De um lado temos uma democracia exemplar, com um líder eleito que os tribunais se permitem pôr a depor enquanto em exercício; e do outro um grupo terrorista, mesmo ao lado, que não admite qualquer oposição interna e se permite atacar o vizinho mais poderoso porque conta com um grande país, que o apoia e que explicitamente não reconhece a Israel o direito de sequer existir, comprometendo-se a, logo que para isso tenha poder, limpar a região de Judeus – infiéis à verdadeira religião, intrusos numa terra que não lhes pertence e aliados da América, o Grande Satã.
O grupo terrorista que governa Gaza lançou em 7 de Outubro de 2023 um ataque que provocou mais de mil mortos civis (e à volta de três centenas de militares), capturando cerca de 200 reféns (ou 250, em tudo o que diga respeito a este conflito os números variam consoante as fontes), que foram sendo libertados a conta-gotas por troca com prisioneiros palestinos em Israel, invariavelmente não cabeça por cabeça mas um múltiplo (às vezes mais do décuplo) de palestinos por cada refém israelita.
Alguns dos devolvidos foram-no no estado de cadáveres. E hoje ainda há reféns presos, dos quais se ignora quantos estão vivos.
Tínhamos portanto um bom (tanto quanto se pode falar de bons) nesta história e um mau.
De maus secundários há avonde, como o Hezbollah a Norte, no Líbano, ou os Houthis no Iémen, reconhecidos como terroristas por quase todas as capitais do execrado Ocidente, com o denominador comum de serem financiados pelo Irão, alguns países árabes e até noutro vizinho, a Cisjordânia, um governo relativamente hostil.
Mas o Irão é que é a sombra negra. Anda há muito tempo (o programa nuclear começou nos idos de 60, com o apoio dos EUA, na altura no contexto da Guerra Fria, mas evoluiu com o regime aiatolesco para mais do que prováveis intenções belicosas) com a jigajoga de, no meio de sanções, acordos, denúncias, avanços e recuos, desenvolver armas atómicas. E como Israel não pode ter a certeza, como tem em relação ao Paquistão, ou à Índia, ou à Rússia, ou até à Coreia do Norte, ou qualquer das outras potências que actualmente detêm a bomba, de que o regime iraniano não cometa a loucura de o tentar obliterar de uma vez, vive com a compreensível obsessão de liquidar as pretensões da teocracia iraniana.
De modo que reage taco-a-taco a ataques do Irão, que em Abril se fez lembrar com mísseis que despejou em Israel como retaliação a um ataque à embaixada iraniana na Síria, que por sua vez respondia a outras picardias. Quem começou o quê depende de quem conta a história e se forem especialistas vão muito lá atrás, até ao ponto em que quando chegam à raiz já o curioso esqueceu o início do conto.
Começou a guerra. E desta vez Israel tinha na presidência dos EUA um amigo, que como os antecessores não nutre pelo Irão qualquer simpatia mas ao contrário daqueles acredita instintivamente pouco no mérito de diálogos com gente abominável, de que desconfia. Aliás, que o amigo seja Trump, e não por exemplo Obama, é um adjuvante para a rejeição das esquerdas, de que se falará adiante – Trump não pode, por definição, ter razão em nada. De modo que Israel, tendo acumulado sucessos na eliminação de estruturas militares, membros da Guarda Revolucionária e cientistas ligados ao desenvolvimento da arma, acabou por tropeçar na incapacidade de chegar aos subterrâneos a grande profundidade onde se faz o processo de enriquecimento de urânio, percalço que a América resolveu com o expediente de para lá mandar bombas com a surpreendente inclinação de primeiro perfurarem e só depois, muito lá em baixo, explodirem. O qual desenvolvimento, segundo uns, já estava a 40%, segundo outros a 60% ou 80%, nuns casos a meses de chegarem à bomba, e noutros a anos.
Nada disto interessa, como aliás a maior parte das argumentações de um lado e outro, porque como é normal em guerras e talvez Ésquilo tenha dito, a primeira baixa é a verdade.
Estava o Irão a desenvolver a bomba atómica? Estava, hoje já poucos defendem o lero-lero de que os fins do programa eram pacíficos. Pode Israel confiar na sua sobrevivência com um inimigo declarado que não lhe reconhece o direito à existência, se este detiver uma arma letal cujo uso, mesmo com retaliação do mesmo tipo, permite a loucos suicidas e fanáticos pensarem que, porque Israel é minúsculo e com poucos cidadãos, e o Irão imenso e com nove vezes mais habitantes, um ficava deserto e o outro suficientemente funcional? Não pode.
De modo que saber se o programa foi atrasado um ano, cinco, dez ou vinte, interessa muito a analistas e pouco a pessoas de senso. O problema talvez venha a ser resolvido, se vier, com uma mudança de regime; e entretanto Israel continua em guarda, e a guerra pode continuar mas com baixa intensidade, por intermediários, ou renascer.
Mas coisa curiosa: Como se explica que num conflito cujo herói e vilão deveriam ser evidentes o mundo muçulmano não seja todo a favor do Irão, e no Ocidente nem toda as pessoas de direita estejam do lado de Israel, do mesmo passo que à esquerda quase toda a gente reza, salvo seja, pelo Irão?
O caso do mundo muçulmano é simples: nem o Irão é Árabe, nem a partilha de uma religião comum é pacífica porque entre xiitas e sunitas há tanto ódio e conflito como em tempos pregressos houve entre católicos e protestantes, nem as realidades geoestratégicas permitem a convivência sem rivalidade de vários poderes regionais. O pan-arabismo é uma miragem e os governos de vários países árabes só não confessam o seu desejo de que Israel ganhe porque não podem desagradar à rua que, essa sim, nutre um atávico ressentimento contra os infiéis do Ocidente que são mais ricos, mais poderosos e têm leis e costumes heréticos, não rezando a Allah, não aplicando a sharia e permitindo às mulheres escandalosas liberdades.
Que a esquerda apoie o Hamas, sob a piedosa capa de em teoria achar a organização deplorável mas na prática lhe compreender as queixas, não deve surpreender: os habitantes de Gaza são pobres, os Israelitas ricos, Israel cria constrangimentos à vida na região em vez de aceitar com magnanimidade que os locais (ou melhor, quem os governa) se dedique tranquilamente a atentados, e historicamente o nascimento de Israel nunca deveria ter sido permitido, pelo menos ali. Talvez na Namíbia, hipótese que chegou a ser formulada mas os Judeus arrogantemente não aceitaram.
Empregados têm sempre razão contra os patrões; pobres contra ricos; fracos contra fortes; e países débeis contra poderosos, excepto se estes últimos tiverem como propósito realizar o céu na terra a golpes de igualitarismo, como sucedia com o sol da URSS que infelizmente se finou na última década do século passado.
Não é que faltem abusos e exacções, manchas no passado, males e tormentos; é que a superioridade moral de que a esquerda é, segundo ela, depositária, só se pode manifestar debaixo de bandeiras de causas e decerto não é uma causa defender quem é perfeitamente capaz de se defender a si mesmo.
E para certa direita há também o medo: a guerra pode evoluir para um confronto generalizado de resultados trágicos ou pelo menos penosos mesmo para quem nela não esteja envolvido, de modo que o melhor é adiar e, em vez de bombas, despejar perdigotos, aos quais se chama diplomacia – é o que tem feito a Europa.
Sucede porém que as guerras são admissíveis em dois casos: no de defesa contra ataques; e para prevenir outras maiores. Israel quer liquidar, ou ao menos enfraquecer, o Hamas, o seu inimigo à porta; e evitar que o seu principal inimigo distante tenha meios para cumprir a sagrada promessa de palestinizar todo o espaço do Jordão até ao Mediterrâneo.De modo que se pode estar a favor, ou contra, Israel; mas não se pode estar a favor defendendo que se lhe amarrem as mãos.
* Publicado no Observador