Trecho para um livro que nunca vou escrever
Enfiámo-nos no carro a uma hora fora das convenções dos meridianos longitudinais. Encontrámos uma falha no fuso horário que nos deixou uma infinitude de tempo para viajar sem que alguém pudesse dar pela nossa falta. Bastava seguir tantas horas para a frente quantas para trás, não havia que enganar.
Sorriste quando apareci com uma almofada. Expliquei-te que numa longa viagem de carro não é preciso mais nada. Basta uma almofada.
Ofereceste-te para guiar durante os primeiros quilómetros. Eu aceitei e enrosquei-me no banco do passageiro, em jeito de adormecer.
Foi assim que, de olhos fechados e emudecida pelo embalo da estrada, mantive contigo um diálogo silencioso onde tu conversaste pelos meus sonhos e eu te respondi pelos teus pensamentos.
Depois, já repousada e com a alma tranquilizada pela poesia da quietude, assegurei a rota do volante.
Cem, duzentos, trezentos quilómetros, duas horas, cem horas, mil horas.
Perguntei-te se era altura de voltar para trás. Disseste que não. Que aquela era uma viagem sem ponto de retorno. Que era para seguir em frente sem nunca ninguém dar por nada.
Depois pediste-me a almofada emprestada.