Um piquenique não é um "massacre"
Processo n.º 81/2021 Data: 03.06.2021
(Autos de recurso relativo ao direito de reunião e manifestação)
Assuntos : “Direito de reunião e manifestação”, “Direito fundamental”, Limites e legalidade no seu exercício
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Como se deixou explicitado na decisão recorrida, o recurso a expressões como “terror”, “massacre” e “matança” (e outras) – que pela sua própria natureza e sentido, implicam, (no mínimo), a causa da morte de um grande número de pessoas com “crueldade e desprezo” e com “intenção do seu extermínio”, fazendo recordar “episódios negros da história da Humanidade”, (como, v.g., os ocorridos em Nanjing e Auschwitz) – são, sem dúvida, inadmissíveis em qualquer espécie de evento público, sendo juízos que, atentas as circunstâncias, quando imputados a quem quer que seja, implicam, necessariamente, um evidente “excesso” no exercício do direito em questão, e uma clara e directa “ofensa à honra e consideração” do seu destinatário.
Da mesma forma, a utilização de expressões –como as supra referidas e outras –com claro propósito de incitar, incendiar e instigar à pública “oposição”, “combate”, “derrube” e (à própria) “extinção” das referidas Autoridades e Instituições, constitui, igualmente, uma conduta que ultrapassa o aceitável, não sendo de tolerar, atento, nomeadamente, o estatuído nos art°s 1° e 5° da Constituição da República Popular da China e art°s 1° e 12° da Lei Básica da R.A.E.M. quanto à “ordem e sistema constitucional estabelecido”; (cfr., v.g., Xu Chang in, “Nova reflexão sobre a relação entre a Constituição da República Popular da China e as Leis Básicas”, Revista “Administração”, Vol. XII, 1999, pág. 659 a 671; Wang Zhenmin in, “Uma tentativa de abordagem sobre a eficácia da Constituição nas Regiões Administrativas Especiais”, Revista “Administração”, Vol. XIX, 2006, pág.967 a 975; Lok Wai Kin in, “A Constituição e a Lei Básica são base constitucional da Região Administrativa Especial”, Revista “Administração”, Vol. XXIII, 2010, pág. 383 a 395; e, Wang Yu in, “Interpretar «Volta a Assumir o Exercício da Soberania»”).
Assim – tendo-se presente o “momento”, “circunstâncias”, “objectivos” e previsíveis “efeitos” da pretendida reunião, e, não se podendo olvidar que à entidade recorrida, enquanto integrante das Forças de Segurança de Macau, cabe, não só, a “repressão criminal”, mas, mais importante ainda, a sua “prevenção”, (pois, como nota Germano Marques da Silva, “o que importa à colectividade (…) não é tanto punir os que transgridem, mas evitar, pelo adequado uso dos meios legais de dissuasão, que transgridam”, in “A Polícia e o Direito Penal”) – correcto se apresenta o “enquadramento jurídico” que em relação a este segmento decisório se entendeu fazer.
Dir-se-á – quiçá – que idênticas reuniões ou manifestações se tem vindo a realizar por dezenas de anos, (desde princípios dos anos 90), desde datas anteriores à entrada em vigor do Código Penal de Macau, (em 1995), e da transferência do exercício da soberania sobre Macau para a República Popular da China, (em 20.12.1999), podendo-se, mesmo, invocar, eventualmente, o princípio da “continuidade do modo de vida – e “maneira de viver” – em Macau por 50 anos” consagrado na Lei Básica da R.A.E.M. (cfr., v.g., o seu Preâmbulo, e art.ºs 5.º e 11.º).
Ora, este é – certamente – um ponto de vista.
Porém, (em face da “questão decidenda” e do seu “contexto”), não se tem por adequado.
A “situação” que se deixou exposta, constitui, como se viu, uma evidente prática de “ilicitudes” que integram, nomeadamente, um sério risco de graves violações de dispositivos legais do Código Penal que “hoje vigora em Macau”, e sem embargo do muito respeito que nos merece o aludido “princípio da continuidade”, o mesmo, não pode, de forma alguma, significar, ou implicar, considerações no sentido de se permitir a “impunidade” e “irresponsabilidade” de condutas abusivas e ofensivas (de natureza explicitamente criminal), até mesmo porque, como sabido é, a prática, ainda que contínua e reiterada de uma “ilegalidade”, não a transforma em “legalidade”; (cfr., sobre “aspecto” próximo, o estudo de Leonardo Alves de Oliveira, com o título “A sétima dimensão dos direitos fundamentais”, e em que se refere ao extremo de um “direito fundamental à impunidade”).
No que toca à pela entidade recorrida invocada “Pandemia do Coronavírus”, entende-se que a “situação” se apresenta (integralmente) idêntica à que justificou a prolação do (atrás já referido) Acórdão deste Tribunal de Última Instância de 29.05.2020, tirado no Proc. n.º 58/2020, em relação a idêntica questão (sobre o “direito reunião e de manifestação”).
Dest’arte, e dando-se aqui como reproduzido o que no referido aresto se consignou, e censura também não merecendo assim o nesta parte considerado na decisão recorrida, resta concluir pela improcedência do recurso.
Decisão
3. Em face do que se deixou expendido, em conferência, acordam negar provimento ao recurso.
Pagará a recorrente a taxa de justiça de 3UCs.
Registe e notifique.
Oportunamente, nada vindo de novo, dêem-se baixas com os averbamentos necessários.
Macau, aos 03 de Junho de 2021
Juízes:
José Maria Dias Azedo (Relator)
[Com a declaração que segue:
1. Não obstante ter relatado o acórdão que antecede, considerando que o presente recurso é de “plena jurisdição” –cfr., v.g., o Ac. deste T.U.I. de 13.01.2010 e de 04.05.2010, Procs. n.ºs 24/2009 e 21/2010, podendo assim este Tribunal reformular a decisão administrativa recorrida –cremos que se podia avançar para uma solução no sentido de se permitir a pretendida “reunião/manifestação” desde que expurgada de todos os seus “elementos abusivos e ofensivos”.
2. No que toca à “Pandemia do Coronavírus”, mantenho o que consignei na declaração de voto que juntei ao Ac. deste T.U.I. de 29.05.2020, Proc. n.º 58/2020].
Sam Hou Fai
Song Man Lei"
[Nota: os links no texto são da responsabilidade do autor do post e visam apenas ajudar à compreensão da decisão proferida pelo Tribunal de Última Instância]