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Delito de Opinião

Vinhetas (19)

José Meireles Graça, 11.09.24

Os restaurantes, quando muito bons, não costumam sobreviver à morte de quem lhes deu a fama. Logo vem uma nova gestão que vai melhorar a anterior para o efeito de ganhar mais dinheiro do que o burro do falecido dono, que não sabia a mina que tinha entre mãos; ou se muda de “conceito”, passando a trocar o que bastante gente queria pelo que só alguma, que se estima muito mais requintada, quer.

Um restaurante que frequento há anos é superlativo: a cozinha é a tradicional da região, incluindo pratos que não são comuns em tais estabelecimentos. E o menu varia consoante as estações e as disponibilidades de géneros, quase sempre muito bons e com frequência difíceis de encontrar senão junto de produtores pequeníssimos.

O dono já não é novo e o trato não será, vamos dizer assim, modelar, a não ser para aqueles que, como eu, têm farto e antigo cachet de cliente fiel mas que, mesmo assim, se calhar de verem algum defeito, o que é raro, se abstêm de o comunicar.

Há tempos foi associado ao negócio o filho, com formação em hotelaria, e temi o pior. O pai morre e o moço escavaca tudo, pensei.

Que nada. Não apenas, se necessário, se desembaraça na cozinha, como não dá o mais remoto sinal de querer fazer reformas, ao que acrescenta simpatia e, de tolo, não ter nada.

Um destes dias fui pagar e o raio da carteira não havia maneira de sair do bolso de trás das calças, onde estava demasiado apertada (não que seja muito espessa, coitadinha).

Comentei, algo irritado, que o dinheiro parece que lhe estava a custar a sair. E o jovem encarou-me, surpreso, declarando que era estranho porque em geral o dinheiro tem dificuldade é em entrar, não em sair.

Oportuna, e justa, reflexão. Temos então que à excelente salada de atum, à de tomate e alface, à costeleta de sardinha, e ao bolinhol de sobremesa, veio juntar-se um bocado de sabedoria, a acompanhar decerto o outro bocado de broa de milho, que já tinha feito companhia ao repasto. Ambos saborosos.

Vinhetas (18)

José Meireles Graça, 01.09.24

Neste último dia de férias muita gente já regressou à terrinha porque quer respirar antes de amanhã dobrar a mola.

Porém, a maioria dos cafés, restaurantes e pastelarias que encerraram para férias ainda não reabriram.

Talvez por isso, o Castelo ainda tinha mais gente do que de costume. Faziam fila até à porta, para o pão e as doçarias dominicais; e as mesas, que não são poucas, estavam todas cheias de gente álacre e juncadas de chávenas, copos e pires vazios.

A esplanada, exígua em relação à dimensão do estabelecimento, estava igualmente cheia, de modo que não bebi o café, como de costume, sentadinho cá fora, mas de golada ao balcão. Saí para fumar o meu primeiro cigarro (agora desses aquecidos por uma maquineta), esperando que alguém fosse à vida para, na paz do Senhor, me sentar a ver o meu correio.

Um desconhecido ocupava uma mesa, uma mochila na cadeira em frente. E uma moça de rabo de cavalo, estuante nas suas calças justíssimas deixando quase nada para a imaginação (têm um nome, essas calças, de momento não me lembro) e no seu top que evidenciava uma jovem barriga chata, dirigiu-se ao camarada inquirindo (apontando para a mochila) se aquele lugar estava ocupado. Como lhe fosse respondido que não, lançou-se numa prédica indignada salientando o abuso de um só cliente ocupar uma mesa quando havia tanta gente a querer sentar-se na esplanada.

Eu assistia à cena, varado, outro tanto acontecendo com outro cliente, igualmente sentado sozinho numa mesa, e como eu fumando.

O interpelado avaliou a rapariga e optou, em vez de enveredar por uma discussão, por se levantar sem uma palavra.

O outro cliente, que conhecia vagamente, disse-me: não se quer sentar? E eu sentei-me na mesa dele.

Temos de ser uns para os outros.

Vinhetas (17)

José Meireles Graça, 23.08.24

Férias na Andaluzia

Parecia que o regime caminhava em direcção ao comunismo. E quem tinha algum de seu, e o podia pôr a bom recato, começou a tomar providências.

O pai de Luís, entre outras iniciativas, comprou um apartamento amplo em Torremolinos.

Era terra de sucesso, tinha futuro e ainda não era a Meca da classe média-baixa, que aliás pouco feriava – as viagens low-cost ainda vinham longe.

Luís convidou uns amigos para uma vilegiatura de uma semana no imóvel, em frente à praia. Um casal e dois solteiros, dos quais um, o Venâncio, foi com ele.

Um dos carros da casa foi emprestado para o efeito. Era um Peugeot 604, carro de pai de família que não era exactamente o desportivo que talvez conviesse.

Algures no Alentejo duas Inglesas à boleia, uma bonita e outra nem tanto, e os moços pararam de supetão.

Iam, ó felicidade, para Espanha. E Luís, que contou mais tarde esta história, disse, decerto com exagero, que quando entraram e se virou para trás ia desmaiando com o bafo de sovacal que o atingiu.

Normal: os filhos da Ilha não são conhecidos pelo seu amor à higiene, e as filhas aquilo deve ser quase pela mesma medida. Com o calor daquela poeirenta região, em pleno Verão, imagina-se.

O Inglês dos dois era o do Liceu, com a diferença de que Venâncio, além de não ter jeito nenhum para línguas, nunca estudou coisa alguma que remotamente tivesse a ver com matérias lectivas.

Mas a vontade de conversar com as raparigas era muita e Venâncio, acompanhando com dificuldade o diálogo, fez-se ouvir finalmente quando avistaram o Forte de Elvas, virando-se jovialmente para trás e apontando o monumento:

The strong of Elvas.

Vinhetas (16)

José Meireles Graça, 19.08.24

Boleias

O Fiat 600, com portas ditas suicida, pimpão na sua pintura cinzento-rato ainda em bom estado não obstante os seus 10 anos, prometia.

Havia custado em 1969 10 contos, a pagar em 20 prestações mensais sem juros.

Tinha personalidade. Naquele tempo as marcas, a sua origem e o que então se chamava estilo e agora design, destacavam-se com nitidez e originavam ferozes fidelidades: ninguém esperava de um desportivo inglês que se parecesse com um italiano, nas qualidades e nos defeitos; o carocha alemão não se confundia com um Joaninha; e um Citroen arrastadeira era mais depositário de inovação e originalidade do que a que tem hoje a totalidade da indústria francesa.

Personalidade forte: porque desde muito cedo evidenciou uma grande embirração com subidas em tempo quente, o radiador rapidamente dando sinais de se ter transformado numa panela de pressão. “Atestar” o radiador de água era uma operação relativamente comum e ninguém ignorava que abrir a tampa era empresa que devia ser feita com um grande pano ou uma toalha porque havia o risco de espirradelas de água a ferver.

Mudar óleo era coisa que se fazia rotineiramente, de 1.500 em 1.500 ou 2.000 km; e lubrificar o chassis, por mor de as pandeiretas não começarem a ranger por tudo quanto era lado, de longe em longe.

A quilometragem era um mistério que nunca foi possível (não que a curiosidade fosse muita) elucidar porque os conta-quilómetros adulteravam-se com facilidade. Mas não podia ser muito elevada porque motores a gasolina que fizessem mais de 100.000 km sem precisarem de ser “rectificados” eram relativamente raros, salvo em caso de manutenção e utilização particularmente cuidada – o que não devia ter sido, e seguramente não viria a ser, o caso.

Viagens grandes nunca fez. A bem dizer uma dúzia de quilómetros por dia mais uma deslocação semanal ao Porto era o ordinário do veículo.

No primeiro ano de vida ficou credor de grandes encómios pelo excelente negócio que efectivamente tinha sido. Depois, começou a dar preocupantes sinais de decrepitude, incluindo insidiosos buracos nas embaladeiras e por baixo dos pés do condutor, tanto que escondida pelo tapete de sisal já havia uma providencial tábua.

Foi o caso que à saída para a estrada de Santo Tirso, junto à estação, estavam dois tipos à boleia, que foram embarcados.

Alegre viagem, que a carripana não andava nada (nas descidas abeirava-se dos 100 km/h, o motorzinho zunindo com pundonor) mas levaria os três ocupantes, e mais que fosse, até ao Porto.

Uns quilómetros à frente, porém, a tracção sumiu-se e o carro ficou em roda livre. Um barulho metálico na estrada, atrás, levou a que olhasse pelo retrovisor e visse um objecto que saltitava.

Era um semieixo, vim a saber depois. Omissão fatal: que sem aquilo o motor trabalhava, as velocidades entravam, a embraiagem sem novidades mas o carro não andava. Era, vejo agora, um carro alegórico da gestão socialista da economia, reflexão percuciente que evidentemente não me ocorreu.

O que me ocorreu foi como resolver o problema. E nada melhor do que encostar o veículo à berma (com o fim-de-semana passado ver-se-ia) e pôr-me à boleia com os dois.

Isto não caiu bem. E um deles (peço desculpa pelo discurso mas o rigor histórico obriga-me a não o dulcificar) disse cordatamente: Foda-se, se já com dois era difícil agora vai ser o caralho.

Concordei e caminhei aí uns 200 metros para a frente e, muito pouco tempo depois, um carro parou, que me levou ao destino – antes deles.

Contada a história no café houve geral concordância de que, efectivamente, era mais fácil apanhar boleia sozinho que acompanhado. A opinião que adiantei de que ter um excelente aspecto é um poderoso adjuvante do sucesso não recolheu grande apreciação.

Vinhetas (15)

José Meireles Graça, 18.08.24

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Melão de casca de carvalho toda a gente sabe o que é.

Mas não. Porque nascida, crê-se, no Vale do Cávado, há uma variedade assim chamada hoje (mas que já teve curso como “melão de Barcelos”) que parece a mesma coisa mas tem um aspecto, quando fatiado, nacarado, e um sabor apimentado. É muitíssimo mais caro do que o melão comum (à volta do quádruplo) e sempre se rodeou de um grande mistério: é o céu algumas vezes, mas com frequência não vale grande coisa. Ouvir as numerosas teorias sobre a selecção dos bons é uma péssima alocação de tempo porque todas falham – é como ouvir socialistas a falar de economia.

Ama-se, odeia-se ou torce-se o nariz. Eu amo.

Há uns anos a companhia que me calhou à mesa num jantar de casamento, e porque incidentalmente se falou daquele melão e eu manifestei estranheza por não ser mais divulgado, inclusivamente sendo desconhecido em terras de Mouros e até bastante mais a Norte, começou a explicar como se produzia. E, como visse o meu grande interesse, ministrou um curso completo.

Tornei-me num especialista e comunico com desprendimento as linhas axiais da problemática da produção:

  1. A terra utilizada deve, após a colheita, ficar em pousio aí uns 6 anos porque aquele melão é muito exigente. De modo que os produtores, in illo tempore, dividiam o terreno em talhões e produziam outros vegetais nos intervalos, e rodavam;
  2. O germinar da semente requer mão adestrada porque com água a menos não pega e, com água a mais, “mela”;
  3. A operação da castração não consiste em cortar os veios secundários, como se imaginaria, mas o principal logo a seguir à derivação e assim sucessivamente. E tal operação deve ser feita de joelhos, debaixo da torreira do sol, para facilitar a rápida cicatrização do corte;
  4. Quando o fruto começa a botar algum corpo põe-se-lhe por baixo uma cama de palha, para evitar o contacto com a terra húmida;
  5. A partir da adolescência, convém girar o melão na cama de palha um quarto, de dois em dois ou três dias, para harmonizar a exposição ao sol a toda a volta;
  6. Havia o hábito de semear pelo meio malaguetas, para conferir apimentado ao sabor, mas parece que sem fundamento.
  7. Quando chegasse a altura da colheita os primeiros seis melões em cada veio iriam para a mesa; e os restantes para os porcos.

Há agora relativamente grandes produtores, noutros vales que já não o original, e todos os melões, imagino, vão para a camioneta. Suponho que a rotação de terra tenha sido substituída por sábios adubos, algumas operações mecanizadas e oportunos cortar de cantos no ciclo produtivo tenham limitado a mão-de-obra envolvida.

No restaurante ou em casa verdadeiras cabaças, mas também melões verdadeiramente bons, raramente saem. Imagino que algo no processo produtivo se tenha perdido, ou então os melhores espécimes ficam para entre a família.

Se for o caso, fariam melhor em numerá-los: o primeiro ao preço da lagosta em tempos de escassez e depois por aí abaixo até ao preço da pera rocha, que era para ninguém ir ao engano.

Enquanto essa revolução comercial não chega continuarei a frequentar os sítios onde, na época própria (que já quase acabou), se serve a iguaria. E posso dar, por mensagem privada, dicas. A troco de estipêndio, que não sou desses que dão de graça informações que valem ouro.

Vinhetas (14)

José Meireles Graça, 17.08.24

Acidentes

A distância entre o Porto e a praia da Aguda é pequena, mas a pressa era muita porque no sombreado Parque jogava-se cristo (um jogo de cartas muito simples, próprio para mentes inaptas para grandes voos lógicos, mas que se casa bem com apostas a dinheiro) e estava atrasado para semelhante, e importante, função. O meu melhor amigo da época (e que ainda o é hoje) tinha comigo um trato: nunca apostávamos um contra o outro – se ele ia a jogo eu saía, ou ao contrário, com uns disfarces pelo meio para não se topar a mancomunagem. Coisa de somenos, ganhar ou perder 20 escudos era o que nos permitia imaginar que estávamos não muito longe em espírito do Casino do Mónaco.

Parei porque dois tipos pediam boleia. Iam para Miramar, que fica em caminho.

À época, gente a pedir boleia era comum. Eu próprio, na adolescência, usei e abusei do processo e, por causa da memória das pausas desesperadas por um condutor compassivo, sempre, desde que passei a ter carro, dei boleias. Em Portugal, no estrangeiro, de dia ou de noite.

O hábito perdeu-se, creio que por causa do risco de crimes (hoje mais frequentes devido a dependência de drogas) mas, se alguém pedisse, daria na mesma – quero lá saber, nunca trago muito dinheiro e não vivemos nos EUA. De resto, suponho que o próprio sinal manual do pedido não é conhecido pela maior parte da juventude actual, que Nosso Senhor a ature que a mim falta-me muitas vezes a paciência.

Embarcaram, alegres e faladores. Havia um breve trecho de autoestrada, que acabava nos Carvalhos, mas antes de aí chegar saía-se para uma estrada mais perto do mar. No percurso, caiu um silêncio sepulcral. Aparentemente os moços recolheram-se à meditação, possivelmente encomendando-se ao Criador, tal era a velocidade.

Nessa saída, que era apertada, o maldito Escort deu um violento rabejo e ceifou autoritariamente um marco providencial, que voou.

Verificado o estrago, que era um guarda-lamas amassado mas sem afectar a livre circulação da roda, propus-me seguir viagem.

O moço que falava (porque o outro estava amarelo como um círio) explicou com grande delicadeza que já estavam muito perto do destino, que não era bem Miramar mas mais perto, e que iam o resto a pé porque só lhes podia fazer bem.

Separamo-nos nos melhores termos. Isto os que andam à boleia e os que já andaram são uns para os outros.  

Vinhetas (13)

José Meireles Graça, 16.08.24

Acidentes

O Ford Escort da primeira geração tinha os ingredientes para o sucesso que o acolheu: 4 portas, motor (um modestíssimo 1100cc) alegre, uma caixa notável e fiabilidade razoável.

Infelizmente, partilhava com outros automóveis de traccão traseira da época a desagradável tendência para, em curvas abordadas com alguma liberalidade, aquela parte do veículo ir fazer uma visita apressada à outra faixa. No limite o automóvel até podia ficar em sentido oposto ao que seguia.

Há muitos anos foi isso precisamente o que sucedeu numa viagem de regresso do Porto, no Cooper S (que tinha tracção à frente) de um amigo. Este declarou: Ai é isso que queres, filho da p…? E continuou a marcha, novamente para o Porto. Melhor exemplo nunca vi de identificação entre o homem e a máquina.

Aprendia-se a contrariar esta teimosa mania com contrabrecagem, operação que, por contraintuitiva (girar o volante em direcção contrária à da derrapagem, não travar e pelo contrário acelerar com mudança de velocidade susceptível de transmitir potência às rodas traseiras suficiente para endireitar o veículo), só pilotos e moços que os queriam imitar é que aprendiam. A duras penas que, dependendo das qualidades naturais, o aprendizado fazia-se em mais ou menos tempo. Em arruamentos desertos, sem que porém não poucas jantes amassadas ou estragos piores sublinhassem o progresso na ladeira da competência, que abrangia aliás outras habilidades.

O treino tinha de ser clandestino porque não havia (e creio que ainda hoje não há) escolas para este efeito, que existiam noutros países. Não necessariamente para formar pilotos, antes abertas a pessoas que não se bastassem com os rudimentos que se ensinam para obtenção da carta. Por outras palavras: Era, e é, como se a escolaridade obrigatória fosse o único ensino a que pudesse aspirar quem quisesse saber mais do que as primeiras letras do automobilismo.

Há razões para isto: a velocidade é tida como a principal causa de acidentes porque isso casa com um generalizado preconceito, baseado, além de ideias simplistas (se fosse mais devagar não tinha acidente nenhum), em estatísticas que não provam tanto como parece porque qualquer velocidade acima da legalmente permitida no local do acidente fá-lo quase automaticamente classificar como tendo origem no excesso.

Hoje os automóveis são infinitamente mais seguros do que então eram. Isso deve-se à natural evolução científica e sobretudo tecnológica, à competição automóvel e à ausência de limites de velocidade, como por exemplo na Alemanha em partes de autoestradas, e em numerosos países porque os limites existem mas não os meios ou a vontade para os impor. Isto fez com que os automóveis fossem cada vez mais rápidos e seguros, da evolução beneficiando aqueles condutores que não desejam andar depressa e que portanto ganharam um suplemento de segurança que não teriam se a evolução tivesse unicamente privilegiado aquilo que acham verdadeiramente relevante: espaço, conforto, economia, instrumentos de segurança passiva, etc.

O que aliás ainda não impede o sucesso de venda de automóveis cujas qualidades de desempenho os adquirentes nunca experimentarão. Vale a pena ter um automóvel caríssimo muito superior ao utilitário do vizinho, mesmo que os dois cheguem ao destino exactamente ao mesmo tempo, porque é destas e doutras frescuras que se alimenta a vaidade.

Mas as coisas estão a mudar, e depressa: os radares abundam em toda a parte, e a microregulação também: há vários acidentes em tal local? Não se faz nada porque não se investiga o que poderia ser melhorado mas põe-se uma placa de limitação – não dá despesa e ainda dá receita.

Mas não mudaram ainda o suficiente: quem acredita, e quase toda a gente acredita, que a velocidade é o inimigo, deveria reclamar que os poderes públicos instalassem limitadores de velocidade em todos os veículos, ao menos nos novos, aferidos pela velocidade máxima legal. Com excepção, claro, do presidente Marcelo, outros próceres, bombeiros, ambulâncias e polícias. A tecnologia já existe (em alguns pesados limitados a 80 ou 90 km/h e automóveis de topo capazes de irem além dos 250 km/h) e no país da Via Verde talvez houvesse criatividade para inventar controlos ainda mais sofisticados, modificando automática e temporariamente por emissão de aparelhos de controlo na estrada aqueles limites.

Não vai acontecer, entre outras razões porque isso implicaria praticamente o desaparecimento da receita (124,8 milhões previstos para este ano) e o resmungo daqueles transgressores, que são muitos, que “vão” a mais do que o limite porque se julgam excelentes condutores, tachando de loucos do volante os que os ultrapassem.

Mas teria ainda a vantagem supranumerária de deixarmos de ouvir nas tevês aqueles tenentes da GNR, entrevistados sempre em épocas de férias ou de mau tempo, ministrando batidos e enjoativos conselhos embrulhados em ameaças, com a autoridade das divisas e nenhuma do conhecimento. E de, já agora, remeter oficiais e praças para o combate ao crime, onde fazem falta.

Tudo isto para contar uma história, que é o propósito destes verbetes. As palavras, porém, têm uma reprovável tendência para se reproduzirem a preocupante velocidade, e não ignoro que quase ninguém lê posts de mais de duas páginas A4. Fica para amanhã a continuação.

Vinhetas (12)

José Meireles Graça, 15.08.24

Revolução

Da população actual, pouco mais de 6% tinha 18 anos ou mais em 1975, o ano em que se acentuou a derrapagem para um regime comunista. Foi evitado pelo 25 de Novembro do mesmo ano e é razoável dizer que as eleições de 1976, que esmagaram a esquerda à esquerda do PS (o PCP não foi além de 15%, a UDP, hoje integrada no Bloco, e os restantes grupúsculos mais ou menos dementes, 5%), não teriam tido lugar ou teriam mas sem partidos “reaccionários, fascistas, ao serviço do imperialismo americano”, no palavreado então moeda corrente.

É por isso que é bizarra a recente polémica em torno do 25 de Novembro, sobre uma data que evidentemente merece comemoração, que só não existiu com a dignidade devida porque o PS traiu o seu papel naquela época, que quer esquecer porque não lhe dá jeito para os arranjos actuais e futuros. A isso eu chamo oportunismo, para não usar palavra mais severa e rigorosa.

As gerações mais recentes, que nasceram e viveram em democracia, têm daqueles tempos uma visão romântica, soprada pela maior parte da Academia e a quase totalidade da comunicação social.

Porém, ainda vivos há muitos emigrantes forçados, presos políticos (isto é, por delito de opinião), espoliados, saneados e j’en passe. Mas também não há falta, na comoção geral da época, de pequenos e anónimos resistentes que não compraram o ar do tempo e não acreditavam nas trombetas da comunicação social nem nos atropelos ao Estado de Direito a benefício de risonhas sociedades futuras. Uma pequena (em todos os sentidos) história:

Na câmara municipal fez-se uma comissão de trabalhadores porque um local de trabalho sem semelhante associação não era concebível. Nesta havia um representante de cada departamento e a secretaria elegeu um moço muito moço, suspeito por ser desassombrado e claramente reaccionário: não defendia saneamentos sem processos disciplinares com todas as garantias de defesa, não achava que a Comissão Administrativa tivesse de atender às recomendações da de Trabalhadores em questões que nada tinham a ver com condições de trabalho, não entendia que o Código Administrativo e restantes leis fosse ignorado e via mal que a hierarquia fosse subvertida a benefício de broncos eleitos sumariamente.

Elegeu-se o presidente e, como o moço lesse e escrevesse com desembaraço,  ficou como secretário. Erro fatal: que, logo na primeira reunião, fez uma proposta para um voto de censura a dois elementos da Comissão Administrativa Municipal que, numa deslocação a Lisboa, tinham apresentado uma conta de uma refeição opípara que incluía vários quilos de marisco. A proposta foi derrotada mas o secretário, com grande fidelidade à sua função, transcreveu-a na acta e afixou-a no átrio.

No dia seguinte havia um pequeno ajuntamento a ler o importante papel: uma barrigada de riso nuns, uma virtuosa indignação noutros.

Isto não engraçou o atrevido junto daquele prestigioso órgão de topo do Município, e talvez por isso o respectivo presidente tivesse intimado o recalcitrante a entregar a chave da porta principal, que utilizava desde a administração anterior por ter o hábito anómalo de trabalhar a desoras. Por “falta de confiança”, disse com solenidade o advogado que desempenhava aquelas funções, para elas nomeado por ter sólidas credenciais de esquerda.

Um tempo passado o rapaz, que trabalhava na Contabilidade, foi increpado por um “camarada” trabalhador sobre por que motivo não havia ainda sido processado não sei que pagamento. E respondeu que não fosse aquele “bando de gatunos” lhe ter subtraído a tal chave e o assunto já estaria resolvido.

O que foi dizer. Que dali o ansioso disparou para um vereador, denunciando a séria acusação.

A Comissão reuniu e deliberou que o caso era grave, justificando um processo disciplinar.

Não havia testemunhas e portanto o vereador nomeado para liderar as investigações, antecipando um diz-que-disse espinhoso, começou, acolitado por dois colegas e um escrivão, por chamar o alegado criminoso, em diligência rodeada da maior solenidade.

Não teria valido a pena. Porque o indiciado confirmou serenamente que sim senhor, tinha dito que a Comissão Administrativa Municipal era um bando de gatunos, era-o efectivamente, não tinha nada a corrigir e se nisso vissem ofensa conviria irem consultar um dicionário e ver o significado das palavras: bando era um grupo de pessoas com um fim comum e gatunos por serem ladrões da sua dignidade porque sem razão lhe tinham retirado a chave, além de outras ofensas gratuitas. Isto e outros perépépés, perante o silêncio abananado dos ilustres, apenas perturbado pelo matraquear da máquina do escrivão.

Veio a sentença: suspensão do vencimento de exercício (isto é, 1/6 do vencimento sem dispensa de trabalho) por 30 dias. O inconformado foi expulso da Comissão de Trabalhadores e num plenário futuro, lugar de celebrações revolucionárias, reagindo ao começo do discurso do presidente que se dirigia à assembleia por “meus amigos”, pediu a palavra para esclarecer que não era amigo dele, nem de nenhum dos membros da mesa.

Barafunda total. Sob uma chuva de impropérios, alguns trabalhadores rodearam-no e um deles, um motorista, disse-lhe à boca pequena: não se aflija sr. Fulano que não lhe acontece mal nenhum (entreabrindo o casaco e mostrando uma corrente de bicicleta).

Pena muito leve, é certo. Parece que levaram em linha de conta não ter o insolente outros meios de subsistência senão o trabalho, por ser desde há poucos anos órfão de pai.

De modo que revolução houve, tendo havido muitos que não tiveram, nas agruras que passaram, nem leniência nem aspectos cómicos. Alguns sim. Deve ter sido por causa daquela coisa dos brandos costumes.

Vinhetas (11)

José Meireles Graça, 14.08.24

Mudanças

Houve um tempo, contemporâneo dos Neandertais, em que quem quisesse arrendar casa não tinha mais do que passear na cidade e observar as janelas – as que tivessem “escritos” (uns pequenos quadrados ou rectângulos de papel branco colados nos vidros) indicavam uma casa ou andar para arrendamento. Um papel na porta informava do nº de telefone do proprietário, se lá não vivesse, e, na sua ausência, na mercearia ou drogaria próximas, estabelecimentos que nunca estavam longe, davam informações.

O senhorio procurava inteirar-se se o candidato a inquilino tinha meios para não lhe ferrar um futuro calote e perfil para não lhe deixar a propriedade num canho, quando a vagasse. O inquilino informava-se da renda.

Casas havia geralmente muitas, famílias de seis filhos não eram uma raridade e a legislação que regulava o valor das rendas, vasto campo de intervencionismo estatal desde os tempos da I República que o Estado Novo nunca abandonou completamente, não era suficientemente opressiva para constranger seriamente o funcionamento do mercado. Investir num “prédio de rendimento” era, num contexto de baixas taxas de inflação e em que o proprietário não era taxado como se fosse uma inesgotável vaca leiteira, prudente e seguro.

De modo que problemas nunca houve (salvo uma vez em que o senhorio desconfiou dos meninos, que lhe pareceram uma boa colecção de gandulos) em seis mudanças de casa, da primeira vez de uma aldeia para a cidade sede do concelho, desta para o Porto, do Porto para cá, de cá para o Porto, novamente para cá e, aqui, trocando de rua.

O tal tipo que desconfiou era arguto. Porque os três mais velhos saíram de rajada, com um intervalo entre cada um de um ano, o Pai era ausente porque trabalhava muito e a Mãe pouco presente porque também trabalhava. Das empregadas faziam eles gato sapato e, criados na liberdade de entrar e sair, lidavam mal com disciplinas, regras, susceptibilidades de vizinhos e geral urbanidade.

Liberdade de entrar e sair é como quem diz. Que, para a assegurar, a porta da rua, quando os três mais velhos tinham 8, 7 e 6 anos, respectivamente, foi oportunamente subtraída de uma das suas almofadas, criando um utilíssimo buraco, sucesso que não foi naturalmente acolhido com simpatia pelos vizinhos; ou, uns anos mais tarde e numa daquelas casas dos princípios do séc. XX, no Porto, uma gateira passou a ser a porta providencial por onde se entrava com alguma ginástica; ou ainda, num prédio grande que albergava vários consultórios, sucessivas fechaduras da comum entrada se viram recorrentemente avariadas, de modo a que com generosidade se facilitasse o acesso a residentes e visitas. A Liberdade, está bom de ver, teve naquele tempo mais defensores do que os usualmente celebrados.

A união e a solidariedade faziam a força. Que o diga o ferrabrás, que tendo tentado dar baile abusivo ao do meio, num jogo do espeto no descampado térreo, foi avisado que, se insistisse, viria o mais velho. Chamado, veio, e imediatamente lhe abriu a cabeça com um toco de vassoura. E os irmãos, em inocentes folguedos, podiam ocasionalmente exorbitar de um módico de prudência, como daquela vez em que tentaram acender uma fogueira dentro de casa, para o efeito de executar à volta dela uma dança de Índios, extinta pela intervenção prestes de uma empregada, a golpes de panelas de água.

Estas iniciativas, e muitas outras, davam invariavelmente origem a julgamentos plenários onde a argumentação titubeante dos réus era acompanhada de profusão de sopapos, geralmente suportados com estoicismo e arrependimento. O qual, desgraçadamente, não durava mais tempo do que o que mediava até à próxima tropelia.

E não se pense que só há histórias de comportamentos, digamos assim, um tanto arredios. Lembro com orgulho a tenda que montei na cama de ferro, com um pau e uma colcha, para efeito de poder ler até altas horas sem que a luz se visse do exterior – isto de uma pessoa se transformar num intelectual é empresa trabalhosa e não isenta de riscos.

Em todas as mudanças de casa os infantes colaboraram, como era seu dever, e não viram nada de mais na arca decrépita, forrada a pele de boi a que já faltava a maior parte do pelo, pesadíssima da tralha que a atafulhava e que os carregadores, bufando, dissessem para os colegas: deixa passar o móbele!

Nem nisso nem na interessante viagem, na própria camioneta das mudanças, uma possante Scania Vabis; ou, já agora, na memorável inovação do pater familias para transporte de livros:

Havia umas estantes cuja altura ia até à altura da cinta e que teriam, cada uma, uns três metros de comprido. Retirar os livros e empacotá-los era reconhecidamente uma maçada. Nada melhor, portanto, de que os empurrar para o fundo, forrar o espaço com cobertores e pregar umas ripas de madeira, de cima a baixo, de modo a amparar o conjunto.

Lá amparar amparava. Mas os paralelepípedos resultantes desafiavam as compleições poderosas dos carregadores. E, não nos tivesse a rua há muito industriado na riqueza do vernáculo, a oportunidade teria sido a indicada para uma formação acelerada.

Família grande, os tempos outros. Não resultou mal.

Vinhetas (10)

José Meireles Graça, 13.08.24

O namoro

Alguma insubordinação talvez houvesse, muita ingenuidade também.

O segundo e o terceiro do trio mais velho foram imprudentemente levados por um tio hóspede residente, num Domingo soalheiro, a visitar uma namorada numa quinta a uma hora de carro. O casalinho ficou sentado num banco de jardim, trocando olhares enternecidos, e os dois ganapos resistiam com pertinácia a sugestões para “irem passear para a mata”. Até que a mãe da menina veio, para alívio dos namorados, buscar os meninos para lanchar.

Muito simpática, a senhora. E, levando-os para uma sala, presenteou-os com um gigantesco tabuleiro de charão onde estadeava, soberba, uma pirâmide de fruta da época, recomendando, com um dedo em riste falsamente severo: têm de comer tudo, ouviram?

Ouviram e a perspectiva nada tinha de assustadora, pelo que se deitaram à empresa com denodo. Mas ainda o tabuleiro não ia a meio e já os irmãos, contrafeitos, haviam chegado à conclusão de que não poderiam comer nem mais um bago de uva.

O mais engenhoso dos dois, o mais novo, teve a ideia luminosa: deitamos tudo ao jardim. E como mentes criminosas não têm de ser sumárias começaram a tirar os bagos dos cachos, que atiravam pela janela, outro tanto fazendo com a restante fruta, sempre com o cuidado de de cada peça deixarem destroços, exactamente como se tivesse sido comida.

Algum tempo volvido regressou a anfitriã, que contemplou o tabuleiro com incredulidade. E dali foi informar o namorado da filha, insinuando risonhamente que talvez os sobrinhos passassem fome.

O regresso foi tempestuoso, impedindo os miúdos de apreciarem devidamente o passeio no BMW Isetta, que achavam um prodígio. E decerto as coisas não melhoraram quando, chegados a casa e continuando o tio com as suas recriminações, o mais novo – sempre ele – declarou: o que tu querias sabíamos nós.

Vinhetas (9)

José Meireles Graça, 12.08.24

Olimpíadas no Ave

Sair à francesa toda a gente sabe o que é. Por estes dias também ficamos a saber o que é organizar à francesa. Les bleus têm dado grandes barrigadas de riso, e interessantes polémicas, aos espectadores de todo o mundo, com atletas que talvez sejam homens, ou nem por isso, a competir com mulheres, outros que suam as estopinhas porque, em nome da defesa do planeta, não há ar condicionado nas instalações, menus de peixe que incluem minhocas (decerto porque os saborosos animais foram pescados à linha), e infecções gástricas e intestinais para os que, desgraçadamente, praticam desportos que implicam terem de mergulhar nas românticas águas do Sena.

Esta última inconveniência trouxe-me à memória que há muitos anos um amigo desportista falava incansavelmente de descidas de rios em canoa. Aquilo era uma excitação, sobretudo se havia correntezas fortes e quedas de água. E como tais proezas não atraíam por demais os adolescentes mais virados para desportos motorizados, bilhares e cartas, que nós éramos, combinamos com entusiasmo uma descida do Ave – alguém alvitrou que da Trofa até à foz em Vila do Conde era um remanso mais adequado a gente naturalmente prudente.

Lá fomos. Eu levava um barquito insuflável que me havia dado grandes alegrias na praia, em formato de rectângulo com os dois lados mais pequenos arredondados, outro uma longa canoa insuflável, outros ainda vários tipos de embarcações experimentadas em ondas de beira-mar, o amigo atleta uma canoa de fibra e o respectivo remo adequados para o efeito. A toilette consistia em fatos de mergulho, um ou dois de propriedade própria e a maioria emprestados.

Começaram aqui os problemas porque vestir um fato daqueles, para quem nunca o fez, é um empreendimento de considerável dificuldade, além do mais porque havia quem, por se imaginar mais magro, não o conseguisse fechar inteiramente, ou a quem o fato sobrasse por faltarem as rotundidades que o retesassem.

Tudo a postos, uma desagradável contrariedade assinalou o começo. Foi o caso que um particularmente desastrado (viria a morrer cedo, mas com tempo para se transformar num brilhante advogado) conseguiu, na tal canoa insuflável, soltar-lhe a válvula com o dedão do pé, de tal modo que a embarcação, a dois metros da margem, começou a dobrar-se e afundar pelo meio, enquanto os dois tripulantes praguejavam remando furiosamente, a água já pela cintura. Como não houvesse nenhuma bomba de insuflar, porque ninguém trouxe, fomos arregimentados para soprar à vez, tudo acompanhado de uma chuva de palavrões em uso na região, susceptíveis de fazer corar a dra. Ana Gomes.

Aí fomos rio abaixo, até à primeira levada, o atleta liderando o comboio, que aliás se ia espraiando e perdendo o alinhamento. O meu barco embarrou numa qualquer pedra mesmo no ponto em que havia a parede que as águas venciam para se precipitarem um metro abaixo, e as manobras para ultrapassar o obstáculo levaram a que o fundo começasse a descolar pela frente.

Não fazia mal, pensei, isto funciona na mesma, o que garante a flutuação é o aro cheio de ar, não o fundo. Mas como entrasse água e a progressão se tornasse demasiado lenta concluí que o melhor era, com os pés, forçar o resto do fundo a descolar de vez, operação coroada de sucesso – suponho que aquele fundo de barco ainda esteja poluindo águas ignotas porque o plástico, dizem os entendidos, leva mais de 200 anos a decompor-se.

Rapidamente descobri, porém, que sem fundo era praticamente impossível impedir que o aro, qualquer que fosse a parte dele em que me colocasse, levantasse do outro lado ao menor movimento, despejando o passageiro na água. Nada de dramático, excepto pelo facto de naquele ponto aquela ter à superfície uma espuma suspeita, um cheiro nauseabundo e o que me pareceu ser uma raposa afogada (vim a ser informado, por quem lá passou com menos aflição, que era um cão). Repetida a operação duas ou três vezes nadei para a margem empurrando o estorvo, com a perspectiva de o carregar pelos campos até à próxima praia fluvial, aí uns 3 km do ponto de partida inicial.

Lá esperavam algumas namoradas, que conduziam os carros e ali parariam para nos ver passar e dizer adeus. Estavam na companhia do líder da expedição e dois outros aventureiros, todos há muito esperando. E pudemos assistir à chegada dos dois outros desportistas em falta, também a pé porque o bote que os carregava havia igualmente perdido a sua navegabilidade, ainda antes do meu, não sei por que bulas.

Após breve conferência, o passeio morreu ali e combinamos um jantar retemperador.

É por isso que daqui vai o meu silencioso aplauso não para medalhados, nem sequer para os que recebem diplomas, mas para os intrépidos que fazem desporto, mesmo que sem experiência, nem jeito, nem equipamento.

Vinhetas (8)

José Meireles Graça, 11.08.24

Almoço dominical

Setecentos monos.

O quê, o que é que você diz?

Setecentos monos.

E o que é que você quer dizer com isso?

É a história daquele padre míope que disse isso à congregação e, como ninguém se mexesse, pôs os óculos e voltou a ler: Sentemo-nos.

Ah, e você não tem uma piada melhor?

Gosto desta. É por isso que a digo tantas vezes.

Vinhetas (7)

José Meireles Graça, 10.08.24

O casamento

Amigos chegados, todos frequentávamos o mesmo café diariamente. Muitos estudavam, alguns já trabalhavam. Partilhávamos o mesmo interesse obsessivo por motas, automóveis e gajas (meninas, se com a palavra alguma pespineta se incomodar).

De política não se falava, que aquilo era lá uma coisa de senhores rubicundos, de fatos cinzentos, a debitarem inanidades na televisão a preto e branco, que nem para adormecer serviam. Houve um tempo em que havia “Conversas em família”, a que um ou outro ligava desprendidamente – aquele Marcelo parecia um gajo porreiro.

A guerra colonial pairava como uma sombra, mas esperava-se, os que estudavam, adiamento da incorporação para concluir cursos, outros a dificílima cunha que os daria como incapazes e os restantes que, com sorte, fossem parar a um sítio onde não houvesse bernarda e pelo contrário abundância de finos que, dizia-se, vinham acompanhados de camarão em vez de tremoços.

Muito tempo volvido houve um casamento tardio de um de nós, num solar distante alugado para o efeito.

Não nos víamos há anos: A vida levou, como é próprio dela, uns para aqui e outros para ali; e ninguém sabia exactamente quem estaria e não estaria presente.

Cheguei atrasado e, como faço em casamentos, levava na gravata um alfinete (uma pequena pérola) herdado de meu Pai, que o usava diariamente.

No amplo átrio fresco estava uma multidão, de copo na mão. E, à minha chegada, suspenderam-se as conversas para confirmar quem era e apreciar a toilette e os estragos do tempo.

Não durou, o silêncio. Porque Venâncio perguntou, alto:

Zé Maria, vens da acupunctura?

Vinhetas (6)

José Meireles Graça, 09.08.24

A aula

Pela mão de Padre Felismino haviam passado gerações de estudantes que o lembravam com saudade e respeito. A bondade que associamos aos santos, porém, não era a sua característica mais saliente. Pelo contrário, para o aluno indisciplinado tinha um alforge de tabefes; e, ocasionalmente, para o calaceiro que não estudava também.

Foi o caso que perguntou a um dos das últimas filas, portanto dos lugares predilectos dos que tinham outros e mais prementes interesses do que as maçadorias ali ministradas, se sabia quem havia ganho a batalha de Aljubarrota. Veio, de resposta, uma titubeante burrice. E Padre Felismino comentou: Ai Filipe, que Nosso Senhor quando estava a distribuir a inteligência estavas tu nos últimos lugares.

Atrás, Albertinho teve uma epifania: Foi foi, Senhor Padre, lembro-me bem porque o senhor estava mesmo atrás de mim.

Ainda hoje se discute se Albertinho levantou ou não levantou os pés com o chapadão que levou. A dúvida tem razão de ser por causa da configuração das carteiras naquele tempo.

Vinhetas (5)

José Meireles Graça, 08.08.24

No pub

“Pub” na cidade era uma novidade. E rapidamente se constituiu uma clientela fiel, que aos fins da tarde ia para um gin, ou fininhos em copos apenas passados por água e completamente secos, uma fina película cor de casca de cebola revestindo o interior – esse era o copo para os connoisseurs. Ou até mesmo um maduro tinto, um ou dois fiéis não bebiam outra coisa.

Havia jogo de setas e, numa sala à parte, snooker; e os clientes da noite eram muitos, mais que os da tarde. À meia-noite saíam alguns e chegavam outros, e havia os que se deixavam ficar até para lá das duas da manhã, às vezes muito para lá.

Houve um tempo em que se jogava furiosamente buraca (com semelhanças, mas substanciais diferenças, da canasta). Assunto sério, que exigia concentração, memória e estratégia. E sucedeu um dia que a porta se abriu de rompante e entrou Francisco, o empregado que conhecia os gostos, hábitos e tiques de todos os frequentadores, carregando com esforço uma pesada caixa, em direcção à arrecadação.

Três ou quatro minutos volvidos a cena repetiu-se. E à terceira um jogador, exasperado pela distracção, inquiriu: De que são essas caixas, Francisco?

De cartão, sr. Fulano, respondeu o diligente funcionário.

Vinhetas (4)

José Meireles Graça, 07.08.24

Passeio de mota

Todos muito novos, num tempo em que de pouco se fazia uma aventura e a inclinação para o asneirol era premente, resolvemos subitamente ir de motorizada à Póvoa de Varzim, seriam umas 10H00 da noite. A distância era pequena, aí uns 40 km, mas uma frialdade de inverno gelava os ossos. A coisa não tinha sido bem pensada, o traje não era indicado e já não lembro onde, no regresso, se desencantaram uns jornais, para com eles forrar a caixa torácica por baixo dos blusões.

Um grupo grande de motorizadas ruidosas na então vila, deserta àquela hora, suscitou a curiosidade de um polícia preto, o primeiro que alguma vez víramos, que nos mandou parar. Calhou logo a ter de mostrar os documentos o único que era advogado (creio que ainda estagiário) o qual, delicadamente, fez menção dessa sua condição, com a ingénua intenção de intimidar.

Nem que foras arquitecto, respondeu serenamente o agente da autoridade.

Vinhetas (3)

José Meireles Graça, 06.08.24

Serviço de dermatologia

A senhora era, sabia-o de conversas anteriores, profundamente religiosa, da rara variedade tolerante e simpática. Simpatia da qual nem sempre estive à altura porque não resisti, num momento em que dizia sempre ter tido a protecção do Senhor ter perguntado (vinha a propósito, no contexto) se era do senhor embaixador. Não, era do Senhor, esclareceu, apontando a abóbada celeste.

Marcou uma sessão para algum tempo depois. E nela começou a queimar uma profusão de sinais com uma maquineta.

Uma dorzita de nada, de cada vez, e à quinta perguntei: a senhora dra. acha que cada queimadela destas conta para abater um pecado venial? Parou e disse, meditativamente: Não, acho que não.

Não me fiquei, insistindo: E se forem todas juntas, dá para um pecado mortal?

Tem pecados mortais?

Só em pensamento.

Vinhetas (2)

José Meireles Graça, 05.08.24

Progresso

O recalcitrante, isolado no seu quarto, foi chamado ao tribunal familiar:

Por que razão não viste ontem a alunagem e ficaste no teu quarto a ler sabe Deus o quê? Não sabes que aquilo foi a maior conquista dos nossos tempos e que é um prodígio ver pela primeira vez um homem a pisar a Lua?

Daqui a uns anos vejo isso num documentário a cores.

Vinhetas (1)

José Meireles Graça, 04.08.24

A obra

Ainda bem que o senhor está a fazer esta obra, era muito precisa (pavimentação em calçada à portuguesa de um caminho de terra, com regos fundos cheios de água no Inverno, e poeirento no Verão).

É, era muito precisa, isto no Inverno é um lameiro e no Verão não se pode, os carros ficam cobertos de pó.

Sabe, vi os homens a trabalhar no Sábado passado e neste, de modo que fui ver à Junta e não sabem de nada. Nem na Junta nem na Câmara. O senhor, já que está com a mão na massa, podia prolongar mais quatro ou cinco metros, assim eu ficava com a entrada para a garagem como deve ser e depois era só meio metro e ficava aquele portãozinho também. Isto está a andar depressa mas pode sempre haver quem faça alguma atiça.

Eu da atiça não tenho medo mas fale a Senhora com o empreiteiro, ele é capaz de lhe fazer um bom preço para esta meia dúzia de metros que faltam.