras e improdutivas, falseiam a liberdade de empreender, impedem a reforma do Estado porque o subsidiam e instalaram a ideia que está ao alcance de políticos e funcionários decidirem que empresas e que sectores têm e não têm futuro. Gerou-se a convicção de que, sem fundos, o país não pode crescer e que, com eles, convergirá com a “Europa”, que aliás qualquer dia também precisará de fundos para convergir com os EUA e a China. Ideia daninha, que os factos não confirmam, mas perene.

Porém, é impossível acabar com a subsidiação porque demasiada gente depende dela e dos poderes que confere, a começar por políticos da nebulosa europeia, departamentos bruxelenses, agências nacionais e sobretudo políticos domésticos, que com a famosa coesão garantem o poder da munificência e um módico de crescimento com dinheiro dado.

Impossível acabar, até porque o desmame seria doloroso. Mas deveria ser possível eliminar todo o financiamento a investimentos privados, fechar todas as agências com esse propósito, suprimir qualquer apoio à actividade ou despesas correntes do Estado, e canalizar todos os recursos da variedade mão-beijada do contribuinte europeu para investimentos públicos reprodutivos. Conduzidos pelo Estado (que, neste sentido, é uma abstracção, do que estamos a falar é de pessoas que decidem o que o Estado faz) é claro que as tolices seriam legião. Menos danosa todavia que o que temos tido. O progresso das empresas faz-se com Justiça eficaz, impostagem não predatória e simples, instituto falimentar rápido, eliminação da miríade de obstáculos grandes e pequenos à actividade económica, particularmente licenciamentos, e muitas outras coisas. Com subsídios? Não.

A Cultura deixa de ser ministério e passa para o da Juventude e Desporto. É uma mudança cómica porque a própria juventude não precisava mais de uma pasta que a terceira idade. E, já agora, também a meia-idade, desde logo com os problemas da menopausa e da andropausa, deveria ser objecto de atenção – no mínimo duas direcções-gerais.

Que seja ministério ou secretaria de Estado não releva. Será sempre um organismo que cuida muito dos vivos (isto é, directores disto e daquilo, artistas, criadores) e pouco do património edificado, museus, acervos, bibliotecas, etc. – tudo coisas que não berram a reclamar apoios nem escrevem nos jornais.

De modo que até aqui é lana-caprina, isto é, mais do mesmo.

Sobra uma dúvida: Vai ser um governo reformista ou não?

Foi criado um novo ministério, o da Reforma do Estado. Bom sinal, reconhece-se que o Estado precisa de ser reformado. Já tinha havido um ministério da Reforma Administrativa, em 1978 e 1981, que deixaram memória de coisa nenhuma, e houve várias secretarias de Estado com o mesmo propósito, esquecidas todas pela sua irrelevância.

Também há, desde 2006, o Simplex, agora mais discreto mas que nos tempos de Costa foi trombeteado como o abre-te Sésamo do Estado práfrentex, aberto, transparente e eficiente.

Sabe-se no que deu: um maná para empresas de software porque se deixou muitas vezes de ir aos balcões praticar a inutilidade que obriga as pessoas a lá irem, a qual se transplantou, via internet, para os sites dos vários serviços. Sites que, não poucas vezes, são um nó-cego desesperante porque em vez de serem, como deviam, testados por ignorantes, são-no por informáticos ou funcionários incapazes de calçar os sapatos do cidadão que não conhece os escaninhos da casa. E que ainda trouxeram essa coisa extraordinária de serem os próprios serviços a decidirem pela internet quem e quando atendem presencialmente.

Se alguém se desse ao trabalho de coligir as provas do crescimento de exigências burocráticas, declarativas ou outras, de dificuldades de licenciamento, e de multiplicação de taxas, por exemplo, descobriria que por baixo do verniz do simplex está um Estado obeso que não para de requerer mais alimento.

Vai reformar a Justiça, é, fazendo com que seja célere? E o ministro da Justiça faz o quê? Reforma os palácios, que alguns até metem água? Mas que faz então o das Infraestruturas? E vai aligeirar as exigências para licenciamentos de obras pelas câmaras municipais? Ah bom, não sei o que pensa disso o da Coesão Territorial, que superintende a Administração Local, cujo Secretário tem um medo que se pela do poder dos municípios. E na fiscalidade, vai simplificar, acabar com os poderes e abusos demenciais da AT? Eh lá, o SEAF deve ter duas ou três coisas a dizer sobre isso. Duas: Não; era o que faltava. A terceira: Talvez, mas de momento estamos assoberbados.

E é tudo assim. A reforma do Estado é transversal: ou o Governo todo está imbuído do espírito reformista (ou seja, diminuição do peso do Estado, dinamitação de legislação intrusiva, emagrecimento violento do dirigismo económico e um longo etc.) ou não.

Reformar é ferir interesses, mesmo que se arranjem expedientes (como é devido) para recolocar funcionários sobre os quais caia o machado da extinção de “serviços”. E é claro que o clamor será imenso. 

O cidadão escolhido para a função parece para ela bem-talhado, não é impossível que faça algum trabalho de préstimo. Mas no essencial?

Enganei-me no passado mais vezes do que gostaria e, é claro, como qualquer cidadão temente a Deus arrependo-me. Desta vez também apreciaria vir a arrepender-me. Não me parece.

* Publicado no Observador

A Casa (8)

José Meireles Graça, 04.06.25

O e-mail que enviei rezava assim:

Bom dia.

Conforme se vê pela resposta da Câmara, abaixo, a licença de utilização da casa da tia Fernanda nunca existiu. Todavia, é necessária porque sem ela não se pode fazer a escritura de compra e venda.

Contratei um arquitecto local para tratar do assunto, a quem foram entregues a planta, alçados, etc., toda a documentação pertinente que existia lá em casa.

Este começou, como era lógico, por ir lá, e informa que a casa construída tem alterações em relação ao projecto e à licença de construção (creio que a casa é de 1982), pelo que é necessário um novo projecto (ou complemento ao anterior, ou lá o que é).

Em anexo a proposta dele, que aceitei.

Vem dirigida ao falecido tio A, sei lá porquê. Já pedi que os requerimentos à Câmara e a(s) facturas(s) sejam em meu nome.

Isto não é uma casa, é uma corrida de obstáculos.

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O orçamento era de um total de 2.840 euros e não o valor relativamente modesto (460 euros) da licença de utilização porque havia alterações interiores na distribuição e compartimentação, alterações nos alçados, nomeadamente em vãos de portas, janelas e paredes e alterações na cobertura com eliminação dos “gable dormers” (janelas em telhados). Deve ter sido coisa do bondoso tio que a quis construir, foi dando uns retoques na obra para a adequar ao que pretendia para lá viver com conforto. Que loucura.

E entretanto já fui informado que há inexactidões na implantação, o que quer dizer ser necessário um levantamento topográfico. Discretamente, havia-me informado junto da imobiliária se estes valores eram normais ou se a urgência pedida não me estava a pôr demasiada areia na camioneta, cuja suspensão já se encontra um tanto derreada. Não senhor, eram relativamente comedidos para o que para aí se pratica.

Não sei ainda o que a Câmara vai cobrar mas se conseguir levar para o concelho uma família, recuperar para o mercado uma casa vazia, e que os ocupantes ponham aquele pomar a dar frutos sumarentos, creio ter ganho direito a uma medalha do município. O tal nosso parente Leonardo tem lá uma estátua, deve ter feito grandes coisas, mas eu também estou fazendo alguma coisinha e a medalha não precisa ser de ouro. A bem dizer, e não podendo ser isenção de taxas, um diploma bastaria, de preferência sem discursos.

Os projectos estão a ser elaborados, as procurações que faltam talvez cheguem, mas no meio-quilo de papel que juntarei haverá decerto incongruências, correcções a fazer, reconhecimentos, o diabo a sete, que o jurista do banco, a notária, a(s) solicitadora(s), todos, a voz cava e o cenho franzido, me intimarão a corrigir.

Toda esta história, que terá ainda desenvolvimentos que aqui virei narrar, e que acabará um pouco bem ou muito mal, tem uma moral. E ela tem a ver com impostos, crise da habitação, destruição de valor, preguiça, ignorância e sobretudo estupidez. Crassa.

A moral será o último post desta série. E procurarei fazê-lo curto senão ainda me nomeiam Secretário de Estado da Habitação e eu destratava o ministro logo numa das primeiras reuniões.

Toilettes

José Meireles Graça, 03.06.25

Dizem-me alguns com olhos doces/Estendendo-me os braços, e seguros/De que seria bom que eu os ouvisse quando me dizem: Não sabes combinar cores./Eu olho-os com olhos lassos (Há, nos meus olhos, ironias e cansaços)/E cruzo os braços,/ E nunca vou por ali…/Visto mazé ton sur ton.

Ton sur ton há décadas, excepto alguns arrojos – azul escuro com vermelho ou cinzento, por exemplo.

Hoje era dia de verde, uma cor que causa engulhos ao meu amigo João Pires da Cruz, vá lá saber-se porquê. Descrevo: umas calças de pano de um verde musgo claríssimo e uma camisa a estrear de um algodão fino, sem marca à vista que não sou um desses queques azeiteiros de Cascais, pequenos quadrados com riscas estreitas ligeiramente mais escuras que o verde das calças – um prodígio de calculada simplicidade.

Com a camisa vinha como de costume uma etiqueta cosida na fralda. E como o tempo vai quente e a coisa se generalizou ia ela por fora das calças – é mais fresco e confortável.

Cortei a etiqueta, como sempre faço, porque senão fica ali a adejar – parece um preço.

Ao deitar ao cesto, suspendi: mas porque raio é que agora são necessárias estas etiquetas quilométricas, e que dizem elas?

Fui ler, mas não se pode sem uma lupa. Munido do essencial acessório, que suponho existe em todas as casas não vá alguém não se aperceber da existência de preciosas indicações, descobri uma marca, o nome e endereço do estabelecimento que comercializava o artigo, e onde era fabricado (em três línguas), no caso Myanmar, o tamanho e um daqueles códigos de barras significando, para o utilizador, nada. Do outro lado vem um extenso texto, em letra microscópica, com instruções de lavagem, de secagem, de passar a ferro e muito mais que não li porque já me doíam os olhos. Imagino que haja lá alguma coisa para proteger o ambiente e as baleias do Ártico, e deve haver pelo menos uma referência às alterações climáticas.

Isto tudo resulta de normas. E estas existem, com a cominação de multas, não para defender qualquer interesse do consumidor mas para satisfazer grupos de activistas chanfrados que não sabem o que aquele quer mas não têm dúvidas sobre o que deveria querer.  Coisa da mesma família das tampinhas das garrafas de água que não se desprendem ou do tamanho exacto dos autoclismos, e de uma crescente lista de exigências porque o legislador, sobretudo o europeu, não tem ideia do interesse geral mas do de grupos de pressão.

A etiqueta é ilegível. Faz o fabricante muito bem.

A Casa (7)

José Meireles Graça, 03.06.25

Alguns co-herdeiros preencheram os espaços em branco no modelo da procuração, nomeando-me, com algumas incongruências de concordância gramatical porque o modelo procurava cobrir todos os casos; em dois casos o texto é de outra extracção, provavelmente de advogados; outros guardaram-se para mais tarde, a ver se podem comparecer no dia que vier a ser aprazado, espero que com o louvável propósito de me oferecer o almoço; e houve quem se escandalizasse por o cônjuge também ter de assinar: o quê, o herdeiro(a) sou eu, ele(a) tem de assinar por alminha de quem?

Espero que não apareça um jurista atípico (por saber redigir) que embirre com as redacções. Hoje em dia muitos juízes tomam-se, nas sentenças, por inspirados autores de peças jurídicas prolixas que imaginam clássicas; mas são legião os advogados de copy/paste que de Direito (isto é, interpretação de leis, doutrina, intenção do legislador, universo jurídico) sabem nada mas de peguilhices de funcionário muito.

Reconhecimento de assinaturas, documentos originais se forem exigidos para o efeito de os Correios encravarem tudo, documentos que referem casamentos que outros não mencionam ou não foram averbados onde deviam, e o mais que não adivinho, seria para levar a desconto dos meus pecados – um benefício. Que não posso aproveitar porque estou convencido de que eram poucos e foram purgados.

O diabo, o diabo mesmo, é o Canadá e o Brasil. Porque nem sei em que sítio daquele estimável país do norte da América vive o meu sobrinho, nem se tem um consulado por perto. Promete resolver, veremos.

E, do Brasil, o meu primo diz-me que para a procuração poder ser certificada (ou lá o que é) tem de ser redigida de forma substancialmente diferente, que me remeteu. E não só isso: “O outorgante fica responsável em comprovar a titularidade do bem mencionado, ficando o outorgado obrigado apresentar título de propriedade para os fins da presente”. E mais: a certidão de óbito da falecida, não fosse alguém tentar vender a casa de sua pertença com ela, vivinha, lá dentro.

Por que carga de água é que numa procuração para a venda de um bem se tem de fazer prova da titularidade do bem não alcanço. Enfim, lá foram mais papéis, com a esperança de que as autoridades tabelioas brasileiras não peçam um certificado de que o Governo Português é legítimo, caso em que a prova documental ocuparia vários in-fólios.

Há uns anos acompanhei um amigo a S. Salvador da Bahia porque ele ia comprar uma propriedade e andei em escritórios de advogados, notários, bancos, tendo concluído que a nossa administração pública é, por comparação, absolutamente modelar: encrava e chateia não mais do triplo do que deveria, a brasileira o óctuplo. Àqueles mal-agradecidos deixamos um país imenso, unido e não esfarrapado como os que resultaram do império espanhol, e uma língua que bem lhes tem servido para a fazerem mais doce. Infelizmente, também deixamos os tiques da administração pública intrusiva e rapace e a corrupção, que eles trataram, porque tudo é grande naquele país, de amplificar.

O casal comprador da casa queria que assinasse um contrato-promessa para a escritura até ao fim do mês de Junho, oferecendo um sinal. Deus me livre de semelhante imprudência, disse à imobiliária (ainda não conheço o casal, que me dizem ser simpaticíssimo), até lá ainda posso ser encravado de múltiplas maneiras e teria de restituir em dobro. Razões pelas quais fizeram um contrato com a própria imobiliária, cujo texto aprovei, em que esta se compromete a não tentar vender a outros pelo menos até àquela data.

Da imobiliária perguntam, em 13 de Maio: E a licença de utilização, onde está? Em lado nenhum, de modo que requeri cópia à Câmara local. E esta respondeu por escrito (no mesmo dia!, por mail, ai Sócrates que o simplex não foi todo para deitar fora) que semelhante licença nunca existiu.

É mais outro papel sem o qual nada feito. De modo que tratei de procurar um gabinete de arquitectura local, que encontrei, ao qual encomendei o trabalho.

Foram rapidamente ao sítio, viram, inspeccionaram, e deram notícias. Más. Comuniquei-as aos meus companheiros de infortúnio no dia 15.

Mas isso fica para amanhã.

A Casa (6)

José Meireles Graça, 02.06.25

Em Março catrapuz, um dos repúdios da herança não estava bem porque faltava um misterioso “depósito” não sei onde. E como o repudiante vive em Santarém pedi-lhe que desenlaçasse a meada, senão os filhos (três) deixavam de ser herdeiros porque passava a ser ele. Logo agora que já estava tudo mais ou menos encarreirado (não estava nada, a procissão ainda ia no adro, mas Nosso Senhor fez-me ingénuo, ainda que voluntarioso). O santareno, meu irmão, pôs o solicitador dele a falar com a minha e cozinharam a solução.

Chegou finalmente o dia da bem-aventurança, com a marcação da escritura de habilitação de herdeiros para 19, numa avenida Tenente Leonardo de Meireles. Cogitei que como todos éramos Meireles, a rua era de um nosso parente (parece que foi o primeiro presidente da Câmara local e do parentesco não tenho a certeza mas só lhe ficava bem), a notária também deveria ter aquele sobrenome – naquele concelho, aparentemente, quase não há outras famílias. Não senhor, apenas partilhava a simpatia das nossas mulheres, e já não era nada pouco.

Saí cedo e pus no meu antigo GPS o endereço. E cheguei ao destino, que era uma estradazita aprazível no meio de quintas, com algumas casas mas sem o número de porta desejado. Como passasse um senhor que parecia letrado, perguntei se era ali a avenida assim assim, mas não era, fui esclarecido, ali era a rua, a avenida ficava na cidade.

Já há uns anos fui almoçar a casa do meu bom amigo João Távora, em Cascais, com pessoas que estimava mas não conhecia pessoalmente, e fiz a lamentável figura de chegar atrasadíssimo porque naquele concelho há duas pracetas com o mesmo nome. E estes infelizes sucessos poderão ser fruto de distracções ou da vetutez do aparelho, mas acredito antes que se trata de maldade brincalhona do Espírito Santo, que seleciona cretinos para os colocar nos serviços de toponímia municipais.

Já ia aliviado de 395 euros, mais outras coisinhas lá atrás, conta das várias certidões que havia sido necessário pedir, e preparei-me estoicamente para o preço da própria escritura. A qual, vá lá, ficou apenas por 436,53 euros, e cuja cópia, com satisfação, enviei aos meus co-herdeiros – tinha-se chegado a algum lado.

Seguiu-se uma larga troca de correspondência: alguns erros de endereços porque os que estavam nas certidões ou noutros papéis estavam desactualizados e, num caso, um regime de casamento que foi descrito como de comunhão de adquiridos por se ignorar que havia uma convenção antenupcial – trapalhadas irrelevantes para o propósito comum, que com optimismo espero não venham a revelar-se escolhos.

No dia 1 de Abril envio novo e-mail ecuménico, que rezava a certo ponto:

No sábado passado encontrei-me na casa com o D (a quem tinha pedido que desse destino ao recheio, como efectivamente fez), o Dr. ATF, que representa a imobiliária, uma engenheira, da qual não retive o nome, para tratar da certificação energética (uma papeleta sem a qual não se podem fazer escrituras de compra e venda), um fotógrafo da imobiliária para pôr a coisa no site deles, a DA, que ainda vai lá abrir janelas para arejar e que cedeu uma chave da porta de entrada ao agente imobiliário, e a minha mulher, K, esta última para efeito de me fazer companhia não fosse eu asneirar.

Para adiantar trabalho, e ainda que não faça ideia de quando será necessário fazer a tal escritura de compra e venda (pode demorar meses, não sei), e partindo do princípio de que nem toda a gente estará disposta a comparecer num cartório alhures, junto um modelo de procuração para, quem quiser, preencher delegando em quem bem entenda, que terá de comparecer.

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A parte gaga do certificado energético foi mais uma surpresa, que veio a custar 319,19+49,82 euros. Há, parece, quem o dispense, mas é imprudente não tratar disso porque o lobby ambientalista já pôs este escolho na lei, de modo a que quem se sinta enregelado no Inverno fique a saber, com uma escala de letras, que se gastar uma fortuna fará grandes poupanças e poderá ver programas manhosos de televisão com o maior conforto.

Inteirados destas pequenas sangrias em vida, muitos se ofereceram para ajudar. Deus me livre, só a perspectiva de fazer contas que em alguns casos chegariam a valores ridículos (eu sou herdeiro de 1/6 de ¼, ya usted ve), NIBs para cá e para lá, e isto quando ainda haverá outras contas, como a da diligentíssima solicitadora, para não falar da comissão da imobiliária, é para recuar com horror. Eu, pelo menos ao jantar, com uma sopa e uma fruta fico bem, e ademais ainda tenho no fundo de uma arca uns trocos.

Lá veio o certificado. E veio também, sem ter sido pedido e de graça, um estudo de mercado que a imobiliária fez: descrição exaustiva e reportagem fotográfica, acessos, localização, estabelecimentos nas redondezas e distâncias, preço das casas da mesma tipologia vendidas na região (uma no mesmo arruamento), estimativa para um valor máximo e mínimo.

Apareceram vários interessados, que acharam caro ou fizeram ofertas que se achou preferível pôr em banho-maria, ou torceram o nariz por isto ou aquilo. E surgiu ao cabo uma proposta no preço médio, que decidi com concordância geral (ou pelo menos silêncio aquiescente) aceitar. Digo, não digo, qual foi o valor? Só mais lá para a frente, se e quando se vier a fazer a escritura definitiva.

Amanhã vou às procurações, que são um nó cego que faz favor.

A Casa (5)

José Meireles Graça, 01.06.25

Andamento, disseram-me, andamento. Vou assim cortar uma data de detalhes, e resumir, a ver se acelero.

Fui portanto à casa (uma boa casa, com uma muito grande cozinha, espaçosa sala de jantar, três quartos grandes e um mais pequeno, garagem exterior, pomar razoável, o que me pareceu um grande galinheiro e arrumos, um sótão enorme, com janelas, arquitectura despretensiosa do princípio dos anos 80. Felizmente sem incongruências de arranjos interiores e mais felizmente ainda sem aquelas pretensões a la Souto de Moura, que transformam as casas em caixas de sapatos ou máquinas fotográficas reflex). O quintal abandonado desde há quase um ano, vegetação por toda a parte, a mobília quase ainda toda, como o resto do recheio – os meus dois primos que o haviam herdado testamentariamente não tinham tido grande interesse em quase nada.

Encontrei muita papelada (a tia guardava tudo), pedi cópias dos cartões de cidadão a todos para, com isso, se obterem certidões de nascimento, e disponibilizei à solicitadora tudo o que encontrei.

No relato que fiz desta visita dizia, a final, o seguinte:

Enquanto decorrem estes trâmites não há razão para não se ir preparando o caminho para a venda do imóvel. Dá-se o caso que conheço um excelente profissional, Dr. ATM, originário de uma família local, cuja imobiliária se chama Assim e Assado Imóveis, www.etc.etc. Se nisso não virem inconvenientes falarei com ele, sendo certo que não assinarei nenhum contrato sem antes o aprovarem.

Em 4 de Fevereiro, na parafernália de certidões de óbito, de nascimento e documentos de repúdio de herança, além de uma escritura de habilitação que já era certo que nunca existiu e outra que existia, já só faltavam dois cartões de cidadão, que novamente pedi – quase 30 documentos, uf. Por que razão o cartão de cidadão é necessário para pedir certidões que dizem o que está no cartão, isso não perguntei, que não sou desses que andam por aí a fazer perguntas como se não tivessem mais nada que fazer.

Havia um velho tio que vivia em B, que morreu depois do meu Pai mas antes dos restantes irmãos, portanto desta minha tia, que não deixou filhos e cuja viúva já morreu igualmente há muito – já não lembro de que forma foi ultrapassado este importante óbice porque documentos não havia. Meu pobre tio, zangado com toda a gente, que me ofereceu um sumptuoso almoço seguido de uma tarde de libações numa casa que tinha à beira-mar, quando lhe fui apresentar não sei se a ainda namorada ou já noiva.

Entretanto o tal amigo da imobiliária também começou a pedir documentos para ir partindo pedra. Quem compra casa pede geralmente um empréstimo bancário e os bancos (hoje balcões burocráticos do BdP, que por sua vez é um balcão burocrático do BCE) são, parece, ainda mais picuinhas do que os notários comuns. Nada de preocupante, nesta altura já tinha um arquivo digitalizado de documentos que, se estivesse à procura de emprego, me garantiria talvez um pequeno lugar na Biblioteca Nacional.

Em 17 de Fevereiro narrei aos meus co-herdeiros a situação, e como tinha entregue tudo o que me havia sido pedido (o caso do Canadá fora o mais complicado mas ultrapassou-se) acabei dizendo que “este breve e-mail é mais para dizer que não há erva a crescer-me debaixo dos pés”.

E chega por hoje, que mais depressa sim mas não gosto de empurrões.

A Casa (4)

José Meireles Graça, 31.05.25

Procurei obter o que me era pedido, e fui sendo servido, ainda que com dúvidas, confusões e sugestões.

A 23 dirigi-me a todos. Agora já os endereços não tinham falhas e impus-me a obrigação de não dar um passo que me parecesse de interesse comum sem dele dar conhecimento. É o bom que tem o e-mail, nem sei como é que dantes as pessoas se desenrascavam. Por esta altura já havia também quem se me dirigisse por WhatsApp. Só não fiz um desses grupos com imagem e som porque a tecnologia ainda não permite distribuir cerveja e salgadinhos. Assim:

Boa tarde.

Encontrei-me hoje com a solicitadora, que me disse que para prosseguir com o assunto precisa do documento de habilitação dos sobrinhos à herança da tia F, que talvez tenha sido feita ou não.

Da extensa documentação que me disponibilizou a C não consta.

De modo que telefonei à DA, que detém as chaves da casa e se prontificou a ir comigo ver uns documentos que há por lá – talvez exista esse. No próximo Sábado porque nem hoje nem amanhã poderia, dado estar a trabalhar.

Se a habilitação não tiver sido feita será necessário fazê-la. Não é impossível, mas dará uma trabalheira só para coligir a papelada necessária.

Um abraço ecuménico.

Zé.

A um primo que vive no Brasil (há um sobrinho que vive no Canadá e o Estado Português é mais exigente com a papelada destes expatriados do que, creio, com a dos imigrantes), inexcedível de atenção e boa-vontade, respondi assim, na sequência da reacção ao e-mail que figura acima:

Se fosse a ti não fazia, para já, nada. Quanto menos pontas soltas houver, nesta altura, melhor, o processo já é uma terrível confusão. O critério que estou a seguir é não alimentar excessivamente conversas, salvo as que forem estritamente necessárias e para o que for imprescindível, e ir dando à solicitadora tudo o que ela pede, a ver se levo a empresa a bom porto. De resto, o testamento é perfeitamente claro sobre o recheio da casa e a(s) conta(s) bancárias, nem percebo por que razão a solicitadora acha necessário trazer isso à colação. Enfim.

Um abraço.

Zé.

(Lendo este arrazoado no recesso familiar porque ninguém põe o pé fora da porta, tal o calor, foi-me dito: Não paras de empalear, isso parece um filme em tempo real. É o que temos, foi o que respondi.)

A Casa (3)

José Meireles Graça, 30.05.25

Prosseguiam entretanto as trocas de correspondência por causa disto e daquilo. E ia descobrindo que nesta parentela (muitos não conhecia pessoalmente, salvo por encontros fugazes em enterros, e outros nem isso) todos sabiam escrever, coisa hoje relativamente rara.

Isto vem confirmar uma minha tese antiga, original e percuciente, segundo a qual se conhecermos um número significativo de indivíduos com ascendentes comuns próximos (é o caso: são todos netos ou bisnetos do mesmo casal) encontraremos diferenças abissais entre eles mas também alguma recorrência de características psicológicas comuns. Se eu estiver certo, como é meu costume, deverão aparecer, ainda que dentro dos limites da normalidade, dois ou três chanfrados, sem descartar o facto de haver pessoas pouco credíveis que me incluem nesse âmbito.

De resto, conheço pelo menos uma família (com uma amostragem bem mais significativa) que tem uma percentagem anormal de avarentos; outra de burros; e não deve ser preciso procurar muito para encontrar famílias com percentagens incomuns de mentirosos ou socialistas.

A 20 de Janeiro escreve-me a solicitadora, assim:

Boa tarde Sr. José Meireles Graça,

No seguimento infra, sim, será melhor agendar dia/hora para passar no escritório, uma vez que, para prosseguir com as diligências para o pretendido necessito de procuração para tratar do assunto junto das entidades públicas, nomeadamente junto das finanças para obter a certidão da apresentação imposto selo por óbito da sua tia.

Seria importante que o Sr., junto dos seus primos filhos do seu tio AA, perceber quem o acompanhou para tratar dos assuntos após a morte da sua tia, isto porque é importante para sabermos se foi ou não feita a habilitação de herdeiros, onde, e por quem.

No que diz respeito aos seus primos, que diz terem recusado herança, tem que lhes pedir cópia do documento formal para se perceber em que termos foram feitos e se têm validade jurídica.

Por último, e se assim entender, podemos agendar para passar no escritório na próxima quinta-feira.

Cumprimentos.

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Lá fui. Stay tuned.

A Casa (2)

José Meireles Graça, 28.05.25

Seguiu-se uma saraivada de e-mails de lá para cá e de cá para lá, por causa de troca de endereços, correcções disto e daquilo, documentos, memórias… e, a 17 de Janeiro, a solicitadora envia-me cópia do testamento que desencantou lá onde os solicitadores desencantam coisas, juntamente com uma conta de despesas de papeladas oficiais de 61,35€.

Refiro este modestíssimo estipêndio porquê? Porque, tirando o imposto de selo que havia pago em 2019, e que foi à volta de 340€, igual ao que pagaram os outros herdeiros à época, a hirsuta cabeça do Estado ainda não tinha aparecido e, confortado na minha ingénua ignorância, não adivinhava que seria doravante uma sombra tutelar dispensadora de exigências de burocrata sádico e sedento de sangue.

Mas enfim, o testamento apareceu. E apressei-me a enviá-lo aos outros herdeiros, assim:

Boa tarde.

A solicitadora fez-me chegar cópia do testamento da tia F, que nunca tinha visto. Suponho que seja também o caso de todos, ou parte, de vós, pelo que a envio em anexo.

Encontrar-me-ei com ela para a semana e darei conta do resultado, em particular quanto a aspectos fiscais: quem pagou imposto de selo e quanto, e se haverá ou não responsabilidades futuras.

Espero não me estar a esquecer de ninguém. Não tenho remetido nada aos meus irmãos M e FA por entender que quando repudiaram a herança o quiseram fazer também em nome dos filhos. Não sei ainda de que forma deve ser isso encarado do ponto de vista legal, de modo que está o assunto, de momento, em suspenso. Ouço dizer que o meu irmão JP, que morreu sem filhos há pouco tempo, terá feito um testamento a favor de nossa mãe, que portanto também seria herdeira. Irei também apurar isso, estou à espera de documentos.

Abraço.

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Estas dúvidas já as esclareci no post anterior, que não sou de segredinhos, mas nesta altura ainda julgava que tinha nas mãos um assunto perfeitamente manejável, e não um molho de brócolos.

A Casa (1)

José Meireles Graça, 27.05.25

Proponho-me contar uma história chata. O seu centro é uma casa numa vila como muitas, uma morte de uma tia da qual guardava gratas recordações de infância, seguida de quase completa ausência de contactos durante décadas, e o que a partir daí se tem passado. E como de histórias chatas toda a gente foge compreensivelmente a sete pés, destilo-a em pequenos passos. Assim, aos goles, quando o paciente der por ela já tomou o xarope todo.

Começa com um e-mail dirigido em Janeiro a 13 parentes, que dizia:

Olá a todos.

A nossa prima C telefonou-me há uns dias inquirindo da situação actual da herança da nossa tia F, visto que, por ser o mais velho dos sobrinhos, sou o cabeça-de-casal.

Não lhe pude dizer nada porque desde o funeral [em Março de 2019] da tia nunca tive nenhuma espécie de informação, salvo a comunicada pelo tio A (que, como sabem, também já morreu), segundo a qual haveria um testamento que nomeava herdeiros todos os sobrinhos de sangue, com uma reserva de usufruto da casa a favor do tio Ad enquanto vivo fosse. Já não é, como bem sabemos.

Na altura paguei a minha parte de um imposto qualquer (creio que de selo) que era devido como herdeiro, como suponho que todos fizeram (salvo dois irmãos meus, o M e o FA, por ambos terem repudiado a herança) e nunca mais tive conhecimento fosse do que fosse.

A C quer (todos querem, suponho) que este assunto se resolva; fazer alguma coisa por isso é a minha obrigação. Disponibilizou-me, a meu pedido, toda a informação que tinha, que não é muita mas incluía os vossos endereços de e-mail.

Comecei por telefonar a uma sra. DA, que é pelos vistos quem tem a chave da casa. A senhora atendeu-me com simpatia, explicou-me que a luz e a água ainda não tinham sido cortadas, onde é que morava (ali perto) mas informou que não tinha conhecimento de haver interessados na compra. Ao que sei, não há notícia de a casa estar à venda, pelo que realmente assim é pouco provável que apareçam interessados.

Para ter acesso ao testamento, que nunca vi, e tomar conhecimento da situação fiscal e dos passos que devem ser dados a seguir, procurei (na internet) um solicitador e encontrei um em F. Porém, ninguém atendeu o telefone nem de manhã nem de tarde, de modo que telefonei a outro (uma outra, aliás) em Paços de Ferreira, a qual me informou que já não trata de partilhas porque só se ocupa de execuções.

À terceira acertei, falei com a senhora, que se prontificou a receber-me, e abalei para Paços de Ferreira. Lá chegado encontrei uma casa de fotografia, pelo que voltei a telefonar à senhora que me disse que já não estava em Paços de Ferreira desde 2009 – o endereço correcto era assim assado.

Trata-se de Fulana, endereço xis, com e-mail ípsilon.

Encarreguei-a das diligências que acima referi e, de posse das informações, comunicá-las-ei, eventualmente com a minha sugestão de como adiantar o assunto.

Agradeço os vossos comentários, se os quiserem fazer, sendo certo que, como é legal e razoável, nada será feito sem o vosso acordo.

Um abraço.

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Seguiram-se muitas respostas, sugestões e pedidos de esclarecimento, com os quais não vos vou torrar a paciência. Uma delas, porém, informava que havia um testamento de um irmão falecido há pouco tempo que nomeava herdeira a mãe, que portanto também concorria. Já havia um outro caso, de uma viúva do tio A acima referido, de modo que os herdeiros já poderiam constituir uma equipa de futebol, completa com quatro suplentes.

E no dia 19?*

José Meireles Graça, 16.05.25

No próximo dia 18 não terei dúvidas: votarei no CDS (onde está) como de costume, que não sou desses que, cansados de um casamento antigo, correm atrás da primeira minissaia.

Tenho dúvidas de que a AD ganhe com maioria absoluta. Se não acontecer, ficamos como estamos e arrastar-nos-emos penosamente até que o eleitorado dê sinais de estar farto dos discursos aos “portugueses e portuguesas” anunciando mais um pequeno bodo, um pequeno triunfo, e a nomeação de uma comissão para a reforma tímida disto ou daquilo – no SNS, na Justiça, na habitação, na fiscalidade, no “combate” aos incêndios e à tragédia dos sem-abrigo e outras tragédias.

Se e quando acontecer nova consulta eleitoral será provavelmente sob a égide de um novo Presidente. E se este for o almirante que talvez ache coisas ponderosas sobre o país e o mundo, mas guarda essas profundidades para si enquanto se alivia de banalidades, já estou daqui a vê-lo a dizer que é necessário “devolver a palavra aos Portugueses”, a consagrada expressão para quem gasta paleio pré-fabricado.

Podia não ter de ser assim. Nesta altura teria sido possível que os senhores jornalistas competissem para ventilar as dissensões que haveria no seio do Governo, entre os ministros da AD que queriam reformar isto e aquilo enquanto os colegas do Chega arrepelavam os cabelos porque certas reformas lhes feriam a clientela eleitoral e a sua visão do mundo – mas eleições é que não teriam lugar.

Ou ao contrário ou de outra maneira, que para exercícios contrafactuais cada qual faz os que quer.

Não faltam magistrados da opinião, e alguns deles consideráveis como António Barreto, que veriam com bons olhos entendimentos entre os dois maiores partidos para o meritório objectivo de “reformar”, porque o lento e constante deslizar do país para os últimos lugares do desenvolvimento preocupa os mais conscientes. Não há porém reforma de fundo de quase nada que não implique a desestatização da economia e o emagrecimento do Estado, e com isso golpes mortais nos múltiplos interesses que, como carraças teimosas, se incrustaram no tecido económico e no social – precisamente o resultado de décadas de políticas socialistas.

O cálculo por trás da engenharia centrófila é que ofender os interesses de muitos eleitores “naturais” do PSD e do PS só é possível se os dois estiverem de acordo, senão quem capitaliza o descontentamento do que um faz é o outro, que na primeira maré reverte tudo.

Como raciocínio não está mal. Excepto pelo facto de que quase nenhuma reforma que valha (salvo, talvez, a da Justiça) se pode fazer com o PS mas contra o PS. De modo que a defesa de um Centrão confessa duas coisas: uma é que não são possíveis, em Portugal, reformas de direita; e a outra que quem as empreenda se suicida.

Mas não: Passos Coelho provou que era possível ser genuinamente reformista e ganhar eleições; e a ascensão do Chega garante que há fora do partido do Estado (como lhe chamava o saudoso Medina Carreira) capital humano suficiente para construir maiorias.

Seria desejável que os votos que irão para o Chega fossem todos para a AD. Mas o facto mesmo de isso não ir acontecer prova que quem, à direita, quer outra coisa, não confia que com a AD não seja mais do mesmo.

Há em Portugal quem queira mudar. Se a AD compreender isso, e tiver o benefício de uma maioria absoluta (ainda que precise da muleta da IL), faria bem em ignorar o berreiro da comunicação social e das oposições e refazer o ambiente da troica, desta vez sem a humilhação dos patrões estrangeiros, sem a pressão de exames periódicos de bom comportamento, e com tempo para pensar e medir.

Por onde começar? Há tanto que fazer que não vou decerto eu, no meu confortável cadeirão, fazer uma lista, que seria imensamente incompleta, além de aqui e além muito discutível.

Mas requeiro desde já uma reforma fácil, expedita, sem custos e sadia: abstenção de tratar os portugueses como “portugueses e portuguesas”. Este palavreado é cobarde e ignorante. Cobarde porque representa uma cedência semântica ao ar esquerdista do tempo, que pontapeia a tradição em nome de igualdades a martelo; e ignorante porque despreza a gramática – o masculino plural refere-se não só ao género masculino mas também ao feminino.

E, bem vistas as coisas, talvez não seja apenas um retoque no discurso. Que as mudanças necessárias requerem homens de barba rija, mesmo que sejam mulheres. Afinal, Margareth Thatcher ou hoje Giorgia Meloni, e muitas outras no passado e crescentemente no presente, mostram o caminho sem que ninguém as acuse de falta de feminilidade.

* Publicado no Observador

Modernidades

José Meireles Graça, 04.05.25

 

Há dias fui a Lisboa num carro que não é o meu, moderníssimo: tinha uma televisão daquelas dos cafés no meio do tablier, o segredo do manuseio das 74 funções estava contido num manual com 1234 páginas divididas em 3 tomos e fosse para o que fosse que se pretendesse fazer era necessário ensebar o écran com os dedos, o que me informaram ser um grande progresso.

Tinha forte personalidade, o veículo, e manias: uma delas era que oferecia resistência a mudar de faixa, tique que felizmente me ensinaram a desligar.

A meio da viagem uma voz maviosa surdiu de repente, perguntando-me em que podia ajudar. Como não tinha pedido nada e achei a intromissão inopinada, disse à rapariga: Vai prà puta que te pariu. Longe de ficar ofendida regressou daí em diante várias vezes, sempre com a mesma pergunta e eu a mesma resposta.

Estou obsoleto e as novas gerações parvas. O primeiro destes problemas resolver-se-á naturalmente, o segundo não sei.

A tarifa dos nossos descontentamentos*

José Meireles Graça, 19.04.25

Pode-se ocupar menos proveitosamente o tempo não lendo Hillbilly Elegy. Não será, literariamente, uma obra brilhante, mas retrata com fidelidade e sem intenções panfletárias uma região deprimida e uma classe social desestruturada (com perdão do adjectivo).

As indústrias que conformaram o modo de vida da região fugiram para o estrangeiro, deixando atrás manchas de desemprego de gente que não pôde ser completamente reabsorvida, famílias desfeitas, problemas de difusão de droga, tudo num pano de fundo da maneira de ser americana, tradicionalmente violenta.

Ganharam os consumidores americanos, que passaram a ter acesso a produtos mais baratos, os donos das empresas, que conservaram ou aumentaram os seus lucros, disponíveis para novos investimentos na mesma ou noutras áreas, e os trabalhadores estrangeiros, que puderam melhorar o seu nível de vida.

Coisas da liberdade de comércio: No conjunto, há progresso material e, sem ela, há arrastar de pés. Mas mesmo que estes novos pobres americanos apenas o sejam estatisticamente (têm carros, ainda que em segunda ou terceira mão, à porta, e atocham-se de junk food que os faz obesos, o que tudo os faria serem considerados milionários em muitos países do Mundo) sentem-se, com razão, à margem.

Também sou de uma região que já foi um centro do linho, dos curtumes, que teve a maior fábrica de sapatos do país, de brinde porque o centro principal nem era aqui, e várias têxteis de dimensão apreciável, além de inúmeras médias e pequenas, bem como cutelarias. Das grandes, uma gabava-se de ser a maior em têxteis-lar da Europa, pelo que é bem possível que estivesse no quarto ou quinto lugar.

A maior parte disso foi para o galheiro, completamente no caso dos dois primeiros sectores. E todavia a indústria reinventou-se: diversidade na oferta, prazos mais curtos, séries mais pequenas, empresas de menor dimensão e mais ágeis, modernização do equipamento, além de uma explosão na oferta de serviços. De modo que crise social não há, o que há pelo contrário é falta de mão-de-obra, o que leva a recurso crescente a imigrantes.

Espertos, estes vimaranenses, e burros aqueles americanos? De todo: indústrias pesadas, quando emigram, deixam um buraco, não sendo de esperar que o antigo operário, que sabia lidar com um forno ou montar um tablier e tem 40 ou 50 anos, aprenda de repente a sentar-se diante de um computador de uma linha automatizada de não sei quê ou a prestar serviços sofisticados de grande valor acrescentado.

Esta gente, infelizmente, vota, e quer pouco saber de teorias económicas que provam que o progresso vem da concorrência e da eficaz afectação de recursos; mas quer muito da dignidade do trabalho que desapareceu, e dos rituais da antiga comunidade que se esfrangalhou. De modo que pode até comprar artigos made in China, mas vai acumulando uma surda revolta contra uma América que não entende e que está distante dos fulgores dos anos do pós-guerra, e um ódio crescente ao Chinês e ao Mexicano, e de maneira geral ao imigrante, ao economista que lhes diz que não valem nada, ao intelectual e político que com sobranceria lhes desprezam as crenças religiosas e lhes tentam enfiar pela goela abaixo as doutrinas woke.

Estes, os deplorables, como lhes chamou a deplorável Hillary Clinton, fizeram inclinar a balança a favor de Trump, que tem paulatinamente vindo a responder aos anseios de quem lhe deu a vitória.

Daqui as taxas alfandegárias que lançaram o mundo em convulsão, ainda que não só por isto: o bom do Trump quer de uma assentada resolver o problema da dívida pública (que é maior do que a portuguesa e que não dá quaisquer indícios de vir a diminuir), da ameaça geoestratégica percebida do risco de défices permanentes da balança comercial, e da dependência em materiais críticos para uma autonomia militar e industrial ou até para artigos de consumo sofisticados.

Conta com um aumento da receita fiscal e regresso de empresas americanas que se expatriaram, ou estrangeiras que se queiram estabelecer para aproveitar sem penalização de taxas o mercado americano.

Infelizmente, a generalidade dos economistas, consabidos magos destas coisas, acha isto uma loucura que não vai ajudar, pelo contrário, os Americanos, ainda por cima prejudicando o resto do mundo. E eu, que bem gostaria de discordar daquela ilustre agremiação, tendo a dar-lhe razão, ainda que nem sempre pelos mesmo motivos: Não se pode parar a evolução natural das coisas e da economia, abandonar uma fábrica para a estabelecer noutro lado onde a pastagem seja mais verde é um caminho imensamente mais fácil do que o percurso inverso, a fábrica que desapareceu há décadas já não existe porque a evolução tecnológica a transformou noutra coisa, e o que a América fez não é na substância diferente do que fizeram outras economias de sucesso. Fizeram ou estão a fazer: a China já exporta empresas para países de mão-de-obra mais barata.

Pode ser que o progresso científico e tecnológico venha no futuro a modificar os dados deste problema – não sabemos; e também pode ser que a evolução demográfica altere tudo porque a China (o principal “inimigo”) não faz crianças em número suficiente, de modo que o séc. XXI talvez não seja deles.

Resta que os outros problemas, isto é, o da dependência com implicações geostratégicas e o da dívida pública, requeriam uma abordagem paciente e cirúrgica, não esta motosserra desgovernada, cujos estilhaços vão fazer ricochete; e o segundo não será resolvido com a imaginária receita acrescida das taxas alfandegárias, antes com a horrível maçada de deixar de ter défices. O que Trump, aliás, não esqueceu, daí o DOGE, os violentos cortes na USAID, a exigência da divisão equânime das despesas entre os vários países da NATO, e o planeado abandono de agências internacionais minadas por burocratas e esquerdistas sortidos. Mesmo aqui, porém, o esbracejar e as pressas não são bons conselheiros: o acumular de erros e injustiças reais (não necessariamente as gritadas pelos telhados da comunicação social de lá e de cá) podem fazer deitar fora o clássico menino com a clássica água do banho. Destes erros um, recente, é a ameaça a universidades americanas de retirar apoios no caso de estas se recusarem a substituir a ideologia woke e o anti-judaísmo não pela liberdade crítica, essencial à vida universitária, mas pelas posições de Trump em tais matérias. Não excluo que Vance, o VP autor do livro que mencionei a princípio, já esteja a pensar que o que é demais é erro.

Em suma: Poderá Trump recuar na desastrada iniciativa da guerra comercial, embrulhando o recuo na retórica de ter sido tudo planeado a benefício de algumas vantagens?

Seria bom. Porque, como já disse tantas vezes, a personagem é detestável a vários títulos, excepto por ser depositário de algumas ideias de direita que outras direitas não têm força anímica para combater: o estatismo, a engenharia social, a limitação da liberdade de expressão – entre muitas outras.

* Publicado no Observador

Spinumviva*

José Meireles Graça, 29.03.25

Quem quiser perceber o caso Spinumviva e seguir os seus desenvolvimentos desde o início perde tempo porque, quando chegar ao fim, já esqueceu o princípio. De resto não há fim – este resumo que, em jeito de conclusão, está aqui, já deve estar ultrapassado por mais detalhes intrometidos que a conta-gotas aparecem nos jornais.

Que se dane a historieta, que não tem importância. Ou melhor, tem tão pouca que ao fim deste tempo todo ainda ninguém de consequência acusa Montenegro de crimes – só de falta de ética, e mesmo isso esticando muito as pernas do raciocínio. E, do que já se sabe, de crimes nicles mas de espreitadelas pelo buraco da fechadura da porta do escritório muito. A mulher de Montenegro tem brilhado pela ausência mas se a coisa continuar a render ainda havemos de apurar se como cozinheira deixa ou não a desejar, se era boa mãe, se lê alguma coisa antes de adormecer e o quê.

O que interessa perceber é como por causa de uma coisa destas o governo cai quando ninguém acha que eleições resolvam qualquer problema. O caso é tão estranho que, descontando algum despropósito da comparação, faz lembrar a Grande Guerra: era improvável, ninguém queria, mas um assassinato tresloucado espoletou o mecanismo das alianças e do não perder a face, e a partir daí a coisa escalou e arrastou-se por quatro sangrentos anos.

Sangue e mortos é claro que não vai haver. Mas do não perder a face há aqui muito. Porque o PS queria cozer em lume brando o PM, através do mecanismo da Comissão de Inquérito, para o cobrir de alcatrão e penas quando as sondagens dissessem que o eleitorado estava farto do PSD. E este, antevendo o perigo, deu-lhe um cheque com a rainha, isto é, vai fazer comissões de inquérito à tua tia. O pobre do PS, nesta altura, já não podia recuar e os seus quadros, a começar pela inspirada e loquaz Alexandra Leitão, refugiaram-se na tese de que quem fez cair o Governo foi o próprio Governo. A própria diz isto com tanta convicção, e tão larga cópia de argumentos, que a gente chega a imaginar que ela acredita no que diz.

Isso o PS. Já o Chega achou que não tem nada a perder com eleições ou, se tiver, o salvar o Governo num caso de alegada corrupção empanaria uma das estrelas da sua bandeira, que é justamente o combate àquele flagelo. E além do mais tinha uma vingança para operar, que era a das linhas vermelhas da dura rejeição de Montenegro – já lá vou.

Isto tudo é coisa lá da jigajoga parlamentar e do calculismo eleitoral. A política faz-se sobretudo disso mas o comentariado, cuja missão é ilustrar a população leitora, que diz?

Descontemos os da extrema-esquerda: o PCP e o BE salivam porque sonham com uma nova geringonça, desta vez com menos oportunismo à la Costa, e mais convicção à la Pedro Nuno. Estão a nanar, claro. Porque mesmo que o PS ganhe (e não se imagina porquê) há agora uma sólida maioria de direita que nada permite supor que se estiolou.

Depois temos os do PS, assumidos ou embrulhados na manta esfarrapada da isenção. Capitaneados à distância pela esfusiante Alexandra, que vai dizer aquelas coisas torrenciais que diz no Princípio da Incerteza (secundada, no geral, com grande profundidade pelo intelectual Pacheco) e montando, neste particular, o cavalo do Chega, que consiste em dizer que não há descanso enquanto todos os políticos no activo não tiverem um par de asas nas costas e todos os corruptos, reais ou alegados, estiverem nas masmorras do Ministério Público. Donde, o caso Spinumviva vai ser explorado até ao tutano na campanha. A autoridade do PS nestas matérias é, vamos dizer assim, menos do que escassa, pelo que se aguarda uma guerra de trincheiras na lama (e afinal a analogia com a Grande Guerra encontra aqui um reforço).

Vem a seguir a turba social-democrata, que tem uma data de tribos: a dos que estão sentados em cima do muro e que afiançam que o sistema está bloqueado e que portanto o ideal seria um entendimento do Centrão; os que defendem o actual estado de coisas a outrance e por isso entendem que nas próximas eleições vira o disco e toca o mesmo; e o dos que se sabe que existem mas na dúvida vão falando pouco, e que veriam com bons olhos calçar uns patins a Montenegro, a ver se doutra lura sai um coelho mais gordo.

Finalmente há os bons, que são os da minha criação. E estes dizem, como eu, que a patetice das linhas vermelhas impede qualquer esperança de reformismo, de crescimento que não seja pilotado exclusivamente pelo turismo e os fundos europeus (que aliás vão secar) e da remessa do PS e restantes esquerdas para uma sadia estada de duas ou três legislaturas nos cafundós da irrelevância. A menos que o PSD viesse a ter a maioria absoluta (com o CDS e a IL) em 18 de Maio, o que não parece provável.

Dizem mas nem sempre bem, decerto por não se aconselharem primeiro comigo. Meus amigos: Transformaram Passos Coelho num D. Sebastião, que regressará não já de Alcácer-Quibir para Portugal mas de Massamá para S. Bento. E como o próprio não cessa de dizer que não quer, e já teve várias oportunidades que ignorou, continuar a falar nisso é o mesmo que confiar no homem providencial (que sem dúvida seria) e ignorar que se dança com quem está, não com quem não quer estar – e que quem não tem cão caça com gato.

E também dizem ou insinuam que há que despedir com urgência Montenegro porque ele é um obstáculo à consagração da escolha do eleitorado, que é patentemente uma aliança das direitas. É. Mas isso não é razão para aproveitar a boleia oportunista da Spinumviva, crucificando o homem sob pretexto de um amor imarcescível à ética, que esquecerão logo que o homem do leme seja mais do nosso agrado. O oportunismo tem em si mesmo custos e projecta sombras compridas.

Não é altura de falar nessa questão, não se muda de general no início de uma batalha. E de resto o bom do PSD tratará disso no caso de perder as eleições, que aquela congregação aprecia muito quem lhe conserve os lugares e não quem lhe coarcte as esperanças.

Nem é sequer certo que as juras de linhas vermelhas sejam para manter, mesmo com este Montenegro, porque se alguma coisa já demonstrou é que tem espírito de sobrevivência e não se vê por que razão não pode ser branco ou cinzento.

Reitero portanto o que já disse antes das últimas eleições: Tirar o Chega da equação é uma burrice suicidária. Churchill afirmou que “If Hitler invaded Hell I would make at least a favourable reference to the Devil in the House of Commons”.

Em guerra não estamos mas o Chega talvez seja o Diabo, pelo menos a julgar pelo grupo parlamentar, que é pela maior parte uma recolha de populares irados dos cafés, adestrados no vozear pedestre; e o partido carece de qualquer consistência em matéria de política económica, além de cavalgar sem arreios qualquer bandeira reacionária, boa ou má. Além do que o líder dá de si boa conta no combate mas não sabemos se dará na gestão da coisa pública.

Porém: Um governo de coligação com o Chega seria necessariamente pior do que o que temos? Dava-me jeito fazerem-me rir, mas valores mais altos se alevantam.

* Publicado no Observador

Adolescência

José Meireles Graça, 26.03.25

Nas redes que frequento e onde frequentemente ilumino a turba com opiniões percucientes havia há dias um ror de textos sobre a série Adolescência (na Netflix). Não é raro e já tenho enfiado por mor destas leituras alguns barretes.

Desta vez, porém, não apenas se gabava a qualidade da realização e representação – isso era pacífico – mas as opiniões divergiam sobre a natureza do problema que a série (4 episódios) relata, e mais ainda sobre as soluções.

É lá, se não há acordo talvez valha a pena ver. Vale. Trata-se de um miúdo de 13 anos acusado de ter assassinado à facada uma aluna da mesma escola, o que fez a polícia para deslindar a meada, como reagiram os pais e a irmã, como funcionava a escola e o que move, e como se move, a canalhada hoje em dia.

A realização é excelente, conseguindo o prodígio de, sem pressas (às vezes parece o tempo real), prender o espectador, e o desempenho, incluindo dos adolescentes, sobretudo o herói, notável. Eu vi a série de cambulhada (fui-me deitar a desoras), aprende-se muito sobre como funciona a polícia inglesa em casos destes, o que é uma escola multi-rácica que é provavelmente típica, o que é uma análise psicológica bem feita por uma profissional que intervém magistralmente com um interrogatório, o papel que têm as redes sociais (no caso a estrela era o Instagram) no modo como os miúdos se relacionam uns com os outros, e a ignorância e a cegueira em que vivem os pais.

Das soluções que vi apresentar discordo: não é exigível aos pais que tenham uma vida profissional diferente e mais disponível, a culpabilização deles é uma crueldade acessória dispensável, assim como se exagera nas sugestões adiantadas para anular o risco da ausência de supervisão das interacções dos miúdos, incluindo o bullying, e se vilificam as redes com alguma ligeireza.

Mas a indisciplina na escola, a omnipresença dos telemóveis, a tribalização levada ao extremo, os códigos de conduta desenvolvidos na mais completa ignorância de pais e educadores – tudo recomenda que se olhe para o assunto e se encontrem meios de restaurar um módico de civilização. A escola ensina e também forma, não no sentido de substituir os pais mas sim na imposição de regras que sejam as necessárias para uma vida colectiva sã.

Não só isto, claro. Mas, deixando-me ir, acabaria por revelar a trama, maldade que não vou fazer porque quem vai ver que sofra como eu sofri em metade da fita.

Trumpofobia e trumpofilia*

José Meireles Graça, 05.03.25

De Marcelo diz-se que é muito inteligente, culto, habilidoso e querido do povo que lisonjeia, ao qual passa a mão pelo lombo patrioteiro e amante de musiquetas e telenovelas. Tudo verdade. E todavia, com excepção de jornalistas que vivem das rodilhices da política, e dos políticos que são obrigados a tomar em linha de conta o que Sua Excelência diz, ninguém de consequência o leva a sério porque dali não vem nem nunca veio um pensamento com alguma profundidade, uma ideia com alguma originalidade e um desígnio que não seja a vulgata do europeísmo e das ideias que andam no ar da moda do extremo-centro.

De Trump diz-se que é um grosseirão, ignorante e bronco, com educação de carroceiro, gostos de empreiteiro e deslumbramento de pato-bravo. Tudo verdade.

O primeiro não fez nem uma ruga no lago da história do país democrático, e ainda menos no mar da história tout court. O segundo agita as águas do mundo, pôs a Europa em convulsão, quer pôr Israel a dar um já chega! no terrorismo palestiniano, acabar prestes com a guerra da Ucrânia, fazer as reformas do Estado que a direita impotente, que é quase toda, anda há décadas a dizer que vai fazer, e mandar para os cafundós da irrelevância a cultura woke, substituindo-a pelo senso e a tradição, e com tudo isso restaurar a grandeza dos EUA, que acha, e está, em risco.

Um abismo separa os dois homens, tanto neles próprios quanto na importância relativa dos respectivos países, quanto nas circunstâncias. De comum têm apenas o terem sido limpamente eleitos.

Quer dizer que o eleitorado português é lúcido porque elege um intelectual capaz de fazer nada e o americano estúpido porque elege um bully aldrabão com vontade de fazer muito?

Não. Foram ambos eleitos porque respondem a necessidades do eleitorado. E o que isto significa é que o que eles são interessa pouco e o que eles defendem muito.

Donde, deixem lá em sossego o perfil intelectual e psicológico de Trump, isso pode alimentar-nos a repulsa apenas na medida em que nos limita a compreensão.

Para o compreender comecemos por um ponto: Por que razão uma faixa de pessoas na Europa, incluindo entre nós, aprecia o que está a fazer? Um amigo meu da variedade ide-vos catar mais o que pensais fez um resumo indicativo (que se refere também à guerra da Ucrânia, já lá vou), em tom chocarreiro e que, porque o conheço bem, sei que não é para interpretar literalmente, mas suficiente para se perceber a tónica:

“A guerra que me interessa é cultural. É essa guerra que combato, literalmente, diariamente na universidade. Nessa guerra cultural, o Putin é meu aliado, o Trump é meu aliado, o Vance é meu aliado, o Órban é meu aliado… a Europa é minha inimiga. Sou, sem reservas, pró-Putin… entre ele e a comissão europeia, prefiro o Putin; entre o Guterres e o Putin, prefiro o Putin; entre o Starmer e o Putin, prefiro o Putin; entre o Sanchéz e o Putin, prefiro o Putin. Mas respeito quem não goste do Putin. Não vejo é qual é o problema do Putin quando comparado com gente que não distingue um homem de uma mulher. Não vejo mesmo…”

Esta lista podia incluir cancelamentos, educações para a cidadania, imigrações desregradas e um sem-número daquelas coisas que a direita boazinha, porque tolera, sufraga, e que constituem o corpus do que se chama cultura woke, que é a designação inventada para o esquerdismo insidioso. E como vivemos em sociedades democráticas, tenham lá paciência (e contenção para não cancelarem o resultado de eleições, como na Roménia, ou fecharem a matraca a desalinhados, como se planeia para as redes) se houver um número crescente de eleitores “extremistas”.

Este caldo alimenta a desconfiança sobre a razoabilidade da continuação de uma guerra sem fim à vista, que prossegue sob pretexto de Putin ser um demónio, Zelensky um santo e Trump um valentão ridículo.

Já eu acho Putin um czar agressivo e expansionista, Zelensky um herói não necessariamente ornado de qualidades de senso e Trump um epígono da América isolacionista.

Que Trump é um isolacionista, porém, não é uma opinião, é um facto. Que, na sequência disso, não está disposto a bancar o pato da NATO também parece evidente, e é aliás uma inclinação que já vem de anteriores presidentes. E que quer acabar com a guerra da Ucrânia e o seu sorvedouro de dinheiro resultou evidente da famosa conferência na Sala Oval, glosada em mil artigos indignados com a humilhação de Zelensky e a grosseria dos anfitriões.

Também fiquei indignado. Excepto pelo facto de que numa guerra onde todos os dias morrem e se estropiam soldados, e se destroem bens e infraestruturas, a indignação de quem não está disposto a mandar os seus filhos para lá, e não tem ainda consciência do que lhe sai do bolso para a alimentar, não ser a melhor conselheira.

De modo que peço desculpa por não dar nada para o peditório da guerra de trincheiras de paleio e reservar a minha opinião para quando souber:

Qual é exactamente o plano da administração Trump? Porque um acordo de paz implica concessões de ambos os lados, mas se o agressor retirar um benefício líquido demasiado importante pode isso ser o choco de guerras futuras – na Polónia, nos países bálticos, na Escandinávia, até mesmo em Taiwan se o isolacionismo americano der sinais de valer tudo na construção multipolar de esferas de influência.

As garantias de defesa são o quê? Investimentos americanos significativos na Ucrânia, por si, são um óptimo dissuasor, mas provavelmente insuficiente. Porém, a ideia de que é a UE que pode decidir que garantias os americanos devem prestar é uma boa receita, com Trump, para não se chegar a lado algum.

O plano dos países europeus da NATO de reforçarem as suas despesas militares é um bom plano, quer a NATO se desfaça quer não – si vis pacem para bellum e toda essa espécie de coisas.

Finalmente, o esbracejar de Starmer e Macron, com posições centrais porque representam países com a bomba, é por si compreensível mas suscita alguma estranheza porque ambos protestam ter boas relações com Trump. O que permite supor que talvez isso não seja apenas (boa) política, mas antes um acordo debaixo da mesa para nas negociações com Putin Trump ficar com o papel do polícia bom e os outros com o de polícia mau.

Não sei, realmente não sei, e duvido que entre os meus amigos putinistas de circunstância que querem acabar com a guerra dê lá por onde der; e os europeístas frenéticos que são completamente a favor de que continuem a morrer ucranianos: alguém saiba.

Quando tudo clarear também vou para as trincheiras da treta, de canhangulo.

* Publicado no Observador

Sol-Verde de Inveja

José Meireles Graça, 28.02.25

 

É que não encontro ninguém, nem amigos, nem correligionários, nem magistrados de opinião que aprecio, como Rui Ramos ou João Miguel Tavares, que não sufoque de indignação porque Montenegro tem uma empresa familiar que presta, entre outras coisas, serviços de consultadoria a empresas e uma delas, a SolVerde, paga – ó escândalo – 4.500 Euros por mês. Isso é mais do que ganha um administrador de um hospital público, ou um director-geral, e anda perto do que ganha um catedrático. Tudo funcionários públicos, porque cargos equivalentes no sector privado são mais bem pagos.

Pois bem: Fundou-a antes de ter a certeza de vir a ser primeiro-ministro. Podemos imaginar que no seu ambicioso coração já albergasse a certeza de vir a atingir tão exaltante posição, o que não podemos presumir é que os clientes o contratassem por adivinharem que um dia ele estaria em condições de os favorecer. A menos que se possa afirmar – mas isso não está alegado – que a SolVerde dispõe de serviços de consultadoria no ramo da adivinhação, caso em que abençoa com contratos os predestinados, ou então que contrata um cacharolete de potenciais vencedores para acertar num deles, prudente prática que também não foi aventada até agora.

Empregar ou contratar políticos que perderam, por qualquer razão, o seu poleiro, é coisa altamente suspeita porque estes dispõem de números de telefone de camaradas que povoem lugares de poder, e de ex-adversários na mesma lisonjeira situação. E como o Estado está em Portugal em todas as esquinas da vida, a única possibilidade de evitar estas conversas ocultas é o barramento dos números de telefone.

Isto porque quem ocupou lugares de topo em razão da pertença a partidos suspendeu (ou não iniciou) a sua carreira profissional. E impedir que relações pessoais se botem para render é quase o mesmo que dizer que quem aceitou posições de nomeação política nunca mais dela pode sair ou que quem tenha o acendrado desejo de servir a causa pública (alguém tem de haver) deve ter a precaução de dispor de meios de fortuna porque vai começar ou continuar a carreira em situação de grande desvantagem.

Ou isso ou ser funcionário público, portanto com o lugar à espera, ou advogado de um grande escritório onde os colegas lhe conservem o lugar quente, ou gestor bancário porque o negócio tanto funciona com um como com outro. Teoricamente, grandes empresários também poderiam almejar empenacharem-se com lugares no aparelho de Estado, mormente dos mais visíveis. Mas não é Elon Musk quem quer, nem Portugal é como os EUA, nem há exemplos conhecidos de quem abandone as suas empresas para serem geridas por colaboradores. Que o dissesse Belmiro de Azevedo, o empresário por antonomásia, que passou a vida a dar palpites sobre a gestão da coisa pública enquanto se deixava estar sossegado na SONAE.

De modo que a situação é esta: se as suspeitas por corrupção não precisarem de se basear em indícios consistentes, bastando dizer que se a empresa xis contratou pelo valor ípsilon fulano de tal no âmbito da sua profissão, então faz favor de dizer o que é que exactamente fez, quem eram as outras empresas, se as houver, e igualmente por que razão não foram buscar outro advogado de quem ninguém tivesse ouvido falar.

Quem espoletou toda esta história foi o Chega, por razões oportunistas mais do que óbvias sobre as quais não vou abundar. E cabe-me aqui dizer que as linhas vermelhas em torno daquele partido, que sempre rejeitei porque a sua existência condenou reformas necessárias que se tornaram impossíveis, não justifica que se baralhe tudo esquecendo um mínimo de senso.

E este diz que, para quem não for cego, duas coisas: que combater a corrupção degradando princípios do Estado de Direito e transformando o jogo político numa barraca de feira apenas afasta quem não tiver vocação para palhaço, mulher de barba ou carreirista desprezível; e que os funcionários públicos e acomodados sortidos já têm o benefício do emprego garantido, não precisam de ter o exclusivo da carreira política.