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Delito de Opinião

Um Lada velhinho

Diogo Noivo, 02.09.16

Foi há quase vinte anos que a Costa Vicentina me adoptou. Comecei a descer o litoral sudoeste com um grupo de amigos inolvidável, viagens que fazíamos pelo menos três vezes por ano. A nossa base ficava em Vila do Bispo. Era a casa de um bom amigo, pendurada na beira de uma falésia, completamente isolada. Para lá chegar havia que dar as costas à estrada nacional e percorrer uns quantos quilómetros em terra batida. Uma vez que a rede eléctrica se circunscrevia às vilas e aldeias, a electricidade só era possível quando o gerador estava com espírito cooperante. Nas ocasiões em que decidia cooperar, operávamos o velho ‘roncador’ através de um sofisticado sistema remoto: puxávamos a guita que estava pendurada na janela de um dos quartos para o ligar; já a guita que estava na cozinha servia para silenciar a besta. Era um dos custos do isolamento, que pagávamos com gosto. E por falar em cozinha, o supermercado mais próximo estava a uns bons e acidentados quilómetros de distância, razão pela qual os víveres eram comprados directamente aos produtores e aos pescadores. Outro custo do isolamento assumido com um sorriso de orelha a orelha.

Deslocávamo-nos de praia em praia num velhinho jipe Lada, porventura a única criação soviética digna de encómios. Este jipe amarelo-baço, que me superava em 10 ou 11 anos, estava muito amachucado e corroído. E tinha uma particularidade que jamais esquecerei: uma folga na direcção de aproximadamente 180 graus. Girava-se o volante, mas nunca se tinha a certeza de quanto viraria. Conduzir este jipe requeria, portanto, muita perícia e uma dose nada negligenciável de sorte. Quando faltava a perícia e a sorte se distraía, acabávamos com o velhinho Lada a lavrar terreno fora de estrada, não poucas vezes em solo cultivado, o que faz com que ainda hoje tenha um enorme respeito (e medo, confesso) por senhoras idosas de cajado em riste. Passado um dia ou dois – há que dar tempo para que a ira se esvaia – voltávamos ao local do crime, assumíamos a despesa, e quase sempre fazíamos amigos. Apesar de maltratado e de andar sempre sobrecarregado de gente e de pranchas, o velhinho Lada nunca nos deixou mal.

 

Não íamos para lá “brincar aos pobrezinhos”, desde logo porque isso não constituiria uma grande alteração no nosso estado habitual de coisas. Éramos todos trabalhadores-estudantes, e na Costa Vicentina encontrávamos um escape ao jugo do quotidiano. Os dias passavam sem que ninguém se angustiasse com o pagamento das propinas, com esticar o parco ordenado, com satisfazer a um tempo as exigências da universidade e do trabalho. Eram dias onde nada grave ou definitivo acontecia. A natureza, o surf, as leituras despreocupadas, e as jantaradas em casa eram o centro do mundo, tudo por meia dúzia de tostões – o ideal para remediados como nós. Parafraseando Primo Levi, cultivávamos uma noção de rebelião moderada e abstracta.

Naquela altura, a Costa Vicentina era pouco procurada por turistas, especialmente a sul de Vila Nova de Milfontes. Era uma região imune à barbaridade urbanística que destruiu por completo uma parte importante do Algarve – isto é, do All Garve. Não havia trânsito ou discotecas da moda, e, muito importante, não se via betão. A vida na Costa Vicentina era como o velhinho Lada: poeirenta, dura, amachucada pelas agruras do tempo, sem ar condicionado ou qualquer outra comodidade oferecida pela tecnologia. Porém, tal como o Lada, a vida no litoral vicentino era simples, genuína, impressiva, livre de peneiras. As coisas eram como eram, e por isso valiam tanto.

Mas tudo isto já foi há muito tempo, um tempo no qual o Festival Sudoeste, então recém-criado, ainda era um certame para gente que gosta de música. Com o passar dos anos chegou o “progresso”. Apareceram os pré-pagamentos, os restaurantes modernaços e os bares da moda, frequentados por quem quer ver e ser visto. O “progresso” trouxe também os calvários para estacionar e os carros topo de gama – os chaços que conduzíamos (e ainda conduzimos) tornaram-se uma raridade olhada com desdém. E surgiu a 11ª praga bíblica: raparigas que se maquilham para ir para a praia. Há mais construção, embora o enquadramento legal do parque natural evite grandes atentados. As praias encheram-se de surfistas de cabelo oxigenado, incapazes de articular mais do que monossílabos, tipos que entram dentro de água com uma atitude sectária e competitiva que nunca ali existiu. Escrevi no inicio deste texto que a Costa Vicentina me adoptou porque, sobretudo no mar, o ambiente era de acolhimento: portugueses e estrangeiros, novos e velhos, bons surfistas e maçaricos, grupos de amigos e famílias inteiras, todos tinham espaço nas ondas vicentinas. Era uma comunidade de estranhos, forjada pelo surf e pela defesa da placidez de uma natureza imperturbada. Agora, manda o estar-na-moda e os seus nefastos sucedâneos.

Bem sei que idealizamos o passado. Quanto mais distante, mais fantasiado. Talvez parte do que aqui escrevi seja do domínio da ficção. Sei também que quem nasceu velho, como eu, se deve precaver contra os exageros e a melancolia. E admito até que quem vai para o litoral sudoeste há mais de 30 anos olhe para os que começaram a ir há 20 com o mesmo desprezo com que olho para o “progresso”. Tudo isto é possível. Mas é a memória que tenho e que acarinho. Gostava que a Costa Vicentina continuasse a ser um Lada velhinho.

 

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