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Delito de Opinião

Trair nem sempre é mau

Pedro Correia, 18.04.17

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Há muito tempo que um dos romances capitais do século XX, O Zero e o Infinito, não é reeditado em Portugal. Quando isso ocorrer, temo que suceda com esta obra-prima de Arthur Koestler o que tem acontecido com tantos filmes e tantos livros nos anos mais recentes: ser brindado com um anódino e insosso título de tradução literal, como agora é moda dominante, roubando toda a beleza poética da tradução simbólica.

Com isto quero dizer que certos títulos portugueses de obras de autores estrangeiros têm uma identidade própria, constituindo uma espécie de segunda pele da qual ninguém devia desapossá-los, sob pena de se repetir o sucedido com o romance Wuthering Heights, de Emily Brontë, que na clássica tradução portuguesa ficou imortalizado com um belíssimo nome: O Monte dos Vendavais. Traduções muito posteriores, e já contemporâneas, baptizaram-no das mais diversas formas – d’ O Monte dos Ventos Uivantes a O Alto dos Vendavais. Uma diferença tão gritante que nem é preciso assinalar qual destas versões é a melhor.

 

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Segundo um velho aforismo, “traduzir é trair”. Mas não necessariamente. A tradução pode até superar o original. No caso dos filmes, se é manifesto o mau gosto da versão brasileira d’ O Padrinho, de Francis Ford Coppola (a que os nossos irmãos de idioma chamaram O Poderoso Chefão), já Citizen Kane, de Orson Welles, melhorou na transposição para a nossa língua: O Mundo a Seus Pés é infinitamente superior a Cidadão Kane, que seria a tradução literal, pela qual neste caso os brasileiros optaram. E se é ridículo o nome com que o Brasil brindou The Sound of Music (A Noviça Rebelde), podemos dizer que o tradutor português também neste caso melhorou o título original, chamando-lhe Música no Coração.

Certos títulos célebres de filmes de Hollywood chegaram-nos, curiosamente, por influência francesa: foi o caso de O Comboio Apitou Três Vezes, que no original se chamava High Noon. Fez-se bem, em Paris e cá, em evitar a tradução literal. Em E Tudo o Vento Levou (Gone With the Wind, no original), o E Tudo faz muita diferença – para melhor. São inúmeros os exemplos de títulos portugueses que se sobrepuseram aos originais no cinema – de O Crepúsculo dos Deuses (para Sunset Boulevard, de Billy Wilder) a Os Amigos de Alex (para The Big Chill, de Lawrence Kasdan), que até cunhou uma expressão entretanto generalizada como emblema geracional.
Quem disse que um bom tradutor não pode criar?
 

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É por isso que receio a próxima versão portuguesa d’ O Zero e o Infinito (Darkness at Noon, no original), um livro que me marcou tanto. Não gostaria que lhe sucedesse algo semelhante a The Catcher in the Rye, de J. D. Salinger, que João Palma-Ferreira magnificamente traduziu para Uma Agulha no Palheiro e agora, com esta nossa mania de mudar o nome a tudo, se intitula À Espera no Centeio, o que não atrai ninguém. Ou a clássica Cabra-Cega, de Roger Vailland, entretanto denominada Jogo Curioso (alguém se convence que será esta a melhor tradução do Drôle de Jeu original?). Ou o consagrado Três Homens num Bote, de Jerome K. Jerome, agora crismado de Três Homens num Barco (mudança imbecil, como se um bote não fosse um barco).
Ou ainda o fabuloso O Triunfo dos Porcos, de George Orwell, que na versão da Antigona (que até é uma editora de que gosto muito) se intitula A Quinta dos Animais. Eu sei que assim é mais fiel ao original. Mas quem elege a fidelidade como suprema virtude? Se assim fosse, o Alex nunca teria amigos...

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