Saltar para: Post [1], Comentários [2], Pesquisa e Arquivos [3]

Delito de Opinião

Um rastejante e pestilento grunhido disfarçado de pensamento político

José Gomes André, 17.01.14

Nas últimas duas décadas, a FCT (Fundação para a Ciência e Tecnologia), entidade pública financiada pelo Governo português e por fundos europeus, tem feito um esforço notável de promoção da investigação em Portugal, através da concessão de bolsas individuais, projectos de investigação, centros científicos, etc. O número de Doutorados em Portugal cresceu exponencialmente, aproximando-se dos números europeus. Nos últimos dois anos, a contenção orçamental obrigou a uma compreensível estagnação nos fundos alocados, mas permitindo ainda assim a continuação de uma aposta clara na ciência num país quase analfabeto. 

 

Tudo isto desabou nos últimos dias. A atribuição de bolsas individuais levou a cortes escandalosos e inexplicáveis. Bolsas de Doutoramento, durante anos atribuídas a mais de 1500 investigadores, desceram para 729 este ano (já incluindo os novos "Doutoramentos FCT"). E as bolsas de pós-doutoramento, estabilizadas em 700 por ano desde 2007, desceram para 238 este ano. O que projectam estes números? Que estratégia encerram? Que futuro permitem adivinhar?

 

Pires de Lima explica: "não é possível alimentar um modelo que permita à investigação e à ciência viverem no conforto de estar longe das empresas e da vida real"Estas declarações são todo um programa. Visam estabelecer uma dicotomia entre "fazer" e "pensar", dividir o mundo entre quem "produz" e quem "reflecte", quem "faz avançar" e quem "assiste", quem "empreende" e quem "se resigna", quem "cria" e quem "observa". Ficou por dizer que os investigadores não-produtivos (ou seja, todos os que trabalham nas ciências humanas e sociais e boa parte das ciências exactas teóricas) são uns preguiçosos, apreciadores do sofá. Mas lá chegaremos. 

 

Em 1822, há quase duzentos anos, escreveu James Madison, 4º Presidente dos EUA: "Um governo popular, sem informação popular, ou os meios para adquiri-la, não é senão um prólogo a uma farsa ou uma tragédia, ou talvez a ambas. O conhecimento governará para sempre a ignorância; um povo que deseje ser o seu próprio governante terá que se dotar do poder que o conhecimento oferece". Há dois séculos que os EUA têm sido campeões na promoção da ciência, com os resultados que se conhece. Neste cantinho à beira-mar plantado, regressámos à separação entre "ciência" e "vida real", a uma distorcida e divisão entre o "conforto" do mundo da investigação por contraste com a "dureza" do mundo empresarial. Eis um modelo do agir e do pensar nos antípodas dos ganhos civilizacionais, culturais e científicos conquistados nos últimos três séculos. Como é que chegámos a isto, a este triunfo da ignorância, à celebração do mais rastejante e pestilento grunhido disfarçado de pensamento político?

 

Disclaimer: não fui afectado por nenhum destes concursos; usufruo de uma bolsa de pós-doutoramento desde 2010, cuja continuidade nada tem que ver com estes concursos.

7 comentários

Comentar post