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Tive a imensa alegria de ver ao vivo várias estrelas do cinema, hoje quase lendárias, como Sophia Loren, Jerry Lewis e Peter Ustinov. Ontem à noite senti o mesmo, como espectador no Campo Pequeno, ao observar no palco um dos meus heróis do cinema: o pequeno-grande Woody Allen, na sua versão de músico. Com quase 88 anos, mostrou-se em excelente forma no seu clarinete e em óptima companhia: a New Orleans Jazz Band. Há cerca de 40 anos que tocam juntos. É evidente a atmosfera de cumplicidade e camaradagem entre eles. Contagiando a plateia, que não lhe regateou aplausos vibrantes ao longo de todo o concerto.
Decorrida quase hora e meia, Woody anunciou que iriam retirar-se por se sentirem «cansados». Era uma piada. Tocaram para nós mais meia hora, fazendo-nos recuar um século, à era das jazz band com fusão de estilos e ritmos: jazz, soul, blues, ragtime, fox, quickstep... Sempre em crescendo, em atmosfera festiva. Verdadeiro património musical norte-americano, património musical da humanidade. Um hino à vida.
Enquanto os escutava, ia pensando no primeiro filme que vi de (e com) Woody Allen. Foi em 1975: O Inimigo Público, comédia já com os traços gerais a que nos foi habituando na parte inicial da sua extensa obra cinematográfica. Pensei também numa viagem que fiz a Nova Iorque, em 1996: fui de propósito ao Michael's Pub, onde ele costumava actuar com o seu clarinete uma vez por semana. Mas daquela vez não estava lá.
Valeu a pena esperar. Tal como vale a pena esperar pelo novo filme dele, que já teve antestreia no Festival de Veneza e será exibido em Portugal a partir do próximo mês: Golpe de Sorte. O 50.º filme do mestre Woody - e o primeiro falado em francês. Por ele estar impedido de trabalhar no seu país natal, na sua cidade natal que exibiu com tanto orgulho e tanto carinho ao mundo. O último que lá rodou, em 2017, foi Um Dia de Chuva em Nova Iorque, que esteve cerca de dois anos sem exibidor norte-americano, acabando por estrear-se na Europa.
Porquê? Porque o autor de Annie Hall continua perseguido por "crimes" supostamente cometidos há 30 anos e desenterrados pelo fanatismo mais rasteiro do movimento #MeToo - nova caça às bruxas, autêntico maccartismo sexual que arruína vidas e carreiras (aconteceu o mesmo com Kevin Spacey). "Crimes" que Allen sempre negou categoricamente.
Foi tudo investigado com minúcia por peritos policiais, procuradores, psicólogos e jornalistas: o cineasta nem chegou a ser incriminado - muito menos acusado, muito menos condenado.
«Todas as provas me apoiam, todas as investigações me ilibaram», declarou. É uma evidência.
Mesmo assim nunca faltam enxames de gente histérica a recebê-lo com urros desvairados, vá ele para onde for, condenando-o à morte civil. Aconteceu no início do mês, em Veneza. Voltou a acontecer ontem, no exterior do Campo Pequeno: alguns imbecis - certamente com alma imaculada mas nula razão jurídica e factual - exibiram uma tarja a chamar-lhe «pedófilo». A presunção de inocência, para esta escumalha, não existe. E o Estado de Direito também não.
Felizmente quase ninguém lhes ligou. Lá dentro, onde ele actuava, escutou o que merece: ovações vibrantes, calorosas, agradecidas.
Trocou-me as voltas em 1996, mas não agora. Tive o privilégio e a honra de também lhe prestar tributo.
Os sintomas são iniludíveis: rumores transformados em factos, diz-que-disse alastrando como vírus ou bactéria, a lenda impressa em vez do facto. Traições, facadas nas costas, hipocrisia a rodos - um estendal de miséria humana. Sempre os melhores fins a justificar os piores meios.
Punir antes de condenar, condenar antes de julgar, julgar antes de acusar, ouvir apenas uma das partes: a negação do que deve ser a justiça. É quanto basta para erguer novos pelourinhos em nome de excelentes causas pervertidas até aos limites da abjecção.
Quem aplaude a caça às bruxas contra Woody Allen, por exemplo, é marioneta pronta a servir de pasto a qualquer totalitarismo.
Hoje, em grande parte do mundo ocidental, há menos liberdade e menos democracia do que existia entre as décadas de 70 e 90. Estamos cercados de novos tabus e proibições de todo o género em nome de dogmas identitários. Como o recente caso da interdição total de cartoons no New York Times - que costumava ser um dos faróis mundiais da liberdade de imprensa - bem demonstra.
Todos de bico calado, para evitar anátemas dos diáconos da correcção política que policiam palavras, gestos e comportamentos. Chamem-lhe o que quiserem para disfarçar, mas isto não é mais do que a ressurreição dos velhos censores. Com a agravante de estes agora nem terem a frontalidade de se assumirem como tal.
Fotograma (censurado) de Noites Escaldantes: toda a nudez é hoje castigada
No momento em que escrevo estas linhas, Woody Allen filma em San Sebastián, no País Basco espanhol, após um ano de inactividade total: 2018 foi uma folha em branco no seu extenso percurso artístico.
Regressa timidamente ao exercício da profissão que o apaixona, muito longe do seu país natal. Mesmo assim, entre críticas duríssimas, vindas da chamada vox populi, à «indecência» do seu comportamento, não faltando quem lhe chame «pervertido» ao vê-lo passar e quem grite contra a «publicidade negativa» que isto trará à cidade, afugentando turistas.
Um quarto de século depois, continua acusado não na justiça verdadeira, mas nos pelourinhos de rua. Motivo: um alegado crime de natureza sexual que jurou sempre não ter cometido e baseado em supostos factos jamais comprovados não apenas na investigação judicial mas também na exaustiva e minuciosa investigação jornalística que a acompanhou.
À falta de verdade, bastou o boato: um dos mais prestigiados cineastas de todos os tempos foi condenado ainda em vida à morte civil, apedrejado nos mais diversos recantos do planeta, impedido de exercer direitos básicos - começando pelo direito ao trabalho. Mesmo assim, com admirável tenacidade, o criador de Annie Hall, Manhattan e Hannah e as Suas Irmãs tenta agora regressar à tona de água, aos 83 anos, combatendo um novo maccartismo - desta vez já não de explícita natureza política, mas sexual.
Allen deixou de poder estrear um filme todos os anos: o último que rodou, A Rainy Day in New York, foi adquirido e confiscado pela Amazon, que o manteve em armazém, tornando-o invisível: é um crime de lesa-arte, mas muitos sectores aplaudem o crime, como se fosse um acto heróico. Concluído em 2017, nunca entrou no circuito comercial. O realizador teve de lutar em tribunal para adquirir em nome próprio o direito de exibição em território norte-americano, mas até ao momento não conseguiu encontrar sala de projecção: todos os exibidores receiam sofrer irreversíveis danos reputacionais. Por darem a mão a alguém que, como Woody Allen, ensinou milhões de pessoas a ver, a ouvir (muitos espectadores escutaram pela primeira vez Louis Armstrong e Ella Fitzgerald nos seus filmes) e a pensar.
Actores que interpretaram A Rainy Day in New York - incluindo o protagonista, Timothée Chalamet - apressaram-se a anunciar, alto e bom som, que entregariam o salário a organizações feministas. Como se Allen tivesse peste, um coro orquestrado de actrizes e actores ergueu-se em orgástica condenação daquela alma demoníaca que havia desencaminhado uma enteada no remanso do lar - tomando o rumor como facto, negando o contraditório ao cineasta e apontando-lhe a espada justiceira. De pouco ou nada valeu lembrar que ao longo de meio século de actividade nunca o realizador foi alvo de qualquer queixa por conduta imprópria da parte de qualquer actriz, principal ou secundária.
Não tardou um olhar "revisionista" da obra integral do cineasta, passada a pente fino pelos novos censores morais que nela descobriram inúmeros indícios de pedofilia, agravados pelo impenitente machismo que lhe marca o conteúdo e a forma, antes tão incensadas pela "vanguarda" intelectual novaiorquina.
Woody Allen em San Sebastián: insultos e solidão 50 filmes depois
Um cineasta que não consegue estrear os filmes. E também um escritor que não consegue editar os livros: até ao momento, nenhuma chancela editorial mostrou interesse em publicar-lhe a autobiografia entretanto concluída: a estridente pressão dos movimentos neopuritanos grita mais alto, condicionando não apenas o acto criador mas toda a expressão pública de simpatia por quem ouse remar contra os novos dogmas.
Imagino um Vladimir Nabokov - que lançou a sua imortal Lolita em 1955, na Europa, após cinco temerosas editoras norte-americanas lhe terem devolvido o manuscrito e só viu o livro impresso nos EUA três anos mais tarde - nos nossos dias: seria alvo de um implacável linchamento moral, sem apelo nem agravo, condenado a expiação eterna.
Imagino um Nelson Rodrigues na actualidade: banido da escrita jornalística, impedido de divulgar os seus folhetins, proibido de encenar as suas peças teatrais em nome do histriónico combate ao «heteropatriarcado», à perpetuação dos «estereótipos de género» e à «coisificação» da mulher. Imagino actrizes que interpretaram filmes inspirados na dramaturgia do autor de Toda Nudez Será Castigada - como Darlene Glória, Vera Fischer, Sonia Braga, Lídia Brondi e Christiane Torloni - a repudiarem aqueles temas e aqueles textos com gestos de indizível horror.
Nesta atmosfera de convento proibicionista, povoado de façanhudas madres superioras, as cenas de sexo são abreviadas ou mesmo suprimidas. Filmes que geraram furor nos anos 80, como Atracção Fatal, Noites Escaldantes e O Carteiro Toca Sempre Duas Vezes, seriam hoje rejeitados como infâmia. A nudez tornou-se residual - e quase interdita aos corpos femininos, evitando assim despertar a concupiscência de machos trogloditas, passe a redundância. Tornou-se moda corrente "pixelizar" seios nus para antecipar as tesouras censórias em patrulha permanente às redes sociais.
A "indústria do entretenimento" norte-americana passou a incorporar novas brigadas fiscalizadoras, inspiradas no defunto Código Hays e agora designadas «coordenadoras da intimidade», zelando para que nenhuma actriz sinta o mais leve incómodo sob as ordens de um realizador no cinema ou na televisão. Um Fellini ou um Bergman dos nossos dias veriam as respectivas carreiras abortadas à nascença. Já para não falar num Hitchcock.
Enquanto escrevo estas linhas, um cineasta de 83 anos - outrora prestigiado - filma no País Basco, longe da cidade natal que ajudou a projectar como ícone planetário. Demorou quase dois anos reunir financiamento mínimo para retomar a arte que sempre o apaixonou. A Rainy Day in New York - o seu 50.º filme - continua aferrolhado pela Amazon: a milionária multinacional considera que o lançamento da película poderia causar «danos de imagem» à sua marca.
São tempos duros: os novos empestados, como ele, ardem na fogueira sem lhes ser reconhecido o exercício do contraditório. Ou, se o fazem, ninguém os escuta. Porque estão condenados à partida. E não há recurso da sentença.
O mais penoso e lamentável é que tudo isto se passa na liberalíssima América, não num obscuro Estado totalitário.
Leitura complementar:
Este filme acaba sempre mal (19 de Janeiro de 2018)
O apedrejamento de Woody Allen (20 de Janeiro de 2018)
Woody Allen com Diane Keaton em Annie Hall (1977)
O assassínio de carácter continua. Woody Allen está a ser apedrejado na praça pública por actrizes e actores que trabalharam com ele ao longo de décadas devido a um alegado facto que terá ocorrido há um quarto de século e que à época foi exaustivamente investigado não só por jornalistas mas também por especialistas clínicos e pelas autoridades policiais, sem nunca ter sido deduzida qualquer acusação ao cineasta por manifesta falta de provas.
Neste afã contemporâneo de comparar tudo quanto mexe ao famigerado produtor Harvey Weinstein, não falta já quem celebre que A Rainy Day In New York, ainda sem data de estreia confirmada, seja "o último filme de Woody Allen", exigindo que a receita integral da bilheteira - se alguma vez existir - seja doada a organizações de caridade anti-assédio.
"A carreira dele terminou!": esta frase, que se vai propagando nos meandros do show business norte-americano, soa como um insólito e doentio grito de guerra tribal contra um cineasta de 82 anos que nunca teve poder algum nos estúdios e fez toda a carreira longe de Hollywood.
É uma guerra sem prisioneiros nem Convenção de Genebra. Elaboram-se listas de actrizes e actores que ainda não abriram a boca para vergastar o realizador de Annie Hall: Diane Keaton, Cate Blanchett, Emma Stone, Jude Law, Justin Timberlake, Scarlett Johansson... E não falta até quem, de cenho vigilante, contabilize o número de anos ou meses que certas almas agora mais vociferantes demoraram a tomar posição sobre o tema. Não basta falar: é preciso ter falado desde o primeiro dia.
Mesmo quem admite desconhecer a vida privada do homem que é figura pública há mais de meio século dispara enormidades deste calibre: "Não sei muito sobre a vida pessoal dele. Sabia que se casou com uma filha, algo que, honestamente, achei estranho." Frase tonta da actriz Marion Cotillard em recente entrevista ao Guardian. Forçando o jornal a corrigi-la: Allen é casado desde 1997 com Soon-Yi Previn, filha adoptiva de Mia Farrow, mulher com quem viveu em tempos já remotos.
Infelizmente, não é caso único. Assistimos por estes dias à condenação irreversível de gente que nunca foi levada a julgamento. Quando realizadores e actores deixam de poder trabalhar devido aos clamores da vox populi, amplificados pelos poderes fácticos que dominam a indústria cinematográfica e grande parte dos circuitos mediáticos, isto constitui já uma pena efectiva, tendencialmente perpétua.
Não sei o que virá daqui. Mas seguramente não será nada de bom. Regressamos à eterna questão dos fins e dos meios. Quando se atropelam meios para atingir fins, ainda que louváveis, caímos sempre no domínio da prepotência e do arbítrio. Males velhos como o mundo, por mais moderna e "progressista" que seja a causa invocada.
Woody Allen, de 82 anos, durante a rodagem de A Rainy Day in New York, ainda por estrear
«O maior dos tormentos humanos é ser julgado sem lei.»
Camus
Nos dias que correm há novas "bruxas de Salem" lançadas às fogueiras mediáticas. A certos actores, como James Franco e Aziz Ansari, de nada valeu surgirem na recente cerimónia de distribuição dos Globos de Ouro vestidos de negro e emblema anti-assédio na lapela: também eles já estão a ser queimados.
O primeiro passou a engrossar a lista dos molestadores, com ou sem aspas, mal recebeu o Globo de Ouro para melhor actor em cinema. Já nem compareceu na noite da atribuição dos prémios da Crítica de Los Angeles, apesar de ter sido novamente designado melhor intérprete masculino pelo seu desempenho em Um Desastre de Artista.
Ansari, recém-galardoado como melhor actor televisivo pelo seu desempenho na série Master of None, não tardou também a ser alvo de acusações por parte de alguém que a acoberto do anonimato o apontou a dedo perante o mundo inteiro, alegando que com ele teve a "pior experiência alguma vez ocorrida com um homem".
Como tantos outros, passou de bestial a besta num abrir e fechar de olhos. Mas desta vez a sensação de injustiça foi tão manifesta que o caso está a dividir até algum feminismo mais radical.
Como não há coincidências, uma das enteadas de Woody Allen surgiu entretanto em directo na televisão revelando "pormenores chocantes" do comportamento do cineasta, que se apressou a desmentir as acusações sobre alegados factos supostamente ocorridos há um quarto de século e então investigados não apenas pela imprensa mas pelas próprias autoridades, que ilibaram o realizador de qualquer suspeita.
De nada valeu o firme desmentido: a acusação soou muito mais alto. E logo um conjunto de actrizes e actores se apressou a confessar em público um enorme pecado, seguido do acto de contrição: trabalharam com o realizador mas juram não entrar em novos filmes dele per saecula saeculorum.
Um desfile que tende a aumentar. Por enquanto integra Mira Sorvino, Ellen Page, Greta Gerwig, Colin Firth, Rebecca Hall, Thimotée Chalamet, Griffin Newman. A primeira, que deve o estrelato (e um Óscar) a Allen, fez publicar uma carta aberta em que se confessa "horrivelmente arrependida" de ter sido dirigida por ele em Poderosa Afrodite. Os três últimos anunciaram que entregarão a movimentos anti-assédio os salários recebidos pela participação no mais recente filme de Allen, A Rainy Day in New York, ainda por estrear.
Apenas Alec Baldwin se atreveu a sair em defesa do cineasta galardoado em 1978 com o Óscar de melhor realizador pelo seu filme Annie Hall - um dos mais subtis e ternos retratos de mulher que o cinema nos proporcionou. Louvo a coragem do actor: pelo rumo que as coisas levam, é um candidato ao desemprego em Hollywood, onde as opiniões politicamente incorrectas são alvo de duras punições.
O que mais me choca neste incessante caudal de tochas incendiárias não é o facto de todos os dias provocar novas vítimas, numa espécie de "maccartismo sexual", como alguém já lhe chamou com muito acerto. O mais chocante é verificar que a presunção da inocência que reivindicamos para as restantes actividade ilícitas das sociedades contemporâneas estar ausente de todas as imputações de assédio sexual. Como bem alertou a insuspeita Margaret Atwood, o que lhe valeu um indignado coro de críticas.
Os novos empestados ardem na fogueira sem lhes ser reconhecido o exercício do contraditório. Ou, se o fazem, ninguém os escuta. Porque estão condenados à partida. E não há recurso da sentença.
Já vimos este filme. Noutras épocas e sob outras alegações. Acaba sempre mal, como sabemos.
Tempos houve em que bastava aparecer o nome de Woody Allen, para eu não descansar enquanto não visse a sua última obra. E, mesmo quando ela era inferior ao que dele esperava, nunca dava o meu tempo por perdido, porque havia sempre qualquer coisa naquele humor acre, que se apoderava de mim e me dava a noção de que não fora em vão a hora que lhe dedicara.
Assim, mal soube que estreara uma nova película, decidi que era mesmo neste tempo tão triste para mim, por evocar a morte da minha mãe, que eu iria vê-lo. Precisava, mesmo, daquela graça subtil, daquele amor ácido pela América que o não compreendia e que ele, afinal, tanto amava.
Todos envelhecemos. Allen não é excepção e as suas ultimas obras já evidenciavam um desgaste nos temas, sempre abordados, das dificuldades do amor.
Mas umas pessoas envelhecem melhor que outras. Ou fazem-no de uma forma menos triste, acreditando que o futuro, embora mais curto, ainda pode existir. Aliás, só mesmo uma tal crença é que pode levá-lo, com quase oitenta anos, a fazer novos filmes.
Esta Roda Gigante cuja realização e argumento pertencem a Woody, decorre em Nova Iorque, na década de 1950. Num parque de diversões em Coney Island, Ginny é uma ex-actriz que vai fazer quarenta anos, trabalha como empregada de mesa, é casada com o operador do carrossel e começa a sentir a vida passar-lhe ao lado.
Um dia, conhece Mickey, um jovem nadador-salvador que sonha tornar-se escritor, por quem se apaixona perdidamente, mas que terá de disputar com a enteada, quando esta regressa inesperadamente a casa fugida do marido. Ginny entra num turbilhão de ciúmes e acabará a exceder-se quando percebe a atenção que o jovem amante dedica à filha do marido.
Entre as duas nasce uma rivalidade que acaba por colocá-las numa situação particularmente delicada. Não há aqui nada de novo. O realizador sempre se ocupou das relações conturbadas que o amor pode corporizar. Mas neste filme o peso da amargura é excessivo porque apenas revela o "lado sem saída" daquilo a que se apelida de amor. E Kate Winslet dá, de facto, de modo notável, a imagem desse sentimento avassalador.
É uma película com um travo demasiado amargo para o meu gosto, que tenho uma idade muito próxima da do realizador.
Há sempre uma saída. O problema reside no que acontece, quando a não procuramos, e preferimos submergir...
Foi amor à primeira vista. Manhattan, a que assisti ainda adolescente, levou-me logo ao tapete. Nunca ninguém me tinha feito rir assim da natureza humana. Era como se a cada gargalhada ele me insuflasse subtis doses de ternura. Fiquei viciada em Woody Allen. Adorei todos os seus filmes, mesmo aqueles de que não gostei assim tanto. Brincava com essa minha cegueira de convertida. E chamava-lhe "o meu Woody". Quando Mia Farrow armou escândalo acusando-o de pedofilia, não hesitei em alinhar com o coro que a acusava de histeria e despeito. Afinal eu conhecia-o. Aquela alma sensível que timidamente se escondia atrás de um sentido de humor irresistível podia lá assediar sexualmente uma criança.
Ontem levei um duche frio. É bem feito. Penso que em dado momento me terei convencido que aquela aparência frágil, absolutamente desprovida de glamour, era o seu certificado de garantia. Provava que a imperfeição que lhe cabia era sobretudo a que se via do lado de fora. Que tonta! Quem me mandou chegar à meia idade ainda a acreditar que há génios bons.
Derrotada pelo calor - não posso andar com o ar condicionado atrás de mim - voltei aos meus Domingos. Almoço e cinema com amigos.
Esta tarde fui ver Midnight in Paris.
Eu sei que poucas coisas se comparam à visão de Manhattan a partir do divã de um psicanalista, mas tive de me render a este passeio europeu de Mr. Allen.
O protagonista, um norte-americano que aspira a escrever romances, na antecâmara de um casamento que não lhe tira o fôlego, passa alguns dias em Paris. E, na terna noite de Paris, assim que bate a meia-noite, pára um automóvel que o leva para o passado. Estamos aqui perante a inversão do motivo da Cinderela que, ao tocar das badaladas, volta a ser quem não queria ser e a habitar o espaço que não queria habitar. Gil Pender, o americano em Paris, vai ao encontro do tempo onde queria viver, os anos 20 e a festa parisiense.
Há alguma ingenuidade na caracterização das personagens, construídas a partir de uma reconhecível e previsível semiologia, mas o efeito nostálgico que provocam é incomparável. Que aceitaria um Hemingway que não fosse truculento?
O primeiro encontro é, creio que intencionalmente, com Zelda e Scott Fitzgerald. Aliás, parece-me e a não ser que eu também esteja a ver coisas onde elas não existem, que o apelido de Gil, Pender, é um jogo fonético: a sobreposição do P de Paris sobre o T do título da obra de Fitzgerald, Tender is the night.
As noites de Gil saem da companhia da noiva, dos pais da noiva e dos amigos da noiva para uma entourage absolutamente fascinante: Cocteau, Cole Porter, Hemingway, Picasso, Buñuel, Dali, Man Ray. Até a materfamilias da geração perdida, Gertude Stein, uma muito bem achada Kathy Bates, lá pontifica, disposta a ler o livro de Gil, o livro onde a personagem principal é dona de uma loja de nostalgias, as memorabilia tão ao gosto do autor.
Se na Paris presente Gil não tem quem lhe acompanhe os gostos e as preferências, num desencontro quase permanente, na Paris passada vai encontrar em Adriana, a jovem que, quando diz “o Amadeo” está a falar de Modigliani, uma momentânea companhia. Momentânea porque se trata de um novo desencontro: Adriana, a dos vestidos de cintura baixa e pailletes, queria era viver na Belle Époque. Lá irão parar uma noite, a um cabaret onde, depois da saída da última cancaneuse, vêem Toulouse-Lautrec a quem se juntam Gaugin e Degas. Estes também não era ali que queriam estar, mas na Renascença.
Gil percebe, então, que o tempo é uma loja de memorabilia. Umas já não servem, outras são inatingíveis. E nada é como o presente.
Adriana ficará presa na sua idade de ouro, enquanto o detective que o pai da noiva americana contratara para seguir a noite de Gil se vê perdido em Versalhes, na Galeria dos Espelhos.
É Paris mas podia ser Xangai. Quando o cinema não for um jogo de espelhos, mais vale ficar em casa.
Midnight in Paris - a origem
Não posso demorar-me, desculpem, vim aqui só dar-vos a boa notícia. Tenho uma festa daqui a pouco em casa dos queridos Ira e George, e ainda tenho de passar pela Coco que ficou de escolher-me um vestido. Zelda, Scotty, please wait for me! Salvador, cariño, no seas tan dramatico... Yes, Cole, I'll take sweet Alanis with me, it's a promise. Assim que ela acabar de cantar aqui, pode ser? A bientôt, mes amis. Paris m'attend!
O novo filme de Woody Allen, Midnight in Paris, é absolutamente brilhante. Ao contrário dos outros realizadores americanos, Woody Allen é um apaixonado pela cultura europeia, pelo que não admira que tenha decidido começar a filmar em cidades europeias. O seu filme é todo ele uma homenagem a Paris, uma das mais extraordinárias cidades do mundo, a meu ver só suplantada precisamente pela sua Nova Iorque. Mas temos a surpresa de encontrar no filme uma citação constante dos grandes vultos da cultura americana, que como ele também passaram por Paris. Mas a grande demonstração do filme é que a magnífica cidade de Paris suplanta todas as obras. Como uma personagem diz no filme, não há obra humana, seja sinfonia, romance ou pintura, que consiga suplantar uma grande cidade.
Estou zangada com o novo Woody Allen, aquele que diz com indiferença: "Filmar em Lisboa? Por que não? Desde que me paguem..." Não gostei dos últimos filmes europeus, nem sequer dos tão celebrados Match Point e Vicky Cristina Barcelona. Cada um é para o que nasce. Sinto falta de vê-lo como actor e, como realizador, vejo sempre um peixe fora de água. Da sua água. Gostava era de vê-lo de volta aos seus cenários de excepção: a cidade de Nova Iorque e ele próprio, num eterno exercício de genial narcisismo masoquista, a descascar contradições até ao tutano num sofá de psiquiatra com vista para Times Square ou Central Park. Não é má vontade: a cada novo filme tenho dado um tímido mas esperançoso benefício da dúvida, e todos me têm decepcionado mais ou menos por igual.
Mas com este filme que se anuncia aqui, e a avaliar pela sinopse, a minha esperança renasce uma vez mais. Talvez não seja um good old Woody, mas tem pelo menos os ingredientes certos para uma receita "à antiga". Vamos ver.