Todo um programa
Dei-me ao trabalho de contar: Donald Trump pronunciou ontem trinta e quatro vezes a palavra "eu" no discurso da tomada de posse, no salão nobre do Capitólio. É todo um programa, edificado na primeira pessoa do singular. Dir-se-ia o Rei-Sol na sede suprema da república norte-americana.
E no entanto o milionário nova-iorquino que odeia Washington parecia algo deslocado naquela cerimónia envolta em aura de solenidade, tão ao gosto da elite política dos Estados Unidos. O presidente cessante, Joe Biden, portou-se com irrepreensível dignidade - em perfeito contraste com o Trump de há quatro anos que, armado em miúdo birrento, recusou aceitar a derrota eleitoral e pôs-se a milhas, rompendo a salutar tradição da passagem de testemunho entre inquilinos da Casa Branca. Também os antigos presidentes Bill Clinton, George W. Bush e Barack Obama compareceram, tal como os antigos vice-presidentes Dan Quayle e Mike Pence.
O discurso de investidura continha frases curtas e bombásticas, propícias à difusão nas redes digitais de vários bilionários ali presentes.
Eis uma: «Na América, o impossível é aquilo que fazemos melhor.» E outra: «A Idade de Ouro da América começa agora.»
O tom genérico era de comício, como se a campanha eleitoral ainda estivesse em curso. Trump não tem filtros: idolatra-se a si próprio, carrega a oratória com hipérboles, injecta doses de inflamado nacionalismo para manter o auditório ligado à corrente. «O declínio da América terminou», bradou, bem ao seu estilo.
Ameaçou apoderar-se do Canal do Panamá, decretou que o Golfo do México passará a chamar-se "Golfo da América" e anunciou que a bandeira dos EUA flutuará em Marte. Enquanto ignorava por completo a NATO, mais antiga aliança geoestratégica da potência norte-americana. Sempre em tom neo-imperial, próprio de quem dá pouco crédito à força da razão, preferindo a razão da força.
Nem sequer faltou um toque messiânico. «Fui salvo por Deus para tornar a América novamente grande», salientou, pondo os apoiantes em delírio. Enquanto Clinton, Bush, Obama, Biden e a vice-presidente cessante, Kamala Harris, mantinham poses imperturbáveis.
Palavras dignas de um tele-evangelista ungido pela luz divina. Emoções ao rubro. Divisão primária da sociedade e do mundo entre bons (sempre excelentes) e maus (fatalmente péssimos). Indigestão retórica que não tardará a enfastiar muitos que há dois meses votaram nele.
Ninguém aguenta tanto comício do homem que nunca se cansa de proferir a palavra "eu".