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Delito de Opinião

Certificados de discórdia

José Meireles Graça, 07.06.23

É longa e sem excepções a lista dos meus amigos ideológicos (dos quais alguns também pessoais) que acham bem o fim da emissão de certificados de aforro à taxa actual, que passa a ser outra substancialmente mais baixa.

No essencial, entendem que o Estado se deve financiar às melhores taxas existentes no mercado porque, se não o fizer, está a pôr aqueles contribuintes que não compraram certificados, por não quererem ou não poderem, a transferir indirectamente recursos para os outros, que têm mais disponibilidades e, provavelmente, mais literacia económica.

Do lado esquerdo do espectro (excluindo parte do PS, que cacareja sempre as posições do Governo) a posição é simétrica. E assistimos até ao caso cómico de ver uma venezuelana como Mariana Mortágua (ou vários cubanos à esquerda dela) a defender o capitalismo popular. Grande Margareth Thatcher, que deixou herdeiros nos sítios mais inesperados.

Amigos de esquerda tenho alguns, que sou uma pessoa muito dada. E destes Luís Aguiar-Conraria, explicou por que razão acha tudo isto muito mal. No essencial: i) A exiguidade das taxas de juro que os bancos portugueses pagam aos seus depositantes (menos de metade da média na zona Euro) é um escândalo só explicável pela existência de um cartel “tácito”; ii) A Autoridade de Concorrência já condenou vários bancos por trocarem entre si informações comerciais sobre clientes. Esta condenação é estranha (opinião minha, não de LA-C), porque o BdP tem uma base de dados onde constam todas as responsabilidades, em incumprimento ou não, dos clientes bancários, acessível a qualquer contribuinte, para a sua situação, com a mesma chave da utilizada no Portal das Finanças. Ou os bancos têm acesso a essa base ou, não tendo, podem pedir a chave ao cliente, coisa que, se eu tivesse um par de asas nas costas, acreditaria que não fariam, ao menos sob o pretexto de quererem ver a situação fiscal); iii) Os mesmos fundos que os clientes confiam aos bancos podem, se estes os depositarem no BCE, garantir um substancial rendimento – um exemplo gritante de rentismo, entendo eu, e a negação mesma do negócio bancário, que não deve nem tem de ser parasitário; iv) A função social dos Certificados, que era a de oferecer um produto de confiança a investidores pouco sofisticados, funcionava agora, na prática, como um elemento de combate ao cartel, por originar a fuga de fundos para aplicação em dívida do Estado; v) Deste desastre em forma de escândalo, ou ao contrário, salva-se a CGD, que já anunciou uma irrelevância qualquer, razão pela qual fica justificado ser pública. A meu ver não fica, claro – a ideia de que uma instituição pública serve de referencial para as congéneres privadas é uma coisinha muito querida para mundivisões de esquerda, que não vou rebater aqui porque não é esse o escopo deste post.

Bom, isto diz ele, e algures acrescentou, e bem, que não é a mesma coisa o Estado dever dinheiro a cidadãos nacionais ou a entidades estrangeiras.

Ontem Helena Garrido fez um bom resumo do argumentário a favor do bote que foi dado à atractibilidade dos Certificados, assim: i) Explica detalhadamente por que razão o Estado tem perdido desnecessariamente dinheiro e porque o continuaria a perder se não alterasse o curso das coisas. O Estado foi vítima do seu próprio sucesso, dado que a procura ia num crescendo; ii) Quanto aos bancos, estes estão “inundados de liquidez”, e portanto não os aquece nem arrefece que os depósitos levem um rombo; iii) A banca paga mal mas é só aos particulares, não às empresas. Que quanto a estas, garante Helena, a concorrência é feroz, por causa do “negócio complementar que lhes garante”; iv) O resto do artigo dedica-se a defender, e bem, os lucros bancários e o interesse público da sua solidez, concluindo: “Queremos bancos sólidos e que não precisem de ajuda do contribuinte, mas queremos que eles sejam irracionais na gestão, que até se prejudiquem financeiramente enfrentando o risco de terem problemas e de precisarem depois de ajuda”.

Pela mesma ordem: Que o Estado tem perdido dinheiro não duvido. Mas, para usar o jargão que Garrido e os seus colegas gastam, gostaria de que se me explicasse por que razão a diferença entre financiamento por nacionais e estrangeiros não justifica um prémio; explicar o excesso de liquidez ficou no tinteiro, como se desse simples facto não se devesse inferir que os bancos não são empresas, mas antes instituições que há muito deixaram de se pautar pelas regras de mercado, omissão necessária para justificar as suas decisões, tomando como natural o que em empresas realmente expostas à concorrência nunca o seria; por que razão os depósitos das empresas justificam uma concorrência de faca nos dentes, mas não os dos particulares, ficamos sem saber. Se perguntado, qualquer responsável bancário diria que o giro das empresas oferece possibilidades de financiamento, e portanto negócio, coisa que não sucede com os particulares. E seria de facto assim se não se desse o caso de o dinheirinho dos tais particulares servir para ir parar ao BCE, no termos referidos acima. De modo que a tal concorrência significa na prática isto: precisamos das empresas para justificar a nossa existência e portanto não importa que ganhemos menos – o negócio legítimo encobre a moscambilha financeira; e com a parte final do artigo, credo, até fiquei comovido, como fico sempre quando vai um gestor bancário à televisão enunciar os problemas que o afligem e ao sector – lembro-me de uma entrevista de Ricardo Salgado a José Gomes Ferreira, há muitos anos, em que o primeiro explicou paternalmente que a banca era pouco menos que excelsa na gestão e nos resultados.

Bom, isto dizem eles. Eu digo que todo este assunto é uma floresta de equívocos, porquanto:

Os bancos não são empresas, a sua actividade é regulada com tal minúcia que a exiguidade da latitude decisória faz com que a concorrência entre eles seja uma fantasia apenas boa para confortar doutrinários, a sua gestão, comummente tida como excelente, seja a de funcionários cumpridores de directivas, e em todo o sistema o cliente tenha uma importância menos do que diminuta. O papel do BCE e do seu balcão local, que guarda a designação tradicional de BdP, é controlar a inflação e garantir, dentro do possível, que o risco sistémico não se materializa. Que os lucros da actividade, e portanto os prémios dos gestores, sejam obtidos por processos oportunistas, cai fora das preocupações de tão respeitáveis entidades.

Em todas – todas – as defesas que vejo fazer deste estado de coisas insidiou-se uma despropositada clivagem esquerda/direita, a primeira a defender os titulares de certificados porque isso prejudica os bancos, que deveriam, na opinião dela, ser públicos, e a segunda a defender os respectivos lucros porque o lucro é sagrado, a concorrência do Estado aos particulares uma heresia, os bancos são empresas privadas, e Adam Smith diz isto e von Mises aquilo.

Eu estaria, com menos doutrina e mais senso, ao lado dos segundos, se não houvesse um elefante, e outros animais volumosos, no meio da sala. E esses são o mais do que evidente cartel dos bancos, o óbvio carácter público da respectiva gestão porque parte dos mecanismos da concorrência não estão presentes, e a ligação de tudo com tudo na gestão da dívida pública.

Daí que não compre o arrazoado de Helena Garrido, ou Vítor Bento, ou João Duque, ou muitos outros, em defesa dos bancos – não defendo, com perdão do exagero retórico da expressão, quadrilhas de ladrões. Pode ser que toda esta floresta de enganos e distorções do mercado tenha de ser assim face ao endividamento dos Estados, mormente do nosso, à memória de crises do sistema bancário, antigas e recentes, e à pertença ao espaço Euro. E pode ser também que o que o Estado faz agora, mas não fez no passado, seja o melhor no interesse dos contribuintes.

O que não pode ser é que, para defender os contribuintes porque se contrai ou renova dívida nas melhores condições, se esqueça que se o preço disso é fechar os olhos ao esbulho dos depositantes dos bancos, por não serem devidamente remunerados – é demasiado alto. E não só porque os depositantes são muitos mais, também porque a sanidade do espaço público não pode assentar no princípio de que vale tudo, mesmo o que ofende a lógica, a justiça e o senso, porque os bancos, que têm um estatuto de excepção a vários títulos, deveriam ter também o da inimputabilidade.

Há solução?*

José Meireles Graça, 31.05.23

Anda no ar um clima de fim de festa socialista, resultante do desastre da TAP, do destapar do lupanar em que se transformaram as camadas superiores do Estado, da patente mediocridade de alguns ministros e do irremediável cinzentismo de outros, e, finalmente, das suspeitas sobre as vigarices eleitorais nas freguesias lisboetas.

Acreditam alguns que este fim de ciclo não tem nenhuma relação com o fim da Geringonça, e surpreendem-se os analistas com a constatação de que o governo com maioria absoluta parece menos sólido do que quando se apoiava nas duas pernas dementes do tripé. É esquecer que dificilmente os escândalos chegariam à opinião pública no tempo em que havia os filtros do PCP e do Bloco, cuja influência nas redacções, nas magistraturas, nas polícias e nos costumes, excede a medida da eleitoral. Abafar deslizes no caminho glorioso do triunfo das classes laboriosas é um activo leninista do PCP; e o Bloco nunca veria com bons olhos a oferta de trunfos à direita com a denúncia do desbragamento das gestões públicas.

Costa está cansado, diz-se, e teima em manter-se rodeado de nulidades que deveria substituir; e Marcelo corre atrás da margem de popularidade que perdeu, esgotando-se em “recados” irrelevantes que os jornalistas glosam com gosto.

Estão reunidas as condições para calçar uns patins à desgovernança socialista; e Marcelo aguarda apenas que as sondagens mostrem uma clara vitória do PSD para se lembrar que é o garante do regular funcionamento das instituições, mandando pelo ralo esta água turva do situacionismo que, aliás, ele sempre alimentou com devoção.

Cavaco, que administra os seus silêncios como Sampaio, mas difere deste por a sua vulgata não ser a socialista da nossa desgraça, fez um discurso que doeu à esquerda por elencar quase todos os falhanços que no conjunto compõem o completo desvalor do governo que temos, o que, sendo muito, é ainda menos do que o resvalar do país para os últimos lugares do desenvolvimento – detalhe o mais significativo de todos por medir resultados e não tretas sortidas ou estados de alma, e que Cavaco, cruelmente, frisou.

Seja. Resta perceber por que razão, sendo as coisas assim, a Oposição tem dificuldades em descolar. Comecemos por desmontar algumas ideias:

Costa não está cansado. Não tem idade para o estar nem a gestão das lutas internas do PS, o controle das mensagens que a comunicação social passa à opinião pública, o cuidado com a sua freguesia eleitoral e com as instâncias europeias e seus ditames, são mais trabalhosos do que alguma vez foram. Será talvez verdade que tem investido tempo na gestão prospectiva de uma carreira lá fora, onde as suas qualidades de mestre de cerimónias e fazedor de consensos dissolventes poderiam ser postas a render, como sucedeu com os camaradas Guterres e Vitorino, ou o não-camarada Durão. Mas era o que faltava se, numa máquina tão grande e oleada há tanto tempo, as ausências temporárias do capo, por si, provocassem o desmoronar.

O caso TAP veio mostrar que uma das bandeiras eleitorais costianas, a renacionalização, teve um preço mas não foi o atraso difuso do país, que é sempre possível rebater com uma carrada de argumentos, e sim 320 Euros a cada português, em média. Mostrou isso e o prodigioso amadorismo e amiguismo da gestão política de uma empresa pública. Mas, ao mesmo tempo, obscureceu o facto de o sector empresarial do Estado contar com quase 150 empresas e ser necessária uma grande dose de ingenuidade para imaginar que a TAP é a excepção, e não a regra. As empresas públicas são parqueamentos de rapazes do poder e sê-lo-ão sempre: a ideia de que tirando uns e pondo outros altera o carácter da coisa esbarra no facto simples de que aquelas empresas trabalham, ao contrário das privadas que não estão acolhidas à sombra do Estado, num mercado perfeito: aquele em que, quaisquer que sejam os prejuízos, nem os responsáveis são penalizados por isso, nem elas vão à falência.

A freguesia eleitoral do PS mora sobretudo no funcionalismo público, nos pensionistas e reformados, no funcionalismo de empresas públicas e de muitas que têm o Estado como cliente cativo, além de cidadãos puros e generosos que acreditam que o egoísmo, e portanto a desgraça dos pobres, mora no lado direito do espectro, enquanto a generosidade, e portanto o progresso, mora no outro.

Reformar quer com frequência dizer fechar, eliminar, reconverter, avaliar, medir. E do lado de lá de todos estes verbos estão pessoas. As quais desconfiam que num país eficiente cresceria a desigualdade e isso não pode ser. É como me dizia uma simpática empregada, no tempo antigo das inflações gigantescas, aquando de uma das frequentes revisões salariais: o senhor até pode ter razão nisso que diz para aumentar a uns assim e a outros assado; mas eu preferia que o meu aumento fosse mais pequeno se fossem todos por igual (era meia comunista, coitada, agora deve votar no Bloco).

Costa de tácticas entende, e de banha da cobra também. Por isso, fez paulatinamente crescer o número de funcionários públicos, deixando de se falar de contenção e reformas: qualquer problema se resolve com dez anúncios de milhões, cinco portarias, dois decretos-lei e, nos casos mais graves, um observatório. O argumentário para defender estes pesos mortos no desempenho da economia costuma ser o das comparações com “países mais desenvolvidos”, pelo tradicional e curioso raciocínio de se entender que não temos nada a aprender com os que subiram degraus na hierarquia do produto por cabeça, e tudo com os que se mantêm periclitantemente no topo.

Diz-se por aí que Luís Montenegro tem tanto carisma como uma caixa de sabão, e que isso explica a razão pela qual o PSD não sobe significativamente. E quem isso diz acrescenta, revirando os olhos e com duas fundas rugas de desgosto sulcando a fronte desconsolada: ai, que já não há políticos como antigamente! Tretas: há os fenómenos Chega e IL, que só por si explicam boa parte das dificuldades presentes, e das pretéritas do CDS, cujo regresso às lides seria uma coisa boa. E mesmo que se perceba que por razões de lógica partidária talvez faça sentido descartar coligações pré-eleitorais, alijar o PS, de preferência por espaço de pelo menos dez anos, requererá alguma espécie de entendimento entre todas as capelas da direita.

Não que a tarefa seja fácil. O mecanismo pelo qual a dívida pública pôde descer face ao produto (o maná do turismo primeiro, os orçamentos aprovados de uma maneira e executados de outra, a quebra do investimento, os aumentos sorrateiros de impostos, a chuva dos subsídios bruxelenses e mais recentemente a inflação, além de um longo etc.) criou as impropriamente chamadas “folgas” (não há folgas quando a dívida pública não cessa de crescer nominalmente) cujo espatifar não ofende as instâncias europeias. E é com elas que Costa conta para, logo que se vejam no horizonte eleições, dar um bodo a funcionários e reformados, ao mesmo tempo que a máquina de propaganda cuidadosamente oleada atroará os ares com uma longa lista de sucessos.

Acrescento: A tarefa é tão difícil que é tempo de pôr uma surdina na guerrilha partidária – o inimigo é o PS e o resto da esquerda nem sequer justifica que com ela se perca tempo. O futuro não pode ser adivinhado porque só vai suceder de uma maneira e há muitas de o imaginar; e depois haverá factores novos que podem baralhar tudo e que, por definição, se desconhecem. Mas, tudo o mais igual, a vitória de Costa e do PS é a derrota de Portugal: mais cinco anos e aos cinco países dentro da UE que já nos ultrapassaram nos mandatos de Costa (a Roménia apenas igualou, precisa de mais um ano) somar-se-ão os cinco que ainda faltam. Após o que olharemos com desdém para a Albânia, a Bósnia-Herzegovina ou a Sérvia. Se nenhum destes países aderir à União ou, aderindo, tiver a desdita de ser governado por um émulo do nosso sultão local.

* Publicado no Observador

Tudo pela Nação, nada contra a Nação

José Meireles Graça, 16.05.23

Tenho Fernando Leal da Costa por um fascista sanitário e como me lembro bem dessa peça por, desde os tempos em que poluía o governo Passos, ter escrito sobre ele vários artigos, fui ver ao meu arquivo quantos e quais foram. No último, em 27/09/21, já fora daquela época de excepção, explicava porque assim o considero. O artigo é extenso e chato, e toca ademais outros assuntos, pelo que respigo algumas frases:

“… fascista é todo aquele que vê com bons olhos o atropelo de direitos individuais em nome de um bem maior que arbitrariamente define”.

“… há quem entenda que todo o vício (exagero: não é todo, é apenas aquele que possa originar doenças ou achaques que o portador de tais opiniões não tenha) deve ser activamente combatido pelo Estado a golpes de proibições e sanções, em nome da sustentabilidade do SNS, que deve começar ‘a ser encarada como obrigação de cada um de nós”.

“Este conflito é novo: de um lado estão os amantes da liberdade e do outro os fascistas, enquanto dantes de um lado estavam fascistas de esquerda e do outro fascistas de direita”.

Fernando é tão fascista como os comunistas, mas mais perigoso do que estes, que estão acantonados na sua aldeia de cro-magnons, porque parece muito civilizado.

(Clarificando: A palavra “fascismo” é aqui usada não no seu sentido histórico mas nos precisos termos da definição que usei acima).

Pois este ser virtuosamente sádico volta à carga, desta vez a propósito dos abusos dementes que o Governo quer praticar a propósito do tabaco.

Começa por umas pilhérias sobre o tempo em que “andou pela saúde”. Ainda bem que tinha boa disposição, e não duvido nada que os subordinados lhe achassem graça quando iam todos comer a um “restaurante de bairro”, imagino que saladas, granola, tofu e alguma fruta normalizada, tudo empurrado a limonada.

A seguir faz um libelo contra o estado actual do SNS. Diz uma data de coisas pertinentes do ponto de vista da gestão pública, como é normal um socialista mais lúcido do que os que estão no Poder deles dizer. E conclui desta forma extraordinária:

O que se anuncia são medidas no sentido certo. A sustentabilidade do sistema de saúde depende, por demais, da promoção da saúde e prevenção da doença. Portugal tem, o que é bom, uma longevidade populacional com duração assinalável, enquanto carrega o ónus de ter uma duração de vida saudável, acima dos 60 anos, das piores da Europa, o que é péssimo. Esta é uma das maiores ameaças à sustentabilidade do sistema de saúde e não apenas do serviço nacional de saúde.

Devemos assumir, como outros países já fizeram, uma meta de tabagismo zero. As propostas de medidas são boas, mas ainda terão de ir mais longe. Deverão também considerar a proibição de fumar dentro de veículos, de uso público ou particular (há uma associação entre os condutores estarem a fumar e o risco de acidente, além de que não é aceitável que os passageiros, mesmo os futuros, sejam expostos a produtos que ficam alojados nos plásticos de revestimento). Será importante proibir que se fume em esplanadas, mesmo se abertas, parques públicos e praias.

No intervalo de alinhavar pesporrências, Leal tece um elogio frenético ao actual ministro e à ajudante Secretária de Estado para a Promoção da Saúde, aos quais diz:

Parabéns ao meu Colega Pizarro e à Senhora Secretária de Estado para a Promoção da Saúde – bem tirada esta designação – Dra. Margarida Tavares que não andará a dormir.

Segue com o desejável futuro controle de outros hábitos que acha daninhos, como o consumo de álcool, e conclui, triunfante:

Todos temos o direito à proteção da saúde e a obrigação de zelar por ela, tal como a Constituição dita.

Onde é que a Constituição dita que temos “obrigação de zelar pela saúde” realmente não descortino. Nem Leal, que é bem capaz de saber de medicina alguma coisa, e de polícia de costumes muito, mas de Direito entende zero.

Não vou honrar Leal da Costa com o rol de razões pelas quais os seus aplausos acéfalos são um chorrilho de tolices – não faltam por aí artigos enumerando os efeitos perversos destas prepotências que estão na forja e chamando a atenção para a evidência de todo o conjunto ser uma evidente manobra para distrair a opinião pública das escandalosas tropelias governamentais. Mas vou transcrever o que numa rede disse sobre esta governante com insónias que Leal admira, mal tomei conhecimento da respectiva expectoração a um jornal, falsificando para a circunstância o que realmente declarou:

Margarida Tavares, Secretária de Estado da Intrusão e dos Abusos Estaduais Sortidos, acrescentou que a liberdade não pode ser entendida como incluindo o direito das pessoas adoptarem comportamentos que prejudiquem a sua saúde, visto que é necessário, para a saúde do Estado Socialista, que os cidadãos cuidem obrigatoriamente da própria.

Não sei se e quando voltaremos a ter um Governo com um módico de decência e lucidez, mas é provável que seja encabeçado pelo PSD, partido que conta nas suas fileiras com não poucos socialistas. Mas este Leal no Governo por amor de Deus não, que acumula com o fascista que julga que não é.

Companheiro Vasco

José Meireles Graça, 05.05.23

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A Associação Conquistas da Revolução (sim, existe uma organização com este nome) resolveu encomendar ao arquitecto Siza Vieira um monumento de homenagem ao “Companheiro Vasco”.

Fui ver a respectiva página e não reconheço aquela prodigiosa quantidade de nomes. Deve tratar-se de comunistas e compagnons de route, a hidra do PCP desdobra-se em associações de todo o tipo para a defesa dos interesses do povo trabalhador, no jargão da seita.

O palavreado tem um lado saudoso para quem já era adulto à época do Verão de 1975, porque não há abominações que resistam ao optimismo dos vinte anos. O outro lado é bolorento – aquela conversa é a mesma há quase 50 anos.

O homenageado fez carreira no Exército (era coronel à data do 25 de Abril) e dentro do MFA pertencia a uma das correntes mais à esquerda. Tentou ser um Jaruzelski à portuguesa mas falhou, como aliás o projecto do mastermind da sovietização do país, Cunhal, que seria o herdeiro natural destes revolucionários de farda. Falhou por muitas razões, das quais as principais eram que Portugal não tinha fronteiras com países comunistas, a Igreja Católica ainda tinha muita força e, sobretudo no Norte do país, a maior parte da população detestava comunistas. Mário Soares e o PS, por não se quererem suicidar, e com discreto apoio americano e alemão, encabeçaram a resistência eficazmente.

Tivesse ganho e Portugal seria uma Cuba na Europa, as prisões estariam ainda hoje cheias de oposicionistas sortidos, em vez de emigrantes haveria no estrangeiro fugidos e refugiados, e talvez nem os comunistas celebrassem o companheiro Vasco porque as revoluções comunistas têm o hábito de devorar os seus filhos quando são um estorvo. Cunhal é que era Lenine, não este pobre diabo.

De modo que esta homenagem não é muito diferente de levantar um monumento a Manuel Buíça – Vasco Gonçalves não hesitaria em mandar fuzilar opositores se, o seu poder firme, achasse que isso era necessário para a afirmação de uma sociedade sem classes (outra vez o jargão, peço desculpa).

Siza presta-se a este papel – é lá com ele. Mas a escultura (se lhe posso chamar assim) vai ficar num local público – é cá connosco.

Escultura, grosso modo, é a arte de transformar matéria bruta (pedra, metal, madeira etc.) em formas espaciais com significado – é o que diz o dicionário.

Sucede que o significado desta construção é nulo. Representa qualquer coisa, mas Vasco Gonçalves é que não é de certeza. Nas palavras de Vera Maria Gouveia Barros, numa rede social:

Esta é a estátua de Vasco Gonçalves concebida por Siza Vieira. É um génio, de facto. Da Arquitectura e das finanças públicas, porque esta estátua serve para todas homenagens que se queira fazer. É o Vasco Gonçalves, mas pode ser o Carlos Lopes. Querem uma estátua do Lobo Antunes? Já está feita, é esta. Para a Rita Blanco? Esta serve. Só não dá para pessoas sem dois braços e duas pernas. Bravo!

E então, justifica-se um levantamento para protestar? A meu ver não, por duas razões:

O país está pejado de bonecos e instalações representando nada (ou pior, representando) e a coisa passa por apoio à Arte e por mobiliário urbano. Pode ser que com verdete e degradação os mastronços se fundam na paisagem, e que entretanto o prestígio de Siza Vieira faça os passantes verem o que lá não está.

E quem, como eu, é contra o apeamento de representações de personagens históricas porque o tempo novo lhes vê com maus olhos o desempenho, também não leva excessivamente a mal a glorificação de Vasco, mesmo que extemporânea: é um comunista, coisa lá deles. Sempre é uma antiguidade, mesmo que feita agora.

Galamba

José Meireles Graça, 03.05.23

Não gosto de pipocas e portanto o que me acompanha enquanto vejo o filme pornográfico governamental são cigarros.

Receio que vá fumar muito, a julgar pela amostra de ontem. Já ouvi Helena Matos, Sérgio Sousa Pinto, Sebastião Bugalho, José Miguel Júdice, quase tudo de um debate (na realidade um massacre de Costa) entre Mariana Mortágua e Bernardo Blanco; e ainda alguns outros em parte, salvo os representantes dos partidos em que me fiquei pelo quase nada porque, juntamente com o tabaco, a demasia poderia ter efeitos deletérios numa saúde que estimo. Além do que, com aqueles referidos a princípio, já me considero ilustrado.

Uma vaga gratidão nutro por Costa, Galamba, Medina e as outras personagens do elenco. Porque me tenho aliviado de uma quantidade prodigiosa de piadas foleiras no Facebook e a mera informação de que tinha apostado 5 € em que Galamba não seria demitido foi acolhida com bastante curiosidade. Amanhã haverá mais e nos dias, senão semanas, seguintes conto com emocionantes episódios.

Ontem por ontem descrevi a coisa, como a vejo, assim:

Cheque ao rei: Andas para aí a rosnar que dissolves e não sei quê, a ver se te colas ao descontentamento que anda no ar e recuperas a tua popularidade que já foi maior? Ora pega, ou dissolves e eu tenho hipóteses de ganhar as eleições ou não dissolves e ficas corresponsável por tudo o que corra mal. E se na Comissão de Inquérito o Galamba ficar ainda mais queimado do que já está, tens mesmo de dissolver e eu vou chorar lágrimas de sangue a dizer que a direita e o seu Presidente me impediram de prosseguir a esforçada e bem sucedida tarefa de governar.

Bem jogado por Costa. Tão bem que não é impossível que saia vencedor desta contenda. E é isso que dói, porque a vitória dele será a derrota do país. Do que dizem os comentadores maiores deduzimos a história, e tiramos as nossas conclusões consoante a simpatia que temos por uns e outros – é o papel deles.

Eu e muitos gostamos disto. Mas não somos desempregados em fim de subsídio, nem estamos à espera de uma consulta ou operação no SNS ou decisão de uma pendência em tribunal, nem constatamos que o orçamento disponível pouco passa de meados do mês, nem vamos de malas aviadas para pôr o curso a render num sítio em que somos imigrantes, nem, nem, nem.

Uns lunáticos passam a vida a dizer que estamos a ficar para trás numa União Europeia que pesa cada vez menos no mundo, mas isso não interessa nada porque ninguém sabe bem onde fica a Lituânia ou a Hungria, por exemplo. E depois, para quem tem o rendimento absolutamente certo ao fim do mês, seja funcionário público, reformado, pensionista, fornecedor habitual do Estado ou empregado de empresa pública que ainda não entrou em corrupio, não se pode acenar com reformas do Estado porque essa gente se encolhe logo com medo que lhes toque a eles – que são quem decide as eleições. O regime de esquerda minou o terreno bem minado, e um governo como o de Costa sabe que reformar seja o que for lhe diminui a popularidade – é muito melhor dar um bodo qualquer, modesto que seja, montar uma barragem de propaganda e contar com o matraquear da esquerda à esquerda, que vai difundindo o ideal de progresso do país capitaneado por um Estado obeso. Isto permite ao PS apresentar versões edulcoradas das mesmas políticas, o que passa por moderação e equilíbrio.

O PSD e a IL apresentam soluções que passam a maior parte do tempo desapercebidas, e quase sempre evitam cuidadosamente falar de reformas desagradáveis – um propõe-se expurgar os piores defeitos das políticas pêessísticas e o outro quer fazer reformas fiscais que originam crescimento a prazo sem explicar como se resolve a quebra de receita enquanto o crescimento não chega.

O Chega tem herdado os deserdados e os indignados do regime e quer cortar nos podres porque os seus militantes e simpatizantes são puros, enquanto os outros são uma corja de ladrões e patifes para cujos desmandos promete cadeia. De reformas nada salvo a do Código Penal. É provável que cresça à medida que crescem os problemas do país e se vão destapando as águas pútridas em que chafurda o aparelho que o PS montou e é provável que chegue ao Poder. Será menos mau tudo o que remeta o PS para uma longa cura de oposição, mas não mais do que isso.

Como dizia Pessoa, enquanto o destino mo consentir continuarei fumando. E como não gosto de pipocas, como já disse, mas, como não disse, aprecio fritos e guisados, vou assistindo com gosto ao longo cozinhado destes peixes, dos quais a maior parte são lampreias.

Paulo Tunhas*

José Meireles Graça, 30.04.23

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Paulo Tunhas era um dos nossos, e por isso o convidámos (a Oficina da Liberdade) para fazer uma conferência no Porto. Muita gente, muito interesse e muito encanto – não era possível deixar de lhe apreciar a simplicidade, a vasta cultura que sem querer deixava transparecer e a agudeza de espírito que o levava a ver as coisas por baixo das coisas.

Prefaciou o livro de Carlos M. Fernandes “Vai ficar tudo mal” e tem um ensaio no a publicar “Polarização - Ensaios de história, filosofia e teoria política”, além da vasta obra que a notícia da sua morte refere.

Dos nossos, os que liam religiosamente a sua coluna no Observador. Também dos outros, os que, partindo de pressupostos diferentes para moldar as suas convicções, lhe reconheciam a superioridade intelectual e a incapacidade para ser banal, superficial ou odiento.

Na minha cidade almoçámos uma vez. Um grupo improvável – ele, Sérgio Sousa Pinto, Francisco Assis, Sebastião Bugalho, João Bianchi e eu, por ser da terra. Conversa ao correr da pena, Paulo tinha a lhaneza de trato e a despretensão de quem era, à falta de melhor palavra, civilizado.

Nos cemitérios há, ao contrário do que se diz, pessoas insubstituíveis. Sem ele, não vamos pensar melhor.

 

* Publicado no Observador

O país de papelão*

José Meireles Graça, 21.04.23

Helena Garrido, que não tem a reputação de ser uma feroz reaccionária, fez há uns tempos  um excelente libelo contra o Governo de António Costa. Não era, nem podia ser, exaustivo, senão o artigo ficaria demasiado extenso. Mas falava da TAP, da “reversão” da austeridade, da distribuição de dinheiro para manter eleitores, dos empregos para rapazes e raparigas do PS, da captura do Estado, da descapitalização, degradação e desmoralização dos serviços públicos, da Educação que teve 7 anos de sucessivos anunciados progressos para (conclusão minha) chegar à derrota final, e ainda da habitação, sector que agora o Governo tem envidado esforços para acabar de demolir.

A isto acrescentou um sortido de asneiras demagógicas costianas, apesar do que, se feito por mim, o libelo seria muito mais virulento – o nosso Primeiro é uma manifestação evidente do princípio de Peter, sendo que no caso dele a presidência da Câmara de Lisboa já foi o patamar que não deveria ter ultrapassado, e onde a sua vacuidade só não foi notada por ser quase uma tradição nas funções.

E também não deixaria de falar em impostos, cujo nível é suicidário para um país como o nosso, nem no peso do Estado que é para todos os países uma mochila necessária que carregam às costas mas cuja dimensão num caminhante débil que precisa de andar mais depressa que os outros é um factor determinante do arrastar de pés.

Sucede que o Estado, que Costa engordou, e os impostos, que o celebrado Centeno aumentou enquanto catedratizava sobre a fantasia de os estar a reduzir, e que a inflação agora engorda ao mesmo tempo que o Governo “dá” umas migalhas sortidas para não deixar fugir eleitores, fazem parte do pacote de problemas cuja resolução é necessária para sair do marasmo. Vamos sair? Claro que não, até onde a vista alcança, mas talvez um pouco, se o PS for varrido.

Ao contrário do que se diz, Costa sempre teve uma ideia para o país, que partilha com boa parte do PS, do PSD, da comunicação social e da intelligentzia. Há diferenças entre a esquerda que o PS representa (a outra é ou fóssil ou demente) e a chamada direita, mas sobretudo de grau, não de essência. Mesmo que esta diferença fosse suficiente para reverter a colonização do aparelho de Estado pela cáfila voraz dos portadores do cartão PS, fazer alguns modestos cortes na despesa inútil que permitissem dar algum sangue ao anémico SNS, estancar o crescimento do Estado, cortar nas tácticas desonestas dos focus groups, e de modo geral conferir à política um módico da nobreza e decência que não tem tido.

Quem quiser ver que ideias são essas para o país defendidas consistentemente poderia entreter-se a exumar as prestações de António (como lhe chamavam carinhosamente os companheiros de painel) na Quadratura do Círculo. Exercício aliás pedagógico para os eleitores que votaram e revotaram naquele mal-entendido em forma de pessoa, tal é o abismo entre o país ambicionado e o real.

Uma é a educação. Guterres, sempre a esponja da intelectualice pateta que anda no ar da modernidade de esquerda, que deixou, juntamente com o pântano, a memória da paixão pela educação que abrasava o seu coração engenheiral, achava que era ela a mola do desenvolvimento. E deixou essa herança, que Costa glosa de mil maneiras. Porém, se sem educação não é possível desenvolvimento, daí não decorre que a educação, por si só, o promova. De resto não há nenhum factor isolado, absolutamente nenhum, que por si seja a pedra filosofal do desenvolvimento

Os países comunistas sempre privilegiaram a educação, mas foram pela escada abaixo sobretudo por não terem podido produzir sociedades que economicamente pudessem competir com o Ocidente. E as resmas de arquitectos e dentistas, por exemplo, que agora produzimos e que nos custam os olhos da cara vão alimentar o Dubai, o Reino Unido e outros lugares, mas a terra que os formou não. Assim como todos os anos as universidades despejam no mercado gestores e economistas que se distinguem por não fazer empresas, embora estejam prontos a ministrar conselhos a quem as fez e a engordar os organismos onde se projecta o futuro e se criam empecilhos ao sector produtivo. As empresas nascem onde não há entraves à sua criação, existe capital disponível, liberdade económica, respeito do direito de propriedade, que inclui uma fiscalidade que não seja predatória, tribunais (e câmaras municipais, e autoridades disto e daquilo) que funcionem, não se tenha a pretensão de inventar um capitalismo sem defeitos nem desigualdades, e muitos outros requisitos – todos identificados avulsamente há muito.

Outra é a formação, parente da primeira, e assenta no equívoco de se achar que o poder sabe, mas os empresários não, quais são as formações necessárias. Daí que uma parte dela seja eventualmente útil; e a maior parte consista em pessoas que fingem que ensinam a pessoas que fingem que aprendem conhecimentos que de todo o modo não servem para nada. Um entendimento correcto das funções do Estado consistiria nisto: Querem os empresários fazer formação porque dela precisam? Façam-na – à custa deles e sem ajudas.

Outra é o apoio da Europa, que se materializa em subsídios. Já é assim desde 1986 e o bodo sempre se destinou a assegurar a convergência, a qual já existiu num período relativamente curto mas se esfumou entretanto – há mais de 25 anos, com excepção daqueles em que, por causa das dificuldades da Alemanha e da Itália, se deu uma ilusória aproximação à média. Extraordinário que se acredite que é com subsídios a fundo perdido que as diferenças se esbatem: o Norte da Itália é, comparativamente ao Sul, rico, e assim se mantém não obstante as transferências de meios; e os países que escalaram lugares no desenvolvimento dentro da EU não dispuseram de mais abundantes recursos alheios que nós, que deslizamos em direcção ao produto por cabeça da Albânia. Ao qual sem dúvida chegaremos se o eleitorado continuar a ser comprado a esmolas que acredita serem triunfos e munificências que julga não lhe saem do bolso.

Claramente: O mecanismo dos subsídios garante o poder da burocracia europeia (ao qual não nos podemos subtrair porque Portugal, embora não se tenha ainda reparado, há muito deixou de ser um país independente), o da burocracia política caseira, isto é, o PS e o PSD, o das agências governamentais que vivem da selecção das candidaturas, e o dos gurus da economia que têm visões para o país, todas redentoras, todas a apostar que agora é que vamos dar o salto, e todas falhadas. O exemplo mais recente é o PRR, que está a servir para financiar o Estado e dar uma aparência de crescimento, que porém não será sustentável (com perdão da expressão, tirada do jargão de economista).

Garante isto. E também a corrupção, o financiamento da concorrência desleal e a torrefacção de fundos em projectos ocos ou faraónicos. Finalmente, e talvez não em último lugar, a ideia de que o investimento privado é uma coisa que não é pensável sem apoio do dinheiro dos contribuintes é um dano permanente à sanidade da economia.  

Outra é o papel central do Estado. O Estado de Costa sabe, os cidadãos, mormente os empresários, ignoram. E é precisa a mão reguladora, permanentemente em estado de diarreia legislativa, que diz o que se deve produzir, onde, de que forma, com que regras, tudo salpicado de autoridades e multas, as primeiras pesporrentes e metediças, as segundas terroristas.

Outra é a igualdade. A igualdade é uma maldição de esquerda que a direita comprou. A dignidade humana impõe que não haja pessoas na miséria, e que o mínimo de subsistência, ajuda na saúde, na justiça e na educação estejam assegurados. Mas lá onde a obsessão com a igualdade económica implica, como entre nós, praticamente o achatamento da classe média e a decapitação dos ricos, e por conseguinte da acumulação de capital, o que sobra, na ausência de crescimento, é a distribuição da pobreza para uns, e da mediania pobreta para outros. Estes últimos, se tiverem formação (e têm, crescentemente) e forem novos dão à sola para mais verdes pastagens. É uma das realizações de Costa, e o mais seguro testemunho, pelas suas consequências, do manto negro que pousou sobre o país.

Outra são as gloriosas conquistas de Abril, em particular o SNS. Este serviço, por ter sido concebido como universal e gratuito, só pôde funcionar nesses termos enquanto a dívida pública crescia sem rei nem roque, e distinguiu-se por progressos assinaláveis nos indicadores de saúde. Desde a falência socratiana, porém, o PS interiorizou a convicção de que não é boa ideia ignorar os credores e os nossos patrões europeus. E logo o SNS mostrou o ligueiro, sendo agora uma ruína grotesca, tão completa que a maior parte das camas já estão no sector privado; e a verdadeira saúde tempestiva é coisa para quem a pode pagar depois de ter pago os impostos que sustentam a outra. Há um sítio, um sítio apenas, onde o socialismo funciona bem – é no papel.

Há mais, muito mais: a economia circular, as energias renováveis para combater o aquecimento global, e dezassete outras ideias moderníssimas que vamos seguir dando o exemplo a um mundo admirativo, desde que a UE apoie – e apoia, graças a Deus. Daqui a dez anos as ideias serão outras, como as de hoje não são as mesmas de há vinte.

De modo que não é verdade o que, sobre Costa, diz a Helena:

“Sim, temos alguns objetivos com os quais todos estamos de acordo, entre eles aumentar o rendimento por habitante e especialmente reforçar o peso dos salários no PIB. Mas como é que lá vamos chegar? Não sabemos e temos todas as razões para crer que o Governo também não sabe”.

Eu, que se me perdoe a petulância, sei alguma coisa. E também a sabe Helena Garrido e todos os que, não sendo comunistas nem aparentados, ganharam alguma impermeabilidade à propaganda, que, juntamente com a eficácia terrorista da AT, são os únicos sectores em que os dois últimos governos brilharam.

Crescer? Costa não sabe, mas tem a excelente desculpa de nunca ter sabido.

* Publicado no Observador

Festa estragada

José Meireles Graça, 19.04.23

Bem se compreende que os regimes celebrem as suas datas fundacionais porque o novo é melhor que o anterior, acredita quem o celebra e assim se relegitima. Países há que, não tendo regime novo para celebrar, porque sempre tiveram o mesmo, escolhem por exemplo a data da sua independência ou nascimento – é o caso dos EUA com o 4 de Julho e seria o caso do Reino Unido se quisesse comemorar o dia da sua união formal, que foi o 1º de Maio de 1707.

Nós celebramos o dia 25 de Abril pela mesma razão que antes o 28 de Maio. E também o 5 de Outubro porque despedimos a monarquia e os republicanos, que são a maioria, veem nisso um grande progresso civilizacional.

Se celebrássemos o país e não o regime o tal 5 de Outubro estaria bem – mas de 1143, não de 1910.  E o 1º de Dezembro também, que nesse dia, em 1640, despedimos a dinastia filipina e ficamos com os Braganças.

Sucede que o 25 de Abril de 1974 é uma data equívoca porque nela não nasceu a democracia mas a balbúrdia. A democracia estava lá, mas também a comunistada. E foi preciso nova data, 25 de Novembro do ano seguinte, para enterrar o PREC e forçar o PCP a um grande respeito pela democracia burguesa, que o intelectual Pacheco e outros pensadores encartados acham que ele tem.

Ou seja: A data é celebrada genuinamente pelos que têm saudades do que chamam “poder popular”; e pelos outros um pouco a contragosto porque se os primeiros tivessem ganho a partida seríamos todos, fora os autoexilados, que seriam legião, cubanos sem charutos e com menos sol.

Seja como for, naquele dia há discursos e um grande sortido de partes gagas – faz parte. Com desconforto ou sem ele é um dia em que se comemora o direito que tem todo o cidadão de ser exposto a opiniões diferentes, e até opostas, do que seja o bem comum, e em que vão orar as pessoas que, bem ou mal, foram livremente escolhidas, uns para mandar e outros para os atanazar e atirar abaixo, se puderem, em datas aprazadas.

É coisa nossa, e íntima, mesmo que usemos o dia para ir à praia ou para o sofá, e nos poupemos ao cerimonial pindérico e ao enjoo das sessões comemorativas.

De modo que a Assembleia da República teria feito bem em não convidar Lula para aquela data. Este representa o Brasil, tal como antes dele Bolsonaro, mas não é possível imaginar que, naquele dia, será o Brasil que estará no Palácio de S. Bento. Poderia ser em qualquer outro dia, mas no 25 de Abril será o capo da esquerda porque a distinção só pode significar que este Presidente é especial: é um democrata enquanto o outro, que também ganhou as eleições, não as poderia ter ganho, razão pela qual seria absurdo tê-lo convidado à época. A AR, aliás, nunca o poderia ter feito porque nela a esquerda, toda ela, recuaria com horror: o quê, Bolsonaro, esse fascista?! Ai credo que o 25 do quatro é a data da democracia, semelhante energúmeno não pode ser recebido.

Para o caso importa pouco saber de onde partiu a peregrina ideia do convite que a AR convalidou. Um ministro apagado pôs a boca no trombone, mas talvez Marcelo esteja na origem – ele costuma estar no centro dos redemoinhos políticos se tiverem uma componente de rodilhices e superficialidades.

A chamada direita, com mais ou menos reservas, cedeu à chantagem da esquerda: não se pode ofender o Chefe de Estado de um país amigo.

Não poderia se se devesse entender que a AR tem pelo Brasil algum menosprezo; pode se ficar claro que uma parte da AR, que é a esquerda, quer tomar partido em assuntos internos do Brasil, aprovando a escolha mais recente do eleitorado daquele país e desprezando a dos deploráveis que fizeram a anterior.

Finalmente: As alegações sobre a falta de alinhamento entre as posições do Brasil e as de Portugal no que toca à guerra da Ucrânia são bizarras: Desde quando se recebe ou deixa de receber um chefe de Estado porque tem posições diferentes das nossas em matéria de política externa? O Brasil quer uma nova ordem internacional na qual tenha, com a China no leme, mais vantagens do que as que tem com os EUA a ocupar esse lugar – é um engano lá deles. E nós queremos o que a UE quiser desde que mande subsídios – é um engano cá nosso.

O 25 de Abril ficará em 25 de Abril mais de esquerda do que já era. Bom proveito.

Comunismo fiscal

José Meireles Graça, 15.04.23

Os meus para cima de seis leitores sabem que há uma categoria de académicos, magistrados da opinião, políticos e opinantes pela qual nutro uma embirração, e que é a dos economistas.

Nada de pessoal. Alguns dos meus melhores amigos pertencem à agremiação, e por isso um ou outro rosnará, se ler estas regras, com um misto de enfado e compreensão: Lá está ele!

Sucede que há uma diferença entre esta e todas as outras formações, e essa diferença assenta num equívoco. Sucintamente: o principal assunto político (não o único, graças a Deus) dos artigos de opinião é a criação de riqueza e a sua distribuição, mesmo quando pareça que se está a falar de outras coisas; as várias correntes políticas têm sobre estes assuntos não apenas opiniões diferentes mas com frequência opostas; e os economistas dividem-se segundo precisamente as mesmas linhas de fractura.

Se se dividem desse modo isso significa que todas as demonstrações com abundância de números e aparente rigor de raciocínios se baseiam nos mesmos pressupostos ideológicos que fazem com que o comum dos mortais esteja mais à direita ou à esquerda, e não têm portanto mais valor acrescentado, muito menos científico.

Quem os lê ou ouve, porém, acredita com demasiada frequência (e os próprios também, Deus lhes perdoe) que aquele tipo de formação ajuda a ver o caminho das pedras do desenvolvimento, e daí que se ouçam os respectivos discursos com a deferência com que não se ouvem os dos treteiros comuns.

É esse o equívoco. E como Portugal é hoje um país formatado à esquerda (foi sempre, em maior ou menor grau, desde o 25 de Abril – uma afirmação à qual não me vou dar ao trabalho de dar conteúdo) um académico prestigiado, com discurso escorreito, tem grande audiência se for de esquerda.

É esse o caso de Susana Peralta. E para responder à solicitação da Visão, feita a ela e outros, para se pronunciarem sobre o tema “30 ideias para fazer agora e melhorar Portugal”, a preclara diz esta coisa prodigiosa:

A minha ideia é implementar um imposto sobre heranças e doações em Portugal. A ideia é importante porque a distribuição da riqueza é muito mais desigual do que a distribuição de rendimento e, por outro lado, a riqueza é algo que quando é herdado é uma lotaria no momento do nascimento que acaba por contribuir para uma grande diferença nas oportunidades que são dadas a diferentes indivíduos na sociedade sem que tenham qualquer mérito por isso.

Que se ache que o país fique melhor pelo efeito de se criarem novos impostos, num contexto em que a carga fiscal é, para a nossa desesperada necessidade de crescer, absurdamente alta (mais uma vez: não vou elaborar neste ponto, há dúzias de artigos de colegas da doutora Peralta a verberar o sufoco fiscal), desafia ao mesmo tempo a lógica e o senso (o bom, não o comum porque este último está condicionado pela máquina de criação de dependentes do Estado que o regime é).

Está tudo errado: a diferença na detenção da riqueza é um facto inevitável em sociedades onde haja liberdade económica e nada tem de indesejável porque só é possível contrariá-la pelo esbulho. O qual, por ofender o direito de propriedade e a poupança (poupar para investir, quer se tenha quer não se tenha herdado, é socialmente muito mais útil do que consumir, ainda que a escolha deva pertencer aos cidadãos e não à dra. Susana) castiga a cidadania. A diferença de oportunidades existe, bem entendido, mas também ela é natural e é uma decorrência da liberdade económica e até da liberdade tout court: à sombra de qual direito que não seja abusivo acha a professora que o Estado me pode impedir de desejar para os meus filhos melhores condições materiais de partida do que as que eu tive?

Cabe perguntar: Por que razão pessoas inteligentes dizem estas tolices que não são inócuas porque alimentam a inveja e o ressentimento? Dou a resposta que dei no mural, no Facebook, de um amigo:

O imposto sobre heranças ainda existe, se bem que com o nome de imposto de selo, e é de 10%, ainda que não se aplique a filhos, cônjuges e pais. E, como é costume em Portugal, tem na sua aplicação prática aspectos caricatos. Por exemplo, uma minha tia querida deixou aos seus sobrinhos a casa em que vivia, com reserva de usufruto para um terceiro. E eu e cada um dos meus 14 primos pagamos, cada um, à volta de 200 Euros de imposto por uma casa que, na prática, não pode ser vendida por estar gratuitamente ocupada. Susana acha provavelmente que 10% é uma ridicularia. Eu acho que é um abuso, e acharia o mesmo se fosse 1% ou 100%. Porque este imposto nega a quem tem alguma coisa de seu o direito de dispor dos seus bens da forma que entender, mesmo que, como é quase sempre o caso, tenha optado por investir em vez de consumir. Susana não deseja isto em nome da economia (ela é académica do ramo, por conseguinte pouco entende do assunto), mas sim em nome do seu acendrado amor pela igualdade. De outro modo: é uma comunista fiscal. Não muito menos abominável que os autênticos comunistas.

Comunista fiscal sim, com perdão de algum exagero retórico. Porque o raciocínio nada tem de económico, e tudo de circular. Começa-se por definir a desigualdade como um mal; se é um mal, há que combatê-lo; se há que combater a diferença está nos processos – ou se confisca já ou no espaço de duas ou três gerações. Que no percurso se atenue, mate ou distorça a livre iniciativa, que se dane. Então não é a igualdade o valor mais importante, como se disse a princípio?

É, para ela. Não, para mim. Ademais com a diferença de eu desejar à doutora Susana as maiores felicidades no gozo do que lhe pertence, que espero seja muito, e a ilustre académica não me retribuir no que me pertence a mim, que é infelizmente pouco.

Páscoa

José Meireles Graça, 09.04.23

Na passada Sexta-feira Santa teve lugar um Benfica-Porto, que a melhor equipa, previsivelmente, venceu.

Miguel Alçada Baptista veio dizer que não achava bem que o jogo tivesse tido lugar naquele dia, por um certo número de razões que enunciou e subscrevo.

Isto originou uma discussão cordata mas não insonsa, com dois campos bem definidos sem que em nenhum se visse a acrimónia e aversão que com facilidade se infiltram nestas conversas, e alguns argumentos bem esgrimidos sem preocupações de exaustividade nem pretensões culturais.

O argumento mais utilizado do lado dos que acharam muito bem que o jogo se realizasse foi o da quantidade: há mais, dizem, amantes de futebol do que católicos, ao menos dos que vão à missa; e como, do lado dos defensores da marcação do jogo para outro dia se invocam razões culturais mais do que religiosas, chamam a atenção para uma implícita superioridade, que não aceitam, de celebrações religiosas sobre efemérides cívicas.

Também lá fui deixar os meus três tostões, nos seguintes termos, e deixo para o fim uma consideração que, revendo os comentários, me ocorre:

Há muitos Portugueses (incluindo grande, senão a maior parte, dos que foram ver o jogo) que acham confusamente que o desrespeito pelas tradições católicas implica degradação de um dos elementos que constitui o nosso cimento de pertença ao mundo não-muçulmano, não-hindu, não-budista, etc., isto é, cristão. E é absolutamente impossível que o catolicismo, que sempre foi a religião dos nossos maiores, não faça parte da nossa identidade de Portugueses, nem que seja pela atávica compreensão de que algo liga o que somos ao que foram os nossos tetravós. Não é preciso ser crente para prestar alguma forma de vassalagem aos que o são, se não for por mais nada ao menos porque é uma tradição que não comprime seriamente nem a liberdade nem direitos de cidadania. Deixei de ser católico aos 13 anos e sou, tecnicamente, um agnóstico. Tenho um imenso respeito em abstracto pelo Povo a que pertenço, que todavia em concreto, através dos gostos, inclinações, convicções políticas e maneiras, detesto. A convicção religiosa, porém, está um tanto acima de outras, por ter a ver com a relação com a maneira de viver a vida e a forma como se encara a morte. Se dependesse de mim, é claro que não haveria jogo nenhum e não me passaria pela cabeça que isso implicasse um descaso dos que, como eu, vivem bem sem fé. E é claro também que este assunto não é redutível a argumentos estritamente lógicos porque ou temos um respeito instintivo pelo apelo que a maioria de nós sente por um conjunto organizado de crenças transcendentais ou não temos. Eu tenho.

Cabe perguntar donde vem alguma militância na negação do estatuto privilegiado da Igreja, mesmo para lá de alguns aspectos que a Concordata acolhe, e a meu ver tem isso a ver com a obsessão com a igualdade; com a consciência um tanto difusa, do compressor que a Igreja tradicionalmente foi da diferença – qualquer diferença espiritual e qualquer desvio nos costumes; e com o facto de, em numerosos aspectos, as posições oficiais da Igreja colidirem com uma parte das opções da contemporaneidade política, nossa e de outros no Ocidente.

É não compreender que a igualdade absoluta das instituições religiosas (a Constituição, quando a consagra, quer apenas preservar a liberdade de culto) colide com a nossa tradição e nos desarma perante religiões ou seitas que ocuparão os lugares deixados vagos; e que as Igrejas, todas e não apenas a Católica, têm posições sobre questões sociais, com a diferença de em muitas tais posições serem bem mais radicais, militantes e agressivas, além de alienígenas.

Tende portanto juízo. Um jogo de futebol, na ordem imanente das coisas, tem uma importância menor. E continuará a ter, por muitos milhões que julguem que o mundo gira à volta de uma bola ou, pior, em torno dos respectivos umbigos imaginariamente modernos e desempoeirados.

O réu insolente

José Meireles Graça, 04.04.23

Achei a notícia curiosa e, armado de paciência e coragem, fui ler o acórdão. Ainda é pior do que o que é costume: prolixo, redundante, aqui e além com redacção descuidada (incluindo o irritante hábito de, ocasionalmente, atirar vírgulas ao ar e deixá-las ficar onde caem) e, sobretudo, interminável.

Tão interminável que não li até ao fim, ainda que a história não seja particularmente complicada. Como se diz na peça, que resume adequadamente o assunto:

O homem foi detido em 18 de março de 2019, juntamente com o pai, por alegadamente terem obrigado dois indivíduos a trabalhar durante 11 anos seguidos sem nunca lhes terem pago e a viver em condições precárias de alojamento e higiene, tendo ficado sujeito à medida de coação de prisão domiciliária.

Mais tarde, foi pronunciado e julgado pela prática de dois crimes de escravidão, dois crimes de tráfico de pessoas e um crime de abuso de confiança, tendo sido absolvido de todos os crimes por acórdão datado de 19 de dezembro de 2019, data em que foi revogada a medida de coação e restituído à liberdade.

Esteve preso em casa durante mais de 9 meses (salvo umas ausências autorizadas a certas horas do dia para tratar de um rebanho de ovelhas) e, como foi absolvido das acusações, veio pedir uma indemnização ao Estado. O acórdão condena o Estado (ainda que em valor inferior ao pedido) em pouco mais de 126 Euros por dia de prisão, fora os danos apurados, estes de resto segundo critérios demasiado exigentes – os tribunais portugueses distinguem-se por atribuir indemnizações miseráveis.

Há várias coisas curiosas neste processo, desde logo por que razão se mantêm duas pessoas confinadas à espera do julgamento de um caso que não requereria mais de umas duas semanas a apreciar, e mesmo isso por causa da necessidade de ouvir as testemunhas – o assunto só é complicado porque o fazem ser e porque o funcionamento dos tribunais, em vez de ser regulado segundo os ensinamentos da especialidade de organização e métodos, o é segundo o palpite desastrado e ignorante do legislador, funcionários, magistrados e advogados, tudo com o pano de fundo da tradição – é assim porque sempre assim foi.

Mas há mais.  Esta sentença revoga outra, da primeira instância, que não apenas não dava um cêntimo ao inocentado como o condenava a pagar um xis por litigância de má-fé. Fantástico: um tipo que esteve preso durante nove meses não tem direito a nada e ainda deve pagar uma multa porque – pasme-se – reclamou e na acção exagerou numas coisinhas.

A argumentação do Ministério Público é deliciosa. Nas palavras do magistrado:

De facto, como se pode pretender que sejam tomadas decisões livres, quer na perspectiva da aplicação das medidas de coacção, quer na perspectiva da decisão final do julgamento, quando uma decisão absolutória, sem mais, poderá acarretar a responsabilidade civil do Estado e o eventual direito de regresso sobre os Magistrados?

O magistrado do MP acha que nas medidas de coacção não pode em princípio haver erros porque os magistrados estão exornados de uma clarividência divina mas, se os houver, a vítima, depois de se defender da acusação em tribunal, tem de provar que não cometeu os crimes pelos quais foi absolvido, e isto não segundo o princípio in dubio pro reu mas um inovador que seria, devidamente traduzido em Latim, o Ministério Público não tem de provar as acusações – os réus é que têm, para o efeito de serem compensados por erros ou abusos, de fazer a prova negativa que, como se sabe e o magistrado aparentemente ignora, é frequentemente muito difícil. E é claro que a invocação do direito de regresso por parte do Estado é um despropósito: Há muitos casos desses? Não? É pena, se houvesse talvez o Ministério Público pensasse um bocadinho melhor antes de propor trancafiar pessoas. E é claro que os magistrados judiciais não podem ser objecto do exercício do direito de regresso porque isso feriria a independência e irresponsabilidade do poder judicial – estatuto que o Ministério Público pode imaginar que tem mas é opinião, para dizer o mínimo, muitíssimo discutível.

Duas notas finais:

Sabemos quem foi o relator do acórdão absolutório da Relação de Coimbra porque essa informação consta no site. Mas não sabemos quem foi o juiz que absolveu dos crimes, nem quem recorreu dessa decisão, nem quem convalidou a prisão domiciliária (o termo exacto não é “convalidar”, creio, mas como se deve perceber frescuras jurídicas não são a minha especialidade), nem quem decidiu que não havia direito a indemnização. Conviria talvez que todos percebessem que a majestade da Justiça não é a majestade dos juízes, e menos ainda a dos magistrados do Ministério Público, pelo que seria boa ideia identificá-los. Era o que mais faltava se administrando a Justiça em nome do Povo nem sequer precisássemos de saber quem são.

A Justiça é o maior falhanço do regime, opinião pacífica em artigos de opinião, em particular os de António Barreto, que com duas fundas rugas de ansiedade cavadas na fronte aflita costuma fazer descrições exactas e as perguntas certas, às quais infelizmente não se dá ao excessivo trabalho de arriscar respostas. E é claro que temos direito tradicional a discursos dos mais altos magistrados queixando-se de falta de meios e do excesso de direitos da defesa, enquanto o mais alto da Nação se alivia de agudas profundidades significando nada. Porém, a razão da falta de meios nos tribunais administrativos e fiscais está identificada – não interessa ao Estado (isto é, no caso a AT e o Governo) que as pendências sejam julgadas em tempo útil; e o “excesso” de direitos não seria um grande óbice se os incidentes e os recursos fossem resolvidos e decididos celeremente.

Guterres

José Meireles Graça, 20.03.23

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A julgar pela fotografia, não é uma escultura, é um boneco. Aliás a maioria dos actuais escultores não são capazes de esculpir, mas mesmo assim chamam esculturas ou instalações a lixo conceptual. Pessoas de discernimento prefeririam Cabrita Reis (o autor desta obra não consegui descortinar quem fosse porque o artigo não o identifica, decerto por caridade), que faria uma coisa qualquer significando nada, em que uns veriam consagrado o ponderoso estadista que Guterres nunca foi, e outros a nulidade que foi sempre.

Entendamo-nos: ou o escultor faz qualquer coisa figurativa da qual ressaltam as qualidades ou o significado do quem é representado; ou, se quiser ser inteiramente fiel à figura, arranja alguma maneira de nos deixar a impressão da grandiosidade da personagem. Exercício difícil, decerto – não é escultor quem tem, se tiver, apenas jeitinho. Assim como não será escultura uma realização absolutamente realista – isso é uma fotografia em 3D.

Se o destino me tivesse dado o dom de criador em artes plásticas, em vez de algum aliás excessivamente moderado talento para o lançamento de fabriquetas, representaria Guterres de fato com água até aos joelhos.

De fato por causa dos cargos oficiais que ocupou e ocupa; e com água até aos joelhos porque Guterres sempre foi uma esponja das ideias esquerdinas que andam no ar da modernidade pateta, e por isso se fez fotografar naqueles preparos para chamar a atenção para o triste destino que teremos se não seguirmos os conselhos que ministra a cáfila ecologista cujas ideias sumárias ele bebe.

E é claro que a estátua teria muito mais de dois metros de altura, para benefício de alguns pássaros mais tímidos que estão a regressar às nossas cidades mas se intimidam com pessoas, e para não lhe vermos o cenho angustiado com as desgraças do mundo.

Enfim, lá fica a nova peça do mobiliário urbano. A Vizela vou muitas vezes porque tem um óptimo restaurante, um excelente e antigo jardim à beira-rio e o encanto do ar vagamente decadente que é típico de termas, no caso ainda funcionais e no meio de uma cidade que, felizmente para os vizelenses, de decadente nada tem.

Guterres terá mandado uma mensagem por SMS a dizer que não era merecedor da homenagem. De facto.

O meu trajecto habitual passa por ali. Azar.

Domingo de sol

José Meireles Graça, 19.03.23

Uma tinha uns óculos grandes que lhe ficavam bem, o cabelo comprido e solto, uma sainha preta; a outra um rabo de cavalo, uns leggings. Ambas esfusiantes de boa disposição. Nem Lolitas eram, nenhuma tinha ainda peito – deviam andar pelos onze, doze anos.

Afastavam-se e a mãe (suponho que era a mãe) chamou e a do rabo de cavalo, virando-se, disse, terminante, mostrando a palma da mão como quem está a mandar parar: Agora não, temos uma missão a cumprir!

Chamou então a outra, a dos óculos, que disse concentradamente: Definitivamente não é altura!

E ambas desceram para o campo de jogos da freguesia onde uns miúdos da mesma idade ou por aí jogavam a bola.

E eu fiquei a pensar: Juventude perdida que nada, exprimem-se bem e tão novinhas já têm uma noção nítida da hierarquia dos interesses.

Pessoa

José Meireles Graça, 18.03.23

Andei durante bastante tempo a ler a monumental biografia de Pessoa por Richard Zenith e entretanto tomei conhecimento no blogue Malomil da polémica em torno dela e do confronto com a outra (O Super-Camões), de João Pedro Jorge.

Inclino-me a pensar que Zenith é um bom pilha-galinhas de ideias, baseado estritamente no que António Araújo e JPG dizem, não em conhecimentos sobre os arcanos da vida e obra pessoanas e de seus estudiosos, que não tenho. António, por sua vez, levou para o Expresso a defesa que fez do seu camarada naquele blogue, o que parece estar na origem do seu saneamento.

Excepto o último ponto, nada disto me impressionou muito. Polémicas de literatos são tradicionalmente acres e dar razão a Fulano e não Beltrano, num assunto destes, é mais questão para dirimir por peritos – os leigos aderem às razões do que é mais convincente.

De resto, quem apreciar polémicas pode ir às de Camilo. Existe pelo menos uma recolha, de Alexandre Cabral, em vários volumes, que é uma barrigada de riso garantida.

Agora, um tipo ser escorraçado de um jornal por delito de opinião, não sendo original (a Alberto Gonçalves já aconteceu o mesmo por ser alegadamente reaccionário, e a alguns outros pelas mais variadas razões) é surpreendente em se tratando do Expresso. Este é o melhor espelho do regime, o que implica no caso que costuma fingir que é isento e independente (não é uma coisa nem outra), donde não se percebe nem a gravidade do que António Araújo disse nem o inusitado da reacção.

Adiante, que isso tudo (a polémica, o saneamento) é lá coisa do aquário lisboeta, e eu daquele jornal leio três ou quatro colunas de opinião, o resto que se dane.

Sucede que Pessoa está no meu escassamente povoado altar, onde aliás é o único poeta. E quem, como eu, jamais leu um livro de poesia de cabo a rabo, por gostar sobretudo de prosa, pode bem ver uma poesia dele por dia (até no Facebook isso é possível) e tropeçará decerto mais tarde ou mais cedo na melhor coisa que já foi escrita sobre a infância, o passado, o presente e a alma, seja lá isso o que for, que todos temos.

E então a biografia, que tal? O autor encantou-me, logo na introdução, com a boutade de que os quatro maiores poetas portugueses do séc. XX seriam Fernando Pessoa e os seus três principais heterónimos (cito de cor, foi mais ou menos isto); e aparentemente na vida de Pessoa nenhuma pedra fica por levantar, nenhum amigo por nomear, nenhum lugar por identificar, nenhuma relação familiar sem esclarecimento e nenhum pormenor da vida íntima, das toilettes, dos hábitos, por esclarecer.

É um monumento e não lamento, antes estou grato, pelas muitas horas que pude passar na companhia de Pessoa.

A Natureza, porém, fez-me implicativo. E como o autor se aventura por caminhos que se me afiguram controversos, vou já dizendo que há em todo o livro uma obsessão com sexo que me parece dispensável. Richard Zenith cita recorrentemente (até obsessivamente) dois ou três poemas homoeróticos, e a amizade com António Botto, bem como a inconseguida relação com Ofélia, como provas, entre outras, das pulsões homossexuais de Pessoa, e em tudo vê indícios da sua sexualidade ambígua. Conclui com óbvio desgosto, porém, que tudo leva a crer que nunca traduziu essas alegadas pulsões em actos e que, tudo somado, o que se pode dizer é que Pessoa morreu virgem e seria, em termos práticos, assexuado.

Isto leva-a a desconsiderar sumariamente uma entrevista em que quem era suposto saber contava que Pessoa frequentava discreta e assiduamente um bordel, testemunho que João Pedro Jorge não descarta.

O autor é americano, o que aliás conta para a difusão da obra e da figura de Pessoa – as coisas são o que são. E não se subtrai, a meu ver, à obsessão que demasiados naturais daquele país têm com questões ligadas à sexualidade. Diz a certo ponto que Pessoa foi exposto muito cedo à língua e à literatura inglesas (e americana) e que isso o influenciou decisivamente; e que se a sua família tivesse tido meios para o mandar estudar numa universidade inglesa teria sido provavelmente um académico e crítico ilustre, mas não o poeta universal que veio a ser.

Ambos os pontos são razoáveis e bem defendidos. Agora, achar que o seu perfil sexual, fosse qual fosse, é factor determinante na genialidade da sua obra, deixando implícito que se fosse heterossexual pai de família não teria atingido as esferas a que chegou – come on, é o caso de dizer.

Opinião sumária, a minha? Decerto. Mas o livro é carote (30 €, na versão que escolhi), tenho direito.

Esplanadas

José Meireles Graça, 17.03.23

A 5 minutos a pé ficava uma esplanada. Lá dentro a televisão aos gritos. A 10 minutos fica outra, com o regresso a subir. O interior não tem televisão mas tem sempre uma multidão para ir buscar pão e se atochar de bolos, além de, nas mesas, haver um desparrame de croissants e meias de leite, pelo que alguns dos clientes mesmo com a boca cheia não se calam.

A Câmara local, não sei ainda se por proibição se por exigência de licenciamento, acabou com a primeira; hoje não me apeteceu ir à segunda; e, como estava de carro, fui a uma terceira que, lá dentro, tem sempre música com uma decibélica de discoteca mas cá fora tem um nível tolerável.

Um grupo de jovens intensamente modernos (sei disso porque dois deles tinham o cabelo cortado à nazi ou jogador de futebol) ocupava uma mesa, e como falavam aos berros ouvi parte da conversa. Um declarou que não conseguia cortar as unhas dos pés e que era a namorada que se ocupava disso. Tendo os outros, por momentos, feito silêncio, acrescentou filosoficamente que amar é cuidar.

Realmente estou de acordo com o moço. Não obstante, acho que vou experimentar uma quarta.

Os jornais

José Meireles Graça, 14.03.23

Em papel estão a acabar. Dei-me conta disso ontem quando era preciso limpar a porta de vidro do recuperador de calor. Houve tempo em que cá em casa havia quem lesse o Público e o Expresso e este último, sem ter mais utilidades que o primeiro, tinha uma grande durabilidade – um só número chegava para um mínimo de 15 dias.

Isto de um ponto de vista meramente prático. Sentimentalmente, lembro-me de uma vez que estava a chegar fogo, no meu jardim, a um monte de detritos no sítio habitual, ver frei Anacleto Louçã (creio que no Público, que já na altura era um coio de esquerdistas sortidos) a ser consumido pelas chamas. Grande significado simbólico – o Torquemada do anticapitalismo a arder. E não poucas vezes, ao ir à maceira reciclada em depósito de velhas publicações, calhava ver artigos que me dava na bolha ler, antes de regressar abnegadamente a meus mal-agradecidos trabalhos.

Com o computador não posso acender lareiras nem fazer fogueiras no jardim, mas posso ler jornais a preços modicíssimos, quando não de graça, ainda que daqueles dois pasquins tire pouca coisa e pouca gente (Eugénia Galvão Teles, Daniel Bessa, Luís Aguiar-Conraria e mais um ou outro – do resto não quero saber, as minhas fontes são outras, e o meu jornal nacional também). Mas não vejo com bons olhos que não haja dinheiro para pagar bem a jornalistas, ainda que entenda que o Poder não deve (como aliás faz, miseravelmente) subsidiar entidades cujo principal requisito é dele serem independentes.

É isso que leva a que os jornalistas na sua maior parte sejam analfabetos, ademais veiculando opiniões arregimentadas travestidas de notícias? Não sei.

E também não sei se as exéquias dos jornais em papel são uma coisa boa. O que sei é que agora tenho de usar acendalhas caríssimas e para os vidros panos e esponjas, que também não saem de graça. Vem tudo dos supermercados, essas catedrais do capitalismo.

De modo que o mundo é um lugar desvairado, cheio de contradições. E agora com licença, que ainda não li completamente a ração do dia que a internet me traz.

Outra vez o Relatório*

José Meireles Graça, 10.03.23

O meu artigo de 17 de Fevereiro não caiu bem junto de alguns dos meus amigos católicos, o que evidentemente não tem importância nem para eles nem para mim – é apenas um facto quase anódino.

Será talvez natural. A Igreja Católica tem abundantes inimigos e muito na hierarquia e alguma coisa nos crentes há a reacção instintiva de sitiado: os abusos são uma vergonha, mas não apanhem a boleia para crucificar a instituição nem para meter todos os clérigos, salvo prova em contrário, no saco dos prevaricadores sexuais.

A boleia, em graus diversos, tem sido prazerosamente usada como vingança difusa contra um passado descontextualizado – a Inquisição, o monolitismo, a inferioridade da mulher, o diabo (é o caso de dizer) a quatro; e contra um presente de desalinhamento com uma parte significativa dos cidadãos e até dos católicos, em questões como a despenalização do abortamento e a eutanásia, entre outras. E como estas últimas questões fazem parte da luta política, a desvalorização de uma instituição que tem posições que coincidem com um dos lados da barricada é uma (mais uma vez – é o caso de dizer) bênção do Céu para quem está do outro. Depois, ao Papa actual já aconteceu com demasiada facilidade pronunciar-se sobre questões de ordenação social num sentido que parece socializante, o que o agracia junto de uns que navegam nessas águas mas faz torcer o nariz a quem entende que a defesa dos pobres se pode fazer de muitas maneiras, uma delas não sendo a espoliação dos ricos – a César o que é de César, Francisco às vezes esquece.

Foi este mesmo Papa que deu o impulso decisivo para enfrentar o problema dos abusos sexuais na Igreja, não sendo possível apurar (ao menos eu não sei apurar) se por achar que o modelo tradicional de achar que o abuso do prelado ofende mais a Igreja do que a vítima se por entender que a maré das denúncias se transformaria, sem reformas, num tsunami.

É esta mudança de atitude que está na origem do convite da Conferência Episcopal à formação de uma Comissão Independente. E agora que esta produziu o seu extenso Relatório, o qual deu origem a uma Declaração da mesma Conferência a, e outra no seguimento da anterior, vão-se lentamente formando trincheiras.

Há cinco:

  1. A dos católicos que acharam a Declaração tíbia, no tom, nas medidas e na ausência de referências a indemnizações;
  2. A dos ateus ou agnósticos que nela veem as mesmas insuficiências, quer reconheçam quer neguem a imensa utilidade social da Igreja;
  3. A dos católicos que cerram fileiras verberando o Relatório por fazer extrapolações estatísticas (para o número provável total de casos) que acham erróneas, que condenam a exigência de afastamento de prelados com base em meras denúncias, com descaso de contraditório e provas, e chamam a atenção para casos do mesmo tipo em instituições de guarda de menores não religiosas, ou no seio das famílias, ou em organizações que, pela sua natureza, facilitem a exposição de menores a adultos, como os escuteiros;
  4. A daqueles que entendem que se deve dar o benefício da dúvida porque o Relatório, enquanto tal, não dá nem podia dar origem imediata a sanções, desde logo pela confidencialidade dos testemunhos, essencial porque sem ela o número de denúncias seria muito menor, mas que o trabalho vai prosseguir, igualmente por uma Comissão, a qual terá uma maioria de elementos não dependente da Igreja.
  5. A daqueles católicos que não leram o Relatório e não ouviram a declaração, apenas sabem do caso o que a comunicação social diz, mas como medida precaucionaria ou retiram filhos de actividades ligadas à Igreja ou se envolverão com muito maior proximidade, espirrando ao menor sinal de alarme.

Por mim, estou no penúltimo grupo. Mas entendo que os do terceiro fazem um desserviço à Igreja. Explico:

A ciência da estatística é ininteligível para quem nela não tenha formação, daí decorrendo que as expectorações de indignados, mormente prelados, sem outro fundamento que suficiência pedestre, valem zero; a exigência de afastamento de autores de abusos ou que a eles deram cobertura não tem lugar, por quem faça mais do que apenas vociferar, ignorando os direitos de defesa. Porém, haverá que ter em conta que não estamos a falar de processo penal (disso se ocupará o MP e os tribunais, se casos perseguíveis lá chegarem), pelo que o recurso a prova testemunhal e indiciária deverá ser suficiente, se uma e outra forem consistentes, nomeadamente se não for apenas um caso de abuso perpetrado pelo mesmo presumido criminoso, ou de negligência; as ocorrências do mesmo tipo de ofensas na família e instituições (há que lembrar a Casa Pia, de infausta memória) têm a mesma gravidade objectiva. Porém, das duas uma: ou a Igreja, a meu ver bem, se reclama de um múnus que, pela Fé e dedicação dos seus membros, é particularmente exigente, ou acha que é uma entidade como as outras. As duas coisas, ao mesmo tempo, é que não pode ser.

Haverá que referir a este propósito que esta comoção terá, espera-se, afinação de processos na esfera civil – algum bem virá talvez deste mau passo.

E é claro que o projectado memorial às vítimas a inaugurar aquando das Jornadas Mundiais da Juventude é uma iniciativa infeliz: Pompa, celebrações, discursos com palavras fortes (vergonha, escândalo, dor, sofrimentos incomensuráveis, perversidade, etc.) são certamente oportunos. Mas conviria, antes de fazer memoriais, ter presente que o passado não está morto porque há transgressores no activo e ofendidos vivos.

Finalmente: A opinião pública é assaltada com pelo menos um escândalo por quinzena e cansa-se facilmente. Espero que os senhores bispos que produziram aquelas declarações enfáticas em, se me permitem a irreverência, palavreado de sacristia, bem como a patrulha encarniçada dos amigos equivocados da Igreja, não contem com isso para arrastarem os pés e as vontades. Porque dentro de pouco tempo deixar-se-á de falar no assunto, o que não é a mesma coisa que achar-se que os fiéis se esquecem e que a Igreja pode dar o exemplo sem ser exemplar.

 

* Publicado no Observador

Aprendemos?

José Meireles Graça, 08.03.23

Conheci ao longo da vida alguns médicos estúpidos e alguns médicos inteligentes.

Os primeiros conheciam as regras da arte e daí deduziam que não há doentes, apenas doenças, e os segundos conheciam as regras da arte mas achavam que, por os doentes serem pessoas, cada caso era um caso; os primeiros não faziam diagnósticos sem recurso a uma bateria de meios auxiliares de diagnóstico e os segundos avaliavam o custo/benefício de tais exames e, se não houvesse risco de doença potencialmente séria, diagnosticavam com base na experiência; os primeiros fingiam ouvir e os segundos ouviam. Não há abissal diferença nos ganhos que uns e outros percebem porque o médico, hoje, é sobretudo um funcionário público ou privado que está num hospital ou num centro de saúde (há diferenças no preço que o cliente paga consoante o SNS está ou não envolvido – um outro assunto), nem aliás a diferença entre o bom e o mau médico é sempre facilmente perceptível para o doente.

A pandemia covidesca veio baralhar este suave arranjo porque as regras da arte pertenciam a umas diminutas capelas da igreja da medicina, que eram as dos epidemiologistas e virologistas, e estes, infelizmente, emitiram sinais contraditórios, ainda que no geral encantados com a sua súbita importância. Os médicos estúpidos e inteligentes compraram o conto da tragédia porque, coitados, do assunto pouco entendiam mais do que os comuns mortais, mas, ao contrário destes, podiam reclamar-se da “ciência” dura que a medicina não é, em que pese recorrer crescentemente, para progredir, a várias disciplinas científicas. 

Das divergências a opinião pública praticamente não tomou conhecimento porque desvalorizar dramas não é exactamente do interesse da comunicação social, nas fases iniciais o vírus chinês parecia realmente ameaçador e rapidamente o pânico se instalou, ao qual os poderes públicos, em democracia, responderam com um variável (segundo os países) catálogo de regras e interditos, atropelando leis e direitos como num estado de guerra, e, em ditaduras, com o mesmo sortido de medidas mas aplicadas radicalmente e sem tergiversações.

A desvalorização não era do interesse da comunicação social nem da magistratura de opinião. A qual abraçou com entusiasmo a causa do “combate”, que tinha a interessante virtude de obliterar parcialmente a diferença entre direita e esquerda e o incentivo de classificar de transviados e “chalupas” aqueles raros cidadãos que tentaram ver no meio do nevoeiro, não aderindo ao estouro da boiada. O que dá sempre um grande conforto às maiorias que acreditam em tontices.

Tontices eram, como agora lentamente se vai sabendo, com estudos que têm a vantagem de disporem de dados acumulados e sem a pressão da histeria que rotulou de “negacionistas” todos os que não compraram acefalamente o discurso situacionista. Daqueles recolho este, que o New York Times divulga, destacando da entrevista que o principal responsável concedeu:

“What about the utility of masks in conjunction with other preventive measures, such as hand hygiene, physical distancing or air filtration?

There’s no evidence that many of these things make any difference.”

Agora a doença vive, como muitas outras, entre nós, causando as vítimas que muitas doenças causam, sem particular comoção. Sobre as quais vítimas há aliás um pesado silêncio porque ninguém quer lembrar a velha que em Guimarães foi enxotada arrogantemente para casa pela polícia, ou o tipo incomodado por estar a comer na rua, ou a praia que um autarca demente mandou desinfectar e as cidades que colegas seus isolaram, ou os infectados que a “autoridade” de saúde resolveu prender em casa ou em hotéis, ou as empresas que faliram por não terem resistido à quebra de negócios, ou os miúdos que perderam um tempo de aprendizagem que jamais recuperarão, ou os que morreram sós porque eram pestíferos, ou toda a casta de abusos e atropelos em que a Constituição foi suspensa, o seu principal garante se acoitou em casa tolhido de medo e os responsáveis se passearam mascarados de cirurgiões, para dar o exemplo, aliás entusiasticamente seguido.

Acaso os tribunais, chamados algumas vezes a intervir, se tivessem para aplicar uma Constituição castrada no elenco dos direitos cidadãos contra o poder (que são os que definem axiologicamente o Estado de Direito) teriam servido para alguma coisa? É que o risco daquela amputação, que ao que parece tanto o PS como o PSD subscrevem em sede de revisão constitucional, pode bem ficar como a principal sequela da doença. A classe política, esquecemos, tende a comportar-se como uma burocracia, e esta jamais deixa que uma crise seja desaproveitada para efeito do reforço dos seus poderes.

E então, aprendemos alguma coisa para a próxima crise? Gostava de acreditar que sim, e que o manto de silêncio é fruto do cansaço e da vontade de esquecer – os erros, as conivências, o maria-vai-com-as-outras, os abusos, a invocação escandalosa, ao princípio, do suposto exemplo das medidas que a China tomou (estes ouvidos que o fogo há-de consumir ouviram a um daqueles magistrados recomendar a aplicação stayawaycovid inspirando-se no exemplo da China, a mesma China que mais tarde viria a execrar por ter escaqueirado a sua economia com o seu radicalismo acéfalo e ditatorial), as mortes por falta de assistência, consequência da mobilização exclusiva do SNS contra o monstro, e um longo rosário de efeitos perversos dos quais ainda não recuperamos definitivamente e que permanecem insuficientemente medidos.

Culpados não há porque quando são quase todos ninguém é. Mas do asneirol generalizado deveríamos retirar algumas conclusões: i) É sadio desconfiar das autoridades políticas porque estas ou querem reforçar os seus poderes, ou satisfazer interesses, e tendem a seguir a opinião pública que lhes garanta popularidade; ii) É imprudente dar poderes a funcionários porque o mundo deles resulta da especialização que calha os seus serviços terem, que confundem com o interesse geral; iii) Não se pode confiar na comunicação social porque tende a amplificar desastres e sufocar a serenidade e com frequência defende interesses opacos por razões de financiamento e sobrevivência, a mesma cuja necessidade tolhe jornalistas funcionalizados e aliás com frequência analfabetos; iv) Não se pode confiar nos formadores de opinião se estiverem a fazer tirocínio para carreiras políticas, defenderem amigos, forem economistas ou, já agora, em qualquer outro caso; v) Convém adoptar pontos de vista consultando fontes contraditórias e partindo sempre do princípio que a nossa cabeça é melhor do que a dos entendidos, mesmo que não seja; e vi) Quem defende o cidadão é a Constituição e os tribunais, e não é menos assim por aquela ser prolixa e programática de esquerda e estes lentos e ineficientes.

Da próxima vaga histérica vamos reagir com mais fleuma? E aprendemos alguma coisa? Quem souber que responda.

Na esplanada

José Meireles Graça, 04.03.23

Cabelo cortado à escovinha, porte robusto, mal-encarado, o camarada lia “A Era dos Muros”, de Tim Marshall, que eu bem vi a capa.

Lia é como quem diz. Que na realidade mantinha o livro aberto com um marcador, mas ia bocejando e esfregando os olhos volta e meia sem ler nada.

Isto parece-me muito positivo, que os meus conterrâneos andem por aí a ler livros, e então nesta esplanada já é o segundo intelectual.

Agora, este livro nem mo-lo digas, que pelos vistos dá sono.