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Delito de Opinião

Um apanhado de reflexões

João André, 13.11.24

1. Há pouco mais de um mês fez um ano do ataque (pogrom) do Hamas a Israel. Escrevi sobre o assunto na altura e citei uma frase que tinha lido: «o Anjo da Morte lambe os beiços». Um ano mais tarde a única coisa que dá vontade de dizer é que essa frase ficou aquém da realidade. Em Gaza a contabilidade de mortos anda nos 43 mil a 47 mil desde há uns meses, apesar de sempre que leio as notícias haver mais uns quantos a morrer (entre 5 a 50 em cada dia que leio). A maioria dos reféns continua em Gaza e os israelitas supõem que um terço deles terão perdido a vida. Não há solução à vista mas os generais parecem falar abertamente da expulsão de palestinianos do norte do território e ocupação do restante. Uma geração de palestinianos estará traumatizada/aleijada/radicalizada (não, não é um "riscar o que não interessa", todas serão verdade) para o resto da vida. Os israelitas estarão mais seguros por uns anos, antes do ressentimento ressurgir. Não falo em Genocídio como muitos fazem, porque siceramente não quero acreditar nisso, Mas parece-me óbvio que este governo israelita anda a dar tangentes ao conceito.

Pelo meio apareceram os outros episódios. Com o Irão, que tenta a todo o custo manter-se afastado do conflito (pelo menos de forma directa) e tenta apenas mostrar-se através dos seus facínoras de aluguer. Com o Líbano, que por causa de um exército de rebeldes radicais que não tem força para eliminar está a ser massacrado por um Israel que lhe diz para expulsar o Hezbollah (como se o conseguissem). E com os Hutis no Iémen, que às ordens dos aiatolás loucos de Teerão dão razões a Israel (e EUA e outros) para estenderem um confito que não podem ganhar.

E o Anjo da Morte enche a barriga.

 

2. Na Ucrânia chegou-se a um impasse onde a Rússia não tem conseguido ganhar território suficiente para acabar com os ucranianos mas sabe que o tempo joga a seu favor. Mesmo que os EUA conseguissem o seu apoio de forma indefinida (coisa que não acontecerá - já lá chego), os russos andam a trazer norte-coreanos e daqui a uns tempos se calhar também bielorrussos e outros para engrossarem as suas fileiras. Putin está à espera que a Ucrânia seja forçada a ceder ou que caia de podre. Não estará errado. A questão é o que fará depois, com forças armadas mais modernizadas, treinadas e uma infraestrutura mais fortemente orientada para a guerra, especialmente aquela que contorna a sanções internacionais. Se eu vivesse nos países fronteiriços não dormiria descansado.

 

3. No Sudão vai prosseguindo uma guerra civil que até ao momento poderá já ter matado até 150 mil pessoas, deslocado perto de 8 milhões e criado mais de 2 milhões de refugiados. Ao pé disto os outros que referi acima parecem ser da segunda divisão. Mas não ligamos, porque está mais longe e não queremos saber. Não há nada de especial que nos envolva a nós. A não ser... aquela coisa chata... de seres humanos a perder as vidas.

 

4. Nos EUA Donald Trump lá venceu as eleições. O primeiro criminoso condenado em tribunal, responsável por uma tentativa de subversão de eleições livres, que afirma ir ser ditador apenas no primeiro dia (nem precisaria de o ser nos outros), que tenta abertamente reduzir direitos de tudo o que não sejam as pessoas que ele entende serem as melhores: habitualmente brancos, depois os não brancos de quem ele goste, no fundo virão as mulheres em geral e especialmente as mulheres não brancas de quem ele não goste. Só que foi eleito de forma democrática e isso deve ser respeitado. Temo pelo seu país (embora não goste muito dele) e temo muito pelo mundo. Estou à espera de uma presidência transaccional, onde tudo é negociável desde que beneficie os EUA (ou a ele pessoalmente, esta opção é obviamente a preferível) e onde tarifas, saídas de acordos e mandar amigos e aliados às urtigas serão moeda corrente. A Ucrânia será atropelada e forçada a aceitar seja lá o que for. Taiwan deixará de receber garantias reais. Coreia do Sul e Japão poderão estar neste momento a avaliar a maneira mais rápida de obter armas nucleares. E quando Trump se for embora (se fosse mais novo talvez tentasse mudar a constituição para poder chegar ao terceiro mandato) terá tudo para ter deixado a extrema-direita ao leme do país.

 

5. Na Europa veremos o mesmo. Os bilionários europeus olharão para o que se passou nos EUA - a caminho de uma oligarquia - e perguntarão se não poderão implementar o mesmo programa. A extrema-direita será a segunda força na Alemanha a partir de Fevereiro. Na Holanda já é a primeira força e estará à espera de ver os seus parceiros de coligação a deitá-la abaixo para forçar eleições para reforçar o seu poder. Na França Le Pen poderá finalmente atingir o seu desejo de ser presidente. Na Itália já lá chegarão, talvez cedo de mais e a precisar de suavizar as coisas para já (Salvini não seria tão simpático como Meloni). Em Portugal estou para ver o que se passará. O que imagino no entanto é uma classe de super-ricos a financiar esses movimentos para que depois possam ter carta branca para fazerem o que quiserem sem esse inconveniente de regulamentos.

 

6. E nisto o planeta vai aquecendo. Podemos esquecer os 1,5 ºC, que já estão atingidos. Não de forma oficial, para isso é preciso ter uma ou duas décadas de temperaturas consistentemente nesse patamar, mas na prática já ninguém acredita realmente que escapamos. As ondas de calor continuam. As cheias também. O mesmo para tempestades e tornados e furacões. E não vamos parar aqui. Tudo o que os climatólogos andam a dizer há décadas começa a acontecer. E vai piorar. Porque não aprendemos.

 

7. Chegado aqui poderei ter tentação para culpar alguém. Talvez a esquerda, como neste post abaixo? Ou a direita, que adoptou bandeiras da extrema direita (como a imigração) sem perceber que o eleitorado tende a preferir o original à fotocópia? Ambos? Os social media que são hoje já meios de comunicação dominantes? Os bilionários que dão dinheiro a quem lhes prometer que podem continuar a enriquecer-se como quiserem? Não.

 

8. A culpa é de sermos essencialmente os mesmos seres humanos que há umas dezenas de milhares de anos ainda se escondiam em cavernas, tinham medo de fogo, comiam como se não houvesse amanhã quando encontravam a comida, se fiavam em grupos pequenos onde toda a gente estivesse ligada por laços de família ou fosse do mesmo clã, onde qualquer conforto era imediatamente agarrado quando surgisse. Somos humanos das cavernas mas dominámos o fogo, o átomo, aprendemos a atravessar oceanos, a voar, a ir ao espaço, a comunicar a enormes distâncias, a ligarmo-nos entre todos. E fizémo-lo de forma cada vez mais acelerada. Os nossos cérebros não estão construídos para isto. Agora acreditamos que construir cérebros externos (IA) ou melhorar os que temos (neurolinks) vai resolver o problema. Não irá.

 

9. Termino com a mensagem pessimista. Iremos provavelmente ter grandes catástrofes em breve. Sim, sou um profeta da desgraça e espero estar enganado. Mas creio que atingimos o limite do que podemos fazer da forma como o temos feito. A nossa história (humana) está repleta de picos de prosperidade, cultura, economia, etc., seguidos de uma catástrofe ou outra, natural ou autoinfligida. Acredito que estaremos lá perto. Mais uma vez, muito desejo que alguém me aponte este post daqui a uns 50 anos, comigo ainda vivo, e me demonstre como estou a ser estúpido. A sério que sim. Mesmo que isso signifique que toda a minha ideologia era uma parvoíce.

Só que...

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