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Delito de Opinião

Uma Senhora

Pedro Correia, 07.07.15

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Maria Barroso com Augusto Figueiredo na peça Benilde ou a Virgem Mãe (Teatro Nacional, (1947)

 

Porque os outros se mascaram mas tu não
Porque os outros usam a virtude
Para comprar o que não tem perdão
Porque os outros têm medo mas tu não

Sophia de Mello Breyner Andresen

 

Há pessoas assim: capazes de nos cativar com um sorriso bondoso, uma palavra certeira, um olhar meigo, um gesto sereno, um tom de voz pausado. Maria de Jesus Simões Barroso Soares - Maria Barroso, como todos os portugueses a conheciam - tinha todos os atributos que enunciei. E vários outros - desde logo uma extraordinária coragem moral que a fez enfrentar todas as vicissitudes desde muito jovem. Franzina de corpo, mas com uma enorme fortaleza de espírito, enfrentou os esbirros da ditadura com uma inteireza arrepiante num tempo em que tudo apelava à demissão cívica. Por motivos de perseguição política, foi expurgada do chamado Teatro Nacional - uma página vergonhosa na nobre Casa de Garrett - e viu-se forçada a passar ao lado de uma carreira de actriz para a qual sentia genuína vocação.

Renunciou a muita coisa, mas nunca aos valores em que acreditava. Sem nunca assumir pose virtuosa, gesto próprio dos fariseus - "túmulos caiados", na expressão bíblica que Sophia transpôs para um dos seus mais arrebatadores poemas.

 

Maria Barroso dizia poesia com uma dicção perfeita, reforçada com uma nota emotiva bem reveladora do seu carácter. Na noite mais escura, ela soube dizer a palavra não. E quando outra ditadura, de sinal contrário, pairou sobre o Portugal revolucionário, lá estava ela novamente, no lado certo. Em defesa da liberdade, por um país onde mais ninguém fosse vítima de poderes arbitrários, contra qualquer delito de opinião.

Alguns chamam-lhe agora, nesta hora em que partiu, "antiga primeira dama". Detestável expressão, decalcada dos Estados Unidos, subentendendo uma relação de subalternidade em relação a Mário Soares, seu marido durante 66 anos. Nada mais inapropriado do que este rótulo jornalístico de importação. Como se Maria Barroso não fosse uma pessoa autónoma - nas ideias, nas convicções, no estilo, na atitude - para além dos laços de ternura solidificados por décadas de convívio com o homem que amou.

 

Vi-a muitas vezes, até há pouco tempo, nos locais mais inesperados. Olhando com atenção as novidades editoriais na Livraria Barata, saindo com uma amiga de uma sessão vespertina de cinema no Alvalade, encaminhando-se para a missa na "sua" igreja do Campo Grande. Nunca deixei de sentir admiração por ela, tal como - tenho a certeza - acontece com a esmagadora maioria dos portugueses. Quase como se fosse uma pessoa da nossa própria família, o que nos gera um íntimo sentimento de luto desde o início desta manhã, quando foi conhecida a notícia da sua morte. Que nem por já ser aguardada deixa de ser menos comovente.

 

Era sofisticada e simples, elegante sem sombra de presunção, lutadora convicta sem uma palavra de ódio dirigida aos seres menores que soube enfrentar com dignidade nas circunstâncias mais difíceis.

Uma Senhora.

 

Leitura complementar: a última entrevista de Maria Barroso. A Luís Osório, no jornal i.

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