Um bom trabalho
Fui durante muitos anos um leitor fiel de O Independente, apesar de muitas vezes não concordar com o estilo de algumas reportagens. Ainda hoje tenho saudades do jornal porque apreciava a escrita contundente, desempoeirada e frontal. E em matéria de opinião li nesse jornal algumas das melhores crónicas da imprensa nacional. Como muitos outros títulos, o jornal acabou por não resistir e desapareceu. Filipe Santos Costa e Liliana Valente, jornalistas que passaram pela escola do Indy, resolveram regressar ao passado e nele colheram algumas das melhores e mais deliciosas histórias então publicadas. Agora com o adicional de ficarmos a conhecer algumas das gargantas fundas. Não deixa de ser curioso que a edição do livro, com prefácio de outro grande jornalista, Vicente Jorge Silva, e editado pela Matéria-Prima, coincida com a mudança de ciclo político em Portugal, com o final do governo de coligação PSD/CDS-PP e a reforma de Cavaco Silva. Torna-se, por isso mesmo, particularmente interessante confrontar o que então foi escrito, em especial por Paulo Portas, que foi um dos directores do jornal Pelo Socialismo nos seus tempos de JSD, quer sobre o PSD, quer sobre a direita e algumas das suas figuras. É verdade que muitas vezes o jornal e alguns dos seus jornalistas se excederam e foram arguidos em numerosos processos, por vezes obrigados a retratarem-se e a pedirem desculpas e de algumas outras vezes mesmo condenados. Mas nada disso retira mérito ao que então se fez, de muito bom, bom e de menos bom, e que foi recuperado pelos autores de "A Máquina de Triturar Políticos". Quando nos recordamos das queixas de alguns protagonistas recentes sobre a forma como alguns blogues e alguma imprensa os (des)tratava, não há nada como recuperar o que então foi escrito para se poderem estabelecer comparações. Seria bom que as gerações mais novas, em especial aquelas que não tiveram o prazer e o gozo de ler o jornal todas as sextas-feiras, a começar pelas novas gerações de jornalistas, aproveitassem para ler o trabalho dos seus colegas, cuja leitura vivamente recomendo. De Cavaco Silva a Costa Freire, de Leonor Beleza a Tomás Taveira, de Santana Lopes a Durão Barroso, de Carlos Melancia a Dias Loureiro, de Miguel Cadilhe à "fonte da Campa 24", das histórias de Luís Filipe Menezes, de João de Deus Pinheiro, Mendes Bota, Macário Correia às peúgas brancas de alguns laranjinhas e ao empréstimo do PSD a Fernando Nogueira, do qual só Cavaco sabia, está lá tudo. Reler o que então se publicou escrito por Paulo Portas, Miguel Esteves Cardoso, Vasco Pulido Valente ou Helena Sanches Osório, conhecendo-se o passado mais recente, é um exercício obrigatório. Sublinhando o excelente grafismo, a recordar o seguido pelo jornal, e a reprodução de muitas das primeiras páginas que fizeram história, só lamento que, com excepção do prefácio, tenha sido escrito na "nova ortografia". Enfim, não se podendo ter tudo, o trabalho feito impõe-se por si, merece atenção e recomenda-se.
Enquanto não lerem o livro, os leitores poderão entreter-se a adivinhar quem escreveu o que a seguir se transcreve:
"O primeiro-ministro de Portugal aceitou que a sua viagem de férias a Salzburgo fosse a convite e por conta de uma multinacional. A Nestlé teve a ideia, escreveu a Cavaco, organizou e pagou. O burgomestre austríaco limitou-se ao protocolo. Nós pagámos o Falcon e a Nestlé pagou o resto" - os bilhetes para o festival, a estadia na suite presidencial do melhor hotel da cidade e um passeio para ver as vistas. Tudo confirmado pela multinacional. (...) Foi assim que pela primeira vez um primeiro-ministro português se deslocou ao estrangeiro a convite de uma empresa privada."
"O homem que confunde Thomas Mann com Thomas More está no seu legítimo direito quando faz alguma coisa para se cultivar (...)"; "[S]eja qual for a importância da causa, o cidadão Aníbal Cavaco Silva não pode obrigar quem paga impostos a financiar-lhe despesas de elevação espiritual (...)"
"Os portugueses foram habituados, ano após ano, a ver na Europa um processo de enriquecimento fácil, gratuito e infinito. O doutor Cavaco tem a maior responsabilidade nesta ilusão nacional."
"A cultura cavaquista nunca teve nada de sólido e duradoiro. Não pretendia disciplina nas despesas, nunca apostou a sério no capitalismo nacional, nem sequer usou uma maioria única para reformar a sério e a fundo a indústria e agricultura. A cultura cavaquista esgotava-se em três palavras: consumismo, obras públicas e subsídios."
"[O]s políticos da maioria, e são muitos, que enriqueceram tão depressa que parecem ter transitado milagrosamente das cavernas para os palácios."
"Jamais na história política do regime se verificou tamanha falibilidade de um ministro das Finanças. Não há um número certo, não há uma conta exacta, não há uma previsão verificada. As contas não falham por magia. Falham porque as decisões de política estavam erradas.[...] [O ministro das Finanças] orientou toda a política económica para cumprir os critérios de convergência do Tratado de Maaastrich e chega ao fim do ano com resultados que afastam Portugal das metas a que se obrigou. [...] Viveu todo este ano num país irreal e numa economia imaginária. [...] O que o ministro das Finanças prevê não acontece. A aldrabice ganhou foros de Estado."
"O PSD agarra[-se] ao Estado como a lapa à rocha. Se o dr. Cavaco o tentar arrancar de lá, fica sem unhas."
"Quem olhar a elite política reconhecerá semelhanças com A Mala de Cartão. É de admitir que Linda de Suza tenha primos e mais primos no poder e na oposição"
"É um erro acreditar que são bons os que nasceram assim e maus os que nasceram assado. Pelo contrário, os mais elevados critérios de apreciação de um político são os factos do seu carácter e da sua dignidade."