No nosso vizinho Estado Sentido, o Samuel de Paiva Pires assina um interessante 'postal' sobre a relação tortuosa de parte da direita nacional com o Partido Comunista Português. Muitas das razões aduzidas parecem-me acertadas, desde logo porque bem fundamentadas.
Contudo, creio que o argumento coxeia quando argui que o respeito dos comunistas pelas regras do jogo demoliberal basta como credencial democrática. Discordo: no quadro de um Estado de Direito, a aceitação das normas e procedimentos democráticos constitui um mínimo olímpico. De resto, os partidos e movimentos que os rejeitam são normalmente proibidos por disposições constitucionais.
As democracias não se distinguem dos demais regimes por força dos procedimentos que adoptam, mas por via dos valores e princípios nos quais se sustentam. Dito de outro modo, o voto e os parlamentos não são exclusivos de regimes democráticos, mas os direitos, liberdades e garantias sim. Acresce que as convicções democráticas, tal como a gravidez, operam numa lógica binária: ou existem, ou não existem. Não dá para estar mais ou menos grávido.
O que nos leva de volta ao PCP. É evidente que os comunistas portugueses aceitam com zelo e escrúpulo os termos do jogo demoliberal, embora a forma como se pronunciam sobre violações gravosas de Direitos Humanos noutras latitudes nos faça duvidar da sua adesão aos valores e princípios nos quais se fundam as democracias. De facto, do comunismo português sobrevém o paradoxo de ser democrático dentro de portas e manifestamente autoritário noutras paragens. É o nosso gato de Schrödinger.
Tem razão o Samuel quando escreve que parte da direita portuguesa ainda não percebeu que o muro caiu. Porém, o “Fim da História” não foi exactamente o prometido. As democracias europeias estão sob acosso à esquerda e à direita, donde importa defender a adesão aos valores democráticos, pois a aceitação dos procedimentos resume-se muitas vezes a lip service. Há, de facto, muita gente que não percebeu 1989, mas não estão todos na direita.