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Delito de Opinião

Fake-Indie?

jpt, 25.04.25

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"Indie", no rock ou no cinema e até mais longe, significava algo independente, "rebel, rebel", escapando-se aos ditames dos mercados, económicos e até ideológicos. Às vezes, diante de obras assim anunciadas percebe-se que o termo também se tornou um "pin", mera publicidade para nichos, assim ordinário, quinquilharia de loja de recuerdos, dessas máscaras do tráfico de neo-coolies. Outras vezes nada disso, surge gente a "rasgar", alguma depois alcochoando-se no mainstream, outra mais arisca, seguindo os seus rumos. E também aos seus protectores - os públicos, mais do que tudo; patrocinadores/mecenas; produtores - se presume alguma "rebeldia", um incómodo não confrontacional que seja, diante dos constrangimentos das dominantes tendências, o mercado mainstream.
 
Estava eu no comboio, em viagem pitoresca. E recebi uma mensagem de confrade bloguista, que me julgava conhecedor do trabalho referido - o filme Balane 3, que o realizador Ico Costa fez em Inhambane, Moçambique. Mas desconheço, o realizador e o seu trabalho, parcialmente feito naquele país.  Informava-me da suspensão da apresentação do filme no festival Indie Lisboa. Devido a num sítio da internet ter sido publicada uma carta aberta anónima, denunciando-o como culpado de violência doméstica.
 
Não faço a mínima ideia se isso é verdade. Quem vê filmes não vê corações tal como quem vê caras não os vê. E eu nem sequer aos filmes ou à cara de Carreira vi. Mas há uma denúncia? Investigue-se. Julgue-se, se houver suspeitas fundamentadas. E sentencie-se, consoante as conclusões obtidas. Mas um festival aprestar-se a retirar os seus filmes devido a isto?
 
Se um escritor for acusado de plágio é curial retirar-se o(s) livro(s) de circulação, até se aquilatar da veracidade do caso. Mas se for acusado de bater no vizinho ou caluniar alguém? Vai-se às livrarias e recolhem-se os livros? Se uma loja vende produtos falsificados ou roubados será normal ser encerrada. Mas se o seu dono é acusado de não pagar impostos ou pontapear um polícia, encerra-se-lhe o estabelecimento? Se um empresário atropela um transeunte numa passadeira deverá ser detido, julgado (e condenado!!!). Mas ainda o pobre peão está nas "Urgências" a tratar das (espero que apenas) escoriações e já está uma brigada a fechar a empresa, "até ordens em contrário"?
 
E um festival que se diz "indie" faz uma aleivosia destas? Os seus organizadores não sabem apartar as coisas, tantos as jurídicas como - e o que é ainda mais inadmissível - as relativas à liberdade criativa? Gentes arvoradas em "indie" que se comportam até pior do que os organizadores das quermesses das paróquias, aflitos com o "parece mal"? Subjugadas aos itens de uma agenda "correcta" - "interseccional", dirão os teóricos da tanga -, que sobrevaloriza, sublinha, histeriza, determinadas questões (género e sexualidade; identidade - e concomitante dita racialização) diante de outras?
 
Sem rodeios, basta entrar numa reunião "indie" de "lisboa" para perceber a mole sociológica e sua mundividência mainstream. "Bem-pensantes" de "boas-causas", já encanecidos imaginam-se como de "esquerda" - e hoje, 25.4, irão "à Avenida". E vêem-se como se "indie" fossem mas tratam-se apenas de meros índios de reserva, acobertados com os restos deste casino que é o Estado. Amodorrados em constante powwow, qu'entre eles é que se sabe das coisas, desalienados julgam-se, sendo os "outros" vis exploradores "extractivistas" ou coisa parecida.
 
Mostra-se assim o festival um fake-indie, amarrado ao mainstream político do "correctismo". E, deste modo paradoxal, é de contestar qualquer subsídio ou facilidade estatal que se lhe dê. E apupar as fundações - algumas também bem entrelaçadas com o tal Estado - que lhes dão uns trocos ou favores para irem andando. A troco do "respeitinho". Que fazer, repito? Ser indie, contra estes servis. 

A Cultura Portuguesa

jpt, 01.02.25

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Fruto do surto de imigrantes e da desestruturação do serviços estatais de controlo fronteiriço - os anos de governação de Costa foram de pungente incompetência, e não só nesta matéria - mas também eco dessa problemática na Europa, grassa por cá uma atrapalhada discussão sobre a imigração. Os repugnantes fascistas alardeam, sem pudor e assertivos, a sua boçalidade. Os esquerdalhos bolçam, convictos, alimentando-os. Ali ao "Bloco Central" o secretário-geral do PS inflectiu agora um pouco o seu discurso, no rumo do bom senso, o que chocou muitos dos seus cúmplices. Mas logo os do PSD, em vez de acolherem essa via acusam-no de "eleitoralismo", mostrando-se epígonos da infecunda tralha que fez do PSD o PSD, restringidos não aos respectivos umbigos mas sim aos seus imundos prepúcios. É o estertor do regime, prisioneiro de gente capim.
 
Santos terá dito que aos imigrantes cumpre adaptarem-se à "cultura portuguesa". Logo à "esquerda" se insurgiram. Por exemplo, a socratista Ana Catarina Mendes - que foi deputada por Setúbal (pobre concelho), ministra e agora vai como eurodeputada - terá posto a mão na anca e dito que não sabia o que isso era. Uma jovem autarca bloquista, Escaja, foi a um desses programas ao laréu clamar que "a cultura portuguesa é uma merda". É notório que a nenhuma destes - e de vários outros - socratistas ou esquerdistas passa pela cabeça a simplérrima distinção entre "adaptar" e "adoptar". E isto nem lhes é demagogia, são mesmo apenas esta miséria! E entretanto, presumo que lá para outras bandas, os mithás ribeiros deste rincão preparem romarias à espada de Afonso Henriques, entoando "São Jorge", para comprovarem a existência da tal "cultura" daquela que dizem "Nação", para sublinharem o seu imbecil apreço pelo Estado Novo. Sem rebuço, estamos entregues aos bípedes...
 
O que é estranho é que há não muito tempo no país esse assunto era muito abordado. Eduardo Lourenço disse qualquer coisa como "temos um excesso de identidade" (escrevo de cor, não consultando livros), e ele próprio - no seu elíptico ensaísmo - discorreu sobre isso, a equação cultura/identidade, Alfredo Margarido deu curta mas decisiva canelada nas asneiras do senso comum, João Leal mostrou-nos os rumos intelectuais dos seus construtores, Carlos Leone também, as pessoas entusiasmaram-se e compraram milhares (e louvaram) de exemplares do vácuo "Portugal, o medo de existir" de José Gil, alguns sociólogos e antropólogos escreveram sobre as mundividências rurais e suas transições para o urbano. Talvez XXI não tenha trazido muito de novo sobre isso, não sei, não é o meu ofício nem meu interesse crucial, não leio nem procuro mais sobre o assunto.
 
Mas quando o espaço público se enche de atoardas sobre uma putativamente inexistente "cultura nacional" muito lamento a inexistência de "intelectuais públicos" antropólogos - se não falam agora falarão quando? - que apartem os sentidos de "cultura", e ensinem (é o termo) a operacionalizá-los e, mais do que tudo, a entender o que é uma fluidez estruturante. Até porque nos arriscamos não só ao predomínio desta incúria intelectual como ao alardear da superficialidade convencida - há algum tempo caí do sofá quando vi o ar erudito de Paulo Portas a recomendar na tv o "O Crisântemo e a Espada" (1946) de Ruth Benedict, como se fosse a porta para entender o Japão actual, a sua "cultura nacional", uma coisa pungente independentemente da magnitude da autora, mulher do seu tempo, intelectual do seu tempo, livro do seu tempo... Pois não há mesmo antropólogos "intelectuais públicos" portugueses - o único que o poderia ser, dotado da densidade e gravitas para isso, legitimamente isentou-se do rumo, calcorreia a sua via. Estamos assim, e repito-me, entregues aos bípedes...
 
É fim do mês, estico os restos do rancho. Almocei massa com atum, este refogado com malaguetas. Ao tabuleiro, diante da televisão. Liguei para o Filmin, recomendável canal-cinemateca e de barata subscrição. Comecei o Lawrence da Arábia, que não vejo há mais de uma década. "Só o começo", prometi-me, no afã de regressar às minhas gratuitas inutilidades. Mas o filme é grandioso, e maravilhosa a subtil explicitude de O'Toole, fui-me deixando ficar, (re)descobrindo tudo aquilo, encantado. Dei comigo a dizer-me "que pobres, coitados, são os admiradores do Tarantino"...
 
E depois, um bom bocado depois, exultei. Parei e tirei esta fotografia, pois ali está a súmula de tudo isto. O'Toole e Omar Sharif atravessam uma terrível rota do deserto, um dos soldados de Sharif caiu do camelo durante a noite, o seu chefe recusa-se a recuar para o salvar, no fatalismo do que aquele era seu destino ("estava escrito"). O'Toole (Lawrence) insurge-se, vai sozinho salvar o "naufragado". Quando regressa, após inclemente travessia, Sharif, aliviado, passa-lhe o seu (precioso) cantil. E Lawrence (O'Toole) - essa peculiar figura do Império, do "Ocidente", retratado num filme típico mas passível de múltiplas leituras - responde-lhe "Nada está escrito", clamando, ainda ali trôpego, o primado da indeterminação, essa construção histórica e conflitual de uma civilização específica. Cultura.
 
E se eu tivesse a dimensão de um "intelectual público" faria deste fotograma a demonstração da mediocridade destes ignorantes demagogos. Mas sei que não o sou, sigo sapateiro sem rabecão. Por isso, acabrunhado, apago a televisão. Saio e vou beber uma cerveja com uma belíssima amiga, minha "mana". Depois tartamudeio comezinho com vizinhos. E sigo para tasquinhar um bom queijo com outra bela amiga. E com eles, mas muito mais com elas, afasto a tristeza de viver neste país de... bípedes. E de com estes, apesar deles, partilhar a "cultura portuguesa".
 
*****
 
Adenda: Quando lamento a mudez da antropologia (disciplina onde abundam esganiçados "activistas" e um ou outro degenerado socratista) tenho razão. Vejo agora de manhã que o historiador Rui Ramos disse ontem no Observador o necessário (estou grato a quem me ofereceu o acesso ao artigo) - "ai, o Rui Ramos é de direita", guincharão em falsete vários daqueles a quem o Estado, pouco mas certo, paga para ensinar as novas gerações de intelectuais!... Ramos, que é um intelectual público, nisso criticável e legível, deixou o artigo aqui
 
Como é importante e o texto não é de acesso livre roubo extracto, longo: "Pedro Nuno Santos a reconhecer que a política de portas escancaradas à imigração do governo de António Costa estava errada. (...) Para os últimos abencerragens de uma esquerda woke que ontem se julgava o futuro e hoje descobre que é o passado, tudo isto é uma rendição à “extrema-direita”. Se é rendição, temos de reconhecer que os partidos de governo dos regimes ocidentais não cederam sem luta. Durante anos, fizeram da imigração descontrolada um tabu. Mencioná-la já era “racismo”. No fim, nenhuma censura bastou para calar sociedades desequilibradas pelo afluxo súbito, caótico e ilegal de milhões de estrangeiros.
 
As sociedades ocidentais foram sujeitas à mais extraordinária de todas as experiências. As necessidades de mão-de-obra barata são reais. Mas tentou-se satisfazê-las abolindo as fronteiras. Nações antigas viram-se sob a ameaça de serem reduzidas a uma espécie de aeroportos internacionais, por onde as pessoas passassem sem nada mais terem em comum do que o acatamento de certas regras. Mas o fundamento das democracias liberais ou do Estado social não é simplesmente a obediência à lei, mas a comunhão de valores a que chamamos “nação”. As nações não são dados naturais: são o resultado da história, de séculos de conflito e compromisso. Na sua origem, não está qualquer homogeneidade, mas uma pluralidade que, sem desaparecer, chegou a um sentimento de solidariedade e destino comum que faz pessoas muito diferentes identificarem-se entre si. É a nação que explica que possamos ser diversos sem cairmos sempre em guerras civis. É um património que subjaz a quase tudo o que é precioso no Ocidente: a liberdade, a igualdade, a coesão social, o pluralismo. É a isso que chamamos “segurança”, que não é apenas a contenção da criminalidade, mas o sentimento de estarmos em casa.
 
Nada disto tem a ver com a cor da pele, dos olhos ou dos cabelos ou com origens geográficas, nem com todas as religiões ou ideologias. É uma questão de valores comuns. O problema das migrações descontroladas não é só a chegada de pessoas que não partilham tais valores, mas a proposta woke, que pareceu dominar os regimes ocidentais, de que não deveríamos pedir nem esperar adesão ou sequer respeito por esses valores. Foi o projecto woke, inspirado pelo ódio da extrema-esquerda ao Ocidente, que acima de tudo criou insegurança. O resto são tremendas dificuldades logísticas, que agravaram a falta de habitação e o colapso dos serviços públicos. O caos migratório não é compatível com qualquer integração. Através da imigração nestas condições, aquilo que a oligarquia fez foi reconstituir a massa de trabalhadores pobres e pouco qualificados (...)".

Mais uma conquista para António Costa

Paulo Sousa, 25.11.24

O nosso ex-PM, que exerceu o cargo durante mais de oito anos, durante os quais chegou a conseguir uma maioria absoluta e se demitiu depois da polícia ter encontrado 75.800 euros em notas no gabinete contiguo ao seu, será o próximo Presidente do Conselho Europeu. Lá por Bruxelas, foi agora promovido a "membro de minoria étnica".

E eu a pensar que Portugal era um país estruturalmente racista.

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Conversa de café a propósito da Penha de França

jpt, 08.10.24

Lisboa.pt - Website oficial do Município

Ficou o país estupefacto com o desbragado triplo assassinato da semana passada, ocorrido na Penha de França. Bebo aqui nos Olivais um café com um "sobrinho" crescido em Bruxelas, o qual me diz ser este tipo de situações agora por lá recorrente, em particular em Anderlecht, devido à migração acontecida de grupos de "empreendedores" ligados ao comércio de drogas químicas, diz-se que ali advindos de Marselha. Não que associássemos este nosso infausto caso a algo similar, apenas referia ele, agora cá recém-chegado, a diferença entre o escândalo aqui sentido e a já rotineira forma de apreensão da violência de rua que passou a vigorar lá na Bélgica.

No dia seguinte na mesma esplanada foram-se agregando vizinhos, gastando um pouco do outonal sábado. Conversas muito variadas, e animadas. Nisso um dos presentes aflora como o mariola Ventura abocanhou politicamente o caso da Penha da França, não só agitando a sua "besta negra" cigana como até aventando - em cúmulo de despudor - a dúvida sobre o carácter político dos assassinatos, como se fossem um atentado avesso aos seus simpatizantes.

E a conversa segue, abordando as formas elípticas como a comunicação social e os sempre pressurosos "populares" convocados a prestarem declarações ao microfone foram referindo o assassino, seus acompanhantes e seu meio de origem. Ou seja, a elisão radical do termo "cigano" entre a locução dominante e a opção por formulações alusivas. Eu pouco seguira os noticiários mas reparara no tópico da pertença do criminoso a "famílias numerosas", a utilização de uma estereótipo de parentesco (e co-residência) - quiçá sustentado por algum empiria, não o posso afiançar dado que nada tenho lido sobre dimensões actuais de parentelas e residências em Portugal. Mas é notório que há um expurgar pelos estratos "letrados", e pelo o "povo" que vai à tv, da alusão pública a "ciganos", ao invés do seu brandir pelos sectores mais direitistas. E, também, da sua presença nos discursos globais... se, e quando, em privado. E tudo isto, esta retórica higienizada, alimenta o tal mariola, o tipo "que diz as verdades", "aquilo que mais ninguém tem coragem de dizer"...

Ali à mesa, no passo seguinte, uma senhora vizinha, educada e culta, diz asisadamente que concorda com essa abstenção da referência identitária, pois não se devem alimentar as generalizações abusivas. No que eu concordo totalmente, pois um desmando, um traço comportamental, uma característica psicológica de um qualquer indivíduo não deve ser atribuído a outros que com ele partilhem alguns traços comuns socioculturais e, ainda menos, fenotípicos (os genotípicos nem para aqui são chamados). Ou seja, implicitava a minha vizinha  - tal como os múltiplos locutores ao longo dos últimos dias - que dizer ser este assassino um "cigano" é alimentar o preconceito, fomentar generalizações abusivas. Aplaudo. Até porque esta postura é o substrato de uma concepção liberal (que não associológica), o primado da autonomia individual - algo que é bem diferente de outras perspectivas dominantes, como a (demo-)cristã, as marxistas ou os agora muito viçosos secularismos "identitaristas" de extracção marxista, que presumem características comuns aos pertencentes a grupos socioculturais e por isso convocam políticas e posturas peculiares para cada um deles.

E sigo na verve. Recordando que há escassas semanas nas cercanias de Castelo de Vide um indivíduo sequestrou e disparou sobre duas mulheres. A imprensa logo o intitulou "espanhol" - identidade com a qual temos relações históricas complexas. Talvez não tanto naquela velha raia. Mas sim país afora. Ainda resmungamos os "Filipes", apupamos o injustiçado defenestrado Miguel de Vasconcelos, tal como ainda sorrimos o "de Espanha nem bom vento nem bom casamento". Mas, muito mais importante, germina o sentir anti-turismo, resmunga-se o quase monopólio espanhol do querido olival. E não só o nosso ministro da Defesa veio agora agitar a "chaga" (para ele, pobre homem, sintoma que é da múmia mental CDS) de Olivença. E, para irmos à política, só um país politicamente incompetente é que continua com mesuras aos Borbón, ao PSOE ou ao VOX, face a décadas de desrespeito fluvial espanhol. Ou seja, não falta matéria-prima, histórica e actual, para acicatar o anti-espanholismo. Mas isso não impede que a imprensa escarrapache nos cabeçalhos ser "espanhol" o cadastrado sequestrador, e intentado violador e assassino.

Mais perto dos Olivais do que a Penha de França é Moscavide. E também por isso logo ali à mesa recordei um outro caso. Há quatro anos um indivíduo lá foi assassinado, uma horrível conclusão de uma questiúncula entre vizinhos. O energúmeno assassino expressou, antes e depois, a sua aversão aos negros - o assassinado, o actor Bruno Candé, era-o... O miserável, agora preso, é um antigo combatente na guerra colonial. Foi um rastilho. De imediato organizações e vária imprensa usaram o caso para afirmar um "racismo sistémico" português - ou seja, de um crime praticado por um indivíduo se generalizou predisposições e pressupostos para a globalidade dos seus compatriotas, dos que têm a sua "identidade".

Logo na época notei pouco ter significado para os "bem-pensantes" que, logo no dia seguinte ao assassinato, tivesse o Sport Lisboa e Olivais - um clube popular, pobre, histórico pois 5ª filial do SLB, recordista de anos seguidos na velha III divisão de futebol - colocado na sua página um dorido "Morreu um dos nossos" - Candé seria associado, terá sido praticante desportivo. Denotativo de inclusão, inserção, até "sistémica" se se quiser... Mas nada disso contou (nem conta) nos discursos demagógicos. Como também não contavam (nem contam) perguntas de cariz mais sociológico: houve centenas de milhares de portugueses mobilizados para as guerras em África. (E, também, centenas de milhares de portugueses foram "retornados"). Foi afirmado aquele assassinato como um caso exemplar do "racismo sistémico" - entenda-se, universalizado, ainda que vivido de diferentes formas -, dos portugueses, e dito ser esse extremado entre antigos combatentes, estes também aventados como universo ainda dotado de armamento. Face a essa verdadeira hiper-generalização seria normal questionar, investigar, que formas organizadas ou avulsas houve entre essa gigantesca amálgama de antigos combatentes (e de antigos colonos) de perseguição armada, violenta, física ou moral, sobre os africanos ou seus descendentes que residiam ou vieram a residir em Portugal neste último meio século. Algo que sedimentasse aquela extrapolação do assassinato que o energúmeno cometera por causa de uma querela encetada devido a um cão... Perguntar isso para quê, pois como é possível duvidar que se um "português" assassina um "negro" todos nós "portugueses" somos racistas?

A conversa morreu ali, falta de empenho alheio, atitude totalmente legítima ("agora tenho de aturar este tipo?", terá pensado a respeitável vizinha). Mais tarde, já em casa, vejo no Facebook um outro vizinho a partilhar um sentido texto de um jornalista sobre o crime da Penha da França. Nele se aventa que o assassino sofrerá de uma "adição", um desequilíbrio contextualizador. Sorrio, triste. Também eu ao saber do acontecido pensei nisso, de imediato imaginei um "Scarface", histriónico descompensado a la Al Pacino... Mas é importante identificar a ideologia que subjaz esta nova língua, e este anglicismo dessa é típico, de um sociologês (esse que entende que o contexto social causa e, quantas vezes, justifica os actos individuais, fazendo regredir a autonomia individual aos mínimos ... quase biológicos).

Não vou explicar, prefiro ilustrar: imagine-se que eu deixo de fumar. Ao 5.º dia este meu vizinho Quim - também ele olivalense - vem ter comigo à esplanada. Depara-se comigo a protestar com o dono da casa porque a minha chávena de café não está bem quente!!! Dirá logo ele, o Quim, "calma, estás irritadiço devido ao teu vício do tabaco" e até se rirá, acalentando-me no meu esforço sanitário. Entretanto, ali mesmo, tomamos conhecimento de que aqui perto um qualquer "agarrado" deu uma pedrada num velhote para lhe roubar a carteira - coisa que hoje em dia no bairro já inexiste, felizmente, gentrificado e pacificado que está o "Olivais". Dirá logo algum vizinho, ou talvez mesmo o Quim, que o ladrão sofre de uma "adição". Assim seguindo eu, mero chato, com o culposo e pecaminoso "vício", e o ladrãozeco, pobre vítima da tal "adição". 

Enfim, isto é uma conversa de café, sem grande coerência - excepto a do tal "racismo sistémico" de que padeço, pois sou de identidade "portuguesa", e de "etnia" branca, dirão alguns... Desarrumada e até infindável. Mas fico ainda com um resmungo, até à próxima sessão de esplanada: continuem a pensar assim. E, acima de tudo, a falar assim... E um dia destes até os ciganos, fartos do que "parece", votarão no Ventura.

Racismo Sistémico

jpt, 29.09.24

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Às vezes até com alguma amizade, a maioria das vezes sem ponta disso, gente das minhas áreas de formação, dizem-me "direitolas" - visceralmente avesso que sou a estes demagogos das "identidades", do "género", da "depuração da fala", do "racismo sistémico", e das tralhas associadas.
 
Talvez este seja um exemplo explícito da pantomina que são estas correntes locutoras. Imagine-se o escândalo que correria mundo afora (e Portugal esquerdalho adentro) se um grande central branco desse um estalo num pequeno roupeiro "racializado". Mas o enorme preto Rudiger dá um tabefe a um incomodado branco Manolin? Nada dizem estes "identitaristas", que isto não lhes dá jeito. Não lhes anima o objectivo, a gritaria que entendem possibilitar-lhes o acesso a uns nacos do erário público. E a uns empregozitos, precários ou não. Porque, entenda-se bem, para essa gentinha, a esquerdalhada burguesota, "it's economy, stupid!". O subsídio, o contratozito, o parco financiamento...

Viagem ao Algarve e ao passado*

José Meireles Graça, 02.08.24

Alberto Gonçalves, que há muitos anos vergasta políticos, costumes e tendências neste jornal (e antes deste em outros) semanalmente, e diariamente na Rádio Observador, fez há dias 55 anos. E a vasta corte admirativa que o segue (da qual faço, fielmente, parte) deve ter visto com agrado o texto que aqui publicou sobre aquela efeméride porque às vezes sabe bem esquecermos o mundo oficial, os rituais do poder e o wokismo que anda no ar. Irónico, à sua inconfundível maneira, mas um tanto melancólico – diz a certo ponto que “oficial, oficiosa e civilmente, sou um velhote”.

Ahem, devo ser um Matusalém. Porque, no ano em que ele nasceu, fui pela primeira vez ao Algarve e, como já tinha carta de condução tirada de fresco e um amigo havia herdado um Renault Joaninha de um avô e tinha licença de aprendizagem, encartei-o, como se dizia.

Saímos às 22H00 do Porto e chegamos a Lagos, com destino ao parque de campismo local, às 11H00 da manhã. Autoestradas nem vê-las, cafés abertos depois da meia-noite um achado, e trânsito escasso. Viagem memorável, já se vê, da qual nem ele nem eu retivemos (como aconteceria hoje) a interminável maçada, mas o encanto da descoberta e a expectativa da praia, das Inglesas, das comidas e da aventura.

Aventuras houve algumas, todas banais para dois moços com automóvel (ainda que um vetusto charêlo), algum dinheiro no bolso e relativamente bem apessoados (mais ele, que eu tinha de compensar com palavreado e alguma fluência em Inglês a natureza relativamente anódina da minha pessoa).

Sucedeu que em determinada altura fomos, da Senhora da Rocha onde visitáramos uns amigos, jantar com eles a Alcantarilha. Um excesso de libações (a cerveja era fresquíssima, a companhia agradável, o conduto mais do que satisfatório e a sede insaciável) levou a que regressássemos com alguma euforia. E foi esta que induziu o meu amigo a tratar o velho Renault com alguma desenvoltura, tanta que a certo ponto, numa curva mais apertada já à chegada ao destino, eu, o encartador, o informei fleumaticamente que nunca mais “desenharia” aquela curva. Não desenhou, de facto, e pelo contrário fomo-nos espatifar de frente contra um muro daqueles algarvios, que se esboroou.

Saímos os dois, atordoados, e saíram também os visitados, que nos seguiam (num Ford Mustang, que é para as pessoas que sabem destas coisas perceberem que eram pessoas de representação). Parece que nestes entretantos caí redondo no chão, perante a comoção geral, sangrando da testa, que já na altura era larga, desimpedida e franca. E como um médico conhecido na minha longínqua cidade estivesse de férias em Lagoa, não longe, foi para lá que me levaram. O médico examinou o ferido, que entretanto tinha recuperado os seus espíritos, e declarou que aquilo não era nada, apenas tinha de coser. Fomos portanto todos ao hospital local (ou clínica, ou enfermaria, ou lá o que era), aberto naquela instância de propósito para acolher o forasteiro. Lembro-me que a enfermeira, chamada de seu sossego para a intervenção, cozeu os instrumentos e o fio numa panela; e que apresentou o resultado no respectivo testo, virado ao contrário, o que me pareceu um procedimento altamente heterodoxo. O médico (uma jóia de pessoa, que já morreu) apenas resmungou que aquele fio (chamou-lhe outro nome, não me lembro) era demasiado grosso, pelo que iria ficar com uma cicatriz. Fiquei efectivamente, discretíssima e que acabou por desaparecer ao cabo de muitos anos, conferindo-me inclusive, enquanto durou, alguma personalidade.

E então, esta historieta tem moral? Poderia ter, se me lançasse num comovente exórdio da desgraça daqueles tempos pregressos contrastada com as maravilhas do presente. O que temperaria com a reflexão de que então o país crescia economicamente a velocidade vertiginosa, o que nunca mais voltou a suceder; que, mais de 50 anos volvidos, qualquer comparação resulta sempre, em muitos aspectos, vantajosa para o presente, em Portugal ou em qualquer parte do mundo, porque entretanto o progresso científico e tecnológico, mais a acumulação de riqueza, melhoraram a vida das pessoas.

Isto diria, mas concluiria que eu, o meu amigo e todos os moços da nossa idade que conhecíamos tinham justificada esperança de um futuro de muito, ou algum, sucesso em Portugal.

Hoje não têm. E com isto poderia abundar em considerações pessimistas, amarrando ao pelourinho da descrença a forma como o nosso país tem sido conduzido.

Se estivesse virado para grandes empolgações retóricas, aproveitava a cerimónia de abertura dos Jogos Olímpicos (jogos em que se celebra a paz ou, ao menos, a trégua nas guerras) para verberar o progresso tonto dos costumes: as religiões cristãs, os seus ícones e a sua história fazem, pelo menos desde os tempos de Monty Python, bons temas de comédia. A qual tem lugar em comédias, não tribunais, igrejas ou recintos desportivos quando tenham o significado multinacional que os afectos a estes Jogos têm, por exemplo. Com uma pilhéria desgraciosa e cobarde, além do mais, porque os mesmos conspícuos guionistas que resolveram inspirar-se na última Ceia para fazer uma representação da “comunidade” LBGTurbo nunca ousariam uma rábula semelhante com temas do Islão, para não porem em risco os pescoços que lhes seguram as estúpidas, e hipócritas, cabeças. E, estando com a mão na massa, também guardaria uma palavrinha para a imagem de Maria Antonieta exibindo pormenorizadamente o seu pescoço decepado e segurando a cabeça junto ao ventre; ou a galeria das mulheres célebres que exclui Joana d’Arc, assim como entre os franceses ilustres Luís XIV, Napoleão ou de Gaulle. Isto e muito mais é, parece, a admirável França woke dos nossos tempos, à qual dá vontade de dizer, como Jack Nicholson numa tirada célebre: sell crazy someplace else, we are all stocked up here.

Mas não vou por aí, que o tempo é de férias e vou mazé para o Algarve, lá mais para o final do mês.

* Publicado no Observador

Euro-2024: Allez la Belgique!

jpt, 15.06.24

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Característica histórica fundamental do pensamento "ocidental" (termo que sempre uso na sua extensão geográfica a la Wallerstein) é a sua constante e radical autocrítica. Por isso mesmo sempre incompleta, reformulada, verdadeiramente intensificada. Nisso também incluindo a (auto)devastação política das múltiplas formulações que vêm sendo sistematizadas. Poderia dizer que fundamentar esta afirmação não cabe num postal de blog. Mas ainda que sendo isso verdade, é mais honesto reconhecer que para tal fundamentação se exige muito mais do que o meu saber. O qual, mesmo que parco, é ainda assim suficiente para reconhecer a legitimidade da asserção.
 
Este preâmbulo serve apenas de peanha para dizer o meu desprezo por este aparente criticismo actual, superficial e folclórico, dito "woke". Ou, se em versão académica, mascarado de "decolonial", mesmo "póscolonial". É um corpo textual que parece socialmente relevante a quem se deixe enredar em algumas "bolhas", segmentos digitais animados pela esquerda "mansa" sita na comunicação social, em nichos académicos das humanidades, e suas associadas movimentações "artísticas", nas ong's subsidiadas pelos... Estados. E refractado em pequenos partidos de extracção comunista, ditos "pós-marxistas".
 
Nesses núcleos profissionais depauperados esta via "contestatária" vai parecendo que "paga bem" aos seus "activistas", o que é uma verdadeira alienação (sim, a la Marx) desses agentes. Pois tem recompensas estatutárias (algum reconhecimento entre as moles de "activistas"; afectos alheios ditos "respeito"; reconforto identitário; e, até, "seguidores" internéticos...). E concede (pequenos) privilégios económicos (a selecção para alguns, poucos, empregos; subsídios laborais avulsos; e coisas mais comezinhas, como viagens profissionais avessas à temida rotina quotidiana, financiamentos a ou aceitação de modestas publicações, para exemplos mais frequentes).
 
Estes locutores têm tópicos, que são mais do que agenda ou mesmo jargão, são verdadeiros símbolos que se sonham signos. Os quais servem para afirmar a adesão a uma "omnicausa", pois brandindo um desses tópicos se apela à dedução alheia da partilha de tantas outras causas, à pertença a uma "mundividência" "activista", coisa a qual se diz "interseccionalidade". Um, muito propalado, é a aversão ao género linguístico, um "importante" debate que ocorre: são os meneares dos "X"s ou "@"s ou, até pior, lembro aquilo da "a etnógrafa", "a antropóloga", que há dias repetia em conferência um respeitado professor, proclamando assim a opção pelo "universal feminino" - e eu, em surdina, deprimindo-me enquanto resmungava sucessivas imprecações num também "devia era ter estudado economia ou direito...". E isto, já agora, antes de, e depois de tantas diarreias sanguinolentas a norte do Zambeze, ouvir ali loas às virtudes da "matrilinearidade", qual avatar do matriarcado, entenda-se.
 
Outro tópico é o da vantagem cognitiva (e assim ética) da homossexualidade: "sou feminista... e assumo que gosto muito de levar no cu", escrevia há anos um intelectual socratista. Mas quando eu me deixo rodear dos seus (semi)admiradores, ou quejandos "activistas", e proclamo o meu feminismo (pela igualdade de direitos, equidade de oportunidades - e esta permite, liberalismo à parte, a existência de políticas indutivas), associando-o às minhas (até saudosistas) apetências sexuais, logo os "póscoloniais" se incomodam, até ao "por favor, cala-te...!", em esgares atrapalhados, quando chego às hipérboles da lascívia pós-cunnilingus. Pois para isso, para enfrentar o desprezo sarcástico, já não lhes chega a "interseccionalidade"...
 
Outro tópico constante é a afirmação do omnipresente e frenético racismo, claro que branco, pois comumente associado à (ontológica) inexistência de outros racismos. - "Portugal é um apartheid", clamava no jornal Público um colunista, ali colega da presidente da Junta de Freguesia dos Olivais.
 
Charneca de todo este pensamento silvestre é o carnaval anacrónico da refutação do pensamento passado, científico, filosófico, artístico, literário que seja. Tudo é dissecado em busca da malvadez e abrenunciado como factor causal de horror vivo actual. Nesse crivo nada escapa - até um autor como Mark Twain (!) é visto como necessitando de ser expurgado... O passado (se "branco", claro) é mau!
 
De toda essa tralha o que mais me irrita - e que mais considero denotativo da militante mediocridade deste "activismo" - são as críticas, queridas como letais, ao Tintin de Hergé. Sim, porque Tintin me é família, com ele cresci, lendo-lhe os álbuns em francês antes de saber ler, coleccionando desde o princípio a revista semanal, elegendo desde logo o capitão Haddock como verdadeiro alter ego. Por nele ter aprendido a reconhecer esses tantos trinados do "eu rio de me ver tão bela neste espelho". Por tudo isso tanto me irritam esses jornalistas "culturais", "críticos" de banda desenhada, lentes universitários, "activistas" múltiplos, em potlatchs de anacronismo ignorante a invectivarem Hergé, o colonialismo racista em Tintin. Incapazes de perceberem a evolução intelectual do jovem Georges Remi? Nada disso. Recusam essa via pois não lhes "dá jeito" ao perorar "activista". Pois, entre tantas coisas, se descobrem agora "devolução" ou "reparação", como poderão lembrar "As 7 Bolas de Cristal" (1943!!!!!) ou a sequela "O Templo do Sol"? Ou o tão pioneiro que até excêntrico na época "Carvão no Porão" (1956) - preferem clamar contra os "lábios" das personagens negras, os "estereótipos", choram. De facto, bem no fundo, não perdoam a Georges Remi a absoluta clarividência, a radical autocrítica do "pensamento ocidental" aposta no seu final "Tintin e os Pícaros". No qual desnudou o pérfido guevarismo, esse que habita a mente destes "críticos" de pacotilha.
 
Por isso é bom evitar essas bolhas. Da mansidão que se quer tonitruante, se diz bem-pensante. E ver o mundo, discutindo-o, fruindo-o. Nisso melhorando-o. Com pensamento, crítico e até radical se necessário. Sem folclorismos. "Interseccionais" ou similares.
 
E nisso, nesse afã pelo mundo, na sua rugosidade, muito para além das tais "bolhas" esparvoadas, saudar a magnífica saída da Selecção de futebol da Bélgica, os "Diables Rouges" neste Europeu-2024. Aparecendo à Tintin!!!!!
 
Assim sendo? Allez la Belgique!!!!

O Pensamento "Woke"

jpt, 28.01.24

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Vejo o "E tudo o vento levou", que há muito não revia. Chega agora numa cópia restaurada há cerca de uma década, a avivar-lhe, mesmo que em mera televisão, algum do brilho fílmico que incendiou os cinemas aquando do seu aparecimento, fenómeno que foi. Lembro-me, vagamente, da primeira vez que o vi, petiz junto à minha mãe em cinema de grande tela - talvez o "Monumental", bem antes deste ser uma vulgata envidraçada de vendilhões do templo, talvez o "Império", também antes deste ser um templo de vendilhões.

Ela adorava o filme, percebi depois e lembro agora, saudoso, que por venerar Scarlett, feita arquétipo de pessoa, suplantando-se entre a candura e a estratégia, numa franqueza ardilosa, símbolo da mulher adequado ao circundante, mais necessário de afirmar em tempos já tão distantes que a boa língua portuguesa sobrevivia sem patacoadas como "resilência"... Ao longo dos anos regressei ao filme algumas vezes, percebendo que - afinal - articula o dramalhão comercial com o desfazer dos aparentes estereótipos, pois não só desfraldando as fraquezas masculinas como escorrendo algum sarcasmo com o estertor daquela nada bela "Belle Époque" escravista. Num filme de guerra sem guerra, assim sem heroísmos encenados, nisso subreptícias justificativas...

Mas ontem nem pensei nisso. Sexta-feira à noite fiquei a ver o filme ao lado dela, Marília, enquanto o meu pai António ia lendo na sua poltrona, alheado como (quase) sempre da televisão. Tinham vindo passar o serão, agradados com a visita que lhes fizera de manhã no cendrário dos Olivais - onde acorrera por razões outras, - tendo-me demorado, ali, junto ao que deles me resta. Até me sentir qual o Anthony Hopkins no final do "O Pai" que vi há dias, que foi o sinal para partir, que nada é bom em demasia.

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Depois do tão esperado e obrigatório "After all, tomorrow is another day", a mãe foi-se deitar e fiquei, como é habitual, de conversa com o pai. Ele disse-me que estou a fumar demais e, como é óbvio, resmungou com a pepineira do "Gone With the Wind". Foi o (por mim ansiado) sinal para politizarmos. Precipitei-me para o controlo e puxei o filme atrás - coisa que ele nunca faz, estranhando estas novas tecnologias - até ao princípio. E logo concordámos no ditirambo contra este pensamento "woke", paupérrimo arremedo de reflexão. Tanto barulho fazem os seus "activistas" para expurgar a história, para tutelar mentes, para "analisar" o "abissal" mundo. E para apenas saracotearem coisas como esta: enfrentar um filme destes, com o impacto que teve, quase quatro horas de filme, num argumento com as camadas que tem, e julgam relevante e necessário anunciá-lo como "produto da sua época e retrata preconceitos raciais e étnicos", como se houvesse algo que não o seja. E é com esta pobre mentalidade que se agitam, ufanos na crença de que "para criar um futuro melhor é necessário primeiro conhecer e compreender a história"... Assim?

O pai abanou a cabeça, em desprezo, e nisso tanto concordamos na aversão a esta pobre gente adormecida, enlevada consigo própria, tanto que se dizem "Acordados", essa sempre dita "esquerdalhada". Avancei um pouco o filme e digo-lhe "vê esta cena, pai", o baile no qual a jovem viúva Scarlett dança pela primeira vez, assim quebrando as regras do nojo, com o galhardo Rhett. E ela, enquando rodopia, diz-lhe "Mais uma dança e perderei a minha reputação para sempre", ao que ele responde "Se tiver coragem, pode viver sem a sua reputação". E o  meu pai, o Camarada Pimentel, sorri, anui, nem preciso de lhe explicar o que quero dizer - até porque já cheguei à idade em que não só o compreendo como também ele me percebe. "Querem a história sem "grão", como o dos filmes antigos, a história como "cópia digital restaurada", atiro. "É isso", diz, aceita. E repete que estou a fumar demais. Depois vai dormir. Estando, claro, acordado mas nunca "woke"...

O Conde de Ferreira

jpt, 31.05.23

Há 11 anos José Capela publicou o livro "Conde de Ferreira e Cª: Traficantes de Escravos", colecção de biografias de comerciantes de escravaturas ("negreiros") do século XIX. Quando ele morreu deixei no "Canal de Moçambique" esta muito breve recensão a esse livro (e a outro que ele publicara no ano seguinte, uma verdadeira pérola: "Delfim José de Oliveira..."). Foi uma espécie de homenagem minha, pois Soares Martins (de pseudónimo Capela) fora muito importante na minha vida e tinha (e tenho) para ele uma enorme gratidão. E um grande respeito intelectual, também (mas não só) por ter passado décadas a vasculhar documentos e a publicar, sem pejo nem adornos, sobre como o comércio de escravos foi estruturante no pré-colonialismo português em Moçambique. E como isso moldou as características do subsequente regime colonial - apesar das tralhas lusotropicalistas e lusófonas que vão subsistindo, já para não falar das dulcificadas invocações dos "bons velhos tempos", que tanto misturam as normais (e respeitáveis) memórias individuais de juventude com pronunciamentos de cariz sociológico. Enfim, talvez com um bocadinho de exagero, mas cheguei aos 50 anos com a sensação de que se tive algum "maître à penser" acabou por ser ele... sem que isso possa macular a sua memória devido às atoardas que vou botando. Mas já estou a divagar, avante,
 
Nesse "Conde de Ferreira..." Capela deixou explícito que vários desses comerciantes de escravos regressaram do Brasil mais ou menos após a ilegalização da actividade e se integraram na sociedade do novo regime liberal (e o financiaram), usando as doações beneficientes para ascenderem socialmente. Nisso também patrocinando instituições que ainda existem (misericórdias, hospitais, etc.).
 
Sei agora por intermédio do historiador João Pedro Simões Marques que aconteceu o que eu esperava há já anos - os cirugiões plásticos da História descobriram o Conde de Ferreira (tão presente por esse Portugal afora, ainda que quase ninguém saiba quem foi). E o "Público" (claro) já está em ardores de expurgar as tais instituições dessa memória...
 
Eu continuo na minha, ao que consta na documentação da época (ainda que um pouco posterior) o malvado D. Pedro I não só castrou um aio devido aos seus ilegítimos actos sexuais (um antecessor do prof. Ventura e seus acólitos, está visto) como matou por mãos próprias uns esbirros do seu pai (e terá até comido parte do coração de um deles, a crer ou no cronista ou na colecção de cromos a que tive acesso). E apesar de tudo isso, que tanto agride os actuais valores, continua ali, plantado no centro do nosso Mosteiro de Alcobaça, como símbolo de amor, ainda por cima. Não será, mesmo, de acabar o que os franceses começaram, e rebentar-lhe com a tumba? Ou, pelo menos, retirá-la dos nossos olhos, evitar aquele elogio à memória da ditadura, da pena de morte e da castração por infidelidade amorosa (invertida ou não)?

Pelas quotas étnico-raciais

Paulo Sousa, 31.05.23

Este episódio já descrito como miraculoso, que foi  descoberto no distante e rural Missouri, noutros tempos seria suficiente para uma beatificação meteórica, elevação de um templo e romagens devotas.

A incorruptibilidade de um corpo inumado não é coisa com que se brinque, ainda mais por se tratar da fundadora de uma congregação beneditina.

A diocese de Kansas City pede calma e orações aos fiéis. Há que dar tempo ao tempo.

A madre Cecília, actual superiora da congregação, afirma tratar-se da primeira afro-americana a ser encontrada incorrupta nos EUA.

Aguardam-se reações da vanguarda woke. Por cada dia a mais, que a Congregação das Causas dos Santos demore a elevar a Madre Wilhelmina, no mínimo a figura venerável, só confirma o poder do patriarcado (neste caso literal) que governa o Vaticano.

A esquerdalhada

jpt, 29.05.23

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Num postal recente usei o termo "esquerdalhada" (que me é habitual). E logo três amigos me enviaram mensagens, pois com ele incomodados. Nos comentários recebidos (no meu mural de Facebook) também surgiu algum desconforto - e mesmo imprecações. Naquela plataforma a ligação ao texto foi partilhada por outros - o que lhes agradeço - em cujos murais também notei algumas reacções desagradadas, até furiosas. Isto mostra a vigência de um sentimento pelo qual sobre os locutores de “esquerda” não se deve verbalizar menosprezo ou desrespeito pelas suas atrapalhadas ou aldrabadas opiniões.

Reacções ao invés das esperadas face à rapaziada da direita. Sobre esta há dois termos que vão surgindo: o mais raro “direitinhas” - em tempos consagrado em banda desenhada publicada no “Diário”, o jornal do PCP dirigido por Miguel Urbano Rodrigues -, mas que não vinga muito dado o tom pouco ferino que aquele sufixo sempre dá. E o mais habitual - e quase automático - “fascistas” (ou “faxos”), uma evidente desvalorização ética e intelectual.

 

 

Expurgar Agatha Christie

jpt, 27.03.23

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Agora todas as semanas segue mais um "expurgo", "protector" das "sensibilidades", "racializadas" ou quejandas. O mais recente  é com os livros de Agatha Christie, toca a retirar-lhes termos que possam ofender alguns trastes - é a instrução dada pela sua editora, atenta aos temíveis efeitos actuais das agressões cometidas pelos pressupostos de época de Miss Marple, Hercule Poirot e restantes personagens daquele pequeno emaranhado pós-vitoriano, tão pequeno-doméstico de facto.

Tendemos a confundir estas trapalhadas - o outro dia foi notícia que uns rústicos americanos, lá de uma aldeia de fundamentalistas cristãos, despediram a directora de escola porque havia mostrado uma obra-prima renascentista aos petizes, ofendendo-lhes as progenituras devido ao pequeno pirilau aposto por Michelangelo ao "David". Gente do mesmo universo que volta e meia é notícia por querer impor o ensino do criacionismo nas suas escolas locais - efeitos directos da peculiar administração escolar dos EUA e consequências do molde de secularismo (comunitarismo) desbragado que vigora naquele país. E que por cá os esquerdistas querem assumir - a maioria dos quais sem mesmo perceber que é disso que falam, tamanha a indigência intelectual que os caracteriza. 

Mas estas “depurações” literárias que se vão acumulando têm outra dimensão… Não provêm de minorias social e geograficamente excêntricas. Vêm embrulhadas no capital “cultural”/“académico” dos proponentes e defensores e estão a penetrar nas administrações dos grupos económicos editoriais. Tornam-se “elite”, “norma”. E há imbecis à nossa volta que os defendem…

E agora, o nosso momento zen

João Sousa, 20.02.23

Livros de Roald Dahl sofrem alterações para remover linguagem "ofensiva" (...)

Augustus Gloop, por exemplo, o rapaz gordinho de "Charlie e a Fábrica Chocolate", com uma camisola às riscas vermelhas e brancas, viciado em chocolate, agora será “enorme” ao invés de “gordo”  (...)

Segundo o Daily Telegraph, a editora Puffin contratou leitores "sensíveis" para reescrever fragmentos dos textos, garantindo assim que "eles possam continuar a ser apreciados atualmente por todos". (...)

As alterações foram feitas, sobretudo, ao nível das descrições sobre a aparência física dos personagens, onde se encontram palavras como "gordo" e "feio".

Em “The Witches”, de acordo com o The Guardian, no parágrafo em que as bruxas são carecas sob as perucas, é acrescentada uma frase que Dahl nunca escreveu: "Existem muitas outras razões pelas quais as mulheres podem usar perucas e certamente não há nada de errado com isso". (...)

Nas publicações, as palavras “preto” e “branco” também não são usadas, e "louco" ou "insano" também já não é utilizado “​​em defesa da saúde mental”.

A editora Puffin e a Roald Dahl Story Company fizeram as mudanças juntamente com o "Inclusive Minds", um grupo que o seu porta-voz descreve como "um coletivo de pessoas apaixonadas por inclusão e acessibilidade na literatura infantil".

(no Jornal I)

 

(...) References to “female” characters have disappeared. Miss Trunchbull in Matilda, once a “most formidable female”, is now a “most formidable woman”.

Gender-neutral terms have been added in places – where Charlie and the Chocolate Factory’s Oompa Loompas were “small men”, they are now “small people”. The Cloud-Men in James and the Giant Peach have become Cloud-People. (...)

Alexandra Strick, a co-founder of Inclusive Minds, said they “aim to ensure authentic representation, by working closely with the book world and with those who have lived experience of any facet of diversity”. (...)

(no The Guardian)