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Delito de Opinião

Herói improvável

Sérgio de Almeida Correia, 04.03.22

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Qualquer que venha a ser o desfecho do conflito entre a Ucrânia e a Rússia, há alguns factos que começam a tornar-se de tal forma evidentes que é difícil passar ao lado.

Alguns dirão respeito à coesão europeia e ao peso das sanções (até o Banco Asiático de Investimento em Infra-estruturas, apoiado pela China e com sede em Pequim, foi obrigado a suspender todas as actividades no que à Rússia e Bielorrússia diz respeito), aos meios mobilizados para a guerra e a sua desproporção entre os beligerantes; outros ao grau de destruição e ao sofrimento infligido a populações civis pelo ocupante russo – é de todo delirante afirmar-se que as forças ucranianas se escondem em zonas residenciais para justificar a destruição de cidades e bairros inteiros, de simples casebres à beira das estradas e mesmo de um museu albergando obras de arte de Maria Primachenko – ou à forma como aliados tradicionais de Moscovo estão agora a procurar demarcar-se de Putin atento o rumo que as coisas vão tomando.

Deste último facto constitui exemplo a votação da Assembleia Geral da ONU que aprovou a resolução a condenar a invasão – não há outro nome por muito que isso custe ao PCP e seus aliados russófilos –, de onde ressalta que apenas a Bielorrússia, a Coreia do Norte, a Eritreia e a Síria, para além da própria Federação Russa, se opuseram. Outros países que sempre andaram na órbita e à boleia da Rússia, e que em muito dela têm dependido, como Angola, Cuba, China, Irão, Iraque, Cazaquistão, Quirguistão, Laos, Nicarágua, Tajiquistão, Sudão e Zimbabué abstiveram-se. Houve quem estrategicamente terá saído da sala para não ter de votar ou se tenha esquecido de carregar no botão, como foi o caso de Azerbaijão, Etiópia e Venezuela. E até países como Camboja, Líbia, Sérvia ou Emirados Árabes Unidos (que se havia abstido na votação do Conselho de Segurança) votaram contra a invasão de Putin.

Algumas das coisas que mais me têm impressionado são a capacidade de mobilização, liderança e energia transmitida pelo Presidente da Ucrânia. O exemplo que dali tem vindo desde a primeira hora – The fight is here; I need ammunition, not a ride – não pode seguramente passar indiferente e tem constituído um tónico para todos os que no terreno tentam conter e adiar o esmagamento visado pelo pequeno nazi do Kremlin, cujos objectivos se vão tornando cada vez mais claros, bastando para tal ler a assustadora retórica dos seus apoiantes que com a invasão da Ucrânia surgem a falar na "grande reconquista eslava".

Ontem, quando assisti pela televisão a uma conferência de imprensa dada em directo por Zelensky, com a presença da comunicação social estrangeira, no seu abrigo na região de Kiev, sete dias depois de iniciada a invasão e ocupação russa, que seria rápida e uma espécie de passeio depois de largos meses de preparação, não pude deixar de ficar impressionado e comentar para comigo mesmo o que pensaria Putin naquele momento. Que diabo, Zelensky não estava em África, refugiado no meio da Jamba, e o exército russo não é a rapaziada das FAPLA ou o exército angolano. E ele ali estava, no seu posto de combate, a falar com a imprensa internacional.

Para Putin e para os generais russos a invasão da Ucrânia já está a ser uma humilhação. A conferência de imprensa de Zelensky confirma-o.

E para quem, pejorativamente, está sempre a recordar que se trata de um "comediante", só me vem à cabeça o saudoso Raul Solnado. O que este, com a sua coragem, inteligência e bom senso, também não teria feito por nós se um dia tivesse chegado a Presidente. Quem sabe se não estaríamos muito melhor?

"Estamos aqui".

Luís Menezes Leitão, 26.02.22

Se há algo que distingue os verdadeiros líderes é sua resistência nas situações difíceis.  A atitude mais fácil de um governante perante um ataque ao seu país é fugir, quando a sua vida é ameaçada. Mas os verdadeiros governantes são aqueles que resistem e não se importam de colocar a sua vida em risco em defesa da instituição que representam.

A história oferece muitos exemplos dessa atitude, começando pelo Imperador bizantino Justiniano, que viu a sua vida ameaçada por uma revolta, tendo equacionado fugir. Foi dissuadido de o fazer pela sua mulher, a Imperatriz Teodora, que lhe disse: "A púrpura (o manto dos imperadores) é uma linda mortalha". O Imperador ficou e a revolta foi dominada.

No séc. XX há vários exemplos da mesma atitude. Aquando do bombardeamento da Inglaterra pela Alemanha nazi foi equacionado transferir a família real para o Canadá, mas a Rainha respondeu simplesmente: "As minhas filhas não vão sem mim. Eu não vou sem o Rei. E o Rei não abandona o seu país".

Aquando do cerco nazi a Moscovo, a denominada Operação Tufão, houve algo semelhante. Estaline mandou evacuar o Governo e até transferiu o corpo de Lenine para fora da cidade. Mas ele próprio manteve-se lá. E foi essa atitude que mobilizou o exército em defesa de Moscovo. As duas palavras "Estaline ficou" ecoaram e mobilizaram todos os soldados russos na defesa da sua capital obrigando o exército alemão a recuar.

Hoje é Zelensky que, perante uma agressão russa à Ucrânia, recusa ofertas de fuga e mantém-se ao lado do seu povo na defesa do seu país dizendo-lhe simplesmente: "Estamos aqui". Não se sabe qual será o seu destino, mas não há dúvida que passou a ser o símbolo da Ucrânia resistente.