Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

Delito de Opinião

Venturoso

Maria Dulce Fernandes, 06.11.25

Venturosa.jpg

Estando eu absorta na visualização da “entrevista” do chegano na CNN, não estava a prestar minimamente atenção às palavras da minha neta, que tanto quanto vim depois a constatar, entabulara conversação havia algum tempo e, em não obtendo qualquer resposta, ipirangueou alto e bom som: "Mas estás a ouvir ou não, avó?” O quê? Disseste o quê? ”Fartei-me de falar várias coisas e tu nem ouviste.” És capaz de ter razão. Diz lá então… “Estava eu a dizer que não percebo a tua azia com Ventura, porque ventura é uma coisa boa, até tivemos um rei que foi chamado Venturoso, por ter alcançado grandes feitos."

É uma espertalhona, a minha neta, mas tem ainda muito caminho para andar para bater em trocadilhos uma “trocadilheira” diplomada. “É verdade que ventura é uma palavra positiva e de bons augúrios, mas neste caso particular em que Ventura é apelido, não se deve aplicar, por falta de fundamento verídico, porque tanto quanto sei, não se refere a uma pessoa venturosa. É uma espécie de paradoxo. Sabes o que é paradoxo?" ”Não, acho que não…" “É uma afirmação que significa algo e também o seu contrário.” Como assim? “Por exemplo dizer que uma piada é séria, é um paradoxo… deu para perceber?” "Como quando dizes que menos é mais?" "Exactamente!”

“Este Ventura, de ventura só tem apelido, neta. Não vale o sal que come. É dono de uma política desventurada, de um discurso viciado e de uma visão obtusa. Não é flor que se cheire. Não tem mesmo nada de D. Manuel I, certo?" "Não sei. Tenho de me informar melhor, mas és capaz de ter razão”.

"Faz isso. Democracia é isso mesmo, cada um deve ser livre de pensar pela sua própria cabeça, opinar e até mesmo  contrariar as mais sensatas ideias avoengas." ”Podes explicar-me o que é democracia…" Posso tentar, mas hoje não. Palpita-me que tenho de me preparar bem melhor.

Sete meses a Balões

Maria Dulce Fernandes, 28.10.25

baloes.jpeg


Este Verão, foi o Verão do nosso descontentamento. Difícil, dorido, aflitivo, mas energizado na medida do possível, tentando que a diversidade escondesse a adversidade, porque cair ou deixar cair nunca foi opção.

A partir do final de Julho, a rotina criada em Maio teve de ser repensada e recriada para suprir a falta das actividades das escolas e centros de ATL.

As crianças estavam de férias!

Com tanto o que fazer, foi imperativo fazer tempo para eles.

Pedir o passe da Carris Metropolitana para os miúdos foi uma ideia de truz. Os meus netos, à semelhança de milhares de outras crianças, nunca tinham viajado nos transportes públicos! Coordenando horários com os dias programados no calendário dos pais, começámos por andar de autocarro, seguiu-se o metropolitano, o eléctrico, o comboio e o barco. E repetimos linhas diferentes em dias diferentes. Caminhámos por grande parte de Lisboa. Visitámos o Quake, a exposição de Lego na Cordoaria Nacional, a exposição 3D, o Planetário, o Museu de Marinha, o Pavilhão do Conhecimento onde a exposição da Pixar sobre técnicas de animação fez as delícias da minha neta, fomos a Algés ao Aquário Vasco da Gama e, entre outras passeatas, descemos o Parque Eduardo VII até ao Marquês de Pombal, o que deixou o meu neto Superleão tão feliz, que nem tenho palavras; veio aquele petiz de seis anos, durante todo o caminho de regresso, a cantar que o seu amor é verde e branco…

Como estou um tanto dada a títulos, pensei muitas vezes que seria fabuloso adormecer, e acordar quando Setembro chegasse ao fim. Setembro foi também complicado, sem dias nem horas certas e também sem quaisquer certezas.

Finalmente entrou Outubro e trouxe consigo alguma normalidade. As escolas estavam a funcionar com professores e também greves à vista, a actividade hídrica sénior recomeçou a operar nas piscinas do costume e as respostas vieram finalmente, e eram boas as respostas. Eram muito boas. Podíamos todos finalmente respirar fundo. Podíamos encetar com confiança a nova normalidade que, sendo diferente, trataríamos de a tornar mas o mais igual possível.

Aprendi muito, nestes sete meses. Fiz muita pesquisa, muitos cozinhados com produtos essenciais à imunologia, usei tudo o que tinha vitaminas, proteínas e calorias qb, deixei de lado o açúcar branco refinado, usei e abusei das especiarias que reforçam o sistema imunitário…

Iscas à portuguesa às quintas-feiras… nem me incomodou se não gostavam, passaram a gostar…

O meu marido e eu fomos avós, pais, enfermeiros, cozinheiros, cuidadores, pau para toda a obra… pela parte que me toca, fui principalmente palhaço, agarrando com unhas e dentes essa arte tão nobre que faz arrancar risos e sorrisos quando por dentro a tristeza ameaça inundar os olhos a qualquer momento.

Sinto-me bastante gasta mas muito grata, e ainda há muita estrada para andar. Como tal, já fizemos alguns planos para um divertido jantar de Halloween e uns outros para muitas mais viagens em transportes públicos nas férias do Natal, que estão quase aí à porta, neste ano da nossa Fórmula1, em que era prioridade atravessar a meta com boa classificação e manter sempre a pole position.

Ver a saúde de regresso e a trazer com ela cor e força e contemplar as crianças felizes e interessadas é seguramente a minha poção mágica. 

Assim possa ser.

Felizmente o céu está no mesmo sítio

Maria Dulce Fernandes, 26.10.25

20251026_161318(1).jpg

 

Finalmente recebemos a visita dos irreverentes invencíveis mais famosos do mundo, por Toutatis!

Como não gostar? 

20251026_161431(1).jpg

Está muito bem conseguido, embora acredite que se perdeu bastante na tradução. 

Mas nada tão terrível que faça com que o céu nos caia na cabeça. 

Adorei sobretudo o preciosismo nos "actores" secundários, que são do melhor que Portugal tem. 😉

20251026_160924(1).jpg

20251026_161015(1).jpg

Com a omnipresente Calçada Portuguesa, os Pastéis de Nata e o Vinho do Porto compõe-se o ramalhete do que de melhor representa Portugal no mundo. Também tem intriga política e falsidade, mas é tão normal que se tornou um não-assunto no mundo inteiro.

Boa, leve e alegre leitura, mesmo para quem não é amante de BD.

As minhas autárquicas

Maria Dulce Fernandes, 13.10.25

elei.jpeg

Os meus netos foram comigo aos votos. Ele ainda não está politizado, felizmente. Ela já tem algumas ideias, quase todas boas, passadas por mim [LOL]

Qual não foi o espanto da minha neta, quando reparou onde eu estava a colocar as cruzes - "Avó! Estás a ver onde estás a votar?" "Estou sim. Creio que estou a votar como deve ser." "Mas Avó, tu detestas esse partido! Disseste um dia que se votasses nele, era capaz de te cair uma mão"!

"Nestas eleições para as autarquias, para além da filiação partidária, existem pessoas capazes e que muito têm feito pelo concelho e pelas freguesias. A nossa Junta de Freguesia tem funcionado com pessoas preocupadas, que têm feito muito pela zona e pelos seus habitantes, e que têm uma agenda de trabalhos extraordinária que, em os conhecendo como conhecemos há já alguns anos, não temos dúvidas que é para realizar com toda a brevidade possível e necessária. Funcionam muito bem e estamos todos contentes com o seu trabalho. Mexer para quê"? Por vezes tem de se votar em pessoas com capacidades reconhecidas, independentemente dos partidos. Entendes?" "Sim, entendo... Mas não te vai cair uma mãozinha, pois não?"

Atribulações aquáticas

Maria Dulce Fernandes, 06.10.25

hidroginastica-355824896.jpg

 

Todos nós desenvolvemos mecanismos que nos ajudam no dia a dia, no trabalho, nos transportes, em casa, com os filhos, com os netos…

O meu grande apoio tem sido a hora bissemanal da hidroginástica. Não é sequer um desporto, mas ajuda a reorganizar o corpo e recondicionar a mente, abstraindo-me de “pensar” enquanto me esforço por coordenar os movimentos. Faz bem. Saio de lá leve e bem disposta. Ou pelo menos até hoje.

A aula de hoje começou com a energia e boa disposição que os instrutores sempre transmitem. Sensivelmente a meio, vejo a colega da direita, a Amelinha, cair para a frente e não retornar à posição inicial. Pedi ajuda ao vizinho do lado, e entre os dois trouxemo-la à superfície. Entretanto o grupo já se tinha dado conta de que algo se estava a passar e a ajuda foi imediata e eficaz. Realizaram as manobras necessárias à expulsão da água nas vias respiratórias, mas não foi suficiente para a Amelinha recuperar e saiu de ambulância rumo ao hospital minutos depois.

A aula ficou por ali. Ninguém se sentia confortável nem disposto a continuar os exercícios. Nem valia a pela ficarmos a entupir as instalações porque não seria dali que viriam as notícias.

Viemos para casa e pelo caminho o assunto da prosa voltava sempre à Amelinha, ao que se teria passado e à conversa que tive ontem à tarde com a minha cunhada, tentando convencê-la que a sua fobia às piscinas era totalmente infundada, e que não saber nadar não seria impeditivo de praticar hidroginástica, já que ninguém se afoga com água pela cintura.

E mais uma vez as “sortes” vêm provar que afinal pode não ser bem assim; estou certa e ao mesmo tempo muito errada.

Assim de repente, a rubrica "Da Velhice", do Pedro, passou a redobrar todo o sentido que já fazia, pelo menos para mim.

 

P.S: A Amelinha sofreu um AIT, vulgo mini AVC. Desejo-lhe boas melhoras e rápida recuperação. 

Sonhos e realidades

Maria Dulce Fernandes, 29.09.25

IMG_2882.JPG

 

Hoje voltei a sonhar com barcos. Têm sido recorrentes e pouco agradáveis, estes sonhos.

Diz Freud que revelam um profundo desequilíbrio emocional. Freud disse tanta coisa, que provavelmente fazia sentido neste tipo de interpretações, se as contextualizarmos na época e na sociedade.

Mas, se por um lado não está longe da verdade, porque é legítimo afirmar que por aqui se anda com as emoções à flor da pele, por outro lado acredito que o inicio se deu com uma experiência, da qual nunca me recuperei, que para mim foi verdadeiramente assustadora, e que minou a abertura necessária a que o bichinho da instabilidade se instalasse e abrisse o caminho para o que veio a seguir.

Tudo começou em Abril, na ilha do Faial. No segundo dia de um bonito passeio, as núvens acumulavam-se e o vento já soprava com alguma intensidade. O itinerário previa a visita à Ilha de S. Jorge, fazendo o percurso para lá de barco. Não sou particularmente fã de barcos mas, no canal, o tempo não estava assim tão mau… e sim, está bem, é uma experiência.

Pensou a guia surpreender-nos e, em vez do ferry, iríamos adorar navegar aquele percurso de uma hora e quarenta minutos num semi rígido… “é diferente, fantástico e inesquecível, vá lá, não quer ficar o dia inteiro aqui sozinha, pois não?” Deixei-me levar, pôr o colete, sentar e fui com o grupo. Foi um pavor. O mar estava picado, a ondulação era forte e o barco voava e caía estrondosamente uns metros mais à frente. O grupo estava expectante de ver baleias… eu não. Não foi bom, não foi agradável nem fantástico. Mas tinha razão, a piquena. Foi inesquecível.

No meio de todo este torvelinho de sentimentos fortes, regressa insistente ao inconsciente onirológico a memória daquela viagem, para me relembrar que há emoções que não se devem desafiar.

Rectificação

Maria Dulce Fernandes, 25.08.25

8VeVjEz21j.jpg

Por alguma razão que não desconheço mas nem por isso serve de desculpa, associei a nossa viagem à URSS ao ano do nascimento da minha filha mais velha, e referi repetidamente o engano na minha última publicação. 

Aqui deixo a rectificação e peço desculpa por ter induzido em erro quem leu e comentou.

Obrigada

Uma garrafa vazia, cheia de memórias

Maria Dulce Fernandes, 24.08.25

pepsi.jpeg

 

“- Ó Avó! Porque é que tens garrafas vazias na estante dos livros?” Não são garrafas vazias, são recipientes cheios de memórias e recordações felizes e divertidas."

“-E são recipientes de quê?” São antigas garrafas de Pepsi, que nós trouxemos de Moscovo há mais de quarenta anos".

“-Mas não dizem Pepsi; apenas têm um E, um N ao contrário e uns símbolos estranhos." São letras do alfabeto cirilico – que estão para os russos como o abecedário está para nós - e essas letras querem dizer exactamente Pepsi."

“-E sabia a quê, a Pepsi na Rússia?” Sabia a Pepsi. E soube pela vida no dia em que lá chegamos. Como chegámos duas horas atrasados ao hotel, já não havia jantar. Só vodka, Pepsi e bolachas rançosas no bar. Teve de servir e matou a fome que era muita."

“- A Rússia é horrível, avó? "Quem te disse isso? Estive lá há muito tempo, mas gostei muito de ver o que nos mostraram. Já deve ter mudado bastante desde esse tempo, ou então não. Já nessa altura era tudo fachada."

“- O que é que quer dizer tudo fachada? "Quer dizer que por detrás de todo o esplendor que nos mostravam, existia uma ruína presa por arames. “ – Não entendi. "Deixa lá ver se te sei explicar… o hotel, as estações de metro, as cadeiras da Ópera, os supermercados com grandes letreiros luminosos, mas vazios no interior, até os candeeiros da rua, por exemplo, parecem imponentes e majestosos se apenas olhares sem ver com atenção. Um segundo olhar, mais acurado, mostrava falhas na construção, na estruturação, na reparação,  na restauração… e interiores tristes, apagados, muitos vazios e envelhecidos. Mas isto foi há quarenta e quatro anos. Agora deve ser extraordinário viver num país rejuvenescido, livre, esclarecido e sempre na vanguarda do desenvolvimento."

"- Gostavas de lá voltar? "Gostava sim, mas tenho um dedinho que me diz que iria ficar muitíssimo desapontada."

Excertos de Ficção

A Lenda de Martim Regos (1)

Maria Dulce Fernandes, 08.08.25

aaaaa.jpeg

"Quem, eu"?

[…] Contarei como primeiramente quis ser santo acima de todas as coisas, que fui em sendo ainda menino, e como depois quis ser rico, sendo já moço.

E contarei como sendo então homem feito, quis ser sábio e conhecedor das coisas do Mundo.

E seguidamente, contarei das razões que tive para querer ser fidalgo, e como foi que vendo depois que não havia nisso grandeza bastante, quis então ser Rei e ter governo num povo."

Licença sine die

Maria Dulce Fernandes, 31.07.25

Lápis LLAzuli_20250729_113439_0000.png

Com a chegada de Agosto, o mês de férias por excelência, creio também chegada a altura de dar descanso ao Lápis L-Azuli. Depois de mais de um ano com publicação bi-semanal, um tempo de pausa não é de todo descabido.

Conto que regresse em Outubro, no mesmo formato, talvez com novas roupagens, mas sem modernismos, ou maneirismos, de escrita exagerados. Depende. Depende de tudo. Mas voltará, isso é garantido.

Irei pontualmente dando um "arzinho da minha graça" que, apesar de ultimamente andar sem graça nenhuma, ainda vai resistindo. Hoje e sempre e enquanto for necessário.

Boas férias para todos, e obrigada por me acompanharem no Delito há cerca de sete anos como autora.

Bem hajam. 

Até já.

Lápis L-Azuli

Maria Dulce Fernandes, 30.07.25

dabn.jpeg

Ainda não lemos Dan Brown: "O Segredo dos Segredos"

Esta é a sinopse, que qualquer um de nós pode ler: "Robert Langdon, prestigiado professor de simbologia, viaja até Praga para assistir a uma palestra inovadora de Katherine Solomon, uma cientista reconhecida no campo da noética, com quem começou recentemente um relacionamento amoroso. Katherine está prestes a publicar uma obra revolucionária, cujas explosivas revelações sobre a natureza da consciência humana ameaçam abalar séculos de crenças estabelecidas.

Quando um terrível assassinato provoca o caos, Katherine desaparece sem deixar rasto e o seu manuscrito é destruído. Desesperado por encontrar a mulher que ama, Langdon embarca numa corrida contra o tempo pela mística Praga, enquanto é implacavelmente perseguido por uma organização poderosa e um inimigo assustador saído das mais antigas lendas da cidade.

De Praga a Nova Iorque, passando por Londres, Langdon mergulha nos mundos da ciência mais avançada e da tradição histórica, navegando por um labirinto de códigos e símbolos, até finalmente desvendar uma verdade perturbadora sobre um projeto secreto que mudará para sempre a nossa visão da mente humana."

Li todos os livros de Dan Brown. Gostei mais de uns do que de outros, claro. Vi os três filmes adaptados de três das suas obras, assim como a série televisiva, e adorei as antíteses à unidade de lugar, principalmente quando todos os lugares me trouxeram tão gratas memórias. Os livros são bem construídos e de leitura fácil, muito apropriados para uma sombra fresca na calmaria de um qualquer paraíso muito nosso.

Dan Brown é um dos muitos autores que sigo online e admiro-lhe a precisão investigativa. Quer isto dizer que ele vai lá ver como é, como foi, e como pode ser contado. 

É verdade que " O Código DaVinci" é o seu " livro dos livros", com direito a menção em todas as outras capas de livros seus. É injusto.

Penso em Praga com muito carinho e saudade. É uma cidade linda, surpreendente e fabulosa, plena de alegria e mistério. Espero que seja tratada como merece e que a intriga do conteúdo seja excitante e em torno dos fabulosos e ancestrais mistérios, que envolvem a cidade e a sua história com a capa de muitos segredos ainda por desvendar.

Em Setembro se verá.

Lápis L-Azuli

Maria Dulce Fernandes, 26.07.25

sandokan.jpeg

Hoje lemos Emilio Salgari : "Os Tigres de Mompracem"

Passagem a L' Azular: "Este homem, mais conhecido por Tigre da Malásia, que ensanguentava as costas do Mar Malaio há dez anos, tinha talvez trinta e dois ou trinta e quatro anos.

Era alto, bem constituído, com músculos tão fortes como se fossem feitos de aço, com feições enérgicas, uma alma imune a qualquer medo, ágil como um macaco, feroz como o tigre da selva malaia, generoso e corajoso como o leão dos desertos africanos.

Tinha um rosto ligeiramente bronzeado, de uma beleza incomparável, tornado sombrio por uma barba negra, com uma testa larga, emoldurada por cabelos crespos e fuliginosos que lhe caíam em pitoresca desordem sobre os seus ombros robustos. Dois olhos de brilho incomparável, que magnetizavam, atraíam, que ora se tornavam melancólicos como os de uma menina, ora faiscavam e disparavam como chamas. Dois lábios finos, característicos de homens enérgicos, dos quais, em momentos de batalha, saía uma voz estridente e metálica que se elevava acima do rugido dos canhões e que por vezes se curvava num sorriso melancólico, que gradualmente se transformou num sorriso trocista até se assemelhar ao sorriso do Tigre da Malásia, como se estivesse a saborear sangue humano.

De onde viera aquele homem terrível que, à frente de duas centenas de crias de tigre, não menos intrépidas do que ele, conseguira em tão pouco tempo ganhar uma reputação tão desastrosa? Ninguém saberia dizer. Nem mesmo os seus próprios homens fiéis o sabiam, pois não sabiam quem ele era."

Com o advento de muitos remakes de antigos exitos do cinema e televisão,  chega a vez de um ícone de uma geração, que juntava famílias inteiras à volta da luminosa caixa mágica, aguardando ansiosamente mais um episódio d' As Aventuras de Sandokan. O Tigre da Malásia não era apenas um justiceiro que lutava contra os malvados, ingleses e holandeses, invasores e dominadores que pilhavam e escravizavam populações inteiras, ele era um Zorro, um Robin Hood da Malásia, um pirata e um homem muito bonito. Assim o diz o autor, e assim o vimos e sonhámos na nossa mocidade.

Dizem que o actor escolhido para encarnar o personagem que habita o nosso imaginário com a figura de Kabir Bedi não será malaio, tampouco indiano como o seu antecessor. Ao que parece, no casting o turco Can Yaman deu cartas, ou não tivessem os turcos, já há algum tempo,  invadido os canais de TV de muitos países.

Mas não podemos esquecer o lugar-tenente do valoroso pirata, que era português. Para o papel de Yanez de Gomera... também não escolheram um actor português. Que novidade...

Será que se pode dizer que estas injustiças são roubo de identidade cultural?

Lápis L-Azuli

Maria Dulce Fernandes, 23.07.25

rulfo.jpeg

Hoje lemos Juan Rulfo: "Pedro Páramo"

Passagem a L' Azular: "De vez em quando, ouvia o som das palavras e notava a diferença. Porque as palavras que até então ouvira, até então sabia, não tinham som, não soavam; eram sentidas; mas sem som, como as que se ouvem em sonhos."

Nos dias que correm, não são apenas as palavras faladas que soam a diferença. As palavras escritas gritam a angústia e a tristeza de quem é continuamente trucidado e estilhaçado à luz de um acordo feticida e de uma novilíngua obtusa, concebida para retardados.

Temo pelo futuro das nossas crianças, pequenas ilhas rodeadas por um mar bravio de uma ignorância extrema.

Hoje

Maria Dulce Fernandes, 21.07.25

Dizer que coisas más só acontecem aos outros porque são desatentos, desleixados, desmazelados, impetuosos, indolentes, negligentes, preguiçosos, remissos, etc., é um eufemismo, no pensar daqueles que se julgam precisos e vigilantes, na normalidade do seu dia a dia.

O problema é que nada prepara os precisos, vigilantes e preparados para a tempestade que, sem pedir licença, entra aos trambolhões pela porta da frente e não os atinge directamente a eles, aos rigorosos e precavidos, mas sim a quem querem mais do que a si próprios.

Tudo o que se tem como certo corre meia circunferência, perde-se o pé, ganha-se a noção. E adapta-se, característica fundamental do ser humano, animal de hábitos flexíveis, ou não fossemos gregários e conviventes uns dos outros.

Planos só para o dia a dia. Lágrimas, para quê? Saber esperar passou a ser mais do que uma virtude, transformou-se num modo de vida.

Chega-nos à ideia aquela frase batida dos tempos da pandemia “vai correr tudo bem“ e também a outra, a da canção sentida, em dueto clássico, com a qual passámos a conviver, com o sorriso tranquilo de quem tem fé.

Lápis L-Azuli

Maria Dulce Fernandes, 19.07.25

corto.jpeg

Hoje lemos Hugo Pratt: "A Balada do Mar Salgado"

Passagem a L' Azular: “Quando era pequeno, percebi que não tinha linha da sorte, por isso, com a lâmina de barbear do meu pai, fiz uma como queria.”

Usar do livre arbítrio para enfrentar o destino que vem escrito desde o nascimento em cada palma da mão, é um direito e seguramente um dever. Porque afinal o futuro somos nós e as nossas decisões. 

Um livro fantástico (aliás como todos os do autor) com um início fantástico e auspicioso:

"Sou o Oceano Pacífico e sou o Maior. É assim que me chamam há já muito tempo, embora não seja verdade que eu seja sempre pacífico." Como toda a gente, aliás.

Lápis L-Azuli

Maria Dulce Fernandes, 16.07.25

1507-1.jpg

Hoje lemos Mario Vargas Llosa: "A Tia Júlia e o Escrevedor"

Passagem a L' Azular: "Escrevo. Eu escrevo que escrevo. Mentalmente, vejo-me a escrever que escrevo, e também me consigo ver a ver que escrevo. Lembro-me de já estar a escrever e também de me ver a escrever. E vejo-me a lembrar que me vejo a escrever, e lembro-me de me ver a lembrar que estava a escrever, e escrevo a ver-me a escrever que me lembro de me ter visto a escrever que me vi a escrever que me lembrava de me ter visto a escrever que estava a escrever, e que estava a escrever que escrevo que estava a escrever. Também me consigo imaginar a escrever que já tinha escrito que me imaginaria a escrever que tinha escrito que me imaginei a escrever que me vejo a escrever que escrevo."

Ler Vargas Llosa é bom. Este livro é espectacular, mesmo que, segundo a minha e outras opiniões,  não seja o melhor. 

Se eu substituir nesta passagem a palavra escrever pela palavra ler, sou capaz de me encontrar, completamente descomplicada no meio de tanta complicação, que poderia até complicar a leitura.

Lápis L-Azuli

Maria Dulce Fernandes, 12.07.25

dulce.jpeg

Hoje lemos Henry David Thoreau: "Andar a Pé"

Passagem a L' Azular: "Cada pôr-do-sol que presencio inspira-me o desejo de ir para um oeste tão distante e belo como aquele onde o Sol se põe. Parece migrar para oeste diariamente e tenta-nos a segui-lo. É o Grande Pioneiro do Oeste a quem as nações seguem. Sonhamos toda a noite com aquelas cadeias de montanhas no horizonte, embora sejam apenas vapor, que foram douradas pelos seus raios."

Caminhar faz bem ao corpo e ao espírito. Fazer caminhadas cedo no dia, ou naquele lusco-fusco, na hora mágica antes do sol se pôr e antes dos pirilampos acenderem o brilho com que atraem as fêmeas, é um enlevo e um bálsamo.

Um dos meus percursos pedestres favoritos é o do Paredão de Cascais. Belo e selvagem no Inverno, apolíneo e doce no Verão, tem apenas três quilómetros desde a Praia da Azarujinha até à Praia da Ribeira em Cascais, podendo ser complementado até à Boca do Inferno e o regresso conforme as pernas ordenarem.

Se caminhar ajuda a manter o corpo activo, o deslumbre das paisagens, sendo cruas ou douradas, faz a mente divagar em fantasias mil e bem longe das amarguras da vida, mesmo se forem apenas feitas de vapor dourado pelos raios do sol poente.