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Delito de Opinião

Trump 2.0, oligarquia, e um mundo à beira de um caos de mudança

João André, 22.01.25

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Imagem da The Economist.

Ainda a segunda presidência Trump vai no adro e já estou farto das histórias. É como ver um enorme acidente rodoviário em câmara lenta. Estou horrorizado mas não consigo deixar de olhar. E no final vai haver muita gente a sofrer. Por isso escrevo agora com o desejo de não abordar Trump durante muito tempo (senão en passant porque o tema não o pode evitar, como quando possa escrever sobre as alterações climáticas).

Escrevi acima "segunda presidência de Trump" mas há já quem fale em primeira presidência de Musk. É obviamente exagerado - Musk não quer gastar tempo em gerir o país, isso é chato e ele nem saberia o que fazer - mas aponta uma direcção para o país: a oligarquia. Isto foi óbvio com a presença dos tech bros na inauguração e na enorme presença de Musk. Contribuíram financeiramente mas mais ainda contribuirão com a sua colaboração futura. Bezos domou o Washington Post, a Meta já anunciou o fim das verificações de factualidade e outras empresas (tech ou não) também anunciaram que estariam dispostas a trabalhar com Trump. Assim mesmo, «dispostas a trabalhar com Trump», num tom que indicaria subserviência. Só que não o será, pelo menos não exactamente. As empresas estão interessadas, acima de tudo, nos lucros e para tal farão aquilo que precisam de fazer. Os lucros, especialmente para os seus donos e CEOs, vêm na forma de cotação bolsista e acções detidas. Quanto mais estas sobem, mais as empresas valem, mais dinheiro podem ter disponível, mais dinheiro podem pedir e a lucros mais baixos, e mais poder acumulam. Foi assim que Musk, com um investimento de 43 mil milhões no Twitter e uns 220 milhões na campanha, conseguiu já aumentar em alguns 170 mil milhões a sua fortuna após a vitória de Trump. Entretanto, Trump anunciou já que irá investir 500 mil milhões em Inteligência Artificial, tendo ao seu lado uma das pessoas mais ricas do mundo - Larry Ellison, o líder de um dos maiores fundos de investimento do mundo - Masayoshi Son, e o "guru" da IA e líder da OpenAI Empresa apoiada pela Microsoft) - Sam Altman (que entretanto é também já um bilionário). Se lá tivesse também Jensen Huang (presidente da Nvidia e outro centibilionário) faria bingo. Teria também o perfeito grupo de gestores que não precisam de dinheiro do estado. Mas vão recebê-lo, à ordem de 125 mil milhões por ano.

Estes são os primeiros exemplos. A promessa de enviar americanos a Marte, quando ao lado de Musk, deve ter aumentado em mais uns 50% a valorização da SpaceX. O drill, babz drill, deve deixar os mercados bolsistas de acções de empresas de petróleo mais descansados, mesmo que isso não tenha importância porque os EUA já são o maior produtor mundial de petróleo e gás (deste também o maior exportador) e não há muito espaço para aumentar esses valores. Os cortes de impostos irão provavelmente ser feitos permanentes e não serão os últimos. O ridículo departamento de eficiência governamental foi entregue aos magnatas para partir o estado aos bocadinhos e dividir a pequena rede social que existia. As estúpidas tarifas irão aumentar os preços de tudo, mas irão provavelmente também reduzir o volume de importações, o que provocará um aumento da produção interna. Quem pagará? O consumidor comum. Quem beneficiará? Os magnatas, como é habitual. E ainda veremos as mudanças de regulamentações para reduzir a necessidade de conformidade por parte das grandes empresas. Regulamentos ambientais? Fora. Água limpa? Para quê? Litigação contra as grandes empresas? Provavelmente será reduzida ao mínimo.

E nem entramos no encher o aparelo executivo de lealistas que farão tudo o que ele mandar e perseguirão quem ele quiser. Olhar para algumas escolhas é criar a pergunta: qual destes é o membro do governo mais incompetente de todos os tempos? Será Hegseth? Patel? Kennedy? Ao menos Bondi e McMahon têm experiência nas suas áreas e em gerir organizações maiores que uma banca de limonadas. Vale no entanto a pena falar naquilo que este gabinete trará: um declínio futuro do país. A educação está entregue a alguém que pouco fará por ela. A ciência está ausente, foi outsourced a Elon Musk (que também pouco percebe dela). O investimento no Green New Deal e que seria usado para actualizar a infraestrutura do país desaparecerá. Não só irá o dinheiro para os bilionários que dele não precisam (mas que o aceitarão e nem dirão muito obrigado) como não será investido em assegurar o futuro do país, assegurando que está preparado para a transição energética que é cada vez mais inevitável. Ao mesmo tempo, as emissões de CO2 irão provavelmente disparar (se isso não acontecer será apenas e só porque há empresas que não são míopes e percebem a importância de investir agora na transição energética) o que fará com que algumas das áreas de principal apoio para os republicanos sejam afectadas: Florida irá afundando, o sudeste do país sofrerá cada vez mais furacões, or tornados no centro do país aumentarão de frequência e intensidade, etc. Suponho que desde que a Califórnia continue a arder, isso não os incomode.

E finalmente chegamos aos custos humanos. Milhões irão sofrer. Pessoas, seres humanos, cujo único crime foi fazer o que os antepassados de milhões de americanos fizeram: fugir em busca de uma vida melhor. Também muitos outros que não poderão pagar os custos com a saúde. E depois todos os outros de quem os republicanos não gostarem e que perseguirão sem piedade.

E o aparelho judicial não ajudará. No Supremo Tribunal imagino que Thomas e Alito se retirem para dar lugar a juízes semelhantes mas mais jovens. Sottomayor talvez aguente a sua saúde mas daí talvez não. Pode ser que no final da sua segunda presidência Trump tenha 7 juízes. E há que depois encher os restantes lugares de juízes federais com mais uns quantos lealistas (como Aileen Cannon) que o ajudarão no que puderem. E provavelmente apioarão medidas para restringir o voto de (em) adversários políticos, para cumprimir a promessa a um grupo de cristãos na campanha que não precisariam de voltar a votar. Claro que tudo isto poderá levar a reacções de protesto, por isso ajuda ter alguém como Hegseth à frente do Pentágono e que não hesitará (entre garrafas de vodka) em despedir qualquer militar que não cumpra ordens, inclusivamente de disparar sobre protestantes.

Internacionalmente ele irá provavelmente tentar de facto acabar com a guerra na Ucrânia sem pressionar excessivamente Zelenski, mas como Putin não quer saber, não consigo imaginar um cenário em que Putin não tenha o essencial daquilo que quer. Verdade seja dita que isso não será particularmente por culpa de Putin: se Biden queria de facto ajudar a Ucrânia devia tê-lo feito a tempo e horas. Neste momento o país já só quer sobreviver. Só que o acordo final irá provavelmente reforçar Putin, que verá muitas sanções desaparecerem aos poucos e acabará numa posição de força. Do outro lado da Ásia, os sul-coreanos e japoneses verão provavelmente Trump dizer-lhes que terão que se desenrascar sozinhos, o que os levará a desenvolver capacidade nuclear. Taiwan poderá ser invadida antes do final da década, dependendo daquilo que Trump faça (isso é mais provável hoje que em qualquer momento nos últimos 30 anos). Netanyahu irá possivelmente arranjar mais uns conflitos para se manter no poder e justificar atacar mais uns vizinhos (como já está a fazer na Cisjordânia, agora que tem uma trégua com o Hamas) e manter a temperatura no Médio Oriente elevada. Só não sabemos se irá atacar o Irão ou o Irão irá decidir meter todos os ovos no cesto de uma ofensiva antes que fique mais fraco. Mas é um facto que, pelo menos neste aspecto, Trump na Casa Branca reduz a possibilidade de um conflito (embora aumente a possibilidade que seja nuclear).

E, claro, as ordens mundiais foram às urtigas. Neste mundo futuro, em que os EUA irão declinar, a China continuará a crescer porque conseguiu - pelo menos até ver - a quadratura do círculo: compensar o declínio e envelhecimento populacional (inevitáveis depois de decadas de políticas de restrição da natalidade) com o outsourcing (esta palavra outra vez) de muitos dos recursos e mão de obra a outras partes do mundo.

A Europa? Bom, antes de mais tem que se armar e aprender que precisa de um exército europeu. depois precisa de compreender que só a tecnologia a safará. E finalmente necessita de entender que o seu período de dominância foi apenas umcurto período na História Humana e consequênica de uma colonização que sugou os recursos às partes do mundo que os tinham. A Europa é uma região com poucos recursos naturais e se não souber utilizar os seus recursos humanos (e absorver alguns novos) não avançará. A única coisa que se pode dizer é que, pelo menos por agora, ainda sabe que o caminho para o futuro é verde, até pelas tecnologias que está a abrir. Mas terá que aceitar que no jogo da corda entre EUA e China, e ameaçado por potências nucleares essencialmente nazis como a Rússia, terá que se submeter a um papel de subordinado pelo menos por ums décadas.

Sou um pessimista, sei-o. Espero que este post ainda aqui esteja daqui a uns 20 anos para me mostrarem a parvoíce, para eu mostrar aos meus filhos que a idade não confere necessariamente sabedoria, antes confere maus fígados. Mas...

É uma imagem desoladora? Sim, é, mas é a imagem que Trump está a dar.

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