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Delito de Opinião

Um resquício do antigamente

Paulo Sousa, 29.10.25

Há uns meses atrás, disse em privado que a Rússia estava cada vez mais encurralada e não via forma de conseguir sair do buraco onde se metera. A resposta, de alguém informado, era que eu estava redondamente errado, que as democracias europeias tinham nascido em tempos de paz, concórdia e compromissos e não eram capazes de decidir com a agilidade dos estados autoritários. Além de que a Rússia não se incomoda em sacrificar o seu próprio povo para salvar a cara do Czar e que ainda por cima tinha o apoio da China. Argumentei dizendo que a derrota da Federação Russa pode levar à sua desagregação e isso seria uma oportunidade para a China, até no que diz respeito a voltar ter um acesso ao Pacífico. Que não, que a Rússia só fica de joelhos quando está a atacar os sapatos, que tem direito a ter a sua esfera de influência e que se as democracias são fracas, a União Europeia é muito mais. Um bando de incapazes e três safanões, rima sempre com recuos, apelos a negociações e a fraldas sujas. Ninguém nos pode acudir. Lembrei que há cem anos também não faltava quem desprezasse as democracias e garantisse que o futuro era das ditaduras, mas no fim da Segunda Guerra Mundial foi o que se viu. Mas nessa altura não existiam redes sociais, respondeu-me, e hoje estamos sempre a ser bombardeados por bots do Kremlin que contagiam os eleitores com insegurança e sublinham a força da Rússia. Se algum líder europeu desafiar Putin, será incinerado nas redes sociais. Churchill e Roosevelt não tiveram de lidar com essa quinta coluna.

Algumas semanas passaram e a balança continua a desequilibrar-se em desfavor da Rússia. As democracias, e a UE, continuam envolvidas no caos dos seus parlamentos, na sua impotência e sem saber o que fazer com a sua relativa prosperidade, com os imigrantes ou com as expectativas dos seus cidadãos.

A democracia, por ser um modelo político desejável do ponto de vista do cidadão, fez parte dos factores que mobilizam o heróico povo ucraniano a suportar as flagelações russas. Claro que lutam pela sua identidade e sobrevivência, mas lutam também para que as suas gerações futuras possam viver na Europa da democracia, dos parlamentos caóticos, dos orçamentos aprovados à última hora, dos governos derrubados pela oposição, dos escândalos revelados pela imprensa, dos humoristas a apoucarem os governantes, mas também da harmonia do compromisso, da cooperação e da solidariedade europeia, da economia de mercado e do estado de direito. Lutam para não terem de viver sob o jugo de Moscovo, das suas elites corruptas e obscuras, que os atacaram, aliás, para tentarem impedir que o seu próprio povo entenda que, mesmo sem infinitas reservas de recursos naturais, é possível ter uma vida próspera e digna. As elites russas não querem abrir mão dos seus privilégios e sabem bem que num sistema competitivo como o da democracia tudo se pode perder muito facilmente. Funcionam como se vivessem num Antigo Regime fora de tempo, onde a vida de cada um depende do berço onde nasceu e o elevador social funciona apenas para os mais corruptos e menos escrupulosos no recurso à violência. Essa é a essência desta guerra que duraria apenas três dias. Esta é uma guerra onde um resquício do antigamente tenta contrariar a força da aparente fragilidade da democracia e da força da dignidade dos cidadãos. Um dia, inevitavelmente, a modernidade chegará também a Moscovo.

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