Um desastre chamado tolerância zero
Depois de há três semanas, numa carta aberta para o Executivo de Hong Kong, os médicos terem avisado que o sistema estava à beira do colapso, na passada quinta-feira foram registados mais de 56 mil casos de infectados da COVID-19 num só dia.
Elizabeth Cheung descrevia no South China Morning Post cenas horríveis nos hospitais, com falta de oxigénio, más condições de higiene, camas insuficientes e profissionais de saúde a queixarem-se da sua incapacidade para prestarem os cuidados devidos a muitos doentes. Enfim, um caos.
Há mais de quatro dias que o número de mortos diários ultrapassa a centena. Hong Kong atingiu a mais alta taxa de mortalidade mundial, na maior parte dos casos na população mais idosa e não vacinada.
E, no entanto, há dois anos que cessaram as ligações marítimas de e para Hong Kong, as fronteiras estão desde então, salvo raras excepções, fechadas ou com restrições severas à entrada de estrangeiros, muitas companhias aéreas deixaram de voar, há rígidas quarentenas para os residentes que chegam. As queixas multiplicam-se.
Há quem pergunte por que razão se falhou de forma tão crassa, de tal forma que foi pedido apoio às autoridades do outro lado da fronteira para fazer face à situação.
A CNN estabeleceu a comparação com outros países ou regiões que seguiram a mesma política numa fase inicial, mas que entretanto já reabriram, abandonando a tolerância zero. A resposta parece estar nas baixas taxas de vacinação, mas também na ineficácia das vacinas chinesas, que levou as próprias autoridades a recomendarem que a terceira dose fosse do tipo mRNA (BioNtech), e na incapacidade da Região em preparar-se atempadamente para o que aí vinha.
Carrie Lam, a Chefe do Executivo, comparou a situação com a de uma guerra, que neste caso só acontece por incapacidade das autoridades, advogando que se contornem as leis existentes e atirando para trás das costas o rule of law.
Em resposta, houve quem lhe dissesse que Hong Kong não é Kiev, e lhe recordasse que em 1942 Lord Atkins disse que durante as guerras as leis não são silenciosas, falam a mesma linguagem em tempo de paz e o direito internacional humanitário não se suspende.
Mas o que as autoridades de Hong Kong não dizem, e não têm maneira de justificar, é por que razão este desastre ocorre quando se tem todo o apoio de Pequim. Nem para que se querem contornar as leis, dois anos depois de começar a pandemia, numa altura em que a cidade já é governada exclusivamente por "patriotas", em que deixou de existir oposição interna, em que os líderes do movimento pró-democracia foram silenciados, estão exilados ou cumprem pena de prisão.
E tudo depois de ser aprovada uma lei draconiana de segurança interna, da liberdade de imprensa ser cerceada, de se fecharem jornais e se prenderem jornalistas, advogados e activistas, e do sistema eleitoral ter sido alterado para se garantir que a democracia "à ocidental" não funcionaria.