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Delito de Opinião

Os hereges

Pedro Correia, 08.01.25

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Quando oiço por aí falar em "desertor", ou leio palavras como "fugitivo" ou "foragido" a propósito de treinadores que mudaram de clube, questiono-me se os adeptos da bola quererão falar de Ruben Amorim ou de Rui Borges.

Seja o visado quem for, estão errados.

Na sexta à noite, em Guimarães, o novo técnico leonino recém-contratado pelo Sporting vindo da cidade-berço foi recebido com gritos (e tarjas) a chamarem-lhe "traidor". Nestas alturas verifico a enorme semelhança que pode haver entre um clube de futebol e uma seita religiosa - com os seus fiéis, os seus anátemas, os seus hereges. "Traidores", "desertores", "renegados" e expressões do género são típicas de seitas vocacionadas para espalhar o ódio.

Essa é a parte do futebol que menos me interessa. Aliás, é uma parte do futebol de que não gosto nada.

Chama-se Tiago

Pedro Correia, 30.10.24

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Finalmente sabemos o nome dele. Durante mais de uma semana, era apenas «o motorista da Carris». Sem direito a identidade, vítima indefesa de um cobarde bando de encapuzados quando desempenhava o seu trabalho: transportar pessoas para as periferias pobres de Lisboa. Servia a comunidade, cumprindo o dever profissional, em Santo António dos Cavaleiros (Loures).

Não abriu telejornais.

Ninguém indagou o seu tom de pele.

Ninguém o louvou, ninguém o enalteceu, ninguém se lembrou sequer de mencioná-lo pelo nome de baptismo: Tiago.

Tem 42 anos, permanece internado na unidade de queimados do Hospital de Santa Maria. Aparentemente com lesões no aparelho respiratório que lhe ficarão para o resto da vida - consequência do brutal ataque com cocktails Molotov quando transportava os últimos passageiros na última paragem da última viagem daquela fatídica madrugada que terminou com a destruição total do veículo. Alegadamente a pretexto de «vingar» a trágica morte do comerciante cabo-verdiano Odair Moniz, vítima de um deplorável disparo policial no bairro do Zambujal (Amadora).

O agente da PSP está já indiciado por homicídio. Quem atacou Tiago com selvajaria, quase o condenando à morte, permanece impune. 

 

Dos 23 suspeitos detidos e identificados por alegado envolvimento em 155 actos de fogo posto, dano e resistência à polícia de que resultaram quatro autocarros carbonizados, pelo menos 36 veículos ligeiros destruídos e centenas de contentores e ecopontos incinerados, nem um ficou em prisão preventiva. Alguns foram libertados com a solene advertência de estarem proibidos de usar isqueiros, o que já gera anedotas a nivel nacional. Pondo a justiça a ridículo.

«Se o barril de pólvora estourar com maior intensidade, estamos muito longe de conseguir aplicar com rigor, celeridade e eficácia, a boa receita que Keir Starmer utilizou no Reino Unidos, nos tumultos de 2007 e agora, já este ano», observava ontem Eduardo Dâmaso numa lúcida nota editorial no Correio da Manhã

Aviso feito: convém levá-lo a sério. E pôr fim à indecorosa prática da indignação selectiva. Que pode tornar-se num extremismo tão pernicioso como outro qualquer.

 

Leitura complementar:

O direito ao nome do assassinado (Delito de Opinião, 16 de Dezembro de 2020)

Um solavanco civilizacional

Paulo Sousa, 29.10.24

O que na evolução biológica do sistema nervoso central existe de mais antigo manifesta-se nos instintos e é por isso que os partilhamos com todos os outros animais da criação. É uma história com milhões de anos de que não serei o mais entendido para aqui a explanar, e muito menos em tamanho adequado a um postal, mas que se pode simplificar dizendo que as nossas competências sociais “residem” em camadas que se formaram posteriormente e que são por isso por isso muito mais recentes.

É desse núcleo central, o cérebro reptiliano, que dependem os impulsos para se alimentar, para se reproduzir e, em caso de ameaça, para fugir ou atacar. O sistema nervoso dos répteis vai pouco além destes destas funções básicas que asseguram a sobrevivência e a manutenção da espécie.

As emoções e a racionalidade dependem de camadas posteriores do sistema nervoso. A empatia, a capacidade de se chegar a um compromisso, a noção de futuro, qualquer conceito de ética, o respeito, a gratidão, entre muitos outros, são luxos extra que equipam apenas uma minoria dos animais onde incluo os seres humanos. Mesmo para esses animais mais apetrechados, em ocasiões pontuais, nomeadamente sob ameaça, o instinto reptilineo toma conta das ocorrências e impede que as emoções, e muito menos a racionalidade, se manifestem.

Os nossos comportamentos resultam por isso desta trilogia de instinto, emoções e racionalidade e aquilo que conhecemos por civilização seria impossível sem esta última.

Todos sofremos, e beneficiamos, das consequências dos enviesamentos cognitivos que nos condicionam as escolhas. Bem sabemos como ir às compras antes ou depois de uma refeição tem implicações no valor final da factura, assim como na sua composição. Em certas circunstâncias, há coisas que escapam ao nosso controlo.

As emoções são um poderoso combustível para mobilizar os indivíduos e agitar as massas e, por oposição, em escolhas sob pressão, a racionalidade é facilmente deixada cair.

As mensagens políticas populistas assentam em ideias simples e emocionais, enquanto que a moderação está muito mais ligada à racionalidade e à tal civilização. São muito raros os políticos que não recorrem a mensagens populistas. Alguns fazem-no pontualmente e outros em regime de exclusividade.

E o que é que isto tem a ver com os acontecimentos dos últimos dias? Tem tudo a ver.

Que consequência positiva pode existir ao apelo para que a polícia dispare mais vezes a matar? Que consequências positivas decorrem de incentivo à desobediência à autoridade ou a se incendiar um caixote do lixo, um automóvel ou autocarro? Qual a racionalidade dos apelos dos radicais? Fazem-no para explorar os nossos impulsos irracionais do “fazer o gosto ao dedo”, da vontade de desta vez “lhes dar uma lição”, da procura de alguma adrenalina, do reencontro com as nossas antropológicas raízes tribais e sem esquecer o “isto não vai a bem, vai a mal”. Todos estes impulsos dispensam da racionalidade do compromisso e é esse o território preferido dos radicais.

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Os populistas, mais ou menos cavernícolas, mais ou menos lunáticos, tentam agitar-nos as emoções para aceder ao nosso cérebro reptiliano. É nesse estado de espírito que nos tentam manter e não me surpreenderia que em futuras eleições distúrbios provocatórios antecipem o momento do voto. O sucesso destes partidos incendiários depende de indivíduos em estado de agitação, limitados por isso na sua a racionalidade e, dessa forma, afastados igualmente da civilização.

E é isso ao que temos assistido. Não estamos perante o fim dos tempos, mas sim a viver um solavanco civilizacional, cavalgado e alavancado por mesquinhos interesses partidários.

Passam a ter vida ainda mais difícil e dura

Pedro Correia, 25.10.24

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No domínio dos eufemismos, que por estes dias inundam os canais de televisão a propósito da onda de vandalismo na cintura de Lisboa, nem sei quais devo destacar. Abundam as referências a «jovens» para designar com suavidade os supostos autores de danos à propriedade pública (quatro autocarros da Carris Metropolitana, diversos contentores do lixo, ecopontos, bancos de jardim e outros equipamentos urbanos) e à propriedade privada (largas dezenas de automóveis regados com jerrycans ou brindados com cocktails Molotov e vidros de residências estilhaçados, além da tentativa felizmente falhada de pôr a arder pelo menos um posto de venda de combustíveis). 

Meros «incidentes», banais «desacatos». Assim designados por benévolos repórteres, como se testemunhassem vulgares altercações de trânsito em hora de engarrafamento rodoviário. Outros, confundindo a árvore com a floresta, aludiam a «conflitos entre populares e polícia», como se esta dicotomia fizesse algum sentido num cenário destes. Houve até quem garantisse haver «revolta da população» na tentativa - obviamente falhada - de justificar os distúrbios que puseram vários concelhos a ferro e fogo durante noites consecutivas. Em locais tão diferentes como Carnaxide, Damaia, Alfragide, Santo António dos Cavaleiros, Queluz, Pontinha, Cacém, Rio de Mouro, Brandoa, Arrentela, Laranjeiro e até na pacata Trafaria.

 

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Mas elejo afinal o verbo arder. Numa insólita voz passiva.

Viaturas queimadas, incendiadas, destruídas pelo fogo posto, reduzidas a uma dantesca porção de ferros retorcidos? Nada disso: apenas «carros ardidos». Como se fosse combustão espontânea, fenómeno natural, talvez até consequência desse amor romântico que arde sem se ver, forma subtil de celebrar o quinto centenário de Camões.

 

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Um dos carros vandalizados era de uma humilde residente no chamado Bairro Novo, em Loures. Ainda em estado de choque, dizia ela à RTP: «Eu não sou culpada de nada, não sou culpada de nada. O meu carro era recente, comprei-o em Maio do ano passado.» Enquanto uma senhora idosa relatava o que lhe sucedera naquela noite de pavor: «Saí por uma porta para o quintal, saímos todos, pensávamos que o prédio ardia.» Aterrorizada pelos vândalos.

Sem querer, alguns jornalistas seguem a máxima do angelical Padre Américo: não há rapazes maus. Ardendo de compreensão por delinquentes que aplicam a política de terra queimada e mantêm sob sequestro os habitantes destes bairros desfavorecidos na periferia da capital. Gente que trabalha muito e ganha pouco. Gente que tem servido de pasto a indecorosos extremismos políticos. Gente que passa a ter a vida ainda mais difícil, mais insegura, mais carregada de incertezas.

Sem eufemismos de qualquer espécie.

Pano para mangas (1.ª parte)

Cristina Torrão, 13.10.24

Por vezes, uma pessoa fica desanimada, pensa em desistir. Julga-se sozinha, sem apoios, e começa a duvidar da justeza do que pensa e escreve. Sei que há frequentadores do Delito que me odeiam, habituei-me a muitos tipos de ataques. Confesso, porém, que fiquei siderada com o teor de certos comentários a este postal. Já tinha contado com controvérsia, mas não deste calibre.

Felizmente, surge sempre uma luz, que nos devolve a esperança e nos confirma que vale a pena (sempre, como dizia o poeta). Desta vez, muita dessa luz veio na forma de um comentador (ou comentadora) anónimo.

Quem diria que violência exercida sobre uma mulher ainda causa tanta controvérsia? Quem diria que Maria Teresa Horta ainda gera tal impacto, passado tanto tempo?

Nesta primeira “manga”, venho, acima de tudo, fazer justiça a Patrícia Reis. Porque também ela foi criticada, muito me surpreendendo. Limitei-me a citar de um seu livro. A fim de não tornar o postal muito longo, fiz alguns cortes, porque, pensei eu, o essencial estava dito. Pretendia apenas chamar a atenção para um caso de violência, num regime ditatorial. Mais nada!

Pelos vistos, porém, as frases cortadas fizeram muita falta. Um colega de blogue decidiu comentar:

"Patrícia Reis escreve de forma atabalhoada e o excerto que publica é exemplo disso.
Maria Teresa Horta não é uma coitadinha, é uma mulher que teve acesso à imprensa, que publicou crónicas, que sabe escrever, qual a razão para nunca ter publicado um episódio tão traumático pela própria pena?

MTH terá cerca de 1.50 m e pesará cerca de 50 kg, seriam necessários dois homens para a imobilizarem? Deitarem-se sobre ela em simultâneo e espancarem-na ao mesmo tempo?

(…)

Acredito que o episódio aconteceu, não acredito que tenha acontecido como Patrícia Reis (PR) o descreve, por razões práticas. MTH terá referido esse episódio "en passant" e PR deu-lhe uma importância que ele não teve para a biografada, caso contrário, MTH teria escrito sobre ele.
Esse episódio é mais um exemplo de "wokismo" a mulher vítima da brutalidade masculina. A mesma tónica não é colocada em quem o salvou, um homem, um heróico vizinho do sexo masculino que arriscou a própria vida para a salvar e que a acompanhou de táxi para o hospital".

Ora, como Patrícia Reis escreve no prefácio deste livro (que não intitula "prefácio", mas "antes de tudo"), para escrever esta biografia, ela passou muito tempo com Maria Teresa Horta, as duas tiveram muitas conversas. E, como o comentador anónimo referido revela, Maria Teresa Horta já tinha descrito este espancamento numa entrevista dada a Ana Sousa Dias, publicada na LER, em Novembro de 2013. O comentador (ou comentadora) fez o favor de transcrever o excerto referente a este ataque, que, no essencial, não difere do relato feito por Patrícia Reis:

"Ana Sousa Dias - (Recebia) Insultos de ódio?
Maria Teresa Horta - De ódio. «A tua mulher é uma esta, uma aquela, a tua mãe é uma puta, uma desgraçada». Quando era eu a atender, desligava o telefone. Tive uma conversa com o Luís Jorge*, expliquei-lhe (a situação). Uma noite saí de casa para ir ter com o Luís, que estava no jornal. O Luís Jorge estava em casa da minha sogra. Nós morávamos no Bairro Social do Arco do Cego, que é muito solitário. Ia apanhar um táxi e um carro parado acendeu as luzes. Reparei, mas só depois pensei nisso. O carro veio atrás de mim, meteu pelo passeio e parou mais adiante. Saíram dois homens e eu podia ter fugido, mas não havia motivo para pensar que havia perigo. Avancei, eles ficaram à espera, pensei: «Que estranho, o carro vinha pelo passeio e parou ali.» Mal penso nisto, eles atiram-me ao chão, começam a bater-me com a cabeça no chão e a gritar: «Isto é para tu aprenderes a não escreveres como escreves.» Um senhor do bairro apareceu, pensou que me estavam a roubar. Eles meteram-se no carro, onde tinha ficado um, e vão desarvorados. Disse ao senhor o que se tinha passado, ele levou-me para casa e telefonou ao Luís. Depois levou-me para o Hospital de Santa Maria e o Luís foi lá ter. Fiz radiografias, não tinha lesões, voltámos para casa".

*filho de Maria Teresa Horta e de Luís de Barros que era, à altura, uma criança.

O episódio teve de facto importância na sua vida. Como a biografia explica, ele foi mesmo o motor para a escrita das Novas Cartas Portuguesas (para quem achar necessidade de provas, também posso transcrever essa passagem, numa terceira parte; talvez fiquemos com o pulôver completo).

Também o vizinho que ajudou Maria Teresa Horta merece destaque, na biografia. Por isso, cai por terra a tese "exemplo de wokismo". Para o provar, decidi transcrever toda a cena, com citações de palavras da própria Maria Teresa Horta, assim nos transportando para as conversas que ela teve com Patrícia Reis, provando que não referiu o episódio "en passant":

"Quando chegou à curva da Rua Caetano, viu um carro estacionado, à sua frente, que acendeu as luzes. Teresa não lhe deu importância. O automóvel arrancou. Subitamente, em pânico, percebeu que vinha na sua direcção, que a ideia era esmagá-la contra a parede. Felizmente estava perto de um dos candeeiros de rua e conseguiu evitar o embate do carro. «Para trás eu não podia ir, não podia correr para casa. Portanto tinha de andar para a frente, para a estátua, que era onde eu queria chegar, na esperança de que existisse por ali mais gente». Teresa apressou o passo, quase a correr. Ouviu as portas do automóvel baterem, dois homens vieram na sua direcção, um outro ficou dentro do automóvel que se movia agora devagar, sempre na sua direcção. Os dois homens alcançaram-na. Deitaram-na ao chão. Teresa caiu de costas e eles ficaram em cima dela a espancá-la. Disseram-lhe: «Isto é para aprenderes a não escreveres como escreves». Pareceu-lhe que tudo aquilo durou horas, os murros, os tabefes, mas devem ter sido minutos. Cada vez que se queria levantar, batiam-lhe na cara, na cabeça. Teresa sentiu que tinha a cabeça aberta atrás e à frente, havia sangue e um prenúncio de várias dores no corpo. Um vizinho do bairro começou a subir a rua, gritou, pensava que eram ladrões. Os dois homens aperceberam-se da sua presença e entraram no automóvel. O trabalho estava feito. O vizinho gritou por ajuda. Teresa recorda-se de o ouvir dizer: «O que é isto?! Roubaram-na, roubaram-na, que horror... Está toda cheia de sangue!» O vizinho não a queria deixar sozinha. Teresa insistiu que ele fosse a casa, telefonar a Luís de Barros, receava que já tivesse saído do jornal e só queria ver o marido. Felizmente não foi o caso e Luís de Barros encontrou-se com ela já no Hospital de Santa Maria. «Ficámos convencidos, mesmo politicamente, de que eles eram legionários, a PIDE não trabalhava assim, não batia na rua. Não era o modo deles. Os legionários eram um braço fascista. Até hoje acho isto. Combinaram serem eles, saíra o livro e estavam ofendidos. Foi uma desgraça. Não fiquei deprimida, nada disso, a PIDE e os fascistas não têm esse poder sobre mim. Isso queriam eles, nem pensar.»

Teresa foi para o Hospital de Santa Maria de táxi com o vizinho. Possui uma lembrança muito vaga da viagem até lá. Fez radiografias, levou uma série de pontos na cabeça. Tinha o corpo coberto de hematomas, as pernas e os braços com escoriações. Não se recorda de chorar, nunca foi muito de chorar. «Uma escritora não tem de ser sensata nem prudente, tem de ter consciência do que se faz, mas não se autocensura.»

Sobre tudo isto conversou com Maria Isabel Barreno e com Maria Velho da Costa."

(pp. 220/221)

Chamo a atenção para o facto de que passagens mais confusas em toda esta descrição (também na entrevista da LER) terão a ver com o estado de choque de Maria Teresa Horta. Ou estavam à espera que uma pessoa, no meio de um ataque deste calibre, teria, mais tarde, discernimento para o descrever cirurgicamente?

 

Adenda: o meu colega de blogue visado neste postal é o Pedro Oliveira (aliás, o facto de eu não o ter identificado, não significa que tal teria de ficar em segredo, basta ir à outra publicação para o verificar). Entretanto, já fizemos as pazes. No fundo, fomos os dois levados pela dinâmica negativa que se formou nessa caixa de comentários. Não nego que entrei em stress. E hoje, mais calma, respondi-lhe num comentário que ele perfeitamente aceitou. Foi mais ou menos o conteúdo desse comentário que usei neste postal.

A barbárie está no meio de nós

Pedro Correia, 22.04.22

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O Mal existe. Tem nome e rosto. Tem identidade própria. Tem alegadas «motivações», propaladas aos quatro ventos através da caixa de ressonância dos órgãos de informação. Tem até defensores - uns por razões políticas, porque interessa «destruir o sistema», outros simplesmente porque sim.

Não faltam aqueles que procuram negar a existência do Mal. Desde logo por crerem na bondade intrínseca à natureza humana: essas excelentes almas acreditam convictamente que não há rapazes maus. Ou por negarem validade às estruturas axiológicas: esses são os que argumentam pela irrelevância das fronteiras entre o Bem e o Mal, sobretudo porque as imaginam sempre contaminadas de conteúdo religioso. Sem repararem que tantas vezes, ao difundirem tal crença, assumem com frequência um fervor simétrico ao dos mais ortodoxos fiéis de uma determinada igreja.

E no entanto o Mal existe. Podemos vislumbrá-lo em múltiplas erupções quotidianas. No indivíduo que pela calada da noite, há poucos anos, punha uma bomba no carro de um autarca basco e encolhia indiferentemente os ombros quando a explosão desse veículo matava crianças que ignoravam o significado da palavra nacionalismo, considerando-as «danos colaterais» - o homicídio mais aleatório elevado à categoria de instrumento de acção política. O monstro de sorriso gélido que planeou friamente a execução sumária de algumas dezenas de adolescentes num acampamento de férias na Noruega e acabou classificado de inimputável por um colégio de psiquiatras. O fanático anti-semita que transforma o ódio étnico, cultural ou religioso em senha de identidade à margem de todos os considerandos de ordem moral, convertendo o massacre de seres humanos numa espécie de mandamento ditado pelo sectarismo mais irracional.

Foi preciso correr o sangue de inocentes para também a França republicana e laica reparar que albergava a semente do Mal no seu seio iluminista com atentados como o de 2016 em Nice ou o massacre na redacção do Charlie Hebdo.

 

Não adianta proclamar, como fazem saudosos discípulos de Sartre, que o inferno são os outros. Não tenhamos ilusões: a barbárie está no meio de nós. E ganha terreno quando tentamos justificá-la com indiferença cúmplice invocando argumentos de sociologia política para validar as cartilhas ideológicas que autorizam a dissolução da dignidade humana em benefício de impulsos liberticidas. Como se os fins justificassem todos os meios. Como se houvesse equivalência moral entre carrascos e vítimas. Não há, em absoluto: a tragédia na Ucrânia bem o demonstra.

«Observar um crime em silêncio é cometê-lo», ensinou-nos José Martí. Nada mais certo. Não podemos resignar-nos ao poder da barbárie. Nem tolerá-la. Nem «compreendê-la». Nem deixar que ela se banalize a tal ponto que comece até a ser encarada com indiferença. Enquanto os cadáveres se amontoam e mastigamos qualquer coisa à hora do telejornal.

 

Imagem: O Massacre dos Inocentes (1609-11), de Rubens

O apogeu do ofendido

Pedro Correia, 29.03.22

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Sinal dos tempos: um comediante que ganha a vida a fazer humor perde a cabeça e agride um colega de profissão, em pleno palco, com mais de 15 milhões de pessoas a assistirem à cerimónia, só nos Estados Unidos. Não contente com isso, desata a injuriá-lo aos gritos. Qual o crime cometido pelo colega? Uma piada inócua sobre o visual da mulher do agressor, que se sentiu ofendido.

Tudo isto na chamada «noite dos Óscares», em que a indústria do entertenimento norte-americana se homenageia a si própria numa gala anual que congrega vedetas milionárias do sector -  várias das quais construíram as respectivas carreiras com piadas muito menos inócuas do que esta que motivou a agressão. Se cada visado nessas graçolas respondesse da mesma forma, haveria um cenário de violência generalizada e compulsiva: toda a indústria andava à tareia.

 

Aqui o mais preocupante é o retrocesso que representa na liberdade de expressão. O lote de temas interditos vai aumentando, com o aplauso dos basbaques. Fazer uma simples piada, seja sobre que assunto for, logo provoca ondas de indignação das facções tribais que se sentem atingidas - pelo sexo, pelo género, pela orientação sexual, pela pigmentação da pele, pela etnia, pela religião, pelo sotaque, pela filiação clubística ou pelas características físicas ou psicológicas. 

«A liberdade de odiar jamais esteve tão descontrolada nas redes sociais, mas a liberdade de falar e de pensar nunca esteve tão vigiada na vida real», sublinha a escritora francesa Caroline Fourest, colaboradora do Charlie Hebdo, num estimulante ensaio intitulado Geração Ofendida - Da polícia cultural à polícia do pensamento (tradução minha, pois a obra ainda não existe em português).

Agora qualquer ofendido é levado em ombros, justificando o silenciamento dos supostos ofensores. «Nos Estados Unidos, basta a palavra "ofender" para que uma conversa seja apagada», observa Caroline Fourest, sublinhando: «As sociedades contemporâneas puseram o estatuto de vítima no posto mais elevado do pódio.» 

 

Que o amor à liberdade está em retrocesso acelerado é algo que se comprova nas redes sociais pelas reacções de generalizado aplauso ao agressor, Will Smith, nas últimas 24 horas. Aplausos até daqueles que desatariam aos gritos, denunciando o suposto carácter «racista» do incidente, se o humorista negro Chris Rock tivesse sido esbofeteado por um colega de pele mais clara em idênticas circunstâncias. 

Pouco antes, numa das mais apolíticas cerimónias de distribuição de estatuetas da última década, a vasta plateia tinha mantido meio minuto de silêncio em homenagem às vítimas da brutal agressão russa à Ucrânia.

Triste simbolismo o daquela noite no Teatro Dolby, em Los Angeles: minutos depois, fazia-se ali a demonstração prática de que a violência física é o método mais recomendável para a resolução de conflitos. E triste recado ao mundo vindo da chamada América «liberal» - tão rendida afinal aos expedientes das autocracias, tão transparente nesta crescente aversão à liberdade.

Um assassinato

jpt, 23.03.22

Um assassinato é ainda mais doloroso quando incide sobre um jovem. E manda a decência que haja algum recato, não se instrumentalizando o drama familiar para proveitos ou derivas retóricas. Ainda assim noto que o recente assassinato do jovem agente policial em Lisboa, em plena via pública, não colheu qualquer comentário do Bloco de Esquerda nem do partido LIVRE, habitualmente muito loquazes sobre matérias similares, e ágeis em extrapolações generalizadoras.

Notícias do crime, cá e lá

Pedro Correia, 25.03.21

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Como aconteceu no mesmo dia, a comparação pode ser feita.

Nos EUA, um indivíduo desata aos tiros numa superfície comercial e acaba por matar dez pessoas, em Boulder, Colorado: horas depois ficamos a saber quase tudo sobre este crime. O nome e a idade do presumível criminoso, se tinha ou não cúmplices, como agiu, quanto tempo demorou a ser detido, que tipo de armamento utilizou, que acusação formal lhe é agora imputada pela justiça criminal. Tomo conhecimento disto assistindo ao Jornal da Noite da SIC, na terça-feira.

Em Portugal, algures no concelho do Seixal, várias viaturas da polícia de intervenção são mobilizadas para um alegado bairro por supostos moradores devido a «alguns distúrbios» nunca concretizados. As forças da autoridade são ali «recebidas com disparos» (revela o mesmo Jornal da Noite) e demoram horas a controlar a situação, havendo necessidade de recorrer ao Grupo de Operações Especiais da PSP e a brigadas de intervenção rápida, que se fizeram transportar em veículos blindados. «Uma força de elite foi chamada depois de almoço», sublinha o repórter num directo feito já de noite.

 

Quase nada ficamos a saber sobre o que realmente aconteceu, no caso português: nem quantos eram os elementos envolvidos, nem a idade deles, nem o tipo de armamento, nem o que esteve na origem dos incidentes, nem quais foram ao certo os danos causados.

Sabe-se apenas que «um suspeito foi detido e outros dois estão em fuga», deixando-se antever que estariam envolvidos só três indíviduos - algo que custa a crer dados os meios policiais utilizados e o longo tempo («a operação demorou perto de sete horas», diz o repórter da SIC) que demoraram a efectuar a solitária detenção.

Na RTP, uma testemunha, de costas para a câmara, alude a «caçadeiras» - não haveria armamento mais sofisticado? E o que terá causado aqueles distúrbios? Alguma festarola clandestina em violação do estado de emergência ou um motivo muito diferente? Justificava-se verdadeiramente o aparato policial envolvido na operação?

Nenhum destes canais me esclarece.

 

Consulto o Público de ontem e continuo sem nada saber. «Cerco policial em Corroios durou várias horas e terminou ao início da noite. Há dois elementos em fuga com PJ no encalço», eis o máximo de pormenores fornecidos na pág. 16. Após duas páginas (centrais) dedicadas à questão do «acesso às armas»... nos Estados Unidos. Na peça sobre o tiroteio na margem sul do Tejo, quase todo o destaque é reservado a críticas de alegados residentes à intervenção policial. Nem sequer ficamos a saber o local preciso onde aquilo aconteceu (Corroios é uma vasta freguesia do concelho do Seixal e a segunda vila mais populosa do País) ou até se foi num verdadeiro "bairro" ou não.

Só na terceira linha a contar do fim, numa peça com 79, surge um vislumbre do que possa ter ocasionado os distúrbios violentos. Quando uma presumível moradora solta esta frase: «De há um tempo para cá começou a história da maldita droga.»

 

De um lado, clareza informativa; do outro, uma nebulosa de interrogações não esclarecidas. Mas logo ali se ensaia, pelo menos num canal televisivo que acompanhei, toda uma narrativa pronta a servir de pseudo-sociologia justificativa da delinquência. Sem nunca se questionar o poder autárquico da zona - no caso, a Câmara Municipal do Seixal, há quase meio século monopólio do PCP. 

De um lado, jornalismo. Do outro, uma coisa em forma de assim, na tentativa canhestra e mal sucedida de o imitar.

Ficámos mais bem informados? Sim, sobre o que aconteceu nos EUA. Só nisso, uma vez mais. 

O direito ao nome do assassinado

Pedro Correia, 16.12.20

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Qualquer indivíduo alvo de violência policial num país como os EUA - e nem precisa de ser espancado e deixado esvair-se até à morte, em arrepiante sessão de tortura - é logo tratado nos media portugueses como alguém com nome e apelido, como se fosse figura do nosso convívio. Há até manifestações públicas, convocadas por redes sociais, enchendo ruas e praças em período de "confinamento", como no início de Junho sucedeu com o norte-americano George Floyd em várias cidades do País. O combate ao racismo sobrepôs-se ao combate ao coronavírus.

Dois meses antes desse crime cometido em Minneapolis, um ucraniano tinha sido violentamente agredido, torturado e enfim assassinado à pancada em Lisboa por presumíveis "servidores públicos", pagos com o dinheiro de todos nós, num departamento oficial supostamente regido por normas de legalidade, transparência, urbanidade e cidadania. No fundo, a tal "ética republicana" com que alguns enchem a boca.

Ao contrário do que ocorreu no continente americano, este crime - que terá contado com cumplicidades várias, numa teia muito mais abrangente do que a do reduto inicial de esbirros homicidas - não comoveu ninguém. Nenhuma manifestação foi convocada, apesar dos óbvios contornos xenófobos do assassínio, nenhuma organização trombeteou em exaltada defesa dos direitos humanos selvaticamente violentados por funcionários públicos. As notícias foram esparsas, acolhidas entre bocejos. Como se toda a indignação doméstica se esgotasse nos protestos por crimes policiais cometidos além-fronteiras.

 

Pior: a vítima não teve sequer direito ao nome. Casado, pai de dois filhos, trabalhador que procurava encontrar em Portugal o sustento que lhe era negado no país de origem, Ihor Homeniuk acabou alvo de novo crime, desta vez de carácter político, social e mediático: o crime da omissão.

Tratado como anónimo, nas semanas e nos meses que se seguiram ao seu brutal homicídio, pelos militantes da indignação selectiva.

Tratado com impiedosa indiferença pelos poderes públicos - designadamente pelo Governo, que só há cinco dias se lembrou de dirigir uma carta de condolências à viúva e de a indemnizar pela trasladação do cadáver há muito efectuada, e pelo Presidente da República, por uma vez recolhido ao silêncio precisamente numa situação em que teria sido imperioso escutar uma palavra sua. Aqui Marcelo Rebelo de Sousa foi o último a falar, quando devia ter sido um dos primeiros.

 

Ihor Homeniuk não tem verbete na Wikipédia, não viu o rosto reproduzido em T-shirts, não leva ninguém a proclamar que "todas as vidas contam" - seja qual for a cor dos cabelos do agredido e violentado, seja qual for a pigmentação da sua pele. E raros são os que escrevem ou pronunciam o seu nome, ao contrário do que aqui fizeram o José Teixeira a 2 de Junho, expressando uma indignação que na altura tornaria redundantes outros textos de teor semelhante, ou o José Meireles Graça a 1 de Outubro, muito antes de os justiceiros de turno acordarem para o facto nas pantalhas cá da terra.

Ontem mesmo, na comissão parlamentar convocada para debater este crime na presença do ainda titular da pasta da Administração Interna, o nome de Ihor Homeniuk raras vezes foi pronunciado: vários deputados, quando muito, acederam em designá-lo por «cidadão ucraniano». E ficaram-se por aí.

 

Já me insurgi no DELITO contra a glória póstuma dos assassinos, que transforma qualquer celerado numa espécie de pop star em televisões e jornais. Já clamei contra os mecanismos comunicacionais, que em horas de barbárie surgem mais preocupados em desvendar o "rosto humano" dos homicidas do que em evocar as vítimas dos seus actos. Hoje venho reivindicar o mais elementar e singelo mandamento humano: o direito a sermos tratados pelo nosso nome, sem sermos reduzidos a uma etnia, uma profissão, uma nacionalidade, um emblema, uma afinidade tribal.

O  homem assassinado a 12 de Março nas instalações do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras no Aeroporto Humberto Delgado (cruel ironia, tão repugnante crime ter ocorrido num local assim baptizado) chamava-se Ihor Homeniuk.

É pelo nome que esta malograda vítima do Estado português deve ser conhecida - e não de qualquer outra maneira.

Notícias do lado de lá da raia

Diogo Noivo, 03.11.20

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Cúmplices na miséria ética e nas pulsões totalitárias, extrema-esquerda e extrema-direita saíram às ruas de Espanha para partir e incendiar. Como é próprio dos cobardes e dos tarados, saíram pela calada da noite. A destruição foi rapidamente partidarizada ao bom estilo guerracivilista: o Vox vê antifascistas a queimar contentores; o Podemos vê fascistas a partir montras. Uns e outros só vêem meio país e só falam para meio país. A outra metade responde pelo nome “inimigo”. A radicalização da arena política espanhola está a alcançar patamares nunca vistos em democracia, nem mesmo nos anos de crispación entre o PP e o PSOE de Zapatero.

As causas são profundas e explicam-se com histórias antigas e vergonhas recentes. As mais imediatas encontram-se no momento da investidura do governo em funções. Afinal de contas, Pedro Sánchez jurou respeitar a Constituição e o Rei apoiado por partidos que desejam destruir a Constituição e depor o Rei. Só por milagre a coisa correria bem.

 

ADENDA: a propósito da violência urbana em curso, recomendo a leitura deste texto do Joseba Louzao no El Subjectivo.

A violência católica

jpt, 11.10.20

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(São Tiago, o Matamouros, por José María Casado del Alisal )

Li há dias que um funcionário farmacêutico lisboeta, por ter defendido uma colega - acto que denota sentir cavalheiresco a indiciar algum machismo -, foi severamente espancado no seu local de trabalho por dezenas de membros de uma família - as parcas notícias do facto são díspares quanto ao número dos agressores, variando entre 20 e 50 ...

A imprensa pouco mais adianta, nem sobre os detalhes do acontecido nem sobre as investigações subsequentes. Não há qualquer proclamação das autoridades policiais ou dos orgãos camarários. Há silêncio governamental e até presidencial - e é particularmente surpreendente que o Presidente Sousa, que elabora sobre quase tudo, agora elida o assunto. Mais extraordinário, nada se ouve de sindicato, ordem, associação ou outro qualquer órgão da classe dos farmacêuticos. E as redes sociais não fervilham em ecos indignados. Não grassa a ira popular nem a preocupação oficial diante disto de um trabalhador ser espancado no seu local de trabalho, ainda por cima por motivos tão espúrios, pois, ao que consta, tudo foi originado por um pequeno incidente de trânsito no qual o agredido nem esteve envolvido.

Julgo que este silêncio social tem uma evidente causa: o receio, de respeito disfarçado, diante da Igreja Católica. Pois afrontar estes radicais católicos, tantos deles congregados na poderosa Associação das Famílias Numerosas, é ainda um risco. Pelos vistos, andam agora a espancar o cidadão comum. Tal como há séculos atrás fizeram ...

Adenda: sobre o nome próprio do santo representado no quadro que encima o postal surgiram comentários discordantes. Correndo o risco de acicatar a fúria das temidas Famílias Numerosas, não modificarei a versão que apresentei do nome do Santo Genocida (que é assim que deverá ser conhecido no pensamento actual).

Porque silenciam as vítimas

Cristina Torrão, 29.08.20

Um padre brasileiro culpou a menina de dez anos, grávida de um tio, pelos abusos sexuais de que fora vítima desde os seis anos. O religioso escreveu em sua conta do Facebook que a criança “gosta de dar” e não é “inocente”, por ter aturado os abusos durante quatro anos.

Na verdade, muita gente culpa as vítimas de abusos sexuais precisamente por elas silenciarem o crime. Guardei um artigo publicado, no passado dia 31 de Maio, no Jornal Católico da diocese alemã de Hildesheim, por ele se debruçar precisamente sobre esta problemática. E, por ser uma questão que me revolta, devido à injustiça a ela associada, resolvi traduzi-lo. Foi escrito em colaboração com uma psicóloga de Hildesheim que se especializou em casos de violência contra crianças e jovens (incluindo o abuso sexual, também uma forma de violência), e fez parte do 3º número de uma revista dedicada à prevenção deste tipo de crimes. Essa revista é gratuitamente distribuída pelas paróquias, escolas e instituições com crianças e jovens a seu cargo.

Tradução:

«São vários os motivos que levam as pessoas a silenciarem crimes de violência sexual, ou a fazerem-no apenas passados muitos anos, ou, ainda, a fazerem-no de uma maneira que, à primeira vista, não combina com a intensidade do trauma. “Muitas falam tão friamente e com tanta distanciação sobre tais vivências, que se diria ter acontecido a outra pessoa”, diz a psicóloga Beate Neumann-Kumm. “Isto acontece porque elas afastam, de si próprias, as emoções relacionadas com a experiência traumática”.

No seu consultório de Hildesheim, a psicóloga já presenciou muitas formas de distanciamento. “Muitas vezes, as vítimas têm poucas recordações do acto, por, à altura, serem pequenas demais para avaliarem da sua realidade”. Falhas de memória, devido a experiências traumáticas, também são comuns e podem resumir-se a um curto espaço de tempo, ou abrangerem vários anos. “A psique”, diz Beate Neumann-Kumm, “apaga a luz, por assim dizer, respeitante àquela fase da vida”. Em contrapartida, procura uma compensação. “Quem não se lembra do que aconteceu, não consegue ocupar-se do trauma, a fim de o tentar superar. No entanto, o trauma, em si, provocado pela sensação de impotência e de desamparo, não desaparece, e a pessoa queixa-se frequentemente de vários sintomas, que podem passar por dores, ataques de medo ou pânico, depressão, etc.”. Por último, diz a psicóloga, existem aqueles que se lembram, mas que nada dizem, nem nunca se queixam. São os que, simplesmente, silenciam. “Evitam qualquer contacto com o assunto, apesar de o sofrimento ser enorme”.

Vergonha e sentimentos de culpa são os grandes responsáveis pelo silêncio. As estratégias do criminoso, meter medo e chantagens, atormentam a vítima. “As crianças enfrentam terríveis conflitos de lealdade, quando o, ou os, criminoso/s pertencem ao meio familiar. Elas receiam as consequências sociais, por exemplo, que a família se desmembre por sua causa. Receiam que sejam elas, no fim, as culpadas”. Também a credibilidade da criança é posta em causa. “Antigamente, no tempo da educação dura e violenta, raramente se acreditava numa criança, quando ela contava algo que os adultos consideravam impossível de acontecer, os chamados temas-tabu”. Neste aspecto, infelizmente, quase nada se modificou, apesar de, desde meados do século XX, se ter passado a considerar os Direitos da Criança. “Em casos destes, o sofrimento das crianças é ainda maior, são castigadas por mentirem, são isoladas e privadas de carinho”. Uma criança que se resolva a abrir com alguém próximo, a mãe, por exemplo, ou a avó, e esta duvide do seu relato, ou até a censure e castigue, fecha-se de vez. Beate Neumann-Kumm considera este um dos grandes motivos para o silêncio. “Normalmente, não há testemunhas dos abusos praticados. Então, a situação da vítima piora dramaticamente”. A censura é mais um trauma para a criança.

Mas também uma criança que silencie, fala à sua maneira, considera a psicóloga. Através de notória agressividade, por exemplo. Essa agressividade pode ser exercida sobre terceiros, mas também sobre elas próprias. “Essas crianças desenvolvem preferência por situações perigosas, ou roem as unhas, ou mutilam-se com lâminas e/ou facas; em jovens, sentem-se atraídos por drogas ou desenvolvem tendências suicidas”.

O debate sobre este assunto é importante para quebrar o silêncio [escusado será dizer que o contrário, ou seja, fazer de conta de que o problema não existe, contribui para que as vítimas se fechem ainda mais]. Quando a população se solidariza com as vítimas e se reclamam mudanças na lei, com castigos mais eficazes para os criminosos, é mais fácil para elas tomarem a iniciativa e revelarem o segredo que guardam dentro de si. Mesmo assim, trata-se de um processo muito custoso. “O processo de tomada de consciência da sua condição de vítima de um crime, permitir que suba à superfície aquilo que, durante anos, ou décadas, foi recalcado, é muito doloroso. Quando se faz luz nesse canto escuro da alma, é bom e importante saber que não se está sozinho”».

Violência

Maria Dulce Fernandes, 08.06.20

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É imperativo combater a violência. 

É necessário combater todo o tipo de violência, porque há violências bem mais violentas do que a violência física,  passe o pleonasmo. 

É importante a manifestação e o protesto. Mas também é importante não desrespeitar as fracas leis com que a sociedade dos homens se cose.

Incentivar à violência redunda neste tipo de aberrações. As intenções podem ser boas, as mensagens também, mas os receptores seguramente não são.

Porque há quem não entenda e exacerbe a violência ao estado de triste vergonha.

Agitação no pântano

Pedro Correia, 18.02.20

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Estádio Nacional, 18 de Maio de 1996

 

Moussa Marega, com um gesto veemente, fez agitar o pântano. Atingiu o limite da paciência, encheu o saco e disse "basta". As imagens que o mostram a abandonar o Estádio D. Afonso Henriques, em Guimarães, estão a dar justamente a volta ao mundo. Num grito de revolta contra o racismo. E contra a violência no futebol, que começa por ser violência verbal antes de resvalar para a violência física.

Que sirva de exemplo para muitos outros - tenham a cor de pele que tiverem. Inclusive para aqueles que, em certos estádios e em certos pavilhões, imitam o som do very light que matou um adepto de futebol numa bancada do Estádio Nacional, com o filho menor - então com nove anos - a presenciar tão macabra cena, em plena final da Taça de Portugal.

Jamais esqueceremos a data: 18 de Maio de 1996. Chamava-se Rui Mendes, esse malogrado adepto de futebol. Que era também adepto do Sporting.

 

Vergonhosamente, a tal final continuou a disputar-se como se nada fosse, sem que o jogo fosse interrompido.

Vergonhosamente, o som desse very light continua a ser replicado por irmãos de emblema do assassino. O que é outra forma de continuar a matar Rui Mendes, quase um quarto de século depois.

Sem que ninguém rasgue as vestes. Sem que nenhuma alma sensível solte um brado de indignação.

 

Publicado também aqui.

Vítima de violência sexual de segunda categoria

Paulo Sousa, 18.09.19

É perturbador o caso da violação e assassinato da Irmã Tona por alguém que tinha acabado de ajudar. O "alegado" assassino e "alegado" violador é um toxicodependente recém saído da prisão.

O retrato escrito da vida da Irmã Tona fala de alguém que, mais do que tudo, era uma pessoa generosa ao ponto de dedicar a sua vida a ajudar com alegria os que mais precisam. Não era assistente social remunerada pela tutela, não seria beneficiária da ADSE, nem viu o seu horário de trabalho reduzido a 35 horas no inicio da legislatura que entretanto terminará.

Não quero aqui elaborar nenhuma teoria sobre os desgraçados dos drogados, nem sobre a reinserção social nem sobre os serviços públicos que lidam com esses casos, mas apenas sublinhar o silêncio que este caso mereceu na nossa imprensa e na boca dos que se advogam defensores das mulheres oprimidas e vitimas de violência.

Comparando o tratamento mediático que mereceu o assassinato de Marielle Franco e a ausência de qualquer reacção sobre este caso macabro, concluo que mesmo para as vítimas de violência sexual há tratamentos diferentes. A irmã Tona era uma irmã religiosa e isso colocou-a do lado errado da história.

Perante tal diferença como podemos avaliar a honestidade intelectual dos donos da nova moral e dos novos costumes?

Começou

Sérgio de Almeida Correia, 30.08.19

Estava esta manhã no The Standard. Depois confirmei-o.

Quando um país de 1400 milhões, com um Partido Comunista de 87 milhões de militantes, que governa com pulso de ferro, sem oposição e apoiado num dos maiores e mais sofisticados aparelhos de repressão à escala mundial, precisa de prender um miúdo de 22 anos que ainda há poucas semanas foi libertado da prisão, isso deve querer dizer alguma coisa.

As manifestações da Frente Cívica programadas para o próximo fim-de-semana foram proibidas, a guarnição do Exército Popular de Libertação mudou, e a ameaça de serem colocadas em vigor as leis de emergência do tempo colonial, que serviram para lidar com a crise de 1967, subsequente aos acontecimentos do Star Ferry do ano anterior, volta a estar na ordem do dia. 

Em 1967 morreram 51, pelo que se o objectivo for o de chegar a 1 de Outubro, quando se celebrarem os 70 anos da RPC, com tudo tingido de vermelho ou na prisão, então a estratégia deverá estar certa

A falta de liderança, de bom senso e de inteligência política pagam-se muito caro. Em qualquer lado. E levam décadas a recuperar.

 

(Actualização: Começou e não vai parar tão cedo)

A fonte

Diogo Noivo, 09.08.19

É quase enternecedor ver dirigentes do Bloco a zurzir no discurso de ódio e a criticar a violência. Encheria o coração de esperança, não fosse a hipocrisia galopante d@s camarad@s. Sem recuar a passados longínquos, recorde-se que vários dirigentes do partido prestaram vassalagem ideológica a organizações terroristas (como a ETA) e, mais recentemente, olharam com matizes oportunistas para a escalada de violência na Venezuela, país onde um regime de ódio submete a sevícias públicas a própria população. Adoraria conhecer a fonte de descaramento onde esta gente mata a sede.

O meu irmão

jpt, 07.02.19

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(Patrícia Reis fala do femicídio.  E lembra-me uma história da minha meninice.)

Eu tenho 4 ou 5 anos, não sei bem, é cerca de 1969 mas não me acordaram ou acordarão para ver Armstrong dar o pequeno passo, e por isso já estou amuado com os meus pais e assim continuarei no próximo meio século. Estou doente, ouvi que tenho uma coisa no rim, pois aparece-me sangue no xixi, acho que há meses que não vou à escola, as minhas avós revezam-se a acompanhar-me, ainda que cá em casa haja várias empregadas (chamar-se-ão assim no futuro, quando eu entrar no liceu, que agora dizemos criadas) e ama. Se calhar não são meses, julgo que pensarei isso no futuro, mas agora tenho a certeza que estou doente há imenso tempo. Hoje é sexta-feira, e, como não posso ir brincar para a rua, estou na varanda deste rés-do-chão a ver os amigos ali mesmo defronte, numa rua como se pátio deste nossos Olivais, a Cabinda. As criadas estão comigo, atraídas pelo barulho, a gritaria. Pois um pouco abaixo, junto à rua, uma porteira está a ser espancada pelo marido, um bêbedo, dizem enquanto entre elas espreito. Ele bate-lhe, ela está no chão e grita. Às portas da mercearia, da farmácia, do café e às dos prédios está gente a ver o que se passa, e também às janelas das casas chegaram curiosos. 

De repente vejo o meu irmão João descer, muito devagar, as escadas do prédio. Ele chegara há pouco a casa, vindo da Escola Naval para o fim-de-semana. Mas, noto-o, já se desfardou. O Artur, o mais-velho, já casou - eles, irmãos, cunhado, primos, casam todos muito cedo, virei a pensar, tudo para poderem levar as mulheres para África -, acho que anda embarcado num petroleiro chamado Sopanata ou coisa assim e o João, que já tem 20 anos também está quase, a casar-se e a ir para a guerra, diz a minha mãe à minha avó. E a minha irmã também se prepara para ir, noiva que já está.

O meu irmão parou no pátio defronte ao prédio. Não percebo se termina o cigarro, mas fica bem crer nisso. Desce a pequena escadaria até mesmo à rua, a tal Cabinda. Chega-se ao casal e, nada dizendo, dá um soco no marido bêbedo. A zanga deles acabou logo ali, a mulher levanta-se e sai não sei para onde, e o homem fica-se apardalado. Mas, até antes disso, o João já está, devagar (vaidoso que é, constatarei quando crescer), costas viradas, a regressar a casa. Sem mais.

Daqui a décadas contarei esta história, várias vezes, aos filhos dele e aos sobrinhos. E depois aos netos, os dele. E aos meus, se os vier a conhecer. Ele sorrirá, com bonomia, dirá que eu invento, que de nada disto se lembra. Mas é verdade, eu não irei imaginar uma lenda dessas. Terei uma filha. Adolescente, resmungará com o tio, que é incisivo e escolhe os programas de TV quando lá em casa  ou outra coisa qualquer, pois nunca perderá os tiques de comandante de navio (que não se pode dizer barco). Ela protestará comigo, "pai, mas tu mudas quando o tio está!...". 

Claro, dir-lhe-ei. É óbvio. Pois o mais-velho é o meu herói. Desde hoje.