Há que preparar a vidinha para o pós-ministério
(na capa de hoje do Correio da Manhã)
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(na capa de hoje do Correio da Manhã)
A minha avó ligou ao meu filho para saber coisas sobre o real e o atlético, não percebi nada da conversa. Depois ele mandou beijos, despediram-se e continuou a falar do Salvador Sobral e eu pensei: há meses e meses que temos o disco, tem de o ouvir. E ele disse: "Quando o vi hoje quase que chorei, é o novo Éder". Não preciso de sugerir que vá ouvir o disco, parece-me.
A mulher foi categórica: a tua vida é de loucos. E eu pensei que nem por isso, houve tempos, agora até consigo dormir oito horas. A mulher insistiu e pediu-me para relatar o meu dia e eu lá disse que tive reunião de planeamento na 004, a empresa que vou gerindo; a seguir ponto de situação relativo ao próximo número da revista Egoísta; verificar se estava tudo bem explicado no dossier de apresentação do conceito e logotipo que irá constar em todos os documentos da candidatura de Lisboa a Capital Europeia do Desporto 2021; reunião sobre estratégia de comunicação; pesquisa sobre um autor famoso para uma putativa exposição; treino da cadela; fazer lasanha de soja e ver uma série qualquer ou terminar o livro de Javier Marías "Assim começa o mal". A mulher riu-se e perguntou se não estava cansada. Respondi que foi um dia calmo. Não me queixo. Ela, gentil, perguntou-me: sabes o que me disseste quando estoirei e tive um ataque cardíaco? Tu disseste que eu ia morrer e não sabia quando exactamente, o avc tinha sido um aviso, e era preciso fazer apenas o essencial.
A mulher afastou-se com uma calma olímpica, ela que se limitou a fazer consultas no Instituto de Oncologia todo o santo dia. O verbo limitar é dela. E eu pensei, ok, tens razão, mas eu prefiro a minha loucura. Depois senti-me cansada.
Chove e há greve do metro.
O amor não é o dos romances, as senhoras não têm veias azuis e desmaiam, caem à cama com doenças do foro pulmonar.
Os homens não andam de chapéu, não frequentam uma tertúlia, não se levantam quando uma senhora entra na sala.
Alguns mantêm amantes. As mulheres também os têm.
Dito tudo isto, na verdade um pouco banal, podemos concluir que nos dias correm, um ano de casamento equivale a um ano de vida de cão.
Isto quer dizer que, apesar dos meus 43, tenho quase 70 de casada. Uma raridade? Sim.
Há dias, um miúdo dizia, no recreio, que o fulano X era bestial, "já foi meu pai". O outro miúdo pareceu aliviado.As segundas e terceiras famílias são outra banalidade.
A crise financeira implica connosco, com o tudo que existe nas suas vidas. A crise emocional é provocada por nós e por esta permanente vertigem em que vivemos: ligados ao telemóvel, ao site, ao blogue, ao facebook, ao twitter.
Um casal jantava, há uns dias, sozinho, num restaurante dito "da moda". Ambos de telemóvel na mão.
Pensei: bom, devem estar à espera da comida. O repasto chegou. A animação com os telemóveis continuou.
Lembrei-me então do livro de Luísa Costa Gomes, Ilusão ou o que lhe queiram chamar (D. Quixote). O protagonista tem duas famílias, sendo que uma é avatar, ou seja, vive num jogo chamado Second Life. Triste?
Não sei se a maioria das pessoas o sente com tristeza, tenho a certeza de que é um belo livro, isso tenho.
Estar casado e manter um casamento é exigente e mais difícil do que conseguir um emprego ou promoção (isto se quisermos entender por emprego qualquer tipo de emprego, claro está). Todos os dias temos de escolher amar aquela pessoa, mesmo que já não a possamos nem ver? Não, nada de tão dramático. O casamento que dura é aquele em que as duas pessoas não se abandonam. Virar costas é simples. Ficar é que é mais implicado.
Tem dias, se quiserem.
Dizia-me uma poetisa que tudo isto é uma consequência evidente da libertação das mulheres e ainda bem. Que os casamentos arranjados, que os casamentos de 50 anos com manadas de sapos por engolir já não existem. Não respondi. Os casamentos brancos, com manadas de sapos e outras espécies, ainda existem. A taxa de divórcio diiminuiu. Por causa da crise. Há mais queixas de abusos.
Há mais silêncios. Silêncios maus.
O bom silêncio? É para aqueles que não se esquecem de dizer tudo.
Vou ao site e marco o número de telefone geral: 217805000. Atende a máquina: "Bem-vindo ao Hospital de Santa Maria, para informações relacionadas com urgência central, prima 1", segundos depois oiço o apito de um fax. Ligo novamente. Desta vez escolho a opção 9, que me permite falar directamente com a telefonista. Explico o assunto, diz que vai passar para a urgência, só que o telefone toca, toca até se desligar automaticamente. Consulto melhor o site do hospital, em busca de número alternativo. Encontro o 21 780 5333, identificado como o de informações gerais. Talvez resulte, quem sabe. Mas ao fim de poucos minutos uma gravação informa-me que "lamentamos mas de momento não é possível atender a sua chamada, por favor tente mais tarde".
Confirma-se. O azar às vezes nem é tanto o que de desagradável nos acontece, mas as dependências em que logo nos vemos enredados. E que parecem sempre organizadas por forma a provocar o máximo desgaste possível.
Todos sabemos que isto está mau. Até os miúdos mais pequenos sabem que isto está mau. Pior fica quando ouvimos barbariedades.
Eu ouvi: "a cultura não interessa para a promoção do país, o que importa são as empresas, promover as empresas lá fora e, já agora, não me fale de escritores." Posto isto, fiquei calada, como é bom de ver.
Temos as fronteiras mais antigas da Europa. Temos escritores e escritoras maravilhosos, poetas e poetisas. Como temos músicos, actores, etc e tal. E temos empresas e um mercado que está como está. A identidade nacional é feita pela cultura, nos vários âmbitos, ou estou enganada?
A mulher desfez a mala com gestos de cansaço que, à partida, por serem de cansaço, a irritam ainda mais. O corpo mantém o nível de doer, mas ela insiste: é apanhar a roupa, dobrar o corpo, voltar ao cesto da roupa suja. Na memória tem ainda as palavras trocadas antes, a inutilidade das palavras quando se quer fazer o melhor e se faz o pior. Um ser humano deveria ser um jogo de computador e passar apenas de nível de acordo com as suas competências. As dela não servem sequer para fazer roupas de máquina. Acresce que odeia a mala. Tudo o que a mala pode significar, passado ou futuro e, lembrando Yeats, diz o poema para dentro como uma oração, the years to come, the years behind..., qualquer coisa assim e tenta sorrir quando se sabe incapaz de um sorriso. Não é momento. O momento chegará. A mala vazia, a máquina a rodar, o detergente a limpar e tudo arrumado. Depois será a vez do cão. Da água do cão. A seguir o despotismo esclarecido do filho mais novo, a história da música do afilhado e ainda o piano do mais velho. Tudo junto podia ser um filme. É apenas a vidinha.
Tom Stoddard, "Sarajevo"
Descuidei-me e li o texto da Gui. Já ia a meio quando quis voltar para trás, mas foi como os desastres de automóvel, a partir de um determinado ponto não há como não ir até ao fim. Creio que durante essas fracções de segundo, menos do que a vida a desfilar na nossa mente, é a vida que tivemos e estamos a instantes de perder que recordamos já com nostalgia. Isto de uma pessoa ver-se ao espelho de outra é deixar de ser dona de si, é olhar demasiado para a frente em vez de ir vendo onde põe os pés, este aqui, o outro a seguir, a única maneira de caminhar pelo mato, onde desapareceram os rastos – está aí alguém?
Daqui a um ano contaremos as cabeças e logo se verá quantas almas escaparam do inferno. Há cinco anos esperava outra coisa disto, o vento enchia as velas e a prudência serviu-me de pouco. Pode ser pior? Espera pelo dia de amanhã e logo verás quanto pode.
- mãe, não podemos ter um primeiro-ministro chamado Tozé, ou podemos?
- e quem é que escreve os discursos do 5 de Outubro?
- e este é o último 5 de Outubro? Para o ano passamos do 4 para o 6 directamente?
- e, uma última coisa, se eu fizer uma licenciatura vou para um call center como a minha prima?
Contrariando olimpicamente a ancestral aversão nacional à alegria, os presságios de pestes negras, misérias pardas e um sortido rico de desgraças a bater-nos à porta (para não falar das que já se instalaram, abusadoras, nos nossos descoloridos sofás, pagos a prestações em tempos de vacas anafadas), as estatísticas e previsões de arrepiar os cabelos a quem ainda os tem, a troika, a crise do euro, as escandaleiras para todos os gostos, a falência da segurança social, a lamúria das salas de espera dos centros de saúde, o galope do desemprego, o tédio da conversa de políticos e economistas, as trapaças dos chicos-espertos, a miséria dos programas televisivos, as íntimas misérias de condes de papelão e estrelas (de)cadentes, o fado choradinho de faca e alguidar, o copo-de-três mal medido, o cheirinho, o mata-bicho, a bica pingada, a fome envergonhada, a fome sem-vergonha de poder e lucro, o crédito mal parado, a justiça parada de vez, o imparável apertar do cinto... ah, eles aí estão, indiferentes a tudo, vestindo as ruas de um azul descarado e eufórico. Azul-alfazema, azul-Quénia, azul-violeta, azul-lavanda, azul-anil, azul-lilás. Eu chamo-lhe azul-Leonor, como me ensinou a minha avó. A minha cor favorita.
Texto já publicado aqui (actualizado)
Sou casada com um homem rico. Não parece grande coisa, mas tem três talhos em Sacavém e um em Moscavide. Comprou uma carrinha com sete lugares porque diz que quer uma família grande. Não podemos ter gatos ou cães porque ele é alérgico. Não faz mal. Pintou o quarto como vi numa revista e só vê um jogo de futebol por dia. Eu faço as unhas de gel com a irmã dele e vimos a novela da TVI e os gordos da Júlia Pinheiro, para lhe dar uma força, lemos nas revistas que aquilo na SIC não está fácil. Somos uma família feliz. Sei que vem aí a crise não tarda, mas as pessoas têm que comer e o meu homem é muito esperto, controla tudo. Vou abrir um pequeno negócio de venda de qualquer coisa, mas ainda não me decidi. O facto de estar grávida não ajuda muito e ando com os nervos feitos num fanico. Durmo mal, já nem a almofada entre os joelhos me ajuda. A minha cunhada fica triste a ver a minha barriga crescer, ela que tem a dela vazia, vazia como um ovo podre. Nunca terá filhos, coitada. Tento fazer com que pense noutras coisas, mas não é fácil. A minha mais nova, fez quatro anos na semana passada, está traquinas e não pára, às vezes acho que deve sofrer de um mal qualquer porque não está quieta, anda sempre a dançar e a fugir e eu não tenho pachorra e o meu homem muito menos, ele que se levanta tão cedo, coitado, e tem tantas responsabilidades. A menina tem tudo, tudo como é suposto. Até o quarto brilha, como se fosse tirado de um filme. Enerva-me que ela só queira brincar com as coisas da cozinha quando tem um quarto cheio de coisas e já perdi a cabeça mais de duas ou três vezes. Dou-lhe uns safanões, uns estalos e dois berros. Eu também levei e não me fez mal nenhum, digam lá o que disserem. Por isso, diria que a minha vida é um pouco melhor do que a dos outros e que sou feliz. Sim, foi a cruzinha que coloquei no teste felicidade que saiu hoje na revista com o jornal do meu homem. Sou feliz a mais de setenta por cento. Às vezes vejo aquelas escanzeladas, cheias de coisas de marca, cursos superiores e filhos criados e pergunto-me se serão felizes. Não são de certeza. Pelo menos não são como eu sou. Posso apostar.