Um insulto a Gengis Khan (episódio da História do Fracasso)
Na história universal do fracasso, o Xá da Corásmia permanece como um dos grandes exemplos trágicos de monarcas que, num único erro, perderam tudo o que tinham, neste caso um império que podia ter sido marcante e que, por um azar incrível, merece lugar eterno nos anais do esquecimento.
Hoje poucos sabem o que foi o Império Corásmio, mas na época em que Portugal se formou, esta era uma das forças políticas mais importantes da Ásia Central e talvez uma das mais promissoras em todo o mundo conhecido. Em 1218, foi ali que ocorreu um dos grandes ‘ses’ da História. E se Mohamed II não tivesse insultado o grande Gengis Khan? Quando se verificou este funesto episódio, o império tinha dois séculos de fértil existência e ocupava o actual Irão, parte do Afeganistão e do Cazaquistão e a totalidade do Uzbequistão e Turquemenistão. Era, pois, um território enorme para o seu tempo, governado por uma dinastia sunita de língua turca, que descendia de um antigo escravo. Tudo acabou muito depressa, como se fosse engolido pelas areias do deserto e pelo recuo do Mar Aral.
O último monarca da dinastia, Ala ad-Din Mohamed II, devia rondar os 50 anos quando cometeu o seu maior erro. Era um líder dominador, que fizera conquistas recentes, incluindo Samarcanda, onde uma revolta fora sufocada com 10 mil mortos, no que talvez seja exagero das crónicas da época. Esta famosa cidade centro-asiática, hoje no Uzbequistão, era já na altura tema de lendas. Há uma história muito antiga, provavelmente persa, sobre o encontro com a morte em Samarcanda: um homem poderoso tinha um escravo que, ao passear no mercado, viu a morte, que lhe fez um sinal significativo; assustado, contou ao seu amo e este ordenou-lhe que fugisse para Samarcanda, para longe, onde a morte não o encontraria. Dias depois, o amo encontrou-se com a morte no mercado e esta ficou surpreendida de o ver: ‘É estranho encontrar-te nesta cidade, pois tenho um encontro marcado com o teu escravo, amanhã, em Samarcanda’, disse a morte. A história tem várias versões, mas em todos os casos mantém-se o nome da cidade e a expressão encontro marcado.
Mas voltemos ao império Corásmio. No final do século XII, nas planícies da Mongólia, estava a formar-se uma nova entidade política resultante da união entre tribos guerreiras, um império agressivo especialmente interessado em expandir-se para a China. Segundo os historiadores modernos, o seu líder, Gengis Khan, não tinha ambições sobre o império Corásmio, mas Mohamed II não acreditou nas boas intenções desse perigoso vizinho, que na altura estava envolvido numa guerra contra os chineses.
Em 1218, uma caravana com 500 comerciantes, proveniente da Mongólia, foi interceptada por um governador corásmio, que acusava os seus membros de espionagem. Para tentar resolver o assunto a bem, Gengis Khan enviou três embaixadores a Mohamed II, com um pedido de livre comércio. Desconfiando de alguma armadilha, o Xá reagiu sem diplomacia e com violência. O muçulmano da delegação de embaixadores foi decapitado e aos dois mongóis cortaram o cabelo, o que constituía um insulto (há fontes que garantem a morte dos três embaixadores). Os comerciantes anteriormente detidos foram massacrados, embora o número de vítimas varie conforme as crónicas.
Um ponto é certo: o líder mongol viu neste episódio uma humilhação intolerável. Muito irritado, Gengis Khan reuniu um exército de 150 mil homens e invadiu o Império Corásmio, onde pela primeira vez usou tácticas de destruição sistemática. O enorme território foi conquistado em apenas 3 anos. As principais cidades foram aniquiladas, incluindo a capital, Urgench (ou Gurjandj, em persa), da qual restam vestígios no actual Turquemenistão. Em Samarcanda, após um cerco que culminou numa falsa retirada, foram mortos todos os habitantes que se tinham refugiado na mesquita e na cidadela. Os restantes terão sido poupados, o que não impediu a eliminação da elite local, que levou um século a recuperar deste golpe.
Ala ad-Din Mohamed II morreu em fuga, numa ilha do mar Cáspio (a imagem retrata o fim do Xá), e a poeira do seu império foi espalhada aos sete ventos. Quanto ao líder mongol, não se sabe até que ponto esta campanha inesperada mudou os seus planos de domínio, mas tudo indica que o azar da Pérsia foi a sorte da China. A sua intenção inicial seria apenas manter boas relações comerciais com o vizinho, mas após a campanha militar, Gengis controlava o vasto território da Ásia Central e as principais rotas da ligação entre Oriente e Ocidente, que assim ficaram interrompidas durante séculos.
Embora o império mongol tivesse o seu próprio padrão de conquista, destruição, união efémera e colapso, houve nesta parte do mundo um processo distinto daquele que ocorreu nas restantes civilizações. O historiador britânico John Darwin explica, em After Tamerlane, que o domínio das hordas nómadas “impediu no mundo islâmico aquilo que aconteceu na Europa: a consolidação gradual do território dos Estados cuja população foi submetida a um controlo feudal mais intenso”. Estes impérios efémeros durariam até ao século XV, após a morte de Timur, o Coxo, conhecido por Tamerlão, outro grande senhor de Samarcanda. Em resumo, este episódio teve enorme importância para o posterior triunfo do Ocidente e ajuda a explicar a fragmentação e fraqueza das nações muçulmanas, mesmo as contemporâneas.


