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Delito de Opinião

Uma visão sobre a situação na Ucrânia

João André, 05.03.14

Antes de mais a ressalva: não sou especialista nem na Rússia nem na Ucrânia. Nunca lhes estudei a história nem as sociedades. Saberei talvez um pouco mais que o cidadão comum sobre os dois países e os seus povos, mas será apenas como "dano colateral" de certas incidências de vida. Conheço razoavelmente bem a personalidade dos eslavos em geral (e não especificamente de ucranianos e russos) devido às muitas amizades que tenho. Alguns desses amigos favorecem a Rússia, outros a Ucrânia, outros culpam toda a gente e outros estão-se completamente nas tintas. Feito o esclarecimento, fica a minha visão (longa).

 

Enquanto portugueses temos a visão dos países como territórios algo imutáveis, como entidades que são fundadas, poderão perder a sua independência por uns 60 anos mas que terão aquele desenho definido e inultrapassável. Talvez seja por isso que não nos enfurecemos quando vemos o país a perder soberania, mas isso é reflexão para outra altura. Os eslavos têm uma visão diferente: o país é aquele espaço físico onde vivem e que tem fronteiras policiadas e vigiadas e (geralmente) respeitadas mas que poderá não existir nessa forma por mais que uns 20 a 50 anos. Já a nação é um conceito diferente, que se prende à língua, à religião, ao sangue, às tradições e à história. Perceber esta distinção é fundamental para tentar entender aquilo que se passa na Ucrânia, ainda antes de tentar entender (dentro do possível) as acções de Putin.

 

Como já muita gente explicou, a Ucrânia é uma mistura de povos e é uma região fronteiriça (a mais habitualmente referida origem para o nome da Ucrânia indica que significa "na fronteira") onde vários impérios foram procurar novos territórios. É por isso que tem uma mistura de ucranianos e russos, os quais se distinguem através das linhas referidas acima. Apesar disso, esta distinção torna-se ainda mais ténue na Ucrânia: a língua, por exemplo, não é ainda um factor de diferenciação assim tão forte. Há muitos ucranianos não-russos que têm o russo como língua materna. O campeão da Alemanha, Vitali Klitchko é um deles. É resultado da acção russo-soviética que impôs a superioridade da Rússia a todos os seus estados. Aliás, não é por acaso que aquando do desmembramento da URSS e da CEI, que muitos desportistas ucranianos tiveram a opção de competir por outros países, sendo que alguns dos que o fizeram até nem eram "russos".

 

Quando a revolução ucraniana, sem pai nem mãe fora da Maidan, triunfou em expulsar Ianucovitch, muita gente ficou sem saber o que compreender. Os eslavos gostam de seguir cegamente os líderes em cavalos brancos. Em Maidan os líderes eram eles próprios e a única coisa que (per)seguiam era o fantasma de alguém detestado. Quando ele caiu, apareceram vários cavaleiros no horizonte, mas nenhum deles inspira muita confiança - pelo menos para já. No vazio de poder instalado, alguns arrivistas decidiram marcar presença tratando de ódios antigos: um deles os russos, os quais eram protegidos pelo regime cleptómano de Ianucovitch. Vai daí e avança-se com uma lei para remover o russo da lista de línguas oficiais das zonas de maioria russa.

 

Pelas razões que mencionei acima, e vendo algumas Banderas (sem gralha) em Maidan, os russos (que como bons eslavos têm uma memória colectiva muito longa e selectiva) viram a lei como a primeira salva de um ataque contra eles. Mesmo sem alguma vez tendo colocado os meus pés em terra ucraniana, penso que não exagerarei ao dizer que imaginariam já os soldados a caminhar em direcção a eles para os deportar ou assassinar. Perante esta situação, e porque o pânico ganha rapidamente uma vida muito própria, os russos ucranianos pediram de imediato auxílio aos seus "irmãos" do outro lado da fronteira.

 

E aqui trago à acção Vladimir Putin. Putin tem poder porque poderia ter sido ele próprio o Príncipe de Maquiavel, porque tem o dinheiro do petróleo e gás a apoiá-lo e porque compreende (ou compreendeu no passado, actualmente tenho dúvidas) o pensamento do russo comum. O russo comum, mais uma vez tal como os outros eslavos, tem uma memória selectiva que o faz lembrar as glórias do passado. Enquanto Portugal olha para o passado e vê o fracasso, o russo olha para o passado e vê o sucesso. O português vê o sucesso e pensa: foi bom enquanto durou. O russo vê o sucesso e pensa: é o nosso direito natural. Putin percebe-o e é por isso que mesmo num país autocrático, com liberdades cada vez mais reduzidas, com carências cada vez mais evidentes e que os petro-rublos já não maquilham, continua a ter um poder inigualável. Putin faz os russos pensarem que não estão tão mal - no palco mundial - como no passado e isso vale quase tanto para um russo como liberdade ou pão.

 

Quando Ianucovitch indicou que poderia aceitar a proposta europeia, Putin (que, como referido neste artigo, tem uma visão de soma-zero da geopolítica) colocou imediatamente pressão sobre a Ucrânia para evitar aquilo que via como perda de poder e perda de face. Quando Ianucovitch fugiu, Putin inicialmente esperou para ver. Quando a lei acima mencionada passou, Putin soube que tinha de agir: não para proteger os seus "irmãos" russos, mas para passar a ideia à sua população que o estaria a fazer. É também nesta perspectiva que tem que se entender a propaganda russa na Rússia, muito mais agressiva que aquela que tenta passar para fora do país. Tem que passar a mensagem que está a proteger a Mãe Rússia, a Rodina.

 

Outro aspecto fundamental a lembrar é o facto de ser na Crimeia que a Rússia tem a sua base naval do Mar Negro. Perdê-la seria um golpe duríssimo em termos estratégicos e um enorme problema em termos tácticos (imagine-se a quantidade de infraestrutura que poderia estar subitamente disponível para inspecção por parte de estrageiros). O pior golpe seria, mais uma vez, na imagem da Rússia. Ao perder um símbolo do seu poder militar, Putin estaria a demonstrar fraqueza interna. Isso seria o equivalente a perder o poder de todo. Putin, como se depreende pela sua história pessoal, nunca estaria na disposição de o aceitar. As suas soluções para os problemas interno são sempre as mesmas: dinheiro do petróleo e força. Com o dinheiro a ser rejeitado (e a não poder ser oferecido de novo - na sua lógica pessoal), sobrava a força. Daí o avanço para a Crimeia.

 

Putin tem uma fraca percepção de certos aspectos da realidade moderna, especialmente da força da internet e da forma como esta permite que a informação flua. Vê-a, com tiques de espião, como um truque dos seus inimigos - e por extensão da Rússia também - para desestabilizar o país. Por isso não percebe de imediato que a sua propaganda é transparente. Compreende no entanto que não pode recuar sem obter certas concessões. Por isso, e porque como um bom jogador de xadrez precisa de dar oportunidade ao adversário para mover as suas peças, espera agora para ver o que o Ocidente - e a Ucrânia - lhe oferecem.

 

Tenho uma visão singular destas crises geopolíticas: qualquer solução pacífica é preferível à guerra. Ou, por outra, uma má paz é preferível à melhor guerra. Assim sendo, o Ocidente deveria simplesmente abster-se de atiçar mais a fogueira. Não deve, de maneira nenhuma, recuar no seu apoio à revolução ucraniana - sob pena de perder outro país - mas deve aconselhar prudência. O melhor a fazer agora seria a Ucrânia reconhecer o erro da lei que retira o estatuto de segunda língua ao russo e sublinhar que respeita a população russa da Crimeia como russos e como sendo parte integral da Ucrânia. Ao mesmo tempo, deveria reafirmar o respeito pelo acordo que permite a presença naval russa. Note-se que Putin rejeita que os soldados na Ucrânia sejam soldados regulares russos. Isto não é - na minha perspectiva - simples propaganda. É, antes de mais, uma jogada que lhe permite retirar os soldados sem que alguma vez tenha invadido o país. É essencialmente uma jogada legal, mais que qualquer outra coisa. Isso dá espaço de manobra à Rússia, à Ucrânia e ao Ocidente.

 

Com o tempo Putin terá de sair. Talvez acossado pelas multidões de alcatrão e penas nas mãos - à semelhança do fantoche Ianucovitch - ou talvez por pressão ocidental. Seja como for, este não é o momento para forçar essa saída. Porque Putin, como qualquer animal acossado, pode tornar-se perigoso. E as principais vítimas seriam os ucranianos, independentemente de que lado linguístico estejam.

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