Mudanças
Houve um tempo, contemporâneo dos Neandertais, em que quem quisesse arrendar casa não tinha mais do que passear na cidade e observar as janelas – as que tivessem “escritos” (uns pequenos quadrados ou rectângulos de papel branco colados nos vidros) indicavam uma casa ou andar para arrendamento. Um papel na porta informava do nº de telefone do proprietário, se lá não vivesse, e, na sua ausência, na mercearia ou drogaria próximas, estabelecimentos que nunca estavam longe, davam informações.
O senhorio procurava inteirar-se se o candidato a inquilino tinha meios para não lhe ferrar um futuro calote e perfil para não lhe deixar a propriedade num canho, quando a vagasse. O inquilino informava-se da renda.
Casas havia geralmente muitas, famílias de seis filhos não eram uma raridade e a legislação que regulava o valor das rendas, vasto campo de intervencionismo estatal desde os tempos da I República que o Estado Novo nunca abandonou completamente, não era suficientemente opressiva para constranger seriamente o funcionamento do mercado. Investir num “prédio de rendimento” era, num contexto de baixas taxas de inflação e em que o proprietário não era taxado como se fosse uma inesgotável vaca leiteira, prudente e seguro.
De modo que problemas nunca houve (salvo uma vez em que o senhorio desconfiou dos meninos, que lhe pareceram uma boa colecção de gandulos) em seis mudanças de casa, da primeira vez de uma aldeia para a cidade sede do concelho, desta para o Porto, do Porto para cá, de cá para o Porto, novamente para cá e, aqui, trocando de rua.
O tal tipo que desconfiou era arguto. Porque os três mais velhos saíram de rajada, com um intervalo entre cada um de um ano, o Pai era ausente porque trabalhava muito e a Mãe pouco presente porque também trabalhava. Das empregadas faziam eles gato sapato e, criados na liberdade de entrar e sair, lidavam mal com disciplinas, regras, susceptibilidades de vizinhos e geral urbanidade.
Liberdade de entrar e sair é como quem diz. Que, para a assegurar, a porta da rua, quando os três mais velhos tinham 8, 7 e 6 anos, respectivamente, foi oportunamente subtraída de uma das suas almofadas, criando um utilíssimo buraco, sucesso que não foi naturalmente acolhido com simpatia pelos vizinhos; ou, uns anos mais tarde e numa daquelas casas dos princípios do séc. XX, no Porto, uma gateira passou a ser a porta providencial por onde se entrava com alguma ginástica; ou ainda, num prédio grande que albergava vários consultórios, sucessivas fechaduras da comum entrada se viram recorrentemente avariadas, de modo a que com generosidade se facilitasse o acesso a residentes e visitas. A Liberdade, está bom de ver, teve naquele tempo mais defensores do que os usualmente celebrados.
A união e a solidariedade faziam a força. Que o diga o ferrabrás, que tendo tentado dar baile abusivo ao do meio, num jogo do espeto no descampado térreo, foi avisado que, se insistisse, viria o mais velho. Chamado, veio, e imediatamente lhe abriu a cabeça com um toco de vassoura. E os irmãos, em inocentes folguedos, podiam ocasionalmente exorbitar de um módico de prudência, como daquela vez em que tentaram acender uma fogueira dentro de casa, para o efeito de executar à volta dela uma dança de Índios, extinta pela intervenção prestes de uma empregada, a golpes de panelas de água.
Estas iniciativas, e muitas outras, davam invariavelmente origem a julgamentos plenários onde a argumentação titubeante dos réus era acompanhada de profusão de sopapos, geralmente suportados com estoicismo e arrependimento. O qual, desgraçadamente, não durava mais tempo do que o que mediava até à próxima tropelia.
E não se pense que só há histórias de comportamentos, digamos assim, um tanto arredios. Lembro com orgulho a tenda que montei na cama de ferro, com um pau e uma colcha, para efeito de poder ler até altas horas sem que a luz se visse do exterior – isto de uma pessoa se transformar num intelectual é empresa trabalhosa e não isenta de riscos.
Em todas as mudanças de casa os infantes colaboraram, como era seu dever, e não viram nada de mais na arca decrépita, forrada a pele de boi a que já faltava a maior parte do pelo, pesadíssima da tralha que a atafulhava e que os carregadores, bufando, dissessem para os colegas: deixa passar o móbele!
Nem nisso nem na interessante viagem, na própria camioneta das mudanças, uma possante Scania Vabis; ou, já agora, na memorável inovação do pater familias para transporte de livros:
Havia umas estantes cuja altura ia até à altura da cinta e que teriam, cada uma, uns três metros de comprido. Retirar os livros e empacotá-los era reconhecidamente uma maçada. Nada melhor, portanto, de que os empurrar para o fundo, forrar o espaço com cobertores e pregar umas ripas de madeira, de cima a baixo, de modo a amparar o conjunto.
Lá amparar amparava. Mas os paralelepípedos resultantes desafiavam as compleições poderosas dos carregadores. E, não nos tivesse a rua há muito industriado na riqueza do vernáculo, a oportunidade teria sido a indicada para uma formação acelerada.
Família grande, os tempos outros. Não resultou mal.