Herói improvável
Qualquer que venha a ser o desfecho do conflito entre a Ucrânia e a Rússia, há alguns factos que começam a tornar-se de tal forma evidentes que é difícil passar ao lado.
Alguns dirão respeito à coesão europeia e ao peso das sanções (até o Banco Asiático de Investimento em Infra-estruturas, apoiado pela China e com sede em Pequim, foi obrigado a suspender todas as actividades no que à Rússia e Bielorrússia diz respeito), aos meios mobilizados para a guerra e a sua desproporção entre os beligerantes; outros ao grau de destruição e ao sofrimento infligido a populações civis pelo ocupante russo – é de todo delirante afirmar-se que as forças ucranianas se escondem em zonas residenciais para justificar a destruição de cidades e bairros inteiros, de simples casebres à beira das estradas e mesmo de um museu albergando obras de arte de Maria Primachenko – ou à forma como aliados tradicionais de Moscovo estão agora a procurar demarcar-se de Putin atento o rumo que as coisas vão tomando.
Deste último facto constitui exemplo a votação da Assembleia Geral da ONU que aprovou a resolução a condenar a invasão – não há outro nome por muito que isso custe ao PCP e seus aliados russófilos –, de onde ressalta que apenas a Bielorrússia, a Coreia do Norte, a Eritreia e a Síria, para além da própria Federação Russa, se opuseram. Outros países que sempre andaram na órbita e à boleia da Rússia, e que em muito dela têm dependido, como Angola, Cuba, China, Irão, Iraque, Cazaquistão, Quirguistão, Laos, Nicarágua, Tajiquistão, Sudão e Zimbabué abstiveram-se. Houve quem estrategicamente terá saído da sala para não ter de votar ou se tenha esquecido de carregar no botão, como foi o caso de Azerbaijão, Etiópia e Venezuela. E até países como Camboja, Líbia, Sérvia ou Emirados Árabes Unidos (que se havia abstido na votação do Conselho de Segurança) votaram contra a invasão de Putin.
Algumas das coisas que mais me têm impressionado são a capacidade de mobilização, liderança e energia transmitida pelo Presidente da Ucrânia. O exemplo que dali tem vindo desde a primeira hora – The fight is here; I need ammunition, not a ride – não pode seguramente passar indiferente e tem constituído um tónico para todos os que no terreno tentam conter e adiar o esmagamento visado pelo pequeno nazi do Kremlin, cujos objectivos se vão tornando cada vez mais claros, bastando para tal ler a assustadora retórica dos seus apoiantes que com a invasão da Ucrânia surgem a falar na "grande reconquista eslava".
Ontem, quando assisti pela televisão a uma conferência de imprensa dada em directo por Zelensky, com a presença da comunicação social estrangeira, no seu abrigo na região de Kiev, sete dias depois de iniciada a invasão e ocupação russa, que seria rápida e uma espécie de passeio depois de largos meses de preparação, não pude deixar de ficar impressionado e comentar para comigo mesmo o que pensaria Putin naquele momento. Que diabo, Zelensky não estava em África, refugiado no meio da Jamba, e o exército russo não é a rapaziada das FAPLA ou o exército angolano. E ele ali estava, no seu posto de combate, a falar com a imprensa internacional.
Para Putin e para os generais russos a invasão da Ucrânia já está a ser uma humilhação. A conferência de imprensa de Zelensky confirma-o.
E para quem, pejorativamente, está sempre a recordar que se trata de um "comediante", só me vem à cabeça o saudoso Raul Solnado. O que este, com a sua coragem, inteligência e bom senso, também não teria feito por nós se um dia tivesse chegado a Presidente. Quem sabe se não estaríamos muito melhor?