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Delito de Opinião

Touradas: "Vitória ou Morte"?

jpt, 25.11.18

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Sobre isto de touradas bloguei em 2012 (um texto um pouco mais longo que recoloquei aqui). Resmungando que a) numa sociedade que trata fauna e flora desta forma omnívora e voraz, e que tem estas práticas de produção alimentar, o centramento das preocupações com o episódico sofrimento taurino mostra uma enorme inconsciência e mediocridade intelectual (e moral); b) a oposição à tauromaquia é, fundamentalmente, a raiva ideológica face à socioeconomia rural, em particular a de "lezíria"; e que c) estas preocupações ("civilizatórias" nas palavras da actual ministra da Civilização) mostram o primado uma política de cabotagem, encerrando a questão ecológica numa redoma de "petização" (no duplo sentido de "pet", animal doméstico, e "petiz", infantilização dos cidadãos) - consagrada na recente legislação sobre o acesso de animais domésticos a cafés e restaurantes. Esta política centra-se na domesticidade, pois as relações da sociedade com a sua natureza são olhadas e criticadas através das preocupações mais quotidianas das famílias elementares (e do crescente isolamento individual) em palco urbano e suburbano.  Ou seja, obedece à irreflexão típica do quotidiano do eleitorado, e é nesse sentido que é política de cabotagem (e também muito cabotina, e não só por tendencial homofonia).

Nunca fui a uma tourada, e o que vi na tv não me criou qualquer afeição. Por mais que os seus defensores clamem é óbvio que a festa sanguinolenta tem os dias contados, deixou de corresponder às sensibilidades e valores predominantes, tanto no país urbano como no contexto cultural mais amplo em que nos inserimos. Tal e qual outras actividades festivas e económicas que fazem actuar animais, como a luta de galos ou de cães. Ou algumas formas de caça (ainda se caça com armadilhas?). No mesmo âmbito de mudança que instituiu novas formas de controlo sobre as corridas de cães e de cavalos, evitando a sua exaustão, ou os circos. Ou foi transformando o tétrico paradigma dos horrorosos "jardins zoológicos" com animais enjaulados. Os adeptos da tauromaquia podem então continuar a clamar mas não há nada a fazer, o tempo desta tourada passou. E, mais uma década ou menos uns anos, ela será terminada. Ou então evolui.

Não sou nada especialista, e um conhecedor porventura ficará escandalizado com o que digo. Mas julgo que o toureio português tem duas especificidades preciosas: o equestre, uma dressage peculiar que possibilita e até histrioniza a encenação do conúbio homem-animal (a cultura) enfrentando a besta (a natureza); a pega, a encenação do colectivo humano, armado apenas de força e destreza, enfrentando a natureza.

Ora estas encenações são algo anacrónicas: por um lado, e ainda que a estética tauromáquica muito se cruze com as estéticas dos movimentos políticos homossexuais actuais, a pega apela a uma rusticidade máscula que afronta a presente homofilia, que àquela diz "tóxica". E esse é um grande inimigo ideológico, indito, subterrâneo das touradas. Talvez mesmo o mais importante neste curto prazo. Por outro lado, mais estrutural, a encenação ritual do conflito homem(/animal)-natureza perdeu estes referentes: a natureza está domada (escavacada até), fauna desaparecida ou domesticada, flora recondicionada, e até vírus e bactérias recuam face à indústria química. A natureza agressiva é hoje a climatérica, muito menos (ou até nada) simbolizável numa arena.

Como preservar a tourada? Seus valores, e em particular a criação equídea e taurina, e um precioso ambiente de diversidade ecológica? "Mudar ou morrer" é o que lhes resta. Mas a proposta socialista de introduzir protecções para touros é recebida com apupos pelos imobilistas aficionados ("Vitória ou morte!", urram, na antevéspera de ulularem "Viva a Morte"). E com gozo pelos adversários das touradas - pois a estes, de facto, não preocupam os touros mas sim o meio social, e seus valores, ligado às touradas, que abominam. 

Deixemo-nos de rodeios. Por mais que seja obrigação (intelectual, patriótica, até moral) pontapear tudo o que advém do partido do vice do miserável José Sócrates, esta proposta tem toda a pertinência. Permitirá, para desespero dos puristas, preservar mas também disseminar a tourada, potenciar o seu carácter simbólico, a festa. Tornará a tourada uma encenação? Não. Pois ela já é uma encenação. Transformará a cenografia, potenciará a representação. Será um pouco circense? Será. Mas, de facto, não o é já?

Olhe-se para o wrestling (esse sobre o qual Roland Barthes escreveu, iluminadamente, há mais de 60 anos). Veja-se como essa encenação, ridícula que seja aos olhos mais secos, se tornou num espectáculo global e milionário. Sem precisar de ser efectivamente um combate físico, mas sendo a ritualização (até exasperadamente) histriónica do combate. A tourada, "mudando sem morrer", pode ser isso, e assim um monumental filão de recursos. Com criatividade e inovação, com coreógrafos e dançarinos (perdão, cavaleiros e forcados). Entre os quais haverá "forcados pobres" (qual a personagem do magnífico Mickey Rourke) e "cavaleiros ricos". Fazendo assim continuar, e até bem mais rica, a lezíria. Os seus magníficos cavalos, os touros livres. E a gente. Essa, felizmente, nada suburbana.

Ou então não. Aquilo acaba e far-se-ão campos de golfe. E uns condomínios para reformados com "vistos doirados". 

15 comentários

  • "algumas explorações intensivas onde as regras do bem-estar animal ficam à porta."


    Quais? As regras de bem estar animal têm a força da lei.
    Lutas de cães são proibidas.


    E parece-me abstruso comparar touradas, com explorações que visam exclusivamente produzir alimento. A tourada vive do sangue do bicho, mais nada.
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    Sarin 26.11.2018

    Já me perguntaste isto, noutro postal recentemente, e já te respondi. Mas repito;

    Ter força de lei, tem - mas não é cumprido e muitos opositores das touradas assobiam para o ar. Como veterinário, sabes perfeitamente que há muito incumprimento, muita negligência e muito a melhorar.

    Defendo os animais por princípio e não por actividade, que é o oposto de muitos opositores das touradas. Que falam do mal que se faz ao touro e esquecem o cavalo; e esquecem os cavalos noutras actividades, desportivas e lúdicas, como esquecem animais selvagens ou animais em exploração intensiva. Vai lá ver o que passam apicultores com os senhores que não gostam de touradas e usam insecticidas no jardim nos pomares nos passeios que fazem "pela mãe natureza"; vê as fiscalizações que fazem a aviculturas e vacarias - suiniculturas sim, mas só às pequeninas que essas, mesmo cumprindo o bem-estar animal, fecham-se facilmente com o Ambiente porque as ETAR não dão resposta...
    Pedro, sou contra as touradas não pelas touradas mas pelo princípio. E vejo muitos a serem contra a tourada mas a desculpar e a minimizar o sofrimento dos animais noutros desportos e actividades. Para mim são argumentos incompletos, e considero-os uma questão cultural - de defesa do antropocentrismo e de hieraquização do sofrimento animal de acordo com modas e paixões.
  • Falo aqui sobre as touradas. Quanto à exploração intensiva temos um problema muito maior. Habituamo-nos a comer demais e barato. Aliás ninguém fala, mas um dos principais responsáveis pela emissão de gases com efeito estufa é a agropecuária.

    Mas ninguém é obrigado a mudar os hábitos de consumo com o fim/reforma das touradas.Com as explorações intensivas a coisa muda de figura. Julgo que a médio prazo tal discussão será necessária sobretudo por não haver recursos naturais que suportem o nosso consumo exagerado (a comida desperdiçada pelos europeus/ ano dava para acabar com a fome em África )

    Se seguirmos o teu raciocínio seria imoral falar sobre direitos dos animais quando existe em Portugal homens e mulheres com trabalho escravo. Acho que podemos discutir sobre uma coisa de cada vez....o caminho faz-se caminhando.

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    Sarin 26.11.2018

    Mas, Pedro, a questão é essa: tu falas das touradas, eu falo dos animais.

    Não me revejo num projecto que vise especificamente touradas, mas antes num quadro global de bem-estar animal. De acompanhamento e controlo. De desenvolvimento dos gatis municipais não apenas como centros de acolhimento mas também do controlo da população de ratos, por exemplo - como saberás melhor do que eu o touro sofre por questões lúdicas; e os cães e os gatos abandonados ou já nados e criados na rua? Tens legislação, mas não tens cultura, não tens infraestruturas nem tens acompanhamento...

    E irritam-me alguns dos argumentos usados contra as touradas porque deviam ser abrangentes mas o foco é, apenas, a tourada...
    Repara que no Conselho e no Parlamento da UE falam em touradas, mas ninguém toca nas corridas de galgos nem nas corridas de cavalos - agora com o Brexit nem deve valer a pena - mas percebe-se também por aqui a questão dos valores culturais vs valores de defesa dos animais.
    Então dos rodeos, é caso para dizer que nem os ouves tugir nem mugir...

    Estamos no topo da cadeia alimentar (em grupo) e não conhecemos outra espécie que tenha um tão grande domínio sobre as restantes. Mas isso não faz de nós o centro do Mundo, e as carástrofes naturais causadas pelo homem provam-no à saciedade.

    Por isso, não apenas não é imoral como é imperativo, até por uma questão de sobrevivência da espécie, que se fale em direitos dos animais e do Ambiente enquanto falamos de Direitos Humanos.

    O caminho faz-se caminhando, mas há caminhos e há atalhos; o que muitos opositores das touradas fazem é seguir por atalhos porque acabar com as touradas é o objectivo. Sou opositora das touradas e de tudo o que seja sofrimento infligido gratuita e evitavelmente a animais, mas nada tenho contra as touradas se em vez de touros e cavalos usarem bonecos. :)
  • Falamos disto e não da Lagosta suada:

    https://www.youtube.com/watch?v=1cZBEgkcREQ


    Quanto aos cães e gatos tens duas hipóteses. Eutanásia (morte sem dor), ou politicas de controlo (castração obrigatória em animais não destinados à criação) e adopção. O que preferes?
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    Sarin 27.11.2018

    Controlo da população. De gatos, e de ratos. Vê o caso de Valência.
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    jpt 28.11.2018

    que aconteceu em Valência?
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    Sarin 28.11.2018

    Decisão municipal de cuidar dos gatos vadios, instalando gatis em vários pontos da cidade.
    Os gatos são teritoriais, não se afastam do seu domínio.
    Vacinados, castrados os machos, cuidados e alimentados, continuam a vadiar pela cidade contribuindo naturalmente para a desratização da cidade, flagelo que esteve na base de tal decisão.

    O mutualismo a funcionar.
    Castração é método invasivo, mas é a única forma de conseguir o equilíbrio e a sustentabilidade do projecto e dos próprios animais. Evitar reprodução ou matar excedentários? Não tenho dúvida na resposta.

    [Aliás, temo que o futuro da espécie humana passe também por aí. Os chineses escandalizaram com a política do filho único, mas nem reduzindo drasticamente o consumo conseguiremos garantir a nossa sustentabilidade. Seremos 9 biliões em 2050.
    Desculpe a ousadia, e de novo a derivação do postal, mas se tiver ineresse falo desta questão da sustentabilidade em https://sarin-nemlixivianemlimonada.blogs.sapo.pt/o-trigo-e-o-pao-que-o-diabo-amassou-35285]
  • Em Portugal tens associações de defesa dos animais que já o fazem. Aliás hoje já não é ilegal alimentar gatos "vadios". No passado, sim.....

    As câmaras em Portugal estão com a corda ao pescoço. Cada vez mais atribuições e orçamento igual. Nem para o aumento da área dos canis/obras elas têm dinheiro....
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    Sarin 28.11.2018

    Conheço muito bem essa realidade. Os opositores das touradas também, mas a eles isso já não interessa. Não se vê sangue, como dizes.
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    jpt 28.11.2018

    Pois, essa - mesmo no âmbito estreito dos animais "domésticos" - é uma questão bem mais real mas muito sonante aos zoófilos agit-prop
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    Sarin 28.11.2018

    Exacto (suponho que falta o pouco), essa entre muitas outras que não são sequer sazonais mas diárias.
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    jpt 29.11.2018

    exactamente; quis dizer "muito pouco sonante aos zoófilos agit-prop"
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    Sarin 29.11.2018

    Por vezes não nos entendemos, mas não é por falta de uma palavrita ou outra - até porque esquecê-las será por dispormos de tantas, está visto :)
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