Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

Delito de Opinião

Livros de cabeceira (17) - série II

Pedro Belo Moraes, 20.11.24

aaaa.jpeg

Mudavam-se os canais televisivos e as frases repetiam-se tonitruantes: “As eleições mais importantes da história moderna”; “A decisão que vai moldar o país de forma que pode ser irreversível”; and so on, and so on. E a expressão inglesa (com sotaque do Kansas ou de um bairro negro de Atlanta) uso-a porque as declarações ouvi-as vezes e vezes sem conta durante os 15 dias que passei nos EUA como enviado especial da TVI/CNN Portugal para cobrir – volto ao zapping“the most important election of our lifetime”.

Regressado dos States com mais perguntas do que respostas rapidamente percebi que necessitava e necessito daquilo que podemos chamar de antídoto para o fim da história repetidamente declarado nos círculos vários de fazedores de opinião e observadores do presente. E a vacina para leituras precipitadas temo-la quase sempre na leitura da História. Razão que me leva a reler “O Futuro da América” de Simon Schama. Historiador britânico e professor na universidade de Columbia, em Nova Iorque, radicado nos Estados Unidos há cerca de 30 anos, Schama é um conhecedor do passado da América e dele admirador, diga-se.

O livro em causa foi publicado em 2010 e daí ter o subtítulo: “A História dos EUA dos Fundadores até Barack Obama”.

Sendo certo que muito se passou nos últimos 14 anos, e que a figura de Donald Trump não surge na obra, menos ainda a sua eleição e reeleição como 45º e 47º presidente dos Estados Unidos da América, Schama dá-nos pistas para melhor avaliarmos o que está em causa e porque é que a maioria dos americanos fez a escolha que fez a 5 de Novembro. As conclusões são desanimadoras.

Schama enaltece o optimismo americano como pilar da construção de uma história com pouco mais do que 250 anos. Um optimismo que contrasta com o reaccionarismo que detectamos em muitos dos votos trumpistas. O “Make America Great Again” não é optimista. É sobretudo reaccionário. Trata-se de um sentimento movido pela crença de que os valores da América estão em risco. São perseguidos. Dentro e fora de portas.

E a mesma sensação de perda temo-la ao apercebermo-nos que a multiplicidade étnica e cultural, que fez e faz a América, é hoje tida como agressora da dita América Grande, essa grande potência que só poderá sê-lo verdadeiramente quando for concretizada a incessantemente prometida “maior deportação da História” que começará, garante Trump, “no primeiro dia em que voltar à Sala Oval”.

O pessimismo reforçamo-lo no ponto da religião. E à semelhança da multiplicidade étcnica e cultural, também representada por Barack Obama. O presidente que chegou à Casa Branca assumindo o seu cristianismo, religião que foi o escudo, o tónus, a força da minoria negra na luta pelos direitos civis, e que hoje está minada por um cristianismo branco conservador ao jeito de cruzada. Uma cruzada por um mundo branco, cristão e patriarcal e cujo um dos seus principais embaixadores dá pelo nome de Peter Hegseth, a escolha de Trump para Secretário da Defesa, ou seja líder da maior máquina de guerra à face da Terra. Um futuro chefe do Pentágono, que num livro publicado em 2020, intitulado American Crusade: Our Fight to Stay Free, afirma que os EUA enfrentam actualmente "diferenças irreconciliáveis entre a Esquerda e a Direita, que estão a direccionar a América para um conflito perpétuo e que não podem ser resolvidas através do processo político." Cito do jornal Público

A História escreve-se todos os dias e tem capítulos mais marcantes que outros. O próximo, no que à América e, claro, ao Mundo diz respeito está marcado para 20 de Janeiro próximo. Dia da tomada de posse de Donald Trump como presidente dos Estados Unidos. A minha esperança primeira é que Simon Schama reflicta sobre isso e nos conte a História.

Dos factos para a ficção é na obra-prima de Jonathan Frazen, Correcções, que mergulho de novo na América. No centro da acção estão os Lambert, família anfitriã de uns Estados Unidos desunidos por conflitos religiosos, geracionais e de costumes. Actores e representantes de uma sociedade atingida pela instabilidade do mercado financeiro, entorpecida pelos anti-depressivos e suas promessas ilimitadas de bem-estar se fim. Tudo num mundo onde a moral religiosa da velha geração se exalta e enfraquece em confronto com a ausência de escrúpulos da juventude americana.  Dialéctica que é a força motriz da obra feita de pessoas que buscam corrigir os trajectos de vida que tiveram e os rumos que seguiram. E apesar do aparente peso que aqui ponho nas palavras este é um romance divertido, grande representante do género tragicómico. Dois requisitos que fazem desta uma obra literária inteligente e marcante.

Duas características que me dizem ter a “A Família Netanyahu” de Joshua Cohen. Livro que está já na minha mesa de cabeceira. Trata dos judeus na América. Tendo como mola um episódio real que tem como protagonista o pai do actual primeiro-ministro de Israel. Um professor de História que é (parece) mais que tudo um teólogo. Especialista no judaísmo, com particular “conhecimento” do judaísmo na Península Ibérica, no tempo da Inquisição. Um narrativa interessada em explorar os meandros que ligam e separam Religião e História a partir de uma perspectiva judaica que, ao que me dizem, ajuda-nos também a perceber quem é Bibi, antigo aluno nos Estados Unidos. A América. Sempre a América.

O Ocidente sob fogo no sofá

Pedro Belo Moraes, 27.10.23

Habituados ao fast food, os ocidentais só toleram a fast war. Viciados na transacção de emoções, na partilha de sentimentos, os ocidentais pululam entre Apps. Num dia ficam esmagados pelos pushes da torrente de notificações que dão acesso às imagens horríficas do terror do Hamas no dia 7 de Outubro; nos outros indignam-se, revoltam-se, enfurecem-se com a operação militar israelita que “ocupou” a miríade de Apps.

De palas nos olhos, os ocidentais passam a ver apenas a destruição de Gaza e o drama humano por ela provocado. E a emoção mais recente é a que os move. Comove. E tudo à distância de um clique num ecrã do telemóvel ou do lesto polegar carregando nas teclas do comando remoto do televisor. E o comando ser remoto é o eufemismo disto tudo.

É o Ocidente no sofá. Sempre descansado porque mero mirone a salvo das injustiças que o ofendem. Insurgido com as atrocidades cometidas sobre inocentes, claro!, mas raras vezes assustado, raríssimas vezes vislumbrando que a peça que o ofende é, apenas e só, uma pequena parte de um puzzle que uma vez construído - e o dito está em construção - destruirá a ordem mundial que nos coloca a nós Ocidente como a única representação dos valores da tolerância, liberdade, democracia, diversidade. Os mesmos que estão sob fogo porque como as normas que nos regem há séculos o Ocidente está sob fogo. E tem de se defender.

Mas voltemos às emoções. Lembremo-nos da comoção geral nos Parlamentos vários, muitos, das democracias liberais, de cada vez que foram bradadas declarações do tipo: “Os ucranianos estão a lutar por nós.”; “É a Ucrânia que combate aquele que ameaça o nosso estilo de vida.”; “Uma vez derrotadas as forças de Kiev, o imperialismo vai querer expandir-se Europa fora.” Tudo isto, claro, replicado, retuitado, reencaminhado redes sociais fora. A necessária e tão desejada ração de emoção servida minuto-a-minuto, hora a hora. Like it!

Não tenhamos dúvida: como os ucranianos, também os israelitas estão a defender-nos. A destruição de uns e outros faz parte de um puzzle. A invasão russa da Ucrânia e o ataque do Hamas a Israel (a única democracia liberal da região) fazem parte de um plano que tem como objetivo primeiro e último destruir o referencial de civilização que é o Ocidente.

Os que nos ameaçam e acossam, os nossos inimigos, são os mesmos numa guerra e noutra. Uns às claras, outros na sombra, juntos compõem um eixo anti-Ocidente, anti-democracia liberal. Reúnem-se, negoceiam, recebem-se com honras de Estado o presidente que se eterniza no poder e invade um país soberano; as lideranças do regime dos ayatollah detentores do poder supremo; os obreiros da aparente benevolente mas omnipresente e poderosa nova rota da seda. Todos estão às claras ou na sombra por detrás das duas guerras que emocionam, comovem e revoltam as sociedades ocidentais.

Não há coincidências. Não há.

As repetidas barbaridades cometidas pelo Hamas no interior de casas onde executaram com fúria famílias inteiras, violaram mulheres, degolaram bebés, e nas ruas onde espancaram homens até à morte e cujos cadáveres sobre os quais cuspiram com raiva e não menos desprezo, e mais ainda o massacre levado a cabo num festival igual em música, idêntico no espírito e na liberdade que sentimos nos festivais em que estivemos inteiros e seguros; tudo isso, tudo isto, no seu horror mais íntimo que acabou por provocar um grito de terror mundial, tudo isto coincidiu com a proximidade da assinatura de um acordo de normalização das relações entre Israel e Arábia Saudita. Uma aproximação geopolítica, geoestratégica que ameaçava de morte o plano de poder regional do Irão, essa teocracia que – rufem os tambores! – é o grande financiador do Hamas. E também não há coincidências quando a Rússia quis aprovar uma resolução no Conselho de Segurança da ONU sem condenar o acto terrorista do Hamas. E não é mesmo coincidência a dependência russa dos drones iranianos na guerra da Ucrânia. Facto que coincide com outro: Irão e Rússia vêem nos EUA o Grande Satã. Expressão que não tenho tempo para traduzir para mandarim, mas que estou seguro será dita à boca cheia nos gabinetes de Pequim.

Sim, o Ocidente extravasa o mero hemisfério ocidental. É a NATO, a UE, e está na Austrália, no Japão, na Coreia do Sul, as democracias liberais na Ásia, etc. E não disputa o domínio dos EUA. Antes aceita que o Ocidente domina os valores que não são respeitados por quem disputa a civilização ocidental, desprezando a liberdade religiosa, os direitos das mulheres, a liberdade de imprensa, a democracia, a tolerância, a defesa das minorias.

Os ocidentais produzem e consomem muito entretenimento sobre ameaças terroristas ou conspirações de países e protagonistas com planos maléficos para destruir a antiga ordem mundial, fazendo nascer uma nova na qual são a força dominante.

O entretenimento é tanto melhor quanto mais verosímil for. Quem o consome sabe-o mas fica-se pelas pipocas. Quanto muito, entre tramas, passa para as bolachas e chocolates e, na medida do possível, mexendo-se pouco, pouquíssimo do sofá. Isso, quanto muito, fará para receber à porta de casa um Glovo ou um UberEats, pedidos feitos na App e pelos quais esperará enquanto recebe e abre as notificações dos horrores cometidos porque foi atacado e ataca. De verdade. Enquanto se comove com o drama de quem trava uma guerra existencial contra quem não lhe reconhece a existência. O direito a existir.

Convençamo-nos e preparemo-nos: não há fast-war. As guerras que existem não acabam, não se resolvem mudando de canal de TV ou apagando as notificações no telemóvel. E quem lançou os dois conflitos sangrentos que hoje minam a estabilidade mundial despreza as cadeias de fast-food e mais que isso considera abjectas as fast war. Mas amam as longas. As guerras que travam e alimentam são antigas, longas e preparadas. As que grassam no Médio Oriente e no Leste da Europa são disso exemplo.

E nós, Ocidente, temos de nos preparar e acordar para isso mesmo. Não podemos mais continuar apenas no sofá.

 

(Artigo de opinião publicado no dia 20 de Outubro na página da CNN Portugal)

O despacho

Pedro Belo Moraes, 02.07.22

Tudo despacha o PS: Crises de Governo, desautorizações entre os membros que o compõem, mais as vergonhas políticas públicas que disso advém. São disso exemplo os dois protagonistas do mais recente caso da arte de aviar, de apressar a difusão da ideia de que nada aconteceu na governação do país, que está tudo bem, que nada passou de um ligeiro mal-entendido, de um simples "erro de comunicação".

E, na minha opinião, nenhum deles se humilhou, como clamou a esmagadora maioria do comentariado politico ao descrever a desfaçatez e a ligeireza que nos serviu o ministro das infra-estruturas. O que Pedro Nuno Santos fez foi ter cara de pau. Vestiu a pele do queirosiano e arrependido Dâmaso Salcede para salvar a carreira. Tivesse ele sido o honrado Egas Moniz e teria oferecido a vida como paga pelo incumprimento da promessa feita ao rei de Castela. E hoje não estaríamos tão mal. A propósito, neste alarmante episódio do estado do Executivo, António Costa, o rei das jogadas palacianas e tácticas de bastidor, serviu-nos aquela inefável postura da Gioconda com o seu intrigante e não menos irritante sorriso que disfarça a verdadeira história.  

O despacho publicado em Diário da República, assinado pelo ministério de Pedro Nuno Santos,  é claro: o Governo decidiu construir dois novos aeroportos para Lisboa. Um temporário no Montijo, outro definitivo em Alcochete.

Ou não. Ou não!

Nem 24 horas passaram sobre o anúncio e o primeiro-ministro comunicou publicamente que o despacho do ministério das Infra-estruturas seria revogado. Ou seja, se a decisão da solução aeroportuária tinha sido do Governo, como se lia no decreto entretanto anulado pelo Chefe de Governo, temos de concluir que há um Governo dentro do Governo. 

Discorda António Costa daquela decisão anunciada por Pedro Nuno Santos? Ou não tinha conhecimento que aquilo estava a ser burilado pelo seu ministro? E o alegado erro de comunicação foi então o de que o plano da maior obra pública em décadas não lhe foi comunicado?

Seja qual for a resposta será sempre grave para António Costa. Ou não diz tudo, ou tem um ministro em rédea solta no seio do Governo ou o Governo é totalmente incompetente despachando em Diário da República o novo aeroporto de Lisboa, os mesmos despacho e obra  que acabaram despachados.

Leituras e análises a este episódio inédito na nossa democracia têm sido muitas. A minha, e admitindo que não conhecemos os factos todos, suporto-a no facto do ministro permanecer no Governo. Não ter saído. Nem ter sido corrido. Circunstâncias que me levam a concluir ter sido esta uma disputa partidária. Conhecendo-se as pretensões de Pedro Nuno Santos e o peso que tem no PS para concretizar o sonho de ser o seu secretário-geral, fica mais plausível a teoria de que Costa optou por manter o adversário por perto. Tê-lo fora seria muito mais trabalhoso. E, acredito, já lhe canse recorrer tantas vezes à expressão da Gioconda.

O Governo está, portanto, capturado pela guerra interna no Partido Socialista. Partido que nos últimos 26 anos governou 19. E isso não lhes deu experiência de decisão acertada, deu-lhes experiência de poder e muita arrogância política. Soberba, mesmo. Traços cada vez mais grosseiros nos socialistas que despacham tão facilmente más governações, crimes cometidos por quem as chefiou, golpadas no seio do Executivo, crises económicas e financeiras só resolvidas com intervenção externa, caos no SNS. E podia continuar a despachar exemplos.

Pensamento da semana

Pedro Belo Moraes, 30.05.21

No discurso da vida toda a contradição é recomendável. Numa contradição meramente aparente, digo-vos, a contradição é mesmo o caminho mais verdadeiro. Só convictamente acreditando numa coisa, experimentando-a e vivendo-a, teremos sobre ela propriedade, ao ponto de mais tarde e maduramente para o seu contrário mudarmos. Vimos, sentimos, estivemos, conhecemos. A contradição é mãe da mudança, essa filha da liberdade. Em tanto da nossa vida só assim verdadeiramente chegaremos à nossa verdade.

 

Este pensamento acompanhou o DELITO durante toda a semana.

Pensamento da semana

Pedro Belo Moraes, 24.01.21

Entre o Marcelfie, o táctico afectuoso, o calceteiro com Tino de nome, a Ana péssima em campanha Gomes, o Tiago dos cartazes melhores que ele, o Ventura das atoardas lançadas da mesa do café, a Marisa maior que o partido que a apoia mas também ela em queda, o João da cassete PC Ferreira, uns maus outros piores, entre todos eles e a sempre eterna Isabel II, Carlos XVI Gustavo, o rei dos Suecos ou Rama X, soberano da Malásia, preferirei os nomes do primeiro grupo. Afinal, e em bom rigor, nos do segundo nem poderia votar, só levar com eles. Ser-me-iam impostos. Não teria escolha e a minha opinião de nada valeria. A poucos dias de ir escolher o Chefe de Estado de Portugal não imagino pior e mais triste pesadelo.

 

Este pensamento acompanhou o DELITO durante toda a semana.

Donald Trump(a)

Pedro Belo Moraes, 14.01.21

Torre Trump.jfif

 

A imagem que acompanha este texto reforça o que aqui quero dizer e com urgência: de Trump só se aproveitam as piadas que dele se fazem. O todo e o resto do Donald são deploráveis. 

O legado que deixa é imensamente vergonhoso para a Nação norte-americana, toda ela, a que do mesmo é cúmplice e a que dele é vítima. A herança que deixa é preocupante, assustadora. O Donald é um cancro cujas metástases prosperam na política e na sociedade daqueles que são hoje - por enorme e afincado empenho de Don - os grandes Estados Desunidos da América.  

Já lá vai o tempo em que à antiga estrela de reality show se dava o mero e desculpabilizante rótulo de sintoma. "Ele é um sintoma, não é a causa dos verdadeiros e profundos males do mundo", disseram-me e repetiram-no vezes e vezes sem conta. Fizeram-no durante quatro anos e ainda o fazem hoje. Espantosamente há ainda quem isso afirme, passando uma esponja embebida, talvez, em hidroxicloroquina ou até lixívia sobre os quatro desastrosos anos de permanentes atropelos ao Estado de direito e de violações constantes de todas as regras do jogo democrático, que Trump inquinou, corrompeu e instrumentalizou em benefício próprio.

Não! Trump não é um sintoma do que está mal entre governos e governados. A ainda administração da maior potência do mundo depressa se emancipou da ligeira condição sintomática para se transformar numa das verdadeiras causas dos males do mundo de hoje.

Prova disso é a complacência com que o evasor fiscal é tratado e analisado depois de todos os abusos, ilegalidades e mesmo crimes cometidos sentava-se ele na Sala Oval.

Os trumpistas, os ruidosos e os serenos racionais, uns e outros, ao nomearem uma só que seja nota positiva da miserável presidência que agora finda (a económica, é sempre essa mais que discutível virtude que invocam), ao não exigirem o seu imediato afastamento da presidência e compulsivo julgamento pelos sucessivos e gravíssimos atentados à democracia, todos eles compõem afinal a deslumbrada plateia que em 2016 aplaudiu a tirada alarve e alarmante do destruidor de casinos, disparada no decorrer da primeira corrida à Casa Branca: "Podia dar um tiro em alguém na 5.ª Avenida e não perdia votos."

Ao contrário de outros assuntos, neste Trump não está mesmo nada longe da verdade: dos 75 milhões que votaram nele no último 3 de Novembro, 71% continuam ao seu lado, permanecem fiéis ao maestro, cuja batuta incitou uma multidão marioneta à insurreição, ao inédito e chocante assalto ao Capitólio, com o único e determinado propósito de impedir que o Congresso, os senadores e os representantes, uns e outros eleitos pelo povo, confirmassem a vitória eleitoral de Joe Biden, o candidato cuja maioria dos americanos escolheu para desalojar Trump da Casa Branca e desempenhar o papel de 46.º presidente dos EUA. 

"We love you!", mimou-os a figura laranja, esforçada na missão impossível de sequer aparentar estadismo. Como o cabelo e a cor da pele, tudo nele é fake, instrumental, encapotado. A declaração de amor feita ao mesmo tempo que pedia à turba cega que deixasse o edifício que invadia e destruía assegurando-lhes que "We love you!", fazendo de novo uso da ferramenta preferida dele, o dog whistle, o som soprado pelo apito que só a matilha ouve. E a matilha desembestada ladrou, mordeu e matou. Morreram cinco pessoas e a democracia ferida de morte. 

Trump tem de ser julgado e condenado no Senado mas também nos tribunais. Tem de ser destituído da presidência e também barrado, impedido com força de lei de exercer todo e qualquer cargo federal para o resto da vida. 

Aquilo que ele mais abomina nos outros é o que ele é: um loser. Perdeu tudo. A Casa Branca, a começar e a acabar, primeiro nas urnas, depois nos tribunais, passando pelos Congressos estaduais e culminando no gritinho sumido do Ipiranga berrado pelo seu vice no Congresso Federal. Mentiroso e ele sim fraudulento, em tribunal nunca provou a fraude eleitoral que alegou ter dado a vitória ao adversário e assim perdeu em todas as mais de 60 tentativas interpostas na justiça para na secretaria inverter a derrota que Biden lhe impôs.

Trump é um loser, um falhado, como é o projecto de poder que encabeçou e que culminou na revelação de outro enorme derrotado. Chama-se Partido Republicano e hoje assusta-se com a besta que alimentou para benefício maquiavélico e que agora lhe ameaça o futuro. Ao fim de quatro anos, o trumpismo devolveu a maioria da Câmara dos Representantes e do Senado aos democratas. Enfraqueceu os republicanos, portanto, e isso dividiu-os. Divisão que poderá ser larvar e que por sobrevivência de alguns poderá ditar a facada mortal nas costas de Trump como nos Idos de Março quando no Capitólio for o momento de votar o processo de destituição.

O vendedor de muros deixou de ser um trunfo para os republicanos, passou a ser incómodo.  

Desconcertantemente há por cá gente mais trumpista que o Trump. São os anti-Partido Democrata que o rotulam de feroz e perigoso esquerdista. Um quase promotor de uma nova Cortina de Ferro. Por cegueira ideológica e anti-esquerdismo primário alinham, portanto, na conveniente propaganda do empresário da construção. A esses trumpistas tenho a dizer que a dita direita moderada e liberal portuguesa está à esquerda do Partido Democrata. Veja-se como são as economias, os papéis e pesos do estado num e noutro país. O Partido Democrata é pelo capitalismo mas mais regulado, é pela iniciativa privada, nasce e cresce no caldo cultural da meritocracia avessa a amiguismos e clientelismos. Podemos dizer isto da dita direita moderada e liberal portuguesa? Não. 

Admirador dos Estados Unidos da América que sou, a Trump não lhe perdoo tê-los tornado pequenos no Mundo. O nacionalismo bacoco, o isolacionismo estéril, a rejeição do multilateralismo criaram mais desordem e incerteza no globo. Apostando naquelas máximas e comprando uma guerra tarifária com a China deixou vazios que os chineses exploraram nos bastidores, reforçando-se à conta da inépcia diplomática e geostratégica de Donald John Trump, o 45.º presidente dos Estados Unidos da América de quem nada se aproveita a não ser as piadas que dele podemos e devemos fazer.