Tão subtil como um choque frontal entre dois A340
Mais do que prestarem um serviço público, as companhias áreas de bandeira foram instrumentos da política externa dos Estados. A Turkish Airlines, certamente por excesso de zelo, levou a coisa um pouco mais longe e assumiu o papel de veículo de propaganda do regime liderado pelo presidente Recep Tayyip Erdoğan. E fê-lo com a subtileza e com a elegância de um choque frontal entre dois Airbus A340.
Mão amiga – uma expressão lamentavelmente caída em desuso – mostrou-me há umas semanas a revista de bordo da companhia aérea turca. Esta edição apenas existe em turco e, pelo que pude perceber, só está disponível em voos regionais. Junto a este post algumas fotos que fiz a essa publicação, pedindo desculpa pela fraca qualidade das imagens.
Em 1984, Orwell escreveu que quem controla o passado, controla o futuro. Cientes disto e da consequente necessidade de consolidar uma versão oficial da História, a Turkish Airlines diz ao que vem logo na capa e na contracapa. Imagens épicas e com imenso potencial iconográfico dos “protestos pró-democracia”, isto é, das manifestações de apoio ao presidente no momento em que decorria um estranho golpe de Estado, marcam o tom da revista (ver imagem abaixo).
Um ataque à pátria requer inimigos. Se houver conspiração, tanto melhor. E se essa conspiração tiver ramificações internacionais então é um mimo para a máquina de propaganda. A revista da Turkish resume tudo isto com mestria (ver imagem seguinte). De um lado, fotos das detenções dos golpistas, encabeçadas por uma cronologia dos “factos” – a narrativa não pode ter falhas. Do outro lado, uma infografia onde se explicam as ligações norte-americanas, com o respectivo apoio financeiro e institucional, de Fethullah Gülen, o alegado instigador do golpe falhado.
Mas há mais. Fotos dos cabecilhas locais do golpe são acompanhadas por uma infografia onde constam as intuições às quais pertenciam e quantos homens de cada uma delas estiveram envolvidos na tentativa de derrube de Erdoğan. Seguem-se obviamente imagens de um presidente corajoso, determinado e sereno a dar uma entrevista à CNN (se for a um órgão de comunicação social estrangeiro sempre dá um ar menos amanhado). Há ainda fotografias de manifestantes pró-Erdoğan à porta de várias embaixadas turcas, nas quais o fotógrafo, socorrendo-se das técnicas de Leni Riefenstahl, faz com que 8 tipos pareçam 80 – mas destas, infelizmente, não colhi imagens.
Depois de anos submetida a jacobinismo militar, a Turquia atura agora o autoritarismo despudorado do presidente Recep Tayyip Erdoğan. E já não se disfarça. Ao ver esta revista percebe-se bem o interesse de alguns governos em manter as companhias aéreas sob controlo estatal.