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Delito de Opinião

Vinhetas (32)

José Meireles Graça, 11.11.25

A multa

Recebi um e-mail alegadamente da Autoridade Nacional para a Segurança Rodoviária que me informava, em impecável linguagem oficial, que deveria pagar uma multa de 199 Euros.

Tinha um link para aquela “Autoridade” e por isso fui ao site. Para entrar na secção de contraordenações era preciso utilizar o cartão de cidadão OU o número fiscal OU o número de cédula profissional. Este último talvez me conviesse dado que, ainda que sem vencimento, desempenho a actividade de emissão de opiniões sortidas, com horário alargado.

Porém, não tenho cartão dessa função. Por isso, optei pelo número fiscal. Pedem a respectiva palavra-passe, que indiquei prestes. E como o sistema não aceitasse porque a chave era “inválida” fui ao Portal das Finanças ver se a palavra funcionava, não fosse o caso de ter de a mudar periodicamente, cuidado que alguns “serviços” públicos têm, decerto com o propósito de aumentar a segurança e a chatice.

Estava certa e, portanto, deveria ser eu a estar errado.

Liguei hoje para o número de telefone da ANSR e a simpática funcionária esclareceu-me que o número fiscal não dava, o que dava era uma chave móvel (que não tenho nem sei ao certo o que seja) ou o cartão de cidadão (acho que também mencionou outro, não me lembro qual fosse), para utilização do qual era necessário um leitor de cartões, que também não tenho.

Como estas chamadas são usualmente gravadas (e esta era, assim anunciada para começo de conversa) costumo, no caso de o interlocutor se exprimir em língua de pau, desatar em impropérios com a esperança desesperançada de alguém ouvir a gravação e corrigir o torto do serviço.

Mas almocei língua de boi (talvez de vaca, mas não me pareceu porque esta última costuma ser mais comprida), estava bem disposto e a senhora era simpática. De modo que narrei a história toda, e não apenas o tropeço para entrar no site, e fui imediatamente informado que avisos de multa não vêm por e-mail. E ainda considerou melancolicamente que os vigaristas estão cada vez mais sofisticados, pelo que nos despedimos nos melhores termos.

Quanto ao desenho do site não disse (eu) nada.

Digo agora: Quem é obrigado a frequentar serviços oficiais na internet ou conhece o caminho das pedras ou arrepela os cabelos, dominando o impulso para pontapear o computador.

Por mim, não hesitaria em semelhante reacção destemperada se tivesse a certeza de que, enquanto o aparelho se escaqueirava, os responsáveis pela concepção dos sites levavam um poderoso choque eléctrico.

Porque fazem estas porcarias? Não, ninguém adivinha toda a gama de dificuldades e situações que podem ter inúmeros cidadãos, e portanto deveria estar aberta a porta para, com reclamações, ir fazendo correcções. Boa informática é a que facilita a vida e não requer conhecimentos especiais, não a que agrada aos conceptores, os quais com frequência têm um número limitado de sinapses enquanto a quem tem a responsabilidade de aprovar estes estropícios falta um módico de senso e de respeito pelo contribuinte que lhe paga o ordenado.

Pensando melhor, reclamações não bastam. Para o tipo que achou que exigir, além do telemóvel ou do computador, um leitor de cartões, um choque eléctrico não bastaria. Talvez fazer uma estadia, de sambenito e orelhas de burro, numa praça lisboeta, exposto à irrisão pública e a tomates podres nas trombas tecnocráticas.

Vinhetas (31)

José Meireles Graça, 05.11.25

Ao Amigo disseram, num exame de rotina, que tinha um cancro no pâncreas. Não esperou: foi operado em Lisboa, retirou aquela glândula (mais umas adjacências) e seguiu-se o pós-operatório e depois quimio e depois rádio, ou ao contrário, com consultas e tratamentos em Lisboa e no Porto.

Foi informando o círculo chegado de amigos, com sobriedade. E, nos intervalos dos tratamentos, que o deixavam derreado por espaço de uma semana, organizava almoços, jantares ou passeios, às vezes a sítios improváveis nos quais comparecia num dos carros antigos da sua colecção – exactamente como fazia antes mas com mais frequência.

Sem dramas, sem queixumes e com inalterável boa disposição. E como numa longa carreira profissional fora obrigado com grande frequência a lidar com responsáveis políticos e altos cargos da Administração, tem uma excepcional capacidade de debitar discursos em que, com ar profundo, se engatilham aqueles frases empoladas do mundo oficial significando nada: As pessoas não são números, diz, o dedo em riste, quando se quer referir a uma patetice qualquer que estejamos a comentar de um responsável político de esquerda (isto é, quase todos). Ou, se a conversa for sobre gestão, informa do melhor método para um dirigente se dirigir a um subordinado que tenha apresentado um relatório medíocre: Está muito bom, mas pode ser melhorado.

Isto e muito mais fazia, e graças a Deus faz, com que um almoço, ou um jantar, ou um encontro sob qualquer outro pretexto, tenha a garantia de umas horas bem passadas. E, se a conversa for séria sobre assuntos sérios, podemos contar com opiniões sensatas, cultas e informadas, dentro do quadro geral (se a matéria for política ou social) de uma mundivisão solidamente de direita.

Todas as fases ultrapassadas, parece que o cancro foi vencido mas as sequelas implicam uma rigorosa vigilância através de um complicado (para mim – para ele simples) sistema de cuja vigilância os resultados aparecem permanentemente no telefone, incluindo alarmes.

Às refeições, acontece às vezes levantar-se e ir ao quarto-de-banho para dar umas injecções na barriga, acho que de insulina. Isto, é claro, implica um grande consumo de agulhas hipodérmicas.

Hoje foi comprá-las a uma farmácia. "Sim, sr. Fulano, são as de 5 milímetros na mesma mas estas são menos indolores, são novas", disse a dra.

Entupiu, agulhas menos indolores pareceu-lhe uma coisa ominosa. Mas trouxe-as e já estou ao corrente de que são exactamente a mesma merda.

É a geração mais bem formada de sempre, esclareceu-me. E eu concordei.

Vinhetas (30)

José Meireles Graça, 07.09.25

No iatezinho (12 metros, mais ou menos, de comprido, um só quarto e uma minúscula kitchenette) íamos fazer a primeira viagem.

Era da Póvoa de Varzim, onde estava atracado, até Viana do Castelo, para o efeito de lá almoçar.

O dono achou que, para abrir o apetite, fazia sentido ir beberricando um champanhezinho (lembro-me da marca, mas não vou divulgar para não prejudicar a concorrência) e nós, os convidados, concordamos e honramos moderadamente (duas garrafas para 4 pessoas).

O almoço correu muito bem, obrigado, o champanhe tinha efectivamente aberto o apetite, mas não houve um exercício de unanimismo no restaurante: dois beberam branco e os outros dois tinto, mas a bem da verdade talvez seja oportuno revelar que se poderia ter bebido menos.

Confortados, regressamos com a tranquila certeza de que no mar não há operações stop e portanto vimos com bons olhos a ideia de, para facilitar a digestão, continuar com o champanhe que tão boa conta tinha dado de si.

Não posso informar qual o exacto rombo que foi operado no stock do frigorífico, mas posso asseverar que ainda restaram talvez duas garrafas – o anfitrião era generoso.

Chegamos para atracar no mesmo cais de onde havíamos partido, ao mesmo tempo em que uma traineira, mesmo ao lado, executava operação semelhante. Íamos saindo e dos dois pescadores que já estavam em terra um encarou-nos, soturno, e declarou: Fomos nós pescar e vimos de mãos a abanar e estes vêm como congros.

A voz do povo é a voz de Deus.

Vinhetas (29)

José Meireles Graça, 04.09.25

Cheguei mais cedo à clínica e a recepcionista informou que “o sr. dr. ainda não tinha chegado”. Bem, vou vendo o correio.

Fui vendo o correio, que tinha aliás chatices ominosas (ominosas porque a consulta era de cardiologia e decerto as más notícias, aumentando-me a tensão, induziriam o médico a ver fantasmas), e a páginas tantas vim cá para fora fumar. Um desses cigarros modernos que não têm cinza e, depois de fumados, têm o mesmo aspecto de quando ainda eram virgens.

Meti, no regresso, o cigarro ao bolso, e, sentando-me, reparei que em frente estava o que parecia um cesto de lixo alto, cilíndrico e completamente transparente, cheio até cima.

Tinha apenas maços de tabaco, e atirei para lá, desprendidamente, a beata. A recepcionista, simpática, informou que eram de ex-fumadores que ali tinham sido tratados.

Signifiquei-lhe que tinha pena dessas pessoas. E como ela inquirisse das razões da minha observação condoída, expliquei que a vida sem vícios é uma terrível maçada, pelo que desejava que aqueles infelizes tivessem outros, ainda que ocultos.

Quem agora ficou com um aspecto condoído foi ela. E li-lhe na expressão o que estava a pensar: Este não devia vir à cardiologia, aí ao lado a psiquiatria é que lhe convinha.

Vinhetas (28)

José Meireles Graça, 29.08.25

O restaurante fica perto do alto do monte, enterrado no meio dos enormes rochedos que por lá há. Ente estes há um dédalo de carreiros empedrados sempre a subir ou a descer, às vezes dando para becos sem saída ou locais de difícil passagem.

O conjunto não é grande e a espaços vê-se a cidade lá em baixo, de modo que nunca é difícil uma pessoa orientar-se.

Há mais do que um restaurante e no primeiro, mais rude porque fica num pequeno largo onde a maior parte das mesas se encontram por baixo precisamente de rocha e algumas poucas a céu aberto, havia fila para o balcão da cozinha. Neste se entregava o caldo verde, o pastelão de sardinha ou de toucinho e frango ou costelinhas grelhadas, o enorme grelhador ao lado fazendo uma grande fumarada que se dissipava com dificuldade. A fila não andava, devia-se estar num momento de intervalo de chegada de cozinhados.

As bebidas eram noutro balcão, lá ao fundo, e rosnei para a companhia que sairia dali a cheirar a chouriço fumado, de modo que por geral consenso seguimos por um carreiro em direcção a um outro restaurante que havíamos visto à chegada, dois de nós numa direcção e os outros dois noutra um tanto divergente, consoante o nosso respectivo sentido de orientação. Ambas estavam erradas, de modo que mais à frente nos avistámos, nós mais acima, todos concordantes na conveniência de subir até ao largo, como fizemos.

Deus me livre de vir para aqui com gabarolices gastronómicas para excitar as invejas do leitor desprevenido, mas o que veio para a mesa foi pão, azeitonas, chouriço grelhado, bolinhos de bacalhau, pataniscas, salada de feijão frade, cebola com o respectivo sal grosso e vinagre, tudo em quantidades himalaicas e regado com o vinho da casa: branco para os meus acompanhantes, que são umas frôzinhas, um tinto grosso para mim na sua infusa de lata. Os outros escolheram para a resistência cação de cebolada, eu punheta de bacalhau.

Como mais depressa que as outras pessoas. A lentidão provoca ingestão de quantidades excessivas de ar entre as garfadas, de modo que é decerto por isso que não me encontro barrigudo. E certamente também não sou daqueles que nos intervalos da mastigação olham para o infinito, a meditação não me parecendo o melhor dos acompanhamentos para circunstâncias prandiais.

Venho cá para fora fumar antes da sobremesa. Ia saindo um casal de meia idade já um bocado adiantada, ambos com aquelas calças cortadas pelo joelho, as dela, que ia à frente, mais justas do que lhe convinha e aos meus olhos.

O cavalheiro, de excelente aspecto, disse que era pela direita, a subir; e ela, que já tinha encarreirado em frente, declarou sem se voltar, numa voz cortante: Cala-te e anda, é por aqui. Ele calou-se e andou por ali. E eu fiquei pensando que elas estão que não se pode.

De modo que afinal também medito: não no meio das refeições mas no intervalo.

Vinhetas (27)

José Meireles Graça, 28.08.25

Há dias jantei com algumas altas personalidades da Oficina da Liberdade e coloquei o meu novo telemóvel em cima da mesa, onde ocupou o espaço de uma terrina. No bolso não o podia ter, que não cabe. De resto, os donos de restaurantes mais argutos estão a seguir o critério de juntar duas mesas de quatro cada uma não para 8 mas para 4 pessoas, a fim de caberem os modernos telemóveis e as travessas. Alguém comentou que o aparelho não tinha capa de protecção e provavelmente também não película, de modo que se caísse ao chão era estrago garantido. O vidro do écran, ui, caríssimo. Não suscitei a questão de saber por que razão, se é assim, os telemóveis não vêm com tais acessórios - já havia outras matérias controversas para ocupar os comensais. Hoje fui a um centro comercial, lugar da contemporaneidade que evito com zelo, pilotado por quem sabe navegar em tais mares. Na loja, o simpatiquíssimo (são quase sempre) empregado brasileiro inquiriu qual era o modelo - aparentemente tenho aspecto de quem sabe semelhante coisa. Inteirado da minha ignorância, fez ele próprio alguns passos cabalísticos na máquina, encontrou a referência, foi ao computador e informou que capas para aquilo não tinha mas podia encomendar. Já ia dar à sola com presteza mas o meu piloto interveio para dizer que o mais importante era a película, e por isso perguntei se tinham. Era baratucha, 19,99€ (deixei o troco de gorjeta) e comprei. O funcionário colocou-a, num prodígio de técnica, experiência e habilidade e, agradado com o desenlace, resolvi encomendar a capa. Tomando nota no computador, perguntou-me se “queria uma côrzinha”. Isto não me caiu bem, lá que tenha aspecto de técnico de hardware ainda vá mas imaginar-se que eu quero “côrzinhas” nas capas é realmente demais. De modo que, de cara fechada, respondi “preto”. E, tendo dado o meu número de telemóvel para efeito de ser prevenido quando chegasse o almejado extra, tomei providências para que, da próxima, alguém se ocupe da recolha por mim.

Vinhetas (26)

José Meireles Graça, 20.08.25

Era aos 18 anos a inspecção.

Isto quer dizer, para quem nunca tivesse chumbado (o Liceu eram 7 anos) um ano depois de concluído o ensino secundário. Eu andava adiantado e, por solidariedade com os meus colegas, acertei o passo no 3º ano, chumbando; e, no intuito de adquirir uma respeitável senioridade na turma, voltei a chumbar no 4º.

A inspecção era um grande passo porque sobre ela pairava a sombra da guerra colonial, só se podendo evitar a incorporação (quem queria; nem todos queriam) não “passando”, isto é, tendo defeitos físicos incapacitantes para a condição militar, ou então adiando em caso de bom aproveitamento na universidade.

Suponho que em todo o lado as regras fossem as mesmas, mas havia – há sempre – idiossincrasias locais.

A minha inspecção foi em Guimarães, em 1969, e tenho no que se passou muito orgulho.

Conto: os mancebos, todos nus, saíam da junta médica na sala, e alinhavam a partir da porta, em duas filas. As filas iam crescendo e os que saíam passavam no carreiro e iam levando cascudos na cabeça, o que significava que, como era por ordem alfabética, para os Antónios a coisa ainda ia mas para os Josés, como eu, se tornava necessário correr.

Quase todos se conheciam porque eram da mesma freguesia, salvo eu porque de lá tinha saído com 6 anos. Achei a correria pouco digna e optei por sair com grande dignidade e passo comedido, um exercício um tanto difícil quando se está em pêlo.

Ninguém me tocou. E isto relato com grande dano para a minha natural modéstia.

Vinhetas (25)

José Meireles Graça, 23.07.25

O meu carro actual tem muito a ver comigo. É bastante velho mas não parece porque está em impecável estado de conservação, há bastantes do mesmo modelo mas não com as mesmas características (tracção às quatro rodas, motor a gasolina com 3.600 cm3 normalmente aspirado, sem vigarices fiscais como o turbo, uma grande quantidade de gadgets), tem cor preta absolutamente clássica, isto é, sem areados ou reflexos, vernizes ou metalizações, e a potência mais do que suficiente e ainda um pouco mais. Por fora, é absolutamente igual ao modelo comum e a marca não é associada a luxos – é pouco provável que, se eu fosse detido pela PJ sob a acusação de tráfico de droga, a comunicação social descrevesse o veículo como “topo-de-gama”, que é a expressão clássica que jornalistas que não sabem o que dizem, isto é, quase todos, utilizam.

Esclareço, para aquelas pessoas a quem é preciso explicar tudo, que o equivalente à tracção às quatro rodas é, na minha pessoa, a superior capacidade de me agarrar à estrada dos argumentos; a cilindrada invulgar traduz-se numa bagagem cultural que, por modéstia, não desejo sublinhar; a cor preta sem atavios é a minha natural discrição; e sobre a potência abstenho-me de fazer comparações não vá tacharem-me de vaidoso.

Ontem, no regresso de Lisboa, acendeu uma luz amarela sobre um desenhinho que parecia um motor. Amarelo não é perigo e portanto parei tranquilamente numa área de serviço para ir consultar o manual, a ver o que era aquilo. Grande nó cego, o manual foi certamente redigido por uns engenheiros e revisto por outros, de modo que as informações necessárias estão soterradas numa grande quantidade de inutilidades. Acabei por encontrar (num sítio que não era o óbvio) a explicação: era o escape. Por que motivo o desenho parecia um motor e não um escape será coisa que certamente faz todo o sentido na cabeça de um alemão.

Hoje, na oficina, o diagnóstico: são os gases. Deve ser aquela coisa do catalisador, ou lá o que é, e encontro-me psicologicamente preparado para pagar à oficina, e ao Estado que mete a mão sapuda e sôfrega em todas as contas, um dinheirão.

Pus-me a reflectir: os meus primeiros carros não tinham controle de escapes, logo desta avaria nicles; motorzinhos eléctricos para os vidros, os bancos, os retrovisores e sabe lá Deus mais para quê – nada; abrindo o capô o cidadão reconhecia os elementos do motor, hoje cobertos por uma púdica blindagem que não permite ver nada e ainda bem porque como aquilo realmente funciona é um segredo da NASA; houve grandes progressos na eficiência mas como os automóveis cresceram de tamanho e peso (modernamente a moda são jipes ou camionetas disfarçadas de ligeiros a que chamam SUVs) a poupança de combustível é nula; a aceleração, velocidade máxima, travões e suspensão evoluíram muito mas, com os limites de velocidade, esses benefícios são supranumerários; e de conforto, tirando o ar condicionado, temos os mesmos bancos mal desenhados se o carro for alemão, moliquentos se for francês e excelentes se for italiano, se bem que neste último a qualidade do resto nem mo-lo digas.

A moda de eliminar todos os esforços dentro do automóvel foi uma coisa que nasceu nos EUA. E naquela terra o condutor que exige não fazer absolutamente nada dentro do automóvel, o que é que faz quando o pára? Jogging. Deve ser também por isso que agora vejo pais de família, afogueados e vestidos como para uma meia-maratona, a correr desalmadamente.

Então, não melhorou nada? Muito: o motor que dantes chegasse aos 100.000 km começava normalmente por requerer acrescentos de óleo (e desde o princípio havia mudanças frequentes), até ir para um tratamento radical e dispendioso, a que se chamava rectificação. Hoje fazer o triplo sem problemas está dentro do ordinário da missa; os atributos de segurança são imensamente superiores, ainda que esse benefício seja anulado em parte pela densidade do tráfego, que multiplica as ocasiões para acidente; e a qualidade da chaparia faz com que a ferrugem, que dantes atacava cedo, agora seja uma raridade que só se vê em destroços com rodas.

Isto e muito mais, tanto do lado do dantes como do de agora. Mas desejo a quem julgar que o progresso é uma linha contínua que não veja acenderem-se luzes anómalas no tablier. Senão, ainda acaba como eu a fazer umas reflexões melancólicas.

Vinhetas (24)

José Meireles Graça, 16.12.24

As cabras

Na minha caminhada diária passo por um campo pequeno, ou um quintal grande, vedado por uma rede, onde há galinhas e um ou outro pato a pastarem.

Há tempos o plantel foi enriquecido com duas cabras e vi um passeante a cortar ramos no caminho e a dar às cabras, que comiam as folhas com entusiasmo. Passei a fazê-lo eu e os dois animais rapidamente me ficaram a conhecer, razão pela qual vinham a correr quando me viam.

Aprendi que ali havia uma hierarquia: a cabra mais pequena comia primeiro e a outra só tinha hipóteses se eu desse um ramo à líder e fosse dar também à graúda um pouco mais longe.

Hoje aquelas minhas amigas já lá não estavam e vim-me embora meditando. Cabras amigas tive algumas e com frequência as mais pequenas eram mandonas; ao meu excelente coração nunca me pareceu que ligassem nada, mas sempre apreciaram forragem; e com certeza não acabaram numa chanfana, nem mereciam.

Estas também não, decerto o dono ignorava que eram amigas de pessoa de representação.

Vinhetas (23)

José Meireles Graça, 09.11.24

A eleição

A maior parte dos alunos estava ali para aprender, desultoriamente por terem um olho nos livros e o outro em inúmeras coisas mais interessantes; uma minoria era de marrões, dos quais um, pelo menos, costumava ser excepcionalmente inteligente e os outros burros ou medianos; e outra minoria a de deploráveis que navegavam nos mares soturnos do chumbo potencial e que, se o professor não tivesse mão firme, transformavam as aulas num circo.

Mão firme era coisa que se avaliava logo na apresentação. Um dichote aqui, um barulho despropositado acolá, uma altercação além, e logo se via como é que o magíster reagia.

Professores havia cuja reputação, precedendo-os, os punha ao abrigo de frescuras; e outros que fariam bem em benzer-se à entrada porque o ano lectivo seria para eles, vestidos de palhaço, uma corrida de obstáculos.

A reputação também acompanhava certos alunos. E dois, o Praça e o Luzinhas, tinham sólidas credenciais de verdadeiros anarcas insolentes.

Foi o caso que era o dia, no Liceu, de eleição do Chefe de Turma, presidida pelo Director de Ciclo.

Já não há liceus, nem directores de ciclo, e presumo que também não chefes de turma.

Mas naquele então entrou o Director, o dr. Juvenal, cujo cabelo cortado à escovinha, porte atlético e autoridade serena, não aconselhavam aventuras. Fez uma breve prelecção, salientando o facto de aquela turma, que tinha na quase totalidade transitado do ano anterior, ser conhecida por alguma indisciplina, em particular por causa de alguns alunos, notórios gandulos.

Esta merda é connosco, pensaram os dois acima referidos. Ainda bem que este idiota não nos conhece.

O processo (escrever um nome num quadradinho de papel e entregá-lo para ser depositado na caixa de cartão) decorreu com a maior compostura e, no fim, começou o Director a tirar papéis à sorte da caixa de cartão onde cada aluno tinha depositado o seu voto dobrado, e ia lendo os nomes que um aluno escrevia diligentemente no quadro negro, pondo à frente de cada nome um traço por voto.

Neste entrementes entrou uma professora e todos se levantaram com respeito (ouço dizer que os alunos agora não se levantam quando entra um professor porque este é na realidade, para pedagogos modernos e parvos, apenas um irmão mais velho) enquanto a sôtora falava em voz baixa com o colega sinalizando, percebeu-se, os dois recalcitrantes.

O escrutínio prosseguiu e prestes acabou – a turma teria aí uns 40 alunos.

O resultado era esmagadoramente a favor de dois nomes, havendo um ou dois votos desgarrados para um terceiro.

Bom, temos um claro vencedor, é o xis. Quem é? Levanta-te – e levantou-se o Praça.

Não sei se terá sido a melhor escolha, rosnou o oficiante, continuando: E para Subchefe o Ípsilon. Quem é? Levanta-te – e levantou-se o Luzinhas.

Vai ser um ano bonito, declarou o dr. Juvenal, despedindo-se com desalento enquanto a turma confraternizava.   

Vinhetas (22)

José Meireles Graça, 17.10.24

A bomba de gasolina tem tudo, excepto o Euromilhões e refeições de garfo e faca. Tem também, com frequência, filas. As pessoas que vão pagar contas de luz, água e outras, bem como as que não dispensam cantarolar o número de contribuinte, atrasam o expediente.

Talvez por isso a partir de hoje só se pode pagar a dinheiro numa máquina. E uma senhora meteu uma nota de 10 Euros e a maquineta despejou no cacifo do troco uma gigantesca profusão de moedas. Perguntou ao empregado enquanto tentava recolher o quarto de quilo de metal: Não precisa de moedas de 10 cêntimos? Ao que ele retorquiu condoído, dando uma palmadinha na máquina: Não posso, dinheiro só com esta menina.

Furiosa, a senhora olhou-me, rosnando: Modernices.

Concordei.

Vinhetas (21)

José Meireles Graça, 15.10.24

Gostava muito de diospiros. Tanto que, nesta época do ano, comia à sobremesa ao almoço dois e ao jantar, às vezes, um.

Foi o caso que lhe disseram: Dá gosto ver-te comer esses diospiros – vê-se que aprecias muito.

Gosto bastante, concordou suspendendo a colher. Mas também tenho presente os isostomas, que esta fruta contém em abundância e que, salvo um pouco na papaia e na anona, não existem em mais fruto nenhum.

Isostomas? Não sei o que é.

São oligoelementos cujos efeitos benéficos para o metabolismo, nomeadamente facilitando a libertação de radicais livres, me levam a não os dispensar.

Ah.

(Os isostomas inventou-os; o que sejam oligoelementos não fazia ideia, como não fazia dos radicais livres, salvo no que toca ao presidente da Argentina, que todavia nada tem a ver com frutas nem digestões; e do metabolismo alcançava qualquer coisa, mas nada que chegasse a ombrear com os conhecimentos de qualquer especialista em medicina interna, mesmo que estes não saibam grande coisa. Agora o que é facto é que não tinha menos direito que alguns maduros a produzir um estudo desses que todos os dias aconselham a comer isto e não aquilo para prevenir o cancro, a tosse, a obesidade e as unhas encravadas).  

Vinhetas (20)

José Meireles Graça, 04.10.24

22 km de bicicleta não é muito, e menos ainda quando o percurso é feito pelo leito de um antigo caminho de ferro desactivado e convertido em ciclovia, a meio um café e um fino esperando.

Excepto um dia em que a porta do estabelecimento (num antigo apeadeiro) apareceu fechada, um papel na porta a dizer não sei quê.

Havia um restaurante aí a uns 3 minutos, descendo uma ladeira, e lá fomos. Estava deserto e uma mulher frigia qualquer coisa. Por desenfado, perguntei o que era e ela, a cara rosada desabrochando num sorriso feito de dentes muito brancos e regulares, disse que eram bolinhos de bacalhau.

Alfredo sugeriu que deles viesse um pratinho, e veio uma travessa – daria 5 ou 6 para cada um. E alguém alvitrou que, para acompanhar bolinhos de bacalhau, o indicado era um verde tinto. O dono concordou e informou que por acaso tinha um de estalo, logo trazendo uma garrafa.

Ó deuses, que bolinhos do céu: pequenos, redondinhos, bem fritos, a massa não aquela batatada infame com essência de bacalhau que hoje é o ordinário às mesas. E o vinho era como deve ser, espumando nas canecas e cantando na alma.

Tudo se sumiu num ápice e, tendo já vindo mais duas, ou talvez três, garrafas providenciais, surgiu sem que se pedisse nova travessa, que seguiu o mesmo caminho da anterior ainda que a ritmo consideravelmente mais lento.

Feitas as contas e o pagamento, havia que regressar à pista e, entreolhando-se os desportistas, disse o Venâncio que o melhor era chamarem-se três táxis. Logo lhe foi lembrado que as bicicletas não cabiam nas malas, a consternação caindo de repente sobre aquele dinâmico grupo de quarentões.

Abalaram, rosnando uma litania de palavrões. Nessa gesta, houve quem a meio se tomasse de desespero e mandasse vir uma carrinha de um amigo, subitamente lembrado. Mas, infelizmente, não havia lugar para todos nem para todas as bicicletas.

Digo com orgulho que fui dos que com pertinácia concluíram o percurso. E, chegado a casa são e salvo, logo aterrei numa cama que nunca havia parecido tão acolhedora, adormecendo quase de imediato.

Quase. Porque ainda tive tempo de ponderar que talvez não fosse pior ceder à publicidade e levar uma daquelas garrafas coloridas e suspeitas, contendo uma bebida energética.

Vinhetas (19)

José Meireles Graça, 11.09.24

Os restaurantes, quando muito bons, não costumam sobreviver à morte de quem lhes deu a fama. Logo vem uma nova gestão que vai melhorar a anterior para o efeito de ganhar mais dinheiro do que o burro do falecido dono, que não sabia a mina que tinha entre mãos; ou se muda de “conceito”, passando a trocar o que bastante gente queria pelo que só alguma, que se estima muito mais requintada, quer.

Um restaurante que frequento há anos é superlativo: a cozinha é a tradicional da região, incluindo pratos que não são comuns em tais estabelecimentos. E o menu varia consoante as estações e as disponibilidades de géneros, quase sempre muito bons e com frequência difíceis de encontrar senão junto de produtores pequeníssimos.

O dono já não é novo e o trato não será, vamos dizer assim, modelar, a não ser para aqueles que, como eu, têm farto e antigo cachet de cliente fiel mas que, mesmo assim, se calhar de verem algum defeito, o que é raro, se abstêm de o comunicar.

Há tempos foi associado ao negócio o filho, com formação em hotelaria, e temi o pior. O pai morre e o moço escavaca tudo, pensei.

Que nada. Não apenas, se necessário, se desembaraça na cozinha, como não dá o mais remoto sinal de querer fazer reformas, ao que acrescenta simpatia e, de tolo, não ter nada.

Um destes dias fui pagar e o raio da carteira não havia maneira de sair do bolso de trás das calças, onde estava demasiado apertada (não que seja muito espessa, coitadinha).

Comentei, algo irritado, que o dinheiro parece que lhe estava a custar a sair. E o jovem encarou-me, surpreso, declarando que era estranho porque em geral o dinheiro tem dificuldade é em entrar, não em sair.

Oportuna, e justa, reflexão. Temos então que à excelente salada de atum, à de tomate e alface, à costeleta de sardinha, e ao bolinhol de sobremesa, veio juntar-se um bocado de sabedoria, a acompanhar decerto o outro bocado de broa de milho, que já tinha feito companhia ao repasto. Ambos saborosos.

Vinhetas (18)

José Meireles Graça, 01.09.24

Neste último dia de férias muita gente já regressou à terrinha porque quer respirar antes de amanhã dobrar a mola.

Porém, a maioria dos cafés, restaurantes e pastelarias que encerraram para férias ainda não reabriram.

Talvez por isso, o Castelo ainda tinha mais gente do que de costume. Faziam fila até à porta, para o pão e as doçarias dominicais; e as mesas, que não são poucas, estavam todas cheias de gente álacre e juncadas de chávenas, copos e pires vazios.

A esplanada, exígua em relação à dimensão do estabelecimento, estava igualmente cheia, de modo que não bebi o café, como de costume, sentadinho cá fora, mas de golada ao balcão. Saí para fumar o meu primeiro cigarro (agora desses aquecidos por uma maquineta), esperando que alguém fosse à vida para, na paz do Senhor, me sentar a ver o meu correio.

Um desconhecido ocupava uma mesa, uma mochila na cadeira em frente. E uma moça de rabo de cavalo, estuante nas suas calças justíssimas deixando quase nada para a imaginação (têm um nome, essas calças, de momento não me lembro) e no seu top que evidenciava uma jovem barriga chata, dirigiu-se ao camarada inquirindo (apontando para a mochila) se aquele lugar estava ocupado. Como lhe fosse respondido que não, lançou-se numa prédica indignada salientando o abuso de um só cliente ocupar uma mesa quando havia tanta gente a querer sentar-se na esplanada.

Eu assistia à cena, varado, outro tanto acontecendo com outro cliente, igualmente sentado sozinho numa mesa, e como eu fumando.

O interpelado avaliou a rapariga e optou, em vez de enveredar por uma discussão, por se levantar sem uma palavra.

O outro cliente, que conhecia vagamente, disse-me: não se quer sentar? E eu sentei-me na mesa dele.

Temos de ser uns para os outros.

Vinhetas (17)

José Meireles Graça, 23.08.24

Férias na Andaluzia

Parecia que o regime caminhava em direcção ao comunismo. E quem tinha algum de seu, e o podia pôr a bom recato, começou a tomar providências.

O pai de Luís, entre outras iniciativas, comprou um apartamento amplo em Torremolinos.

Era terra de sucesso, tinha futuro e ainda não era a Meca da classe média-baixa, que aliás pouco feriava – as viagens low-cost ainda vinham longe.

Luís convidou uns amigos para uma vilegiatura de uma semana no imóvel, em frente à praia. Um casal e dois solteiros, dos quais um, o Venâncio, foi com ele.

Um dos carros da casa foi emprestado para o efeito. Era um Peugeot 604, carro de pai de família que não era exactamente o desportivo que talvez conviesse.

Algures no Alentejo duas Inglesas à boleia, uma bonita e outra nem tanto, e os moços pararam de supetão.

Iam, ó felicidade, para Espanha. E Luís, que contou mais tarde esta história, disse, decerto com exagero, que quando entraram e se virou para trás ia desmaiando com o bafo de sovacal que o atingiu.

Normal: os filhos da Ilha não são conhecidos pelo seu amor à higiene, e as filhas aquilo deve ser quase pela mesma medida. Com o calor daquela poeirenta região, em pleno Verão, imagina-se.

O Inglês dos dois era o do Liceu, com a diferença de que Venâncio, além de não ter jeito nenhum para línguas, nunca estudou coisa alguma que remotamente tivesse a ver com matérias lectivas.

Mas a vontade de conversar com as raparigas era muita e Venâncio, acompanhando com dificuldade o diálogo, fez-se ouvir finalmente quando avistaram o Forte de Elvas, virando-se jovialmente para trás e apontando o monumento:

The strong of Elvas.

Vinhetas (16)

José Meireles Graça, 19.08.24

Boleias

O Fiat 600, com portas ditas suicida, pimpão na sua pintura cinzento-rato ainda em bom estado não obstante os seus 10 anos, prometia.

Havia custado em 1969 10 contos, a pagar em 20 prestações mensais sem juros.

Tinha personalidade. Naquele tempo as marcas, a sua origem e o que então se chamava estilo e agora design, destacavam-se com nitidez e originavam ferozes fidelidades: ninguém esperava de um desportivo inglês que se parecesse com um italiano, nas qualidades e nos defeitos; o carocha alemão não se confundia com um Joaninha; e um Citroen arrastadeira era mais depositário de inovação e originalidade do que a que tem hoje a totalidade da indústria francesa.

Personalidade forte: porque desde muito cedo evidenciou uma grande embirração com subidas em tempo quente, o radiador rapidamente dando sinais de se ter transformado numa panela de pressão. “Atestar” o radiador de água era uma operação relativamente comum e ninguém ignorava que abrir a tampa era empresa que devia ser feita com um grande pano ou uma toalha porque havia o risco de espirradelas de água a ferver.

Mudar óleo era coisa que se fazia rotineiramente, de 1.500 em 1.500 ou 2.000 km; e lubrificar o chassis, por mor de as pandeiretas não começarem a ranger por tudo quanto era lado, de longe em longe.

A quilometragem era um mistério que nunca foi possível (não que a curiosidade fosse muita) elucidar porque os conta-quilómetros adulteravam-se com facilidade. Mas não podia ser muito elevada porque motores a gasolina que fizessem mais de 100.000 km sem precisarem de ser “rectificados” eram relativamente raros, salvo em caso de manutenção e utilização particularmente cuidada – o que não devia ter sido, e seguramente não viria a ser, o caso.

Viagens grandes nunca fez. A bem dizer uma dúzia de quilómetros por dia mais uma deslocação semanal ao Porto era o ordinário do veículo.

No primeiro ano de vida ficou credor de grandes encómios pelo excelente negócio que efectivamente tinha sido. Depois, começou a dar preocupantes sinais de decrepitude, incluindo insidiosos buracos nas embaladeiras e por baixo dos pés do condutor, tanto que escondida pelo tapete de sisal já havia uma providencial tábua.

Foi o caso que à saída para a estrada de Santo Tirso, junto à estação, estavam dois tipos à boleia, que foram embarcados.

Alegre viagem, que a carripana não andava nada (nas descidas abeirava-se dos 100 km/h, o motorzinho zunindo com pundonor) mas levaria os três ocupantes, e mais que fosse, até ao Porto.

Uns quilómetros à frente, porém, a tracção sumiu-se e o carro ficou em roda livre. Um barulho metálico na estrada, atrás, levou a que olhasse pelo retrovisor e visse um objecto que saltitava.

Era um semieixo, vim a saber depois. Omissão fatal: que sem aquilo o motor trabalhava, as velocidades entravam, a embraiagem sem novidades mas o carro não andava. Era, vejo agora, um carro alegórico da gestão socialista da economia, reflexão percuciente que evidentemente não me ocorreu.

O que me ocorreu foi como resolver o problema. E nada melhor do que encostar o veículo à berma (com o fim-de-semana passado ver-se-ia) e pôr-me à boleia com os dois.

Isto não caiu bem. E um deles (peço desculpa pelo discurso mas o rigor histórico obriga-me a não o dulcificar) disse cordatamente: Foda-se, se já com dois era difícil agora vai ser o caralho.

Concordei e caminhei aí uns 200 metros para a frente e, muito pouco tempo depois, um carro parou, que me levou ao destino – antes deles.

Contada a história no café houve geral concordância de que, efectivamente, era mais fácil apanhar boleia sozinho que acompanhado. A opinião que adiantei de que ter um excelente aspecto é um poderoso adjuvante do sucesso não recolheu grande apreciação.

Vinhetas (15)

José Meireles Graça, 18.08.24

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Melão de casca de carvalho toda a gente sabe o que é.

Mas não. Porque nascida, crê-se, no Vale do Cávado, há uma variedade assim chamada hoje (mas que já teve curso como “melão de Barcelos”) que parece a mesma coisa mas tem um aspecto, quando fatiado, nacarado, e um sabor apimentado. É muitíssimo mais caro do que o melão comum (à volta do quádruplo) e sempre se rodeou de um grande mistério: é o céu algumas vezes, mas com frequência não vale grande coisa. Ouvir as numerosas teorias sobre a selecção dos bons é uma péssima alocação de tempo porque todas falham – é como ouvir socialistas a falar de economia.

Ama-se, odeia-se ou torce-se o nariz. Eu amo.

Há uns anos a companhia que me calhou à mesa num jantar de casamento, e porque incidentalmente se falou daquele melão e eu manifestei estranheza por não ser mais divulgado, inclusivamente sendo desconhecido em terras de Mouros e até bastante mais a Norte, começou a explicar como se produzia. E, como visse o meu grande interesse, ministrou um curso completo.

Tornei-me num especialista e comunico com desprendimento as linhas axiais da problemática da produção:

  1. A terra utilizada deve, após a colheita, ficar em pousio aí uns 6 anos porque aquele melão é muito exigente. De modo que os produtores, in illo tempore, dividiam o terreno em talhões e produziam outros vegetais nos intervalos, e rodavam;
  2. O germinar da semente requer mão adestrada porque com água a menos não pega e, com água a mais, “mela”;
  3. A operação da castração não consiste em cortar os veios secundários, como se imaginaria, mas o principal logo a seguir à derivação e assim sucessivamente. E tal operação deve ser feita de joelhos, debaixo da torreira do sol, para facilitar a rápida cicatrização do corte;
  4. Quando o fruto começa a botar algum corpo põe-se-lhe por baixo uma cama de palha, para evitar o contacto com a terra húmida;
  5. A partir da adolescência, convém girar o melão na cama de palha um quarto, de dois em dois ou três dias, para harmonizar a exposição ao sol a toda a volta;
  6. Havia o hábito de semear pelo meio malaguetas, para conferir apimentado ao sabor, mas parece que sem fundamento.
  7. Quando chegasse a altura da colheita os primeiros seis melões em cada veio iriam para a mesa; e os restantes para os porcos.

Há agora relativamente grandes produtores, noutros vales que já não o original, e todos os melões, imagino, vão para a camioneta. Suponho que a rotação de terra tenha sido substituída por sábios adubos, algumas operações mecanizadas e oportunos cortar de cantos no ciclo produtivo tenham limitado a mão-de-obra envolvida.

No restaurante ou em casa verdadeiras cabaças, mas também melões verdadeiramente bons, raramente saem. Imagino que algo no processo produtivo se tenha perdido, ou então os melhores espécimes ficam para entre a família.

Se for o caso, fariam melhor em numerá-los: o primeiro ao preço da lagosta em tempos de escassez e depois por aí abaixo até ao preço da pera rocha, que era para ninguém ir ao engano.

Enquanto essa revolução comercial não chega continuarei a frequentar os sítios onde, na época própria (que já quase acabou), se serve a iguaria. E posso dar, por mensagem privada, dicas. A troco de estipêndio, que não sou desses que dão de graça informações que valem ouro.

Vinhetas (14)

José Meireles Graça, 17.08.24

Acidentes

A distância entre o Porto e a praia da Aguda é pequena, mas a pressa era muita porque no sombreado Parque jogava-se cristo (um jogo de cartas muito simples, próprio para mentes inaptas para grandes voos lógicos, mas que se casa bem com apostas a dinheiro) e estava atrasado para semelhante, e importante, função. O meu melhor amigo da época (e que ainda o é hoje) tinha comigo um trato: nunca apostávamos um contra o outro – se ele ia a jogo eu saía, ou ao contrário, com uns disfarces pelo meio para não se topar a mancomunagem. Coisa de somenos, ganhar ou perder 20 escudos era o que nos permitia imaginar que estávamos não muito longe em espírito do Casino do Mónaco.

Parei porque dois tipos pediam boleia. Iam para Miramar, que fica em caminho.

À época, gente a pedir boleia era comum. Eu próprio, na adolescência, usei e abusei do processo e, por causa da memória das pausas desesperadas por um condutor compassivo, sempre, desde que passei a ter carro, dei boleias. Em Portugal, no estrangeiro, de dia ou de noite.

O hábito perdeu-se, creio que por causa do risco de crimes (hoje mais frequentes devido a dependência de drogas) mas, se alguém pedisse, daria na mesma – quero lá saber, nunca trago muito dinheiro e não vivemos nos EUA. De resto, suponho que o próprio sinal manual do pedido não é conhecido pela maior parte da juventude actual, que Nosso Senhor a ature que a mim falta-me muitas vezes a paciência.

Embarcaram, alegres e faladores. Havia um breve trecho de autoestrada, que acabava nos Carvalhos, mas antes de aí chegar saía-se para uma estrada mais perto do mar. No percurso, caiu um silêncio sepulcral. Aparentemente os moços recolheram-se à meditação, possivelmente encomendando-se ao Criador, tal era a velocidade.

Nessa saída, que era apertada, o maldito Escort deu um violento rabejo e ceifou autoritariamente um marco providencial, que voou.

Verificado o estrago, que era um guarda-lamas amassado mas sem afectar a livre circulação da roda, propus-me seguir viagem.

O moço que falava (porque o outro estava amarelo como um círio) explicou com grande delicadeza que já estavam muito perto do destino, que não era bem Miramar mas mais perto, e que iam o resto a pé porque só lhes podia fazer bem.

Separamo-nos nos melhores termos. Isto os que andam à boleia e os que já andaram são uns para os outros.  

Vinhetas (13)

José Meireles Graça, 16.08.24

Acidentes

O Ford Escort da primeira geração tinha os ingredientes para o sucesso que o acolheu: 4 portas, motor (um modestíssimo 1100cc) alegre, uma caixa notável e fiabilidade razoável.

Infelizmente, partilhava com outros automóveis de traccão traseira da época a desagradável tendência para, em curvas abordadas com alguma liberalidade, aquela parte do veículo ir fazer uma visita apressada à outra faixa. No limite o automóvel até podia ficar em sentido oposto ao que seguia.

Há muitos anos foi isso precisamente o que sucedeu numa viagem de regresso do Porto, no Cooper S (que tinha tracção à frente) de um amigo. Este declarou: Ai é isso que queres, filho da p…? E continuou a marcha, novamente para o Porto. Melhor exemplo nunca vi de identificação entre o homem e a máquina.

Aprendia-se a contrariar esta teimosa mania com contrabrecagem, operação que, por contraintuitiva (girar o volante em direcção contrária à da derrapagem, não travar e pelo contrário acelerar com mudança de velocidade susceptível de transmitir potência às rodas traseiras suficiente para endireitar o veículo), só pilotos e moços que os queriam imitar é que aprendiam. A duras penas que, dependendo das qualidades naturais, o aprendizado fazia-se em mais ou menos tempo. Em arruamentos desertos, sem que porém não poucas jantes amassadas ou estragos piores sublinhassem o progresso na ladeira da competência, que abrangia aliás outras habilidades.

O treino tinha de ser clandestino porque não havia (e creio que ainda hoje não há) escolas para este efeito, que existiam noutros países. Não necessariamente para formar pilotos, antes abertas a pessoas que não se bastassem com os rudimentos que se ensinam para obtenção da carta. Por outras palavras: Era, e é, como se a escolaridade obrigatória fosse o único ensino a que pudesse aspirar quem quisesse saber mais do que as primeiras letras do automobilismo.

Há razões para isto: a velocidade é tida como a principal causa de acidentes porque isso casa com um generalizado preconceito, baseado, além de ideias simplistas (se fosse mais devagar não tinha acidente nenhum), em estatísticas que não provam tanto como parece porque qualquer velocidade acima da legalmente permitida no local do acidente fá-lo quase automaticamente classificar como tendo origem no excesso.

Hoje os automóveis são infinitamente mais seguros do que então eram. Isso deve-se à natural evolução científica e sobretudo tecnológica, à competição automóvel e à ausência de limites de velocidade, como por exemplo na Alemanha em partes de autoestradas, e em numerosos países porque os limites existem mas não os meios ou a vontade para os impor. Isto fez com que os automóveis fossem cada vez mais rápidos e seguros, da evolução beneficiando aqueles condutores que não desejam andar depressa e que portanto ganharam um suplemento de segurança que não teriam se a evolução tivesse unicamente privilegiado aquilo que acham verdadeiramente relevante: espaço, conforto, economia, instrumentos de segurança passiva, etc.

O que aliás ainda não impede o sucesso de venda de automóveis cujas qualidades de desempenho os adquirentes nunca experimentarão. Vale a pena ter um automóvel caríssimo muito superior ao utilitário do vizinho, mesmo que os dois cheguem ao destino exactamente ao mesmo tempo, porque é destas e doutras frescuras que se alimenta a vaidade.

Mas as coisas estão a mudar, e depressa: os radares abundam em toda a parte, e a microregulação também: há vários acidentes em tal local? Não se faz nada porque não se investiga o que poderia ser melhorado mas põe-se uma placa de limitação – não dá despesa e ainda dá receita.

Mas não mudaram ainda o suficiente: quem acredita, e quase toda a gente acredita, que a velocidade é o inimigo, deveria reclamar que os poderes públicos instalassem limitadores de velocidade em todos os veículos, ao menos nos novos, aferidos pela velocidade máxima legal. Com excepção, claro, do presidente Marcelo, outros próceres, bombeiros, ambulâncias e polícias. A tecnologia já existe (em alguns pesados limitados a 80 ou 90 km/h e automóveis de topo capazes de irem além dos 250 km/h) e no país da Via Verde talvez houvesse criatividade para inventar controlos ainda mais sofisticados, modificando automática e temporariamente por emissão de aparelhos de controlo na estrada aqueles limites.

Não vai acontecer, entre outras razões porque isso implicaria praticamente o desaparecimento da receita (124,8 milhões previstos para este ano) e o resmungo daqueles transgressores, que são muitos, que “vão” a mais do que o limite porque se julgam excelentes condutores, tachando de loucos do volante os que os ultrapassem.

Mas teria ainda a vantagem supranumerária de deixarmos de ouvir nas tevês aqueles tenentes da GNR, entrevistados sempre em épocas de férias ou de mau tempo, ministrando batidos e enjoativos conselhos embrulhados em ameaças, com a autoridade das divisas e nenhuma do conhecimento. E de, já agora, remeter oficiais e praças para o combate ao crime, onde fazem falta.

Tudo isto para contar uma história, que é o propósito destes verbetes. As palavras, porém, têm uma reprovável tendência para se reproduzirem a preocupante velocidade, e não ignoro que quase ninguém lê posts de mais de duas páginas A4. Fica para amanhã a continuação.