Uma estadista
O ser humano é determinado pelas circunstâncias, como nos ensinou Ortega y Gasset. Penso nisto muitas vezes a propósito da política. Repare-se em Angela Merkel: há menos de dois anos era ridicularizada pelas bempensâncias de turno, que a caricaturavam como uma gauleiter cúpida e bronca. A esquerda radical chic pintava-a com bigodinho hitleriano e umas tantas sumidades chamavam-lhe “senhora Merkel”, com indisfarçável desdém misógino. "Seja mal-vinda a Portugal", proclamaram em uníssono mais de cem figuras cá do burgo quando visitou Lisboa, em Outubro de 2012.
As circunstâncias operaram uma reviravolta nessa cascata de argumentos primários contra a chanceler alemã. Angela Merkel, que agora recebe Barack Obama em Berlim, emerge da endémica crise de identidade europeia como a única interlocutora válida do continente perante os restantes protagonistas da cena política mundial. Henry Kissinger – pioneiro na abertura da diplomacia norte-americana a outras latitudes – declarou em tempos que desconhecia “o número de telefone da Europa”, aludindo à falta de liderança no Velho Continente. Hoje não voltaria a repetir a frase.
Diziam com desprezo que ela só pensava em finanças públicas. Mas não vejo ninguém a conduzir a política com tanto acerto no espaço geográfico em que Portugal se insere.
A chanceler germânica deu uma exemplar lição de dignidade aos seus pares ao acolher generosamente em 2015 mais de um milhão de refugiados – grande parte dos quais fugidos das intermináveis guerra civis no Médio Oriente e no Norte de África – enquanto outros responsáveis políticos europeus, de Mariano Rajoy a Vladimir Putin, lhes fechavam as portas. Pôs a sua popularidade interna em risco, sujeitou-se às críticas da direita mais extremista, viu uma força xenófoba ganhar terreno eleitoral, mas não abdicou dos princípios humanitários em que acredita – moldados na genuína democracia-cristã que funcionou durante três décadas como um dos pilares doutrinários da construção europeia.
Já este ano, revelou idêntica dignidade ao enfrentar a gravíssima crise institucional provocada pelo referendo britânico, reafirmando a sua crença no projecto europeu e reforçando os elos de solidariedade com as economias periféricas da UE. E há dias, na mensagem de felicitações que dirigiu ao recém-eleito Presidente norte-americano, prometeu cooperação institucional a Donald Trump sem abdicar dos “valores da democracia, da liberdade, do respeito pela lei e pela dignidade das pessoas” que constituem conquistas civilizacionais sem recuo, como fez questão de sublinhar.
Quem lhe lançava farpas e a transformava em objecto de sarcasmo teve de procurar outros alvos.
Admirada por quem já a contestou, criticada por quem já a enalteceu, respeitada por quase todos. Poucos duvidam de que é uma das raras dirigentes contemporâneas com lugar garantido nos livros de História.
Uma estadista.