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Delito de Opinião

Um homem que amava a vida

Pedro Correia, 08.04.21

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Foto: Nuno Ferreira Santos / Público

 

Conhecia Jorge Coelho desde 1988. Travámos amizade em Macau, onde ele era membro do Executivo e enfrentou corajosamente uma enorme manifestação de polícias no território que ameaçavam invadir o palácio do Governo, numa noite tempestuosa em que a administração portuguesa se arriscava a cair na rua. Empunhando um megafone, com a eloquência que o País mais tarde lhe reconheceria noutros palcos, ele apaziguou os exaltados, indiferente à chuva que caía, e solucionou o problema recorrendo ao poder da palavra. Convicto de ter a razão do seu lado.

Reencontrei-o em Lisboa, sempre como jornalista, quando ele exerceu várias funções governativas (foi ministro da Presidência, da Administração Interna e do Equipamento Social), como braço direito de António Guterres e efectivo comandante-em-chefe do Partido Socialista. Com a tenacidade de sempre. Era um orador temível para as fileiras da oposição. Que o digam Marcelo Rebelo de Sousa, à época presidente do PSD, ou Marques Mendes, líder da bancada parlamentar laranja.

Mas era, ao mesmo tempo, alguém capaz de estabelecer laços com gente das mais diversas filiações partidárias, convicções ideológicas e simpatias clubísticas. Um agregador de talentos dispersos e um mobilizador de vontades individuais, muito para além do que o caderno de encargos oficial lhe exigia. 

 

O País deve-lhe um dos mais raros gestos de desprendimento político de que temos memória, na noite trágica em que caiu a ponte de Entre-os Rios, fez há pouco 20 anos.

Desde o primeiro momento, Jorge Coelho sentiu que não poderia permanecer em funções no Governo: cabia-lhe a pasta das obras públicas e, embora sem qualquer responsabilidade efectiva no sucedido, quis dar este louvável exemplo de cidadania.

«A culpa não pode morrer solteira», declarou já de madrugada, a 5 de Março de 2001, numa conferência de imprensa onde era visível a comoção dos próprios jornalistas perante aquele drama que enlutou o País. «Não ficaria bem com a minha consciência se continuasse», rematou. Os portugueses, em estado de choque, compreenderam bem o que este gesto e estas palavras significavam. 

 

Amigo dos seus inúmeros amigos, louvado por adversários, até respeitado pelos escassos inimigos. Era um beirão de Mangualde, produtor de queijos na sua Beira Alta, militante de uma causa que tarda em ser assumida como prioridade política: a do combate à desertificação e à pobreza do interior do País. 

Era também um sportinguista convicto, sócio há 34 anos do clube de Alvalade, que serviu como membro do Conselho Leonino, enquanto resistia às recorrentes pressões para se candidatar à presidência. Dotado de invulgar intuição, percebeu que aquele não era um desafio para ele. Tal como soube retirar-se da ribalta política no momento certo. E viria a afastar-se também da participação regular em programas de comentário televisivo, onde não deixava de fazer a pedagogia da moderação - virtude infelizmente em perda acelerada num cenário infestado de velhas e novas trincheiras onde o ódio funciona como ignição e chamariz.

 

Vencera um cancro há década e meia, quando chegou a supor-se condenado. A partir daí, abrandou o ritmo e passou a apreciar ainda mais a preciosa dádiva da vida. E a cultivar ainda com mais apreço as amizades.

Era um homem de bem. Deixou-nos há umas horas, cedo de mais, vítima de morte súbita. Ainda incrédulo, presto sentida e comovida homenagem à sua memória.

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