Um voo cego a nada
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Oitenta anos após o fim da guerra civil, a "verdadeira esquerda" - como se intitulam os filo-comunistas da coligação Unidas Podemos agora coligados com o outrora odiado Partido Socialista - chega enfim ao poder em Espanha. Pedro Sánchez, com apenas 28% de votos recolhidos nas urnas e só com 120 assentos entre os 350 lugares do Congresso dos Deputados, decidiu coligar-se com os radicais de quem andou a demarcar-se durante toda a campanha eleitoral que conduziu às legislativas de 10 de Novembro.
«Nem eu nem 95% dos espanhóis dormiríamos tranquilos com o Podemos no Governo», chegou a dizer Sánchez semanas antes da segunda ida às urnas para tentar ampliar a escassa percentagem alcançada nas legislativas de Abril - e de que saiu com uma margem de manobra ainda mais estreita. É uma frase que vai persegui-lo durante toda a legislatura, dure o tempo que durar, assombrando-lhe as noites no Palácio da Moncloa. Mal foram contados os votos, o líder socialista apressou-se a transformar em parceiros de coligação os mesmos que diabolizara com aquelas palavras tão duras.
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Num parlamento atomizado como nunca, com 19 diferentes agrupamentos políticos agora ali representados, o Executivo de Sánchez só conseguiu ser eleito por maioria simples no segundo escrutínio, graças às abstenções de 18 independentistas republicanos da Catalunha e do País Basco em momentânea trégua com as instituições políticas de Madrid: recebeu 167 votos a favor e 165 contra no hemiciclo. Basta um deputado de uma das forças minoritárias mudar de campo para esta frágil maioria tremer - o que poderá acontecer já na votação do orçamento do Estado para 2020.
A margem pode ser pequena, mas o Executivo é indubitavelmente grande - ao ponto de ser o maior, em número de lugares, de toda a União Europeia. Ao todo, são quatro vice-presidentes, 22 ministros, 31 secretários de Estado e 22 subsecretários de Estado. Contando com Sánchez, somam 80 cadeiras. Prevendo-se que sejam acolitados por outra cifra recorde em Espanha: 182 assessores - o dobro do que havia no Executivo do PP, liderado por Mariano Rajoy.
O jornal El Confidencial fez as contas à factura, que promete ser bem pesada: mais cinco milhões de euros em salários governamentais até ao fim da legislatura.
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Dispondo de uma maioria tão precária, Sánchez actua no entanto como se ostentasse maioria absoluta.
Numa das primeiras medidas, anunciou a nomeação da sua ministra da Justiça cessante, Dolores Delgado, para procuradora-geral do Estado - em óbvia colisão com o princípio da separação de poderes, contrariando não apenas a mais elementar ética política mas também toda a jurisprudência sobre a matéria firmada pelo Tribunal Constitucional espanhol e pelo Tribunal Europeu dos Direitos Humanos. A mesma pessoa que andava há dois meses a fazer campanha eleitoral pelo PSOE, como quinta candidata socialista pelo círculo de Madrid, passa a dirigir um órgão que deve reger-se pela imparcialidade: nada bate certo aqui.
Sem surpresa, a nomeação não tardou a suscitar contestação aberta no Conselho Geral do Poder Judicial, a máxima instância de gestão e disciplina dos magistrados espanhóis, e a crítica frontal da presidente da Associação de Procuradores, que antevê a nova procuradora-geral a receber ordens daquele que até há poucos dias era seu superior hierárquico no Governo.
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Eis uma decisão típica da «casta política» que o actual secretário-geral do Podemos, Pablo Iglesias, denunciava nas pantalhas quando era comentador televisivo. Os tempos mudaram: Iglesias, que se gabava de morar então num modesto apartamento, é hoje o feliz proprietário de uma vivenda com jardim e piscina na serra madrilena. E a sua companheira, Irene Montero, que ele em 2017 escolhera para líder parlamentar do partido, coabita agora com ele também no Governo: Pablo é o vice-presidente para a área social, ela é a titular da pasta da Igualdade. Tudo em família, como nas vetustas casas nobiliárquicas.
Isto demonstra que o elevador social funciona em Espanha para a esquerda radical. Mesmo aquela que, quando a direita governava, não hesitaria em qualificar de nepotismo esta inédita parceria conjugal num Conselho de Ministros do país vizinho. Por muito menos os dirigentes do Podemos fizeram ferozes críticas a Ana Botella, mulher de José María Aznar, ao assumir a presidência da Câmara Municipal de Madrid quando o marido já não liderava o Governo.
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Sánchez - um tacticista puro, só preocupado com as manobras de curto prazo e os exercícios de contorcionismo político que lhe permitam sustentar-se no poder - anda agora de braço dado com os mesmos que, segundo ele, tirariam o sono a 95% dos espanhóis. Não lhe faltarão noites de insónia. Ao empossá-lo como presidente do Executivo, a 8 de Janeiro, o Rei Filipe VI ironizou: «Foi rápido, simples e sem dor. A dor virá depois.»
Palavras que se revelarão proféticas. Vejo esta coligação entre socialistas e comunistas - que inclui, como ministro do Consumo, o coordenador federal da Esquerda Unida, Alberto Garzón, autor do livro Por Qué Soy Comunista - amparada pela fina flor do nacionalismo separatista e vem-me à memória um verso de Reinaldo Ferreira: «Um voo cego a nada.»
Há países e povos que parecem aprender muito pouco com as lições da História.