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Delito de Opinião

Um conflito entre bons e maus

Luís Naves, 30.03.23

O interesse pela guerra da Ucrânia está a diminuir e parte da opinião pública começa a ter dúvidas sobre a narrativa dominante, segundo a qual estamos perante um simples conflito entre bons e maus. Tem sido difícil interpretar os factos de outra forma, pois as dúvidas sobre a natureza da realidade são rapidamente transformadas em colaboracionismo e apoio a ideias totalitárias. Alguém que se atreva a enunciar a perspectiva russa procura um novo tratado de Munique. O problema é que já passou um ano desde que a Rússia ia perder a guerra na semana seguinte e os combates continuam; passou um ano desde que a Rússia ia à falência na semana seguinte e a sua economia continua a funcionar, aliás, está transformada numa economia de guerra.

Moscovo estabeleceu uma parceria com a China e os efeitos económicos no Ocidente ameaçam tornar-se permanentes, a energia e a comida serão mais caras. Onde está a prometida mudança de regime no Kremlin? Em lado nenhum, pelo contrário, Vladimir Putin parece mais forte do que nunca. As notícias dos triunfos iminentes do lado ucraniano são agora mais raras, pois não há nada para ver: As vítimas ucranianas, civis e militares, podem ultrapassar 300 mil, mortos talvez mais de 100 mil; o país está de rastos, com 8 milhões de refugiados, seis milhões de deslocados internos, 18 milhões de cidadãos dependentes da ajuda externa, grande parte da infra-estrutura destruída, economia reduzida a menos de metade. Se isto continua outro ano, a Ucrânia será um estado inviável, na melhor das hipóteses um protectorado ocidental. Houve negociações no ano passado, quase um acordo que, agora, será improvável (milhares de pessoas morreram para nada). Do campo de batalha, emergem por vezes vislumbres de uma realidade sombria: as forças de Kiev estão em desvantagem numérica de 2 para 1 em soldados, de 3 para 1 em carros de combate; as tropas são inexperientes e com muitos velhos nas fileiras, não há mais recrutas e quase não resta aviação. A imprensa tenta ao máximo esconder os problemas, como por exemplo a perseguição religiosa da igreja ortodoxa russa ou a destruição de livros russos. Na narrativa oficial não existe lugar para qualquer subtileza histórica, o simples facto de em 2022 subsistir uma guerra civil de oito anos durante a qual o governo de Kiev bombardeou a sua própria população no Donbass. A guerra da Ucrânia parece ser um conflito entre os impérios americano e russo, a intenção de Washington era derrubar o poder em Moscovo e desmantelar a Rússia criando estados aliados que serviriam para cercar a China. O plano falhou e a primeira vítima foi a Ucrânia, transformada em campo de batalha, os seus habitantes usados como carne para canhão. No plano internacional, há uma rebelião de países pouco entusiasmados com a hegemonia americana e que gostariam de diversificar as suas relações. A China é para já a maior beneficiária do conflito: evitou o cerco americano e está em condições de se aproximar de Moscovo, criando um bloco euro-asiático auto-suficiente. A Europa, que mergulhou no apoio a Kiev com um entusiasmo incompreensível, parece ser a grande perdedora, pois terá de repensar toda a sua economia. Os europeus estão divididos e procuram criar condições para a segurança alimentar e a autonomia energética, mas não parece haver nenhuma solução rápida, para mais as exportações para os mercados asiáticos dependem da China. Nada disto é discutido de forma séria. A Alemanha não pode levantar a questão da destruição do gasoduto Nord Stream 2, ninguém critica a iniciativa comunitária de compras de munições, falar nas ameaças nucleares é cobardia, considera-se normal que Washington interfira na política interna de democracias e toda a gente quer gastar uma pipa de massa em armamentos. A Terceira Guerra Mundial já começou, mas isto é entre bons e maus, não há nada a fazer.

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