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Delito de Opinião

Uma ténue linha

Sérgio de Almeida Correia, 29.12.18

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Estava tudo preparado. Era inadiável e teria de ser nesta altura ainda que tal ocorresse num momento em que estaria desacompanhado.

Ciente do relativo baixo grau de dificuldade da intervenção, confiando nas mãos de quem  há muito conquistara pelo seu mérito a “outorga do direito de mexer no corpo e na alma dos outros”, como há dias dizia numa belíssima entrevista o Prof. José Fragata, encarei o que me estava destinado sem qualquer apreensão.

Quando já depois de preparado para o ritual me vieram medir a pressão arterial e a frequência cardíaca, esta última espantando a simpática enfermeira, desconhecedora da minha condição física e do treino a que disciplinadamente me entrego, quando vislumbrou os 49 que a maquineta registava, estava convicto de que iria correr bem e certo de que dentro em pouco estaria tudo terminado. Pura rotina, portanto.

No bloco operatório, ainda antes de partir durante algumas horas para outras paragens, tive oportunidade de registar a boa disposição dos que me rodeavam e com eles trocar algumas palavras para logo me perder na distância das luzes do tecto.

Tudo terminado, rodeado pela eficiência e profissionalismo com que as coisas haviam começado, voltei a mim, sentindo desde logo o desconfortável despertar da anestesia e a impossibilidade de respirar normalmente, pressentindo aquela desagradável sensação de aperto na bexiga que eu sabia que me iria incomodar ainda durante algumas horas.

Obtida a alta e iniciado um curto período de descanso e recuperação até à primeira consulta, confirmava-se o sucesso da cirurgia e um lento regresso à normalidade, pese embora sentisse ainda a garganta muito dorida.

Recebidas as recomendações para os dias seguintes, até que me voltasse a apresentar numa segunda consulta, regressei a casa e procurei seguir à risca o que me fora dito.

Nessa noite não consegui evitar dois espirros, a que se seguiu um terceiro na manhã seguinte quando fazia as necessárias abluções à zona que fora mexida.

De repente, no meio desse ritual, sinto algo desprender-se do meu nariz. Vindo do seu interior, no que de início pensei ser alguma crosta, coágulo ou qualquer secreção que se libertava no pós-operatório, saiu uma pequena placa com a forma de uma vela, aí com uns seis centímetros por dois na sua parte mais larga.

Confesso que nesse momento fiquei em pânico perante a perspectiva de com os espirros e as lavagens ter dado cabo do trabalho que dias antes tão minuciosamente havia sido feito.

Sozinho, sem saber o que fazer, visto que também era impossível recolocar a placa onde estava, tentei contactar com o meu médico. Nada feito, tinha-se ausentado. Enviei um e-mail . Na volta só recebi silêncio.

Resolvi então pegar no telefone e falei com alguém no hospital onde estivera. Queria contactar o homem que me operara. Passados alguns minutos fui esclarecido de que essa tentativa se revelara igualmente infrutífera. Estava incontactável. A solução seria eu deslocar-me até às urgências do hospital onde estivera internado para que um otorrino pudesse avaliar a situação e aconselhar-me o que necessário fosse.

A proposta era inviável. Eu estava a mais de trezentos quilómetros e não iria fazer de novo esse percurso de regresso ao local de onde saíra dias antes no estado ainda dorido e debilitado em que me encontrava.

Entretanto, falei com a outra metade de mim, que sabendo das minhas preocupações e do, muitas vezes, excesso de previdência com que rejo a minha vida para evitar correr riscos desnecessários, me aconselhou a que não fosse piegas. “Se não te dói nada, se te sentes bem, para que vais tu outra vez para o hospital incomodar as pessoas? Vais à consulta de dia 27 e vais ver que não é nada”, ouvi do outro lado da linha.

Passados alguns minutos recebo uma chamada telefónica. Era do hospital. Aconselhavam-me a ir à urgência mais próxima de minha casa. Agradeci a sugestão, fiquei a matutar.

Vesti-me devagar, desprezando, por cautela e receio do que mais pudesse suceder, movimentos bruscos. Embrulhei a placa num lenço de papel, procurei as chaves do carro e meti-me ao caminho. Pouco convencido, mais por descargo de consciência do que por convicção ou impulso de necessidade.

De facto, nada me doía. E também não me sentia pior do que antes daquele momento em que a placa fora expelida pelo meu organismo. Aparentemente estava tudo bem. Mas eu precisava de alguém que me tranquilizasse, que me garantisse que não teria, inadvertidamente, feito asneira. Sofria só de pensar na perspectiva de ter acabado de estragar um trabalho bem feito. E caro.

Uma médica jovem e interessada recebeu-me prontamente nas urgências. Consciente do melindre da situação logo após o meu relato inicial, disse-me que iria chamar um especialista. Este não estava ali de momento mas havia sempre um preparado para acudir a alguma situação mais grave. Que aguardasse um pouco e já me diria alguma coisa. Momentos volvidos teve o cuidado de vir ter comigo e de me dizer que já tinha falado com quem me iria ver, alguém cujo nome eu sabia ser de um dos melhores, e que bastaria aguardar mais alguns minutos para estar a ser observado.

Enquanto esperava fui pensando em mil e uma coisas. No aborrecido que era estar a incomodar alguém numa altura em que todos, reunidos em família e ansiosos com a hora de abrir os embrulhos, estão mais preocupados com o bacalhau e o peru do que com a sorte dos outros, tanto mais que corria o sério risco daquele episódio ser perfeitamente normal e de estar ali prestes a fazer figura de medroso, servindo como motivo para todos se rirem e gozarem com a minha excessiva preocupação perante situações que à generalidade das pessoas só exigem calma, paciência e pensamentos positivos.

É aquele senhor, esclarecia a médica que antes me recebera enquanto acompanhava o sujeito que acabava de chegar e que eu reconhecera ser, pelas fotografias que vira, o Prof. X. Devia ter menos de sessenta anos. Provavelmente da minha idade, mais coisa menos coisa, embora parecesse mais envelhecido e com os brancos que eu não tenho.

— Então o que é se passa?, perguntou enquanto me cumprimentava. Foi o Y que o operou?

Relatei-lhe a minha inesperada aventura, mostrei-lhe a placa que logo me assegurou ser de silicone. Sem me deixar terminar perguntou-me pela garganta. Não lhe dói nada? Não, está só dorida. Então e a outra? A outra, balbuciei. Não sei de nada, não saiu mais nada. Sente-se aí, ordenou-me, temos de ver onde ela está.

Com o poderoso foco à frente dos meus olhos, enquanto o Prof. X ia mexendo nos instrumentos, percebi que havia ali alguma preocupação. Baixei as pálpebras, passaram mais uns longos segundos; por fim ouvi um “já localizei”. Menos mal. “Vamos ver se consigo lá chegar, mas para isso preciso de um mais comprido, para ir buscá-la”.

Quando me apercebi de que “a outra” também tinha saído fiquei mais aliviado. Respirei fundo. Já está safo, disse o Prof. X. Depois, na quinta-feira, quando for à consulta diga ao Y o que aconteceu. Os pontos cederam. Deve ter feito muita força. Já pode deitar isso fora. Fez bem em ter cá vindo porque logo à noite, quando se deitasse, sufocava. Não lhe doía, não o incomodava, não deu por nada...

Naquele momento percebi a sorte que no meio de tudo me acompanhara. Uma ténue linha separou o sucesso da tragédia. Uma linha invisível, incontrolável, que podia ter transformado uma intervenção bem sucedida numa inacreditável sucessão de azares com todos os ingredientes para terminar da pior forma nas primeiras horas de um Dia de Natal.

Paguei a minha visita e saí. Circulei então pela cidade, até acabar por estacionar junto a um centro comercial. Deambulei por ali olhando para os outros, vendo-os passar apressados com os sacos coloridos das últimas compras de Natal. E pensei na injustiça que seria se tudo tivesse terminado de outra forma. Para quem me operou, para quem contribuiu para que tudo corresse bem e tivesse um final feliz. Como nos filmes habituais da quadra.

Aos poucos revi mentalmente o filme dos acontecimentos. Libertei-me daqueles momentos de incerteza e da forma tão pouco convicta como me fizera à estrada.

Terminados estes dias, cinco anos passados sobre a última vez que estivera em casa pelo Natal, senti que havia sido brindado por uma espécie de taluda invisível. De cujo verdadeiro valor praticamente ninguém se apercebeu. A não ser o Prof. X naquele instante em que segurou a ponta e a puxou. Hoje o meu rosto será igual ao de ontem, conterá os mesmos sulcos e as dúvidas e incertezas de sempre. Condescendo que um dia assumirão outras formas para eventualmente se repetirem noutras circunstâncias. Quem sabe se noutros lugares. Talvez até com outros como eu. Tudo isso é possível.

De uma coisa, porém, fiquei mais seguro. Morrer só se morre uma vez. Nascer pode acontecer repetidas vezes numa única e simples vida. Basta uma ténue linha. Não é preciso sequer vê-la. Há quem lhe chame sorte. O nome é irrelevante. A diferença é que desta vez vi-a. Senti-a. Sem dor, sem aviso prévio. E houve alguém que comigo a viu, e me disse, para que eu pudesse aqui contá-lo. O que não me fazendo mais feliz do que era antes ainda assim pode ser descrito. Como se fora um conto e nunca tivesse acontecido.

A vida é uma ténue linha. Irrepetível. Por isso é tão importante aprender a vivê-la. E reaprendê-lo tantas vezes quantas as necessárias para que continue a fazer sentido percorrê-la. Com sentido. Com a consciência de que ela existe. E de seguir a linha, essa ténue linha, diariamente. Sabendo por onde se vai, por vezes sem apercebê-lo, ao sabor dela.

Seguindo-a, seguindo-a, seguindo-a, silenciosamente, sem pressas, até que desapareça na linha do horizonte. Quando a noite cair. E os nossos olhos se voltarem a fechar. Numa ténue linha.

Um Bom Ano para todos vós.

Cadeiras

Sérgio de Almeida Correia, 05.11.18

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(http://imgjkw.co/ideas/)

Há os que se sentam numa e nunca mais se levantam. Ficam colados ao fundo, como umas lapas. E só se erguem, com manifesta dificuldade, quando os fundilhos começam a arder. Ou caem da cadeira. Outros há que não se chegam a sentar. Para não perderem tempo e irem acumulando cadeiras.

Em comum têm a mesma coerência, o mesmo amor aos números.

É-lhes incontrolável. Vem da massa do sangue.

Imperdível Porque é Extraordinário

Francisca Prieto, 14.01.18

Regresso ao teatro com a comoção de quem regressa a casa. Deixo-me embalar no ritmo de um bom texto, divirto-me com os pormenores de encenação, com a forma como a tela vazia do palco se vai pincelando em jogos de movimento, em marcações, em soluções improvisadas. E penso sempre nos actores, nas pessoas que estão por detrás das histórias, que fazem aquele trabalho porque não lhes faz sentido estar na vida a fazer outra coisa.

ACTORES, em cena no São Luiz, é uma celebração a tudo isto. Uma peça tão bem montada que dá vontade de continuar a ver mesmo depois do pano cair.

A sério. A não perder.

Até 28 de Janeiro, de quarta a domingo.

 

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A Mardis fechou

Sérgio de Almeida Correia, 06.02.15

i.axd.jpgForam poucos dias. Suficientes para encarar a realidade que deixei para trás. Quando se está fora é sempre mais fácil olhar para dentro. Para trás idem. E imaginar como tudo teria sido se também eu tivesse ficado. Quando se vê o fio dos dias sem se conhecer o dia seguinte, vendo a esperança esvair-se na confrontação do seu reflexo, o que de material se possa ter deixado perde significado. Só o reconhecemos ao mergulhar de novo na piscina de onde se saiu e onde agora tantos tentam manter-se à tona.

Fiz múltiplas tentativas. Fui às páginas brancas e às amarelas. Procurei na Internet. Nada. Havia números que continuavam a chamar, outros com uma gravação que dizia que não estavam atribuídos, e os que restavam nem sequer davam sinal. Seria possível terem alterado todos os números? Decidi-me a passar por lá quando fosse a Lisboa. Conhecia a casa há mais de vinte anos. Desde o momento em que consegui comprar o meu primeiro Alfa Romeo, os meus carros nunca conheceram outras mãos. Primeiro sob a batuta do Sr. Augusto, até este dar uma queda e se reformar. Depois com a atenção do Leonel, que se tornaria no chefe da oficina, e dos seus colegas. As meninas da recepção, senhoras, sempre atenciosas. Ali, eu sabia que aquela gente não perdia tempo, conhecia os pormenores, não confundia o barulho de um amortecedor velho ou danificado com um apoio do motor partido. Sabiam o que faziam e faziam-no bem, de forma competente, razoavelmente económica, não esquecendo que os meus carros eram, para além de uma paixão, uma extensão prática de mim, pelo que tinham pouco tempo para se entregarem aos seus cuidados. De quando em vez lá ficavam mais um dia, para uma revisão mais profunda, mas era raro. Sempre impecáveis, sempre a brilharem, com uma sonoridade única.

Quando lá cheguei dei com as portas fechadas. Os vidros cheios de pó. Estacionei e fui ler o aviso amarelado que estava afixado: Estimados Clientes: Informamos V. Exas. de que esta oficina estará encerrada entre os dias 11 e 30 de Agosto. Percebi logo o filme. Sem saber o que fazer, aventurei-me a entrar pela drogaria do lado e perguntei ao proprietário se sabia o que tinha acontecido aos vizinhos da oficina, se sabia onde parava o pessoal. O homem levantou os olhos, olhou-me fixamente e disse: "Fecharam e nunca mais abriram. Uma casa com mais de quarenta anos. Às vezes ainda passa por aí um dos mais velhos para levantar a correspondência, mas há muito tempo que não vejo ninguém. Isto está uma desgraça. Não sei onde irá parar".

Eu também não sei. Normalmente, quando não cai, a montanha-russa só pára no fim. Não se consegue sair a meio. Logo agora, ao fim deste tempo todo, e com o pouco tempo que tenho, ter de ir à procura de alguém que saiba olhar para os meus carros, que conheça a marca, a história, a tradição. Das últimas vezes já desconfiara da falta de stocks, da necessidade de combinar primeiro o que queria fazer para depois passar por lá. Agora acabou-se. A Mardis fechou. Finou-se.

A Mardis é apenas um caso. Ficava ali na Luciano Cordeiro. E no seu meio era uma casa cujas máquinas eram tão afamadas quanto as do seu não menos conhecido vizinho. Cada um no seu ramo, é certo. Mas embora trabalhando a horas diferentes, penso que não se podia dizer que a qualidade de serviço da Mardis fosse inferior à do Elefante Branco.

Casos como o da Mardis repetem-se por esse país. Muito antes fora assim no Algarve. Faro desertificara. A Rua de Santo António já era em 2013 uma sombra do passado. Até o Constantino, do Baía, fechara portas e abalara. Ficou o António Manuel. Para ir ficando com os espaços que fechavam. Em Cascais fora o mesmo. É só começar a descer a Rua Direita. É porta sim, porta sim. Tudo às moscas. Num restaurante, que em tempos foi uma referência e um ex-libris da vila, há gente com três meses de salários em atraso. E parece que a patroa se amofinou quando a mulher de um dos trabalhadores lá foi tirar satisfações. Queria saber quando é que o marido iria receber. A fidalga.

Penso que nunca comi tão barato como nas últimas semanas. As lojas de roupa sobrevivem com vestuário a preços que quase não deve dar para pagar a matéria-prima. Sapatos quase de borla. As prateleiras cheias. Clientes nem vê-los. Da FNAC à Labrador, da Bulhosa à Bertrand, da Wesley à Boss, da Hélio à Loja das Meias. Nesta última, ali nas Amoreiras, eram mais os empregados que os clientes. Alguém terá de lhes pagar os ordenados.

Andei por aí. Fui ao Lidl, ao Jumbo, ao Continente. Olhei para as pessoas. Sem querer, reparava no que levavam enquanto esperava a minha vez nas caixas. Algumas vezes me senti desconfortável com o que trazia. Nada de especial. Mas quando se compram duas garrafas de um vinho decente e mais meia-dúzia de coisas que perfazem mais de uma centena de euros e se encontra alguém na caixa, com idade para ser minha avó, a quem falta 1,20 euros para pagar uma conta de 13,00 euros de um pequeno cabaz de iogurtes, leite, pão e duas maçãs, a gente fica sem jeito. Deixe estar, minha senhora, pode levar as compras. Eu pago o que falta. O olhar agradecido, envergonhado, um obrigado recolhido enquanto guardava os poucos cêntimos que restavam.

Ao mesmo tempo, na Urgência do Hospital de Cascais não havia lugares para uma pessoa se sentar. Eu ia para ficar à espera. Não era utente, quero dizer. Na TSF, num desses habituais fóruns onde se bota discurso, discutiam-se as mortes nas urgências, as taxas moderadoras. Alguém falava em cerca de  30,00 pela consulta e pelo exame que lhe mandaram fazer. Na farmácia fiquei a saber que os medicamentos para as hemorróidas não tinham comparticipação. O das unhas também não. Um fulano perguntava se de um outro medicamento não havia genérico. O farmacêutico dizia que sim, havia mas não lhe podia vender porque o médico colocara a cruzinha. E o homem insistia. Queria o genérico. Não tinha dinheiro. Havia um parecido, mais barato, não era bem aquilo, mas fazia o mesmo efeito. Não ia voltar à consulta e a médica não saberia de nada. Então levo esse, disse ele.

De caminho passei por duas universidades. Almocei numa delas. Dois estudantes vieram sentar-se ao pé de mim. Tinham vindo colaborar com a organização e assistir à conferência. Afáveis, eu era convidado, ali ficaram. Fizeram-me companhia. Falei com eles. Eu comi o prato do dia, bebi um refrigerante, no final a sobremesa e um café. Tudo por menos de cinco euros. Eles comeram uma sanduíche de ovo e beberam água. Pão e água. Falei com eles. Senti-me mal, como fosse responsável pela sua situação. Nenhum deles se queixou. Queriam acabar os cursos. Um era músico nas horas vagas. Iria nesse fim-de-semana para um bailarico. No Alentejo. Sempre era uma ajuda para as propinas. Nesse dia jantei em Lisboa. Ali para o Príncipe Real. Quando no final me pediram 16,00 euros pensei que se tinham enganado. Com o que comemos? Sim, está tudo incluído, o vinho também. Fiquei em silêncio. Paguei a minha parte. Como se pertencesse a outro mundo. A outra gente.

Não posso voltar para trás. Ninguém pode. Lá atrás só ficam os que não conseguem escapar. E os que roubaram. Dois milhões é obra. Falo de pobres. A raspadinha não é o BES nem a SLN. Não dá tanto.

Em Portugal, a urze cresce em qualquer lado. A pobreza é uma espécie de urze. Os pobres vivem dentro das suas possibilidades. Quando se vive dentro das possibilidades não se pode voltar para trás. Não há dinheiro para isso. Os pobres vivem dentro das suas possibilidades. Os pobres são como os velhos: também não podem voltar para trás. Pelo menos enquanto respirarem. Depois também não voltam para trás. Já ficaram para trás. Eles e as suas necessidades.

Visto de longe, de muito longe

Sérgio de Almeida Correia, 05.02.15

autumn leaf.jpg"- Se ao menos pudéssemos partir já! - disse ele com um lamento na voz" - D.H. Lawrence, O Raposo

 

Há alguns anos, Maria Filomena Mónica escreveu um pequeno ensaio sobre a morte, que foi editado pela FFMS. Creio que deve ter sido um dos escritos que mais me impressionou sobre esse caminho irreversível que nos conduz até à velhice, esse estado em que já fomos sem ainda termos ido e em que a vida conta para efeitos estatísticos.

Não sei se haverá alguma fórmula feliz para o envelhecimento, para ver esse dealbar dos dias que nalguns casos servirá para lavar a memória dos erros passados, noutros para recordar os momentos em que as forças, a energia, o vigor e a esperança nunca faltaram. Não temo a morte. De igual modo, não receio envelhecer. Mas desconfio do prolongamento seminatural da vida quando olho para o que me rodeia e sou confrontado com a impotência humana, com o desgosto, com o olhar perdido no tempo daqueles que sofrem na velhice o acréscimo da esperança média de vida. Porque a este não se podem opor. Porque a medicina assim o quer, mesmo quando ninguém lhes perguntou em que condições estariam dispostos a viver os anos que a ciência entendeu acrescentar-lhes. Às vezes para deleite dos vivos. Dos que não vegetam. Dos que se movem e levam uma vida nornal.

Quando o vi ali prostrado, depois de um AVC sofrido há mais de uma dezena de anos que o imobilizou numa cadeira de rodas e lhe retirou quase tudo o que lhe dava gosto fazer, tornando-o naquela espécie de gente sofrida que deve estar sempre agradecida pelo que diariamente por ela fazem, pergunto a mim mesmo se valerá a pena viver assim. Desta vez calhou-me a mim. Lá estava ele, deitado no chão, com duas mantas por cima para não arrefecer, esperando que alguém conseguisse levantá-lo, aguardando pacientemente a sua vez, sem saber quando ela chegaria. Se dentro de dez minutos, se de uma hora, ou se só ao fim de uma eternidade. Sem um queixume. Como se a vida se tivesse tornado numa espera permanente e dependente pela qual, quaisquer que sejam as circunstâncias, se deva estar sempre agradecido. Ali estava ele, diante dos meus olhos, perante o último patamar da dignidade humana. Aquele do qual já ninguém pode fugir no momento em que já lhe falta tudo e nada pode para contrariá-lo. Aquele do qual ninguém nos pode retirar. Por muito que se sofra. A não ser Deus, para quem acredite, o que não é o seu caso de ateu praticante.

E logo depois vejo também os outros, os que se amparam em cada dia que passa aviando receitas, contando as horas para as refeições, os comprimidos, a leitura dos valores da pressão arterial, cuidadosamente anotados numa folha de papel. A máxima, a mínima, a frequência cardíaca, enquanto lá fora a vida segue com o debate quinzenal, as agruras do espólio do BES, ou a discussão sobre os efeitos das eleições gregas no tamanho dos ovos das galinhas nacionais. Ali só interessa saber se é preciso tomar o Varfine, o Lasix ou o Tenormin. A vida está toda nas caixinhas, nos comprimidos brancos, azuis, cor-de-rosa, na quantidade de sal na sopa, no açúcar do chá. Também nas horas e no boletim meteorológico, faça chuva ou faça sol, sendo indiferente para o caso se se deixou de pôr o pé na rua há meses ou há anos. Ah, pois é, é por causa da chuva. O teu irmão amanhã vai dar consultas fora. E se estiver de chuva a Natasha vai ter mais dificuldade com os transportes. E depois a que horas é que ela vai chegar? E tu a que horas vens? Passa quando puderes. Primeiro estão as tuas coisas, mas passa quando puderes. Eu passo. Eu passo sempre. E eles à espera. Sempre à espera. Pensando neles, no frio, no corte das reformas - "estão sempre a tirar-nos, o que eles nos estão a fazer é um assalto; só o ano passado, a mim, foram quase duzentos euros por mês, à tua mãe foi menos, porque a reforma dela é mais pequena, mas também lá foram" -, pensando em nós - em todos nós - dias a fio, nas alternativas que nunca são viáveis por isto ou por aquilo. Está sempre frio. Os aquecedores estão ligados mas está sempre frio. Sair de casa? Vamos ter de pensar nisso, isto assim não pode continuar. Mas entretanto continua. Mais um dia, e depois mais um a seguir ao outro. Todos os dias. Até a seguradora cancelou aquele seguro de vida. Querem o recibo assinado para devolver o prémio. Como, se eu não vejo? Já não sei assinar. Cego há quase cinquenta anos e o tipo quer que ele assine o recibo. Ou que vá ao notário fazer uma procuração. Ou que ponha a impressão digital e o notário certifique. Aos noventa e seis anos. Porque não depositam o cheque na conta? Recebo a reforma por lá. A conta é na Caixa. E por que raio ele se há-de sujeitar a isso. Como eu o compreendo sem o compreender. Era só uma assinatura. Não assino, eles que fiquem com isso. O dedo reconhecido pelo notário. Aos noventa e seis anos. Um tipo não faz a barba porque não tem forças e há-de ir ao notário fazer a procuração. Ou pôr o dedo na burocracia. Uns cretinos.

Hoje a mulher não veio. Há greve nos comboios. O miúdo foi internado, teve de ficar com ele. Está toda a gente com gripe. Caiu? Duas vezes? Então e ninguém diz nada? Já tomou os comprimidos? Já, já lhe dei. Mas hoje não é segunda-feira? Então deu-lhe os de terça-feira. Eu? Não. Não, como? Se na caixa faltam os de terça-feira e hoje é segunda é porque se enganou outra vez. E já lhe deu os da noite? Então trocou tudo outra vez. Outra vez?! Está tudo separado, por dias da semana e refeições. Esta coluna está vazia. Amanhã dou-lhe os de hoje. E depois a tensão desce, e andam cheios de sono, e ninguém sabe por que razão, não é? Se não vê ponha os óculos. Não é para isso que eles servem? E agora a perna engessada. O dia todo na cama. Nem para a cadeira pode ir. Mas tem de ficar sentado. Aquela perna era a que já não mexia. Está inchadíssima. E o ortopedista quer vê-lo na quarta-feira. Às 10 horas? Alguém vai ter de levá-lo. Terão de ser os bombeiros. Vai na cadeira de rodas, ele não pode descer as escadas. E quem aguenta com ele? Nesse dia não poderei ir trabalhar. Vou ter de ir com ele. Não percebo nada do que diz. Fale devagar. E agora está a chorar? Está com os óculos todos besuntados, cheios de dedadas. Já viu como está essa camisola? Não está em condições, não pode andar assim. Como é que podes dizer que não está em condições se ainda esta manhã a vesti? O telemóvel não está carregado. Esteve toda a tarde a carregar. Só se faltou a luz. Vou à janela dizer-te adeus. Tens falado com ela? Ela está boa? Dá-lhe um beijo quando falares com ela. Amanhã passas por cá? Não posso, mãe. Amanhã vou-me embora. Tenho avião de manhã. Oxalá não te dêem frango. Que Santo António te acompanhe.

 

E lá ficaram eles. Com eles. Mais as suas preocupações. À espera. Sempre à espera.

 

Não tinha que ser assim. Não podia ser assim. A velhice não pode ser uma pena, uma condenação pré-morte em nome do progresso para expiação dos pecados que não se cometeram. A velhice não pode ser uma fatalidade. Isto está tudo gatado.

O meu país preferido

João André, 28.01.13

Cumpri em Dezembro 9 anos a viver na Holanda já sabendo que não chegaria aos 10. Irei começar em Abril uma nova etapa da minha vida profissional que me levará a viver novamente numa Alemanha onde estive pouco depois de terminar o curso. Ao todo passei 10 anos dos 19 da minha vida adulta a viver fora do país onde nasci.

 

Isto de nascer num determinado país tem que se lhe diga. Os holandeses têm uma peculiaridade curiosa: quando lhes é dito que a Holanda é um bom país para viver mas que se gosta mais do país X ou Y (habitualmente o país de origem, como é natural), eles estranham, como se fosse possível preferir outro país que não os Paraísos Baixos. Esta é uma característica que partilham (tal como muitas outras) com muitos estado-unidenses.

 

Analisando os factos esta perplexidade faz sentido. A Holanda (ou os EUA) tem uma qualidade de vida superior à da esmagadora maioria dos países do mundo, os salários permitem vidas relativamente tranquilas a quase toda a população, é comparativamente fácil obter emprego e, quando se está desempregado, há uma boa rede de suporte social. Os serviços públicos e privados funcionam bem e o país está bem estruturado. Os cuidados de saúde e a educação são de qualidade e o acesso a eles é simples. Porque não preferir este país aos outros?

 

Claro que a resposta é sempre simples: é difícil preferir qualquer país àquele onde crescemos simplesmente porque foi a este que nos habituámos. Conhecemos o temperamento das pessoas, por mais ilógico que seja. Sabemos como manobrar pelas vielas dos favores necessários a obter certos serviços mesmo quando não aprovamos tais atitudes. Aceitamos os ruídos, os cheiros e a desorganização mesmo quando não fazem sentido. Conhecêmo-los. Fazem-nos sentir em casa.

 

Notei-o pela primeira vez quando visitei uma amiga em Bruxelas, após dois anos na Holanda. A comparativa desorganização e sujidade da cidade, que a tornam mais desagradável que a cidade média holandesa, fez-me sentir em casa. Ainda hoje ao chegar ao aeroporto de Lisboa só me sinto de facto em casa quando saio porta fora da zona de chegadas e ouço as buzinas e sinto o cheiro a combustível que estão ausentes das assépticas cidades holandesas.

 

No fim de contas, a maior perplexidade não é tanto a holandesa ao saber que continuarei a preferir Portugal para viver. Antes é a minha, por não ver como é que os holandeses não compreendem (mesmo não partilhando) a minha preferência. E, nessa perplexidade, recebo parte das razões para a minha preferência.