Um encontro feliz
No mais recente livro de Patrícia Reis, O que nos Separa dos Outros, o narrador tem 54 anos. Eu tenho 53 e, tal como o protagonista, vejo com espanto e certa melancolia os efeitos do tempo na vida que passa.
A afinidade entre leitor e livro é um encontro feliz a que chamamos habitualmente qualidade literária. Por isso decidi escrever esta nota de leitura. A novela foi ontem apresentada em Lisboa, lê-se sem dificuldade, sinal inconfundível de boa escrita. A autora escolheu uma forma simples, o monólogo interior, mas o tema é complexo: perda, sensação de fracasso, a ideia de que se gastou uma vida inteira para quase nada. O narrador, um professor de escrita ou talvez escritor falhado, enfrasca-se em Macau a observar a empregada chinesa de um bar anónimo, a falar com ela em imaginação (como se a rapariga pudesse perceber as palavras dele). Temos ali o cansaço e o desencanto, a impossibilidade de comunicar, a fantasia sobre a vida dos outros.
O livro de Patrícia Reis tem uma escrita transparente e despretensiosa, sem floreados ou excesso de imagens, deixando aos leitores amplo espaço para imaginar as omissões do enredo. Em O Que nos Separa dos Outros por causa de um copo de Whisky (na versão longa do título) há pequenas passagens de grande intensidade dramática e personagens apenas esboçadas, mas que sentimos em toda a sua riqueza humana. A mãe do narrador, por exemplo, que vemos aflita durante um funeral e depois, senil, num lar de idosos: “Quando se vê ao espelho, será que pensa em alguma coisa?”. Ou o falecido irmão, um solitário, cujo desespero nunca chegamos a perceber.
O narrador, silencioso e fatigado, observa uma chinesa ligeiramente estrábica, tenta adivinhar a vida dela e vai desfiando memórias, num fluxo de pensamento falsamente aleatório. Por vezes, interroga-se sobre a personagem muda que julga observar: “Não consigo perceber que idade tens. É intrigante”. Em ruído de fundo da sua mágoa está o suicídio do irmão (que talvez seja acidente), o casamento nulo e a falta de amor, o desaparecimento do pai (porventura outra história complicada).
A escritora conseguiu ligar os diferentes fios da intriga num conjunto harmonioso e um leitor não pode deixar de sentir a solidão destas figuras dispersas. A melhor paisagem para confessar o que ninguém ouve é um lugar estrangeiro. Num bar do outro lado do planeta, na companhia de um copo de whisky, a personagem tenta recordar o que durante a inexorável passagem do tempo se perdeu na sua vida: “Esse desconhecido é-me confortável. Faço o copo rodar na minha mão, as pedras de gelo a diluírem-se, e tenho pena dessa morte lenta da água”.