Prendas da Primavera
Pousa uma Poupa (Upupa epops) à janela e por ali fica, a espanejar-se, o tempo suficiente para eu sacar da máquina fotográfica. Há coisas boas que não acontecem com a frequência necessária.
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Pousa uma Poupa (Upupa epops) à janela e por ali fica, a espanejar-se, o tempo suficiente para eu sacar da máquina fotográfica. Há coisas boas que não acontecem com a frequência necessária.
Passei o inverno com a intenção de amanhar o bocado de quintal que não está por conta das ovelhas.
No início de Abril, logo no início do quarto minguante, plantei meio cento de cebolo que comprei no mercado de Porto de Mós. Para isso usei um canteiro murado com um par de metros quadrados e com terra de boa qualidade. O cebolo demorou um bocado a pegar. As ervas daninhas, a junça e a erva-pinheira, foram as primeiras a dar sinal de vida. Noutros tempos, logo quando o cebolo pegava, aplicava-se uma monda química. A mais eficaz tinha como substância activa a Atrazina, mas também se recorria aos produtos à base de Linurão. Esses venenos estão agora todos banidos da UE e são apenas permitidos nos países que fornecem regularmente os nossos mercados com toda a variedade de legumes. Como se diz habitualmente, olhos que não vêem, coração que não sofre. Ao fim e ao cabo, é uma forma de combater a emigração ilegal. Os agricultores marroquinos, por poderem recorrer a estas ferramentas vedadas ao agricultores europeus, lá vão governando a vida e assim são menos uns quantos a tentarem passar o Mediterrâneo. Os gregos queixam-se do mesmo, mas em relação aos egípcios.
Não se faz nada na cozinha sem gastar cebolas e por isso meio cento de cebolo gasta-se rapidamente. Se ambicionasse ser autossuficiente neste bolbo, não podia estar a esta hora aqui a esgadanhar o teclado. De maneira a conseguir uma produção sem recurso a fitofármacos, dei por mim com umas joelheiras e umas luvas das obras a arrancar as já referidas infestantes. Estas duas variedades de plantas mal vindas só são devidamente retiradas se a sua raiz sair por completo, o que obriga a arrancá-las agarrando-as dois ou três centímetros abaixo da linha do solo. Só mesmo com luvas se consegue evitar ficar com umas unhas como as da águia Vitória. É um trabalho moroso, de baixo-valor acrescentado e que deixa as cruzes todas doridas.
Duas ou três semanas mais tarde, plantei oito tomateiros da variedade chucha. O tempo ainda estava incerto e por isso cortei o fundo a uns garrafões de água, coloquei-os sobre as plantas, e assim funcionam como uma mini estufa. Também já pegaram e já quase não cabem dentro dos garrafões.
Tendo assim a terra de canteiro toda ocupada, pensei ainda em cavar um outro pedaço ali ao lado. Esta terra é de pior qualidade. Na construção da casa, a máquina de rastos que abriu os alicerces misturou a terra castanha que estava há séculos à superfície com umas leivas de saibro que puxou de vários metros de profundidade. Em resultado disto arranjei uma excelente desculpa para passar mais tempo ao computador. Aquilo é coisa para partir enxadas. A única hipótese de ali fazer alguma coisa é imediatamente após as chuvas, quando a terra ainda não empederniu.
Poderia pedir a um vizinho que tenha um tractor que por ali passasse com a sua frese, mas seria só perder tempo. Ninguém aceita deslocar uma máquina para mexer meia dúzia de palmos de terra. Até que depois, para aproveitar a deslocação, teria de lavrar tudo e a minha vontade não era assim tanta. Temos um político que se arrepia só de ouvir falar em reformas e, da mesma forma, eu arrepio-me de me imaginar a ter de amanhar a parcela toda. É um esforço que me ataca o lombo e que me faz sair da cama a praguejar. Por isso decidi cavar apenas duas carreiras suficientes para semear uma carteira de feijão anão. E não é anão por fazer touradas acrobáticas, mas apenas porque dispensa a mui trabalhosa estrutura de canas. Cresce a não mais de meio metro de altura e é por isso muito mais à medida de quem, como eu, não está absolutamente empenhado.
Para remexer mais profundamente a terra, tenho, de herança, uma enxada de meia-lua com palmo e meio de comprimento. Aquilo é coisa para, numa inspecção do Ministério do Trabalho, ser apreendida e ficar selada à guarda do tribunal. É certo que, quando desce para a terra, adquire uma aceleração capaz de transformar pedra em torrões, mas o desafio é levanta-la acima da cabeça, como se impõe, até por homenagem ao cavador que a estreou. Tive a sorte de não terem passado dez minutos sem que o cabo se partisse. Este é um tipo de contrariedade capaz de arrancar um largo sorriso a alguém em sofrimento. Era uma bela deixa para adiar o serviço, ou para ir à procura de um tractor. Nessa altura lembrei-me das notícias e achei que insistir no tractor, uma aparente solução que só serviria para adiar o assunto, seria comparável a um governante que, por não querer fazer ou não querer decidir, criava uma comissão técnica independente. Eu poderia telefonar para o Zé Chícharo, ou para o Tó Galo e encomendava-lhe o serviço. Um não atendia o telefone e o outro tinha a máquina a mudar filtros, que já os conheço. Então semeias os feijões ou não? Estou à espera que venha cá um tractor que lavra aquilo tudo e depois até milho semeio. E nisto passava o quarto crescente.
O respeito próprio que, mesmo à rasca dos rins, vou insistindo em manter, fez-me lembrar da manobra da comissão técnica independente e, por isso, logo tratei de substituir o cabo da mórbida filha da mãe. Se alguma vez quem quis adiar uma decisão soubesse que o brilharete ia ser feito pelo seu adversário, certamente que tinha feito como eu e tinha agarrado no assunto para o resolver.
E foi assim que, ontem à tarde, aproveitando a folga da escola, semeei a tal carteira de feijão anão com a minha filha. Ficou a saber o que já ouvi aos antigos. Antes da sementeira do feijão, rega-se a terra com abundância e só depois é que se colocam as sementes. Pouco fundas, "o feijão tem de ficar a ver o semeador a ir-se embora" e não se volta a regar até a planta aparecer. Fica três dias no choco, como naquelas experiências que se faz na escola dentro de um copo com água, e uns dias depois irá aparecer cá fora.
Ao fim do serão, antes de ela ir para a cama, irrompeu uma chuvada. Ai que o feijão se estraga com esta água toda! Então em vez de estares agarrada ao telefone, estás com essas preocupações de lavrador, hein! Logo eu fui trocar o cabo à enxada!
À minha volta, o dióspiro foi sempre um fruto pouco vulgar. Não tinha nenhum diospireiro no meu quintal e conhecia-os apenas porque uma prima minha os tinha com relativa abundância.
Com a chegada do Outono, lá vinham dois ou três sacos de asas, cheios até ao coruto pois era suposto ajudarmos a gastá-los. Para não se derreterem no transporte, eram apanhados ainda rijos para depois esperarmos que amadurecessem e só então os conseguíamos comer. A variedade que ela tinha, era daqueles "de comer à colher” que era também a única que eu então conhecia. Não gostava daquilo. Era impensável comer algum enquanto não se estivesse quase a desfazer de maduro e antes disso deixavam a boca grossa e o desconforto era tal que, mesmo bochechando com água, a agonia demorava longos minutos a passar. Quando estavam maduros, ficavam tão espapaçados que pareciam podres e agoniavam só de olhar.
Foi há menos de dez anos, e fora do país, que me deram a provar dióspiros da outra variedade, "dos de roer”. Estavam maduros, mas mantinham a consistência de uma maçã. Descasquei-os com uma faca e, durante uma manhã, acabei por comer uns cinco ou seis. Foi pelo Google Translator que soube aquilo que estava a comer. Fiquei admirado pois não lhe encontrava nenhuma parecença com a agonia que guardara das minhas memórias de infância.
De entre as últimas árvores que o meu pai plantou no meu quintal, a escolha recaiu sobre um diospireiro de cada uma destas duas variedades. É incrível a diferença do porte de cada uma destas árvores. A maior é a "dos de comer à colher” e, ao contrário da outra, que no ano mais produtivo só deu três frutos, a primeira carrega sempre. Os primeiros dióspiros que ali apanhei dei-os às ovelhas, que têm sempre apetite e que depois de os comer ficavam com o focinho cor-de-laranja durante algum tempo.
Há dois ou três anos, arrisquei e experimentei um que estava quase desfazer-se de maduro. E não é que gostei? Passei a descascá-los com o canivete e a comê-los de uma forma quase alabregada, ao ponto de, ao terminar o repasto, lembrar-me do focinho das ovelhas e acabar por ter de ir lavar a cara. Por isso, e de maneira a fazer render a lavagem, dou por mim a comer vários de seguida.
Este ano, a árvore voltou a carregar e três já cá cantam. Na torneira do curral das ovelhas, lavei o canivete, a cara e vim escrever este postal.
Dizer que Portugal mudou muito nas últimas décadas é uma redundante repetição. Basta abrir um jornal português dos anos 50 ou 60, ou um noticiário num arquivo digital para descobrirmos um país que não conhecemos. Esses registos retratam sempre, ou quase, a vida nos grandes centros, o mundo dos que viviam em frente das objectivas e dos repórteres que lhe davam voz.
Nas terras pequenas o mundo também mudou bastante. Cresci a ouvir histórias contadas pelos mais velhos sobre o seu tempo de juventude, ou de mocidade, como então se dizia.
A juventude dos meus tempos foi bem diferente da desses tempos e foi também diferente da dos jovens de hoje. Comparando com o que acontece hoje, há cinquenta ou sessenta anos nasciam bebés em barda. Também morriam bastantes, mas só os rapazes da minha terra eram suficientes para, com dois ou três anos de diferença, fazerem várias equipas de futebol. Agrupavam-se por território. Os da parte alta da vila, então aldeia, jogavam contra os das ruas centrais e também, à vez, contra os do lado do pinhal. A modalidade não interessava, podia ser futebol, ao pião, assim como à pedrada ou à cachaporra. Em grupos mais pequenos, corria-se acima e abaixo por terrenos cultivados, por pomares e encostas, e competia-se também pelo número de ninhos da passarinhos encontrados. Os ninhos de aves de maior porte, milhafres, corvos, rolas ou pegas-rabudas eram reservados a uma elite que normalmente vivia na periferia e que, por perder menos tempo aos pontapés na bola, se especializava no que, entretanto, se passou a chamar birdwatching. Se bem que, tendo arte para isso, rapidamente eles iam além da observação e, em podendo, capturavam-nos para os criarem, ou simplesmente os ter, em casa.
Às vezes, a miudagem quando apanhava as aves progenitores fora do ninho, colocava as crias dentro de uma pequena gaiola e deixava-a no mesmo sítio. Após a surpresa inicial, os passarinhos novos lá continuavam a ser alimentados através das malhas da rede. Depois, já maiores e mais gordos, seriam apanhados sem se correr o risco de que aprendessem a voar e lá fossem à vida deles. Mas as gaiolas eram escassas e muitos acabavam por se escapar.
Quem sabia a receita, cozinhava numa panela velha uma mistura secreta que incluía a goma que escorre de algumas ameixoeiras e pessegueiros, bocados dos elásticos das fisgas e outros ingredientes desconhecidos por mim. A partir daquela mistela faziam visgo. Com esta cola, capaz de ficar agarrada às mãos durante semanas e que parecia nunca secar, untavam umas pequenas braças de arbusto que colocavam junto a algo que atraísse a passarada. Podia ser uma tigela de água no Verão, um montinho de milho britado ou uma gaiola com as próprias crias lá dentro. Com um pouco de sorte, após três ou quatros insucessos, lá apanhavam um bicho preso pelas patas. Depois era guardado em casa, numa gaiola maior, junto de outros capturados antes.
No meu tempo de garoto, só um primo meu mais velho é que sabia fazer visgo. Cozinhava-o dentro de uma lata vazia. Com o fumo daquele bruxedo mal-cheiroso pintou, numa parede velha, um largo risco negro, que ali ficou até ter sido demolida. Nunca me deixou ir com ele aos pássaros, pois era mais novo e iria espanta-los. Era o que ele me dizia.
Só do lado paterno, o meu pai tinha sete tios. Lembro-me de ele contar, que certa vez uns primos mais velhos tinham alinhavado umas folhas de papel, e alinhavado mesmo com agulha e linha, onde anotavam a localização dos ninhos que tinham encontrado e que iam espreitando até as crias estarem a jeito de serem apanhadas para fazer uma patuscada. Um dia, os mais novos conseguiram surripiar os apontamentos aos mais velhos. Perante a abundância daquela informação “classificada” decidiram antecipar a colheita. O final do relato deste episódio termina na rampa empedrada com seixos redondos, que na casa dos meus avós dava acesso ao pátio. Ali juntaram toda aquela pardalada, que depois de morta foi depenada e amanhada. Não me lembro se os comiam guisados, mas imagino que sim.
Desses relatos transparecia uma mistura de, arrisco-me a dizer, reflexo antropológico de caça em grupo, de paixão pela beleza daqueles pequenos seres voadores, de partilha exibicionista de conhecimento entre os pares, de busca pelo apuro da nobre arte cinegética e, obviamente, também um complemento de proteínas.
Diz-se que o povoado que antecedeu a aldeia que, entretanto, se tornou vila, começou num vale a pouco mais de um quilómetro do actual centro. Aquela zona sempre foi cultivada com novidades e hortícolas várias. É muito fresco todo o ano e graças aos poços que ladeiam o ribeiro que ali passa quando chove, é possível fazer regas até mesmo durante o Verão. Este vale era por isso muito frequentado por texugos, que se alimentavam durante a noite do melhor que havia à disposição. Era uma apoquentação. Não se podia ali ter nada ao ponto de, sempre que necessário, se organizarem umas capturas. A caçada, tal como o bicho, era nocturna e isso fazia a emoção do desafio subir uns furos. Pelo que ouvi, o bicho era esperado à saída da toca, onde se armava um laço. Depois era só esperar em silêncio. O bicho era desconfiado, podia demorar a sair e isso obrigava a uma espera interminável. Por serem muito difíceis de apanhar, só mesmo os mais exímios caçadores eram bem sucedidos. A conquista significava algum sossego nas ervilhas e nas favas de todos os que ali amanhavam alguma coisa e por isso, na madrugada seguinte o bicho era exibido pelas ruas, porta a porta, pendurado num pau, amarrado pelas patas. Em todas as casas de quem já tinha sido roubado pelos texugos, os caçadores recebiam uma moeda. Ou então, um copo de vinho.
Foto Rafael Coelho de Sousa
Os miúdos de outros tempos só eram atraídos à casa onde moravam, para comer e dormir. Quando muito para evitar umas sovas, que inevitavelmente acabavam por acontecer. Os mais macios também corriam para casa quando alguma rixa lhe corria mal. Os outros desapareciam para as fazendas onde, ágeis e velozes, eram impossíveis de apanhar.
Foi essa geração que preencheu as fileiras da Guerra do Ultramar. Já adultos, com umas toscas e mal escalavradas tatuagens nos bíceps, ouvi-os falar do Tete, do deserto do Namibe, de Nova Lamego e de Teixeira Pinto, com o mesmo desvelo e conhecimento com falavam do Talho Redondo, da Fonte Falsa e das Eiras Novas. Sem o saberem, quando apanhavam bicos-de-lacre, tentilhões e cias, estavam apenas na pré-primária da caça às pacaças, zebras e gazelas com que a vida os haveria de fazer cruzar. Nesses relatos da minha infância também ouvi alguns contarem que também tinham caçado pretos, mas isso agora não se pode dizer.
Antes e depois do serviço militar, o ponto de encontro dessa geração foi sempre nas adegas de uns e de outros, onde o vinho nunca faltava, nem conduto para o ensopar. Nesses anos, alguns mais novos, fundaram o clube de futebol, que oficialmente só foi constituído depois do 25 de Abril. A primeira sede foi num palheiro onde os jogadores se fardavam antes dos jogos de futebol. O primeiro campo, com balizas de madeira caiada de branco, foi num rectângulo de terreno no meio dos pinhais que lhe deram o nome, pois desde então passou a ser o Estádio da Pinhoca.
Nos anos quentes que se seguiram à revolução, o campo de futebol foi alargado à custa dos proprietários vizinhos. Naquele tempo, aquela turba gadelhuda, de voz grossa, de calças à boca de sino e conhecedora das artes da guerra, foi, treino após treino, domingo-de-jogo após domingo-de-jogo, alargando o campo até que este atingisse as medidas oficiais. Em pouco mais de dez anos, aquele rectângulo foi murado e ali foram construídos balneários e bancadas.
O declínio começou com um incêndio já nos anos 90, que fez desaparecer o pinhal e as pinhocas que lhe davam o nome. Depois foram os incomportáveis e crescentes custos das inscrições dos jogadores de todos os escalões na Associação de Futebol. A isso seguiu-se uma mudança da Direcção, que coincidiu com a construção ali mesmo ao lado de um pavilhão municipal, pago com fundos europeus. Tudo junto ditou que o clube desistisse do futebol de 11 e passasse a competir apenas no Futsal. A marca ainda é a mesma, mas os sócios fundadores já quase todos partiram. A sede está forrada com fotos de equipas de muitos escalões e de muitos anos. Há uns tempos mandei imprimir e pendurar na parede as mais antigas de todas. Foram tiradas pelo meu tio e são anteriores à fundação oficial do clube. Retratam as condições em que se jogava. No inverno metade do campo era uma poça única e o resto era apenas lama.
Foto Rafael Coelho de Sousa
Actualmente o velho campo está abandonado, cheio de erva e sulcado pelos peões dos serôdios dos tunnings.
Em várias dezenas de hectares em seu redor, o pinhal, que depois daquele incêndio, nunca mais voltou a ter pinheiros, vai receber agora um parque solar. O Plano Director Municipal, actualizado há uns dez anos, acode-nos para ordenar o território, para complicar a vida aos proprietários, mas foi incapaz de nos defender daquela agressão estética. É um facto consumado e os eucaliptos já andam a ser derrubados a eito. É claro que todos queremos e precisamos de energia limpa e renovável, mas com tantos milhares de hectares desocupados no interior do país, tinha de ser logo aqui? Serão mais de 20.000 painéis a ocupar mais de 20 hectares e irão preencher totalmente o espaço entre duas povoações.
Há poucas semanas, numa sessão de esclarecimento no Salão Paroquial lá explicaram ao povéu que a proximidade de uma central de transformação da eléctrica nacional, que até pertence a uma nação que não é a nossa, justifica esta localização. Dizem que é a logística e agora já não há nada que se possa fazer.
Eu, que também gostava de ser energeticamente independente, lembrei-me que se fossemos da têmpera daqueles judéus (era assim que se dizia, com acento no é) caçadores de pássaros dos anos 50 e 60, os painéis seriam metodicamente danificados à pedrada, mas como todos só queremos é paz e sossego, nada disso irá acontecer.
Quando eu comecei a sair à noite, ia para o café, nessa altura a sede do clube não era a minha onda, e ficava à espera que os meus amigos e conhecidos aparecessem. O tempo fluía e, entre umas cervejas e umas cigarradas, para quem fumava, lá iam aparecendo uns atrás dos outros. Dali seguíamos para outras paragens. O café era o ponto de encontro e vivia também desse tempo de espera.
Com a massificação dos telemóveis, aquele café deixou de ser ponto de encontro e até já fechou. Agora os encontros da malta nova combinam-se on-line, e é na sede do clube que alguns teimosos insistem em ver a bola depois do treino de Futsal ou do dia de trabalho. Fuma-se na rua, debaixo do toldo.
A miudagem mais nova já não brinca na rua pois passa o tempo livre agarrada aos écrans, e o único pássaro que conhece é o logótipo azul do Twitter.
Já aqui falei sobre oliveiras e azeitona. No ano passado, aqui à volta, a produção de azeite foi quase nula. O frio e a chuva que se fez sentir no final da Primavera impediu o normal vingamento dos frutos e isso levou a que muitos dos pequenos produtores nem chegassem a dar-se ao trabalho de desdobrar os panos da apanha.
Os ciclos bianuais das oliveiras não são novidade e mais uma vez isso repete-se. A campanha deste ano será mais uma das muito produtivas. Inúmeras oliveiras têm os ramos vergados pela carga de azeitona e embora muita dela ainda não esteja completamente madura, a apanha já começou há umas semanas. É sempre difícil escolher o momento certo para conseguir a melhor maturação dos frutos sem que estes comecem a cair. Pode conseguir-se esse equilíbrio num olival, mas no momento em que decorre a apanha, o vento e a chuva provocam uma enorme queda noutro.
Já ouvi várias teorias sobre o ponto certo para avançar para apanha. É pacífico que mesmo antes de escurecer totalmente, a azeitona amarelada já possa ser colhida, embora a proporção das que estão ainda verdes, já amarelas e completamente negras, varie de árvore para árvore e por isso existe sempre margem para debate.
Noutros tempos não se deixava uma azeitona por apanhar. Os antigos contam que em miúdos, agachados ou de joelhos, percorriam todos os palmos de terreno debaixo das oliveiras, por vezes por Dezembro a fora, à procura do último bago. Nos dias de hoje este trabalho é realizado quase só por adultos, muitos deles já bem entrados, e o desgaste das respectivas articulações impede o rigor de antigamente. Muito azeite fica assim por apanhar.
Um aspecto importante a considerar prende-se com a praga da mosca-da-azeitona. As fêmeas deste insecto põem os ovos na polpa do fruto, o que leva à sua queda precoce e a um aumento da acidez do azeite. Para evitar este estrago pode recorrer-se à captura maciça com armadilhas, aos tratamentos com fito-fármacos ou a ambos. Dadas as cada vez maiores limitações no uso dos chamados pesticidas, aplicam-se algumas armadilhas para monitorizar a população da praga e assim direccionar os tratamentos para os momentos de maior actividade. Este rigor e atenção acaba por ser possível quase exclusivamente aos produtores intensivos e também por isso a qualidade do azeite da produção não intensiva é sempre mais irregular.
Os lagares tradicionais são memórias do passado. Pouco a pouco, todos foram sendo encerrados ou transformados no que se pode designar como sendo pequenas fábricas. As exigências sanitárias alteraram significativamente o processo, as madeiras deram lugar ao inox e a força humana e animal foi substituída por asseados motores eléctricos. Em vez de se fazer uma lagarada de cada vez, o processo é agora contínuo e torna-se quase impossível que as azeitonas que se entregaram correspondam ao azeite que se trás.
Ao contrário do que acontece com os produtores de vinho caseiro, que sabem que o seu produto resulta das uvas que realmente cultivaram, no azeite produzido nestes lagares modernos esta ligação será apenas casual, e isso mostra que será principalmente o apego às rotinas e às tradições, assim como o aspecto económico da poupança que é ter azeite sem ter de o comprar, que contarão como factores determinantes para que esta actividade se mantenha.
Para consumo caseiro compro normalmente azeite a vizinhos, mas este ano fui directamente ao lagar.
Logo à chegada, a longa fila de veículos comprovou que este é um ano de muita produção. Para poder levar azeitona para o lagar é necessário agendar com algumas semanas de antecedência, mas mesmo esse planeamento não impede as muitas horas de espera. Para ali não se pode ir com pressa. Se não chover é possível sair do carro e pôr a conversa em dia. Faz parte da tradição haver sempre um tipo armado em entendido a fiscalizar se a azeitona dos outros foi apanhada ou não antes do tempo e a decretar quem foi desleixado nos tratamentos contra a mosca.
No lado jusante da fábrica, mesmo a umas boas dezenas de metros do edifício, o cheiro a azeite novo invade as narinas. Portas adentro, a intensidade do aroma multiplica-se e é impossível não sorrir. A azafama é total. Há vasilhas a entrar vazias e a saírem cheias, e outras estão empilhadas à espera de serem recolhidas.
Neste lagar, em plena Serra dos Candeeiros, é possível comprar directamente mesmo sem levar azeitona, a preço de fábrica e com direito a prova.
É normal que nesta fase alguns lotes se apresentem turvos, mas em poucas semanas as borras assentarão e o azeite ficará translucido como se exige. O azeite novo tem também um aroma especialmente frutado e o sabor tem uma intensidade quase agressiva, mas com ou sem partículas em suspensão, é impossível chegar a casa sem aquela ansiedade que só se controla depois de o provar em pão demolhado.
Nos últimos dias de 2019, que parecem tão distantes, nasceram aqui no quintal quatro borregos, um macho e três fêmeas. Antes de tudo isto ter acontecido, tinha apenas duas ovelhas prenhes, que assim em poucos dias passaram a seis.
Ao contrário da prática habitual, não quis que fosse colocada nenhuma anilha na cauda destes mais novos. Esta anilha leva a que a cauda não seja irrigada e caia em poucos dias, sem mais danos para o animal. Um entendido recomendou-me fazê-lo. Avisou-me que quando o tempo chegasse, as borregas se tornassem ovelhas e a natureza as tornasse receptivas à cópula, a cauda causaria algum transtorno ao macho e por isso também algum alvoroço nas redondezas. Achei que não. Se na natureza a cauda nunca impediu que a espécie progredisse, não seria agora que o macho se ia atrapalhar.
A erva que a chuva do inverno torna suficiente para duas bocas nunca chegaria para o pequeno rebanho de seis que nesses dias passaram a habitar esta parcela de terreno. Com uma persistência a que nenhum herbicida poderia concorrer, aqueles quadrúpedes raparam rapidamente todos os centímetros do talhão que me pertence. Por sorte, um vizinho sem vagar para cuidar de um terreno contíguo, que é apenas dividido por uma linha de água e uma vedação, aceitou trocar a sua erva nascediça pela matéria orgânica que estes bichos produzem com relativa abundância. Assim, com uma palete a fazer de rampa e uma porta improvisada, aquela meia dúzia lá emigrava pela manhã e só regressava ao anoitecer.
Por vontade do destino, um desarranjo do sistema digestivo assentou praça ali no curral. A erva molhada funciona como um acelerador de toda aquela dinâmica e nem mesmo recorrendo aos clássicos travões intestinais, aveia demolhada e palha seca, consegui resolver o assunto. Fui assim forçado a recorrer a um entendido, que disse logo:
- Não lhes quiseste tirar o rabo, agora vão andar com uma recordação desta diarreia até ao dia que forem para o desmanche. – Os entendidos é que sabem.
Com o aproximar da Primavera, a força das tradições levou a uma alteração na composição daquele grupo. Já com os borregos desmamados, negociei as fêmeas com um outro vizinho que precisava de limpar um terreno e que já tinha apalavrado o empréstimo de um macho. Assim, pela ocasião da celebração da Ressurreição de Cristo, a borrega irmã do macho foi servida dentro de uma travessa de barro vermelho num almoço familiar. Para dar seguimento à geração seguinte, e de forma a evitar a consanguinidade, ficaram o jovem macho e as duas borregas filhas da outra mãe.
As semanas foram correndo e com o Verão chegou a puberdade dos borregos. Foi desde muito pequeno que o macho começou a ensaiar marradas em tudo o que mexia. No início era só para testar a dureza dos materiais, mas conforme foi ganhando peso, o instinto começou a impeli-lo a impor-se pela força. Quando chegámos ao fim do Inverno de 2020, a largura das jovens ovelhas já mostrava que não havia caudas que atrapalhassem nem o instinto nem o empenho de nenhum macho.
Conforme aqui relatei, os novos borregos, mesmo tendo nascido durante a noite, viram a luz do dia em Março. A data poupou-os ao sacrifício pascal, mas não a um outro evento familiar. Não me recordo qual foi a ocasião, mas sei que fui sensível ao alerta de um outro entendido:
- Olha que é a partir dos três meses que começam a ganhar gordura! – Este, além de um bom garfo, é meticuloso no detalhe das coisas importantes. O conselho provou ser sábio e graças à sua sabedoria tudo aconteceu no momento certo.
Os dois borregos foram consumidos em diferentes configurações gastronómicas e continuo sem saber se prefiro os medalhões no forno ou as costeletas na grelha. Ao contrário dos animalistas, acho que são mal empregues como matéria-prima de comida para cão, mas isso é a minha ideia, e respeito as dos outros.
Com o sol de Verão a pino, a tosquia tornou-se uma necessidade. É cada vez mais difícil arranjar quem faça esse serviço. Um outro entendido tem um tio que fazia tosquias, mas depois de uns alertas foi proibido pelo cardiologista de se dedicar a esse serviço. Depois de até no OLX ter procurado por este trabalho especializado, acabei por encontrar no concelho de Alcobaça um rapaz que o fazia depois de despegar da fábrica. Mesmo ficando com a lã e ainda dinheiro, começou a lamentar-se pelo pouco rendimento deste serviço logo à chegada, quando ainda tinha o carro a trabalhar, e só deixei de lhe ouvir as lamúrias mais de uma hora depois, quando já estava a engrenar a segunda velocidade rua abaixo. Atrás dele deixou duas ovelhas e um carneiro meio envergonhados e muito menos volumosos do que eles, e nós, estávamos habituados.
A testosterona do macho, que o ajudou a acumular quase o dobro do peso de cada uma das fêmeas, nunca o deixou ser um bicho sossegado. A partir de certa altura nunca as deixava chegarem-se da comida. As duas ovelhas passaram a aproximar-se sempre com medo de apanhar mais umas marradas. Mesmo recorrendo a duas manjedouras separadas por uns metros, ele não lhes facilitava a vida e, mesmo quando eu estava a alguma distância, ouvia-as a serem projectadas contra as tábuas do curral. Para que elas pudessem meter o dente nos restos vegetais da nossa cozinha, ou numa dose de ração, tinha de fazer uma grande ginástica para o atrair para o lado de fora e depois fechar muito rapidamente a porta, o que nunca seria uma solução permanente.
Um entendido no café disse-me:
- Olha que se elas não têm borregos a mamar e se estão tosquiadas, a esta hora já estão prenhes.
Assim, com dó das pobres coitadas que comiam a medo e eu já temia pelo dia em que o patife me quisesse encostar a cornadura, lá o despachei para o desmanche. E assim foi transformado em dois alguidares grandes cheios de carne, que foram em parte distribuídos por familiares e amigos.
Depois disto a calmaria regressou ao redil. As duas ovelhas já conseguem comer sem sobressaltos e já se vê o lombo a alargar, o que comprova mais uma vez que não é a cauda das fêmeas que impede o carneiro de cumprir o seu propósito. Fazendo a conta às 22 semanas de gestação, lá para Março acaba-se o tempo e assim se cumprirá mais um ciclo da natureza.
PS: Uma das ovelhas é ligeiramente maior que a outra. Desde que o macho saiu da equação que a mais pequena já entendeu que continua a ter de dar passagem e acesso privilegiado à maior. A lei do mais forte está claramente escrita no ADN dos bichos. Felizmente isso já não acontece com os humanos. Será mesmo que não?
Um pouco por todo o mundo rural e longe da bolha urbana, os ataques de cães errantes em matilha são cada vez mais frequentes.
O aumento dos incidentes foi há dias notícia no quinzenário do meu município, O Portomosense. A foto que ilustra a notícia pode incomodar pessoas mais sensíveis.
A notícia retrata um desses episódios, dentro de uma sequência de vários. Para quem queira evitar a foto acima referida, passo a transcrever.
“O rebanho de Cesaltina Jorge foi atacado na noite de 7 para 8 de maio. Muito perto de sua casa, em Penedos Belos, seis ovelhas foram mordidas e sofreram ferimentos graves, sendo que três delas poderão ter mesmo a sua vida ameaçada, segundo nos explicou a proprietária: «Tenho três que, coitadinhas, não sei o que vai ser delas, andam a levar injeções… Andam aos pulos, não conseguem andar sobre as mãos da frente. Na parte de baixo da mão, estavam a deitar pus. Curo-as todos os dias antes de ir trabalhar», conta.
Cesaltina Jorge lembra que, naquela manhã de sábado, se levantou por volta das 7h30 e viu sangue na estrada. No entanto, não deu logo importância, «pensava que tinham atropelado algum cão». No entanto, quando depois voltou a prestar atenção, reparou que «o sangue era muito» e deu conta que «o portão das ovelhas» estava no chão. Quando chegou perto dos seus animais, percebeu que lhe faltava meia dúzia, que foi encontrar, espantados, em vários locais diferentes. A sua primeira reação foi ir ver os cães da vizinhança para procurar algum que tivesse sangue, mas em nenhum encontrou. Por isso, afirma que não faz ideia que cães atacaram o seu rebanho. «A minha vizinha diz que ouviu cães pequenos a ladrar durante a noite, eram cinco e tal da manhã. Como eu tinha tomado um comprimido para dormir, não ouvi nada», relata. Na mesma noite, segundo conta a O Portomosense, numa casa perto da sua, outro rebanho foi também atacado, registando-se igualmente seis ovelhas mordidas.
«Sou castigada quase todos os anos», refere Cesaltina Jorge, indicando que estes ataques são frequentes: «Já é a terceira ou quarta vez, no ano passado não aconteceu…», indica. O prejuízo, esse, é grande e acompanhado de tristeza: «Uma pessoa faz pelas coisas… Estava para matar três no final do mês e já não posso. Agora não podem ser mortas por andarem a levar injeções. E aquelas três estão muito mal, abro-lhes o portão e vêm de rastos, comem deitadas, é triste…», conclui.”
Ontem de manhã soube de outro ataque que ocorreu aqui perto de mim. As imagens são também violentas. As ovelhas de um vizinho, já com queixas anteriores, foram atacadas. Nesta última frase poderia acrescentar um advérbio, e ficaria assim: “As ovelhas de um vizinho (…), foram selvaticamente atacadas”. Dessa forma estaria a incorrer no pensamento dos animalistas, para os quais, tal como nos desenhos animados, existem os bons e os maus. E nós, que somos naturalmente bons, defendemos os nossos e abominamos os maus. Essa é a lógica maniqueísta de quem vive dentro da bolha urbana e que da natureza conhece apenas o que viu através dos écrans e ouviu em dolby surround.
Com os canis municipais cheios, os cães errantes são cada vez mais. Agrupam-se por instinto gregário e à solta na natureza tentam sobreviver. Por isso, para saciar a fome, reúnem-se em matilha e assim conseguem melhores resultados. Multiplicam-se ao ritmo da natureza e não há forma legal de os travar. Não atacam selvaticamente os rebanhos, pois simplesmente tentam sobreviver. É a lei do mais forte, e essa o PAN nunca poderá abolir.
Há dias num passeio pelas Aldeias de Xisto da Serra da Lousã passei pela Aigra Velha. Segundo os relatos dos seus últimos habitantes, a aldeia tinha um sistema de defesa contra lobos. À noite, a única rua da aldeia era entaipada e existiam ligações internas entre as casas de forma a se poder circular em segurança. Este mundo, em que o humano tenta sobreviver na natureza, onde luta de igual para igual com os animais, já não existe. Apesar disso, na moção Y apresentada no recente congresso do PAN, proclamam que "Interagir com outros animais permite-nos reconectarmo-nos com a natureza e pacificarmo-nos com a nossa condição animal". Certamente que estes autoproclamados defensores dos animais imaginam esta pacificação à escala das suas marquises e varandas. É nessa linha que decidiram tornar veganos os animais de companhia. É claramente mais um avanço numa linha utópica totalitarista. Assistimos assim à criação do “animal novo”, coisa feitas pelos iluminados, e tal como os soviéticos, não precisam de saber das necessidades ou preferências dos visados. A moral de marquise dos animalistas irá moldar as leis da própria natureza.
E é assim que estamos.
No dia em que alguém seja violentamente atacado, ou morra, na sequência de um ataque de cães errantes, estaremos mais perto da pacificação que defendem.
Não sei o que lhes passa pela cabeça, mas os patos têm claramente um comportamento diferente das outras aves de capoeira. Os patos andam sempre juntos, enquanto as galinhas são muito mais autónomas. Estas, tanto podem orquestrar uma formação em linha a penicar chão, lado a lado, para de repente se afastarem e andarem o resto do dia sozinhas, quase que ignorando as demais.
Os patos, como disse, andam sempre juntos ao ponto de não existir a entidade “um pato”, mas apenas “os patos”.
Os primeiros que criámos, andaram por aqui uns seis meses. Quando foram para abate tinham demasiada gordura. Depois soube que três meses são suficientes para ficam compostos. Além desse tempo só acumulam gordura e produzem sujidade, e bastante sujidade. Os patos são umas aves que sujam muito a capoeira. Quando o bebedouro é usado exclusivamente por galinhas, precisa de ser limpo uma vez por mês, e apenas por rotina. Quando os patos entram em cena, o bebedouro passa a ficar entupido quase diariamente. A fisionomia do seu bico explica parte do fenómeno. O seu formato largo e achatado facilita a acumulação de comida e lama. A lama é provocada por eles, ao sacudirem a água para fora da concha do bebedouro. O chão enlameia-se e eles gostam de mastigar aquela papa de terra molhada, de a misturar com ração e de levar tudo novamente para dentro do bebedouro. Fica tudo um bocado emporcalhado, a barrica da água esvazia-se muito mais rapidamente, mas é assim que eles andam satisfeitos.
As galinhas lidam com eles com altivez. A primeira ninhada de patos que aqui tivemos foi recebida com muita bicada por parte das galinhas. Felizmente nenhum deles sabia o que é bullying e acabaram por se entender. Os patos esperavam que as galinhas comessem e se fossem embora, para então avançarem para o comedouro. Nas ninhadas seguintes, tudo passou a ser ainda mais pacífico.
Em conversa com uma criadora entendida soube que se um deles morrer, todos ficam afectados. Perdem o apetite e a ninhada fica toda em causa. Sabendo isso, e chegada a hora, faz sentido avançar para o abate de todos de uma vez.
Os patos chegam aqui com duas ou três semanas e sempre aos quatro de cada vez. Normalmente criamos oito patos por ano, o que equivale a duas ninhadas e a oito tabuleiros de arroz de pato por ano, distribuídos por oito dias de celebração especial.
A receita que fazemos foi herdada e corre sempre bem.
Para quem quiser tomar nota aqui vai ela:
Bom apetite!
Este texto foi ditado pela minha filha que tem sete anos e está farta de não poder ir à escola. Felizmente segunda-feira isso vai mudar, e já preparou a mochila. Eu dei uns retoques ao ditado.
Esta noite, eu e o meu pai, estivemos na nossa varanda a conversar, enquanto ele fumava cachimbo e bebia bourbon. Mostrou-me onde é que estavam as Três Marias, da cintura de Orion.
Ele levou uma vela para a varanda, onde acendeu um palito e com o esse palito a arder, acendeu o cachimbo. Mandou umas baforadas mal dadas, porque ele não sabe fumar em condições.
Eu disse que parecia um serão de antigamente, porque estávamos à luz da vela, e o cachimbo é uma coisa fora de moda. O meu pai disse-me para nunca acreditar que os antigos eram estúpidos. Eles fumavam e nós sabemos que fumar faz mal, mas há coisas boas que fazem mal.
- Tipo o quê? - perguntei eu.
- Tipo fumar- respondeu ele.
- Hahahaha - ri-me eu.
- Hahahaha - riu-se também ele.
Depois de rir, bebeu mais uma golada.
Ele contou-me uma história de um senhor que era muito rico e tinha muitas casas mas só conseguia estar numa casa de cada vez. Por isso tinha sempre casas vazias. Para tomar conta do jardim de uma das casa, contratou um jardineiro que além de receber o ordenado para tomar conta dela, usava a casa e a piscina todos os dias do ano. Enquanto isso, o patrão estava a trabalhar.
Quando estávamos nesta parte da conversa, uma ovelha pariu e o Paulo teve de interromper o texto para ir ajudá-la.
Eu também fui e por isso este texto vai ficar por aqui.
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Afinal, depois de regressar da rua e de eu ir buscar amêndoas à cozinha, regressamos ao texto.
Não conseguimos ver se é macho ou fêmea, mas era fofinha. Quer dizer, o meu pai disse que ela estava ainda um bocado peganhenta. A mãe ovelha, nunca se tinha visto noutra coisa assim, porque é nova. Tem pouco mais de um ano e nunca tinha parido, mas portou-se bem. Lambeu a cria toda. O meu pai levou a ovelhinha para a barraca e a mãe dela veio logo atrás. O chão levou mais uma camada de palha para ficarem confortáveis. Eu e a minha mãe estivemos do lado de fora da rede a fazer comentários e a dar indicações.
Temos uma sacana de uma galinha castanha que dorme no comedouro das ovelhas. Com o sobressalto, estava danada com tanto barulho.
Há poucos dias atrás só tínhamos três ovelhas e agora já temos cinco, porque esta já foi a segunda cria que aqui nasceu este ano.
Há perto de vinte anos, um vizinho aqui da freguesia limpou uns quilómetros de mato perto de sua casa e lançou a que designa como sendo a primeira prova de trail do país.
O Cross Laminha foi sempre disputado no inverno e logo após a primeira edição esgotou consecutivamente as inscrições. A zona escolhida, entre o IC2 e a EN8, não faz parte do Parque Natural Serra d'Aire e Candeeiros, apenas porque o IC2 os divide. A paisagem é predominantemente calcária, mas é muito mais arborizada que o PNSAC. O mato só não é mais cerrado porque todos os invernos, e por ocasião da prova, é religiosamente limpo à medida de um ser humano em deslocação.
A pandemia interrompeu a já clássica prova de atletismo, mas o novo formato abriu-se a um público muito mais abrangente. A identidade da prova continua a basear-se no atletismo trail, mas este ano ajustou-se, e em vez de tudo acontecer numa manhã de domingo, a prova está a decorrer de 1 de Janeiro até 21 de Fevereiro. Quem quiser competir tem de seguir as indicações do site. Vale a pena para os aficionados do trail. Para quem quiser apenas usufruir de um trajecto maravilhoso, excelentemente marcado ao ponto de não deixar a menor margem para dúvidas em termos de navegação, então esta é uma excelente oportunidade para fazer menos de 10 quilómetros em cerca de três horas de caminhada num recanto abençoado do nosso território. Calçado adequado, um reforço energético e uma garrafa de água resumem a logística necessária. Faz-se bem em família, ou individualmente. Cada um ao seu ritmo.
Estão todos convidados.
O meu avô Zé, o pai do meu pai, deixou-nos quando eu tinha cinco ou seis anos. Tinha passado apenas um mês desde o falecimento do avô Albino, o pai da minha mãe. Tudo aconteceu numa curta vertigem que juntou as duas perdas num luto só.
Cada um à sua maneira acabaram por se tornar para mim as referências difusas e distantes de um tempo antigo e de um mundo de que apenas tive conhecimento pessoal por aquilo que me recordo deles.
Lembro-me do meu avô Zé ser muito reservado. Ninguém duvidava do extremo amor e dedicação à minha avó e a cada um dos seus filhos, mas também ninguém se lembrava de que alguma vez tivesse dito uma palavra que o demonstrasse.
No dia em que morreu fiquei surpreendido pelo choro desesperado da minha avó deitada em posição quase fetal na sua cama. Nunca lhes tinha observado afecto que justificasse aquele pranto. Apenas conhecia as rotinas automáticas de uma relação reservada e descobri nesse dia, e nessa hora, que afinal, além do recato respeitoso perante nós, que éramos o primeiro ciclo à sua volta, as décadas de luta partilhada assentavam afinal num amor que me fora ocultado.
Após voltas e mais reviravoltas, entremeadas com diversas paragens com várias décadas de duração, chegou-me há dias às mãos uma agenda do meu avô Zé. Nela estão registadas datas de sementeiras, jornas a pagar por trabalhos feitos, assim como receitas e despesas diversas. O que seriam à época apenas registos banais, embora metódicos, acabaram por me levar numa viagem de memórias que não tinha.
A sobrevivência da família e o governo da casa eram uma ciência baseada na frugalidade. Havendo a quem, até as borras de vinho podiam ser vendidas.
Na história universal o dia 3 de Agosto de 1943 ficou marcado pelo início da Operação Rumyantsev em que o Exército Vermelho tentou recuperar a cidade de Karkiv na Ucrânia. Nesse dia o meu avô começou a época de praia. Às 5 da manhã meteu os filhos todos, ainda a dormir, debaixo de uma manta no carro puxado por uma junta de bois, e seguiu a pé com os bichos pela arreata. Pelos meus tios soube que numa dessas viagens seguiu com eles uma galinha adormecida empoleirada no eixo fixo do carro de bois, que depois de adormecer no curral só acordou uns solavancos mais tarde, já na descida para o Valado.
Nesse ano de 1943 terão alugado uma casa na Rua Magalhães Lima número 16 e o contacto parece ter sido a Dª Mecia Bem. Provavelmente alguma peixeira que terão conhecido pela venda de porta a porta. A ida à praia era como que uma obrigação motivada por fins terapêuticos. Ele e a minha avó eram primos direitos e, por recomendação médica, uns dias junto ao mar eram uma forma de minimizar as consequências da bronquite que, a diferentes níveis, afligia todos os filhos. Chegaram ao alto da Pedreneira, na última descida até ao mar, pelo meio dia.
O primeiro de Dezembro de 1943 ficou marcado pela Declaração do Cairo na qual Roosevelt, Churchill e Chiang Kai-Chek exigiram a rendição incondicional do Japão. Nesse dia o meu avô semeou favas no terreno que conhecemos por Valdeus.
No dia 6 de Dezembro os primeiros judeus italianos foram enviados de Milão e Verona por comboio rumo a Auschwitz. Nesse mesmo dia o meu avô semeou aveia nos Olivais. Fez ontem 77 anos.
Cada uma das datas ali anotadas corresponde a um acontecimento digno de registo na vida rural do meu avô, e é interessante compará-las com o que estava a acontecer ao mesmo tempo pelo mundo fora. A guerra mantida à distância pela nossa geografia e pela habilidade diplomática de Salazar era algo muito remoto e a aparente banalidade destes apontamentos é um testemunho do universo paralelo e remoto do mundo rural português dessa época.
Foi já há algum tempo atrás que fiquei de aqui falar sobre as minhas galinhas.
Depois da capoeira pronta, avancei com vários contactos entre vizinhos e amigos e consegui reunir as primeiras cinco galinhas do meu quintal.
Havia uma preta, a Unita, de que já aqui vos falei. Morreu nova em consequência de um impulso incontrolável de um amável canideo de um vizinho. Coitado do cão, que fez o que fez, mas como bem diria um irresponsável adolescente, foi sem querer.
As outras quatro, todas castanhas, talvez mais rápidas, mais sortudas ou apenas menos azaradas, escaparam-se desse raid carnívoro. O amável melhor amigo do meu vizinho (eu acho que o vizinho é que é o melhor amigo do bicho) continua a olhar languidamente para elas. Não fosse a vedação ter sido reforçada e provavelmente já mais alguma se tinha juntado à Unita.
Faça chuva ou faça sol, as galinhas são bichos que gostam de rotinas. Desde bem cedo que correm os cantos todos do terreno, esgravatam com as patas e penicam sementes, bagos de milho, ração, plantas, terra, areia e tudo o que calha.
Os pseudo-entendidos dizem que as galinhas que vivem nos aviários e que fornecem ovos aos supermercados nunca dormem e não se mexem pois o espaço da sua gaiola é muito exíguo. A luz das instalações onde vivem estão sempre acessas de forma a que possam ultrapassar a postura de mais de um ovo por dia. Talvez isso seja apenas mais um mito urbano.
A postura destas quatro sobreviventes do husky vizinho, é razoavelmente regular. Durante a manhã todas elas depositam o seu ovo num dos ninhos.
Não é surpresa para ninguém que o conceito de higiene destes bichos seja muito diferente do dos humanos. O chão de uma capoeira é todo ele um WC total. Expelem as respectivas fezes em qualquer sitio e a qualquer hora, com um incrível aumento de evacuação durante a noite.
Para as três que dormem no poleiro todo o processo acaba por ser muito previsível e quase ordeiro, mas a outra gosta de explorar sempre novos locais de pernoita, o que cria alguns contratempos e trabalhos adicionais.
Esta problemática sacana, a que tem penas brancas nas bordas das asas, tem um nome cá em casa que deriva de uma designação de um partido político maioritário no nosso país, que não vou aqui descrever para não pensarem que sou faccioso.
E não é que a filha da mãe descobriu há uns meses que a manjedoura das ovelhas é confortável para dormir. As ovelhas, coitadas, não mostraram grande desconforto com isso, mas o trabalho adicional todas as manhãs está sempre garantido.
Foi preciso rogar-lhe umas quantas pragas e ter-lhe pregado uns sustos nocturnos para chegar à conclusão que a abordagem teria de ser outra.
E foi assim que descobri uso para uma folha de serrote velha. Com os dentes da dita virados para cima à acompanhar a bordadura da manjedoura o assunto resolveu-se de uma só vez.
Depois de ter desistido da manjedoura, o iluminado animal começou a dormir então no ninho onde todas põem os respectivos ovos - apoiada na sua extremidade com a cabeça para fora e com a cauda mesmo a apontar para o centro do ninho. A natureza trata do resto e de manhã há sempre um contribuinte que passa a limpar o estrago. Há coisas que nunca mudam.
Uma outra, a da crista torta, ficou choca pela primeira vez no ano passado. Desapareceu durante quase um mês. O esconderijo que escolheu foram uns loureiros que fazem de sebe num canto ligeiramente desnivelado. As cores da bicha e do piso coincidiam na perfeição e a camuflagem foi perfeita. Não fossem alguns os ovos terem rebolado encosta abaixo e não a teria descoberto.
Para alívio das almas veganas feministas estas galinhas nunca coabitaram com nenhum galo. Não por nenhum motivo histérico-existencial mas apenas porque os galos acordam os donos muito cedo e durante as luas cheias passam a noite a anunciar falsos nascer do sol. São por isso uma má companhia. Em consequência disto, os ovos cá de casa não são fecundados, ou como vulgarmente se diz, não são galados.
A galinha fica choca segundo um processo em que a natureza ignora os devaneios das almas veganas. Durante quatro semanas ou mais, elas ficam recolhidas e agachadas sobre os ovos. Apenas dia-sim dia-não abandonam o posto para irem comer e beber, e logo rapidamente regressam ao seu ninho. São as hormonas ao serviço da procriação.
Nesta altura faz sentido, e não tendo ovos galados, pedir ovos a um vizinho. Foi o que fiz este ano quando voltou a estar choca. A combinação foi feita com um criador aficionado que é detentor de diferentes variedades de galináceos e os ovos foram por isso uma misturada de cores.
Dos sete ovos que coloquei debaixo da galinha nasceram quatro pintos. Dois pretos de pescoço pelado, um branco minúsculo e um malhado, bem maior e de penas arrepiadas. É uma família verdadeiramente multi-racial.
Um dos pintos pretos apareceu morto de manhã, no quarto ou quinto dia de vida. Os outros têm-se aguentado. Como é habitual, e fazendo jus à sabedoria popular, quando ocorre alguma altercação nos arredores todos eles, coitados, correm para debaixo das asas da galinha. É também lá que dormem.
Estão agora com cerca de três semanas e já quase não cabem debaixo da mãe. Já fazem longos passeios pelas redondezas e já aprenderam a esgravatar com as patas e em seguida a penicar o chão.
Segundo indicações de entendidos, é através do seu apêndice caudal que, nesta idade, se distinguem os machos das fêmeas. A confirmar-se a teoria, o grande malhado de penas arrepiadas é macho e não chegará a galo. Lá para o final do verão já dá para assar na brasa. O mais pequeno branco e o preto careca parecem ser fêmeas e assim poderão ficar para pôr ovos, embora isso ainda seja incerto.
A minha avó mantinha as galinhas poedeiras até serem muito velhas. Estas aves são sempre secas de carnes e dão um fraco petisco. Quando são mesmo muito velhas esse efeito ainda se acentua e só servem mesmo para fazer canja mas têm de ser cozidas durante muito tempo. A minha avó, que era entendida em muitas coisas e também em cozer galinhas velhas, tinha uma técnica especial. Acrescentava uma rolha de cortiça à agua da cozedura e o bicho ficava comestível mais rapidamente. Era uma boa forma de poupar lenha.
De cada vez que alguma galinha deixava de pôr, o comentário era sempre o mesmo: “Esta já só lá vai com a rolha”. Com o tempo isso acabou por ser uma forma de se referir a alguém de idade avançada. Lembro-me do meu pai, numa risada, usar exactamente essa expressão nas eleições legislativas de 2009 que opuseram Manuela Ferreira Leite a José Sócrates.
Além de outras coisas, faço parte da gerência de um negócio familiar que se encaixa no que se costuma designar comércio local.
Teoricamente, o comércio é a intermediação de mercadorias realizada para suprir necessidades. Mas para além disso permite uma relação com o público que, sempre foi e sempre será, uma permanente escola sobre a natureza humana. Estes dias têm acrescentado novos capítulos ao extenso compêndio de um negócio que tem as portas abertas desde 1973.
Desde sábado, dia 14 de março, que alterámos o normal funcionamento. Os clientes são atendidos na rua através do gradeamento, o estacionamento no nosso parque não é permitido e toda a nossa equipa atende de máscara e luvas. De forma a salvaguardar a integridade dos nossos clientes, muitos dos quais pertencem ao chamado grupo de risco, assumimos os custos das entregas ao domicílio. Certamente que esta semana voltarei a ultrapassar a fasquia das 60 horas.
Do lado de dentro do balcão todos partilhamos a responsabilidade para com o público. Estamos conscientes de que vivemos dias realmente especiais e que alguns dos artigos que transaccionamos não podem faltar a quem os procura. Refiro-me especificamente ao gás engarrafado e a rações para animais, domésticos e de companhia.
Como o gás nas cidades é canalizado e os animais das marquises comem do supermercado, este tipo de artigos nunca são incluídos nos serviços mínimos referidos pelos media o que, considerando o seu limitado ângulo de observação da realidade, não surpreende.
A campanha “militar” contra o vírus ainda está a começar. A guerra vai ser longa, e a estatística avisa-nos que alguns de nós não celebrarão o dia da vitória. Por isso, tal como numa maratona, a solução resume-se a colocar um pé à frente do outro. E não parar.
Amanhã continuamos.
PS: Só hoje, à hora de almoço, é que consegui colocar a bandeira em cima do letreiro.
Já ouvimos aqui e ali que as autoridades monitorizam o consumo de cocaína a partir dos efluentes urbanos. Quer isso dizer - surpresa!! - que as substâncias que ingerimos depois de circularem dentro do nosso organismo acabam por ser devolvidas ao meio ambiente.
É fácil entender que também os banais paracetamóis, ibuprofenos e demais medicamentos para gripes, digestões difíceis, irritações da garganta, depressões, ou até quimioterapia ingerida ou injectada, levam a que ocorra a libertação de parte destes compostos químicos nos efluentes urbanos e por aí regressam à natureza.
Os puristas dos alimentos bio, macrobióticos e outras variantes e tendências, que já deixei de me esforçar por memorizar, ainda não se lembraram de se manifestaram contra esta forma de “poluição”.
A conservação da natureza é determinante e deve ser permanentemente considerada em toda a actividade humana. Apesar disso, qualquer posição equilibrada sobre este assuntos tem de partir de uma base de que a poluição óptima não é nula.
É claro que cada um de nós poderá defender um ponto de equilíbrio diferente para o binómio sustentabilidade/bem estar. Até que as dores ou doenças nos aflijam, ou aos nossos, é muito mais fácil ser purista.
Toda esta introdução para fazer um paralelismo com a produção agrícola.
No tempo em que o meu pai era criança os anos de míldio eram anos de dificuldades. Outra forma de relatar este facto era como sendo anos em que havia pouca fartura, mas no fundo isto não são mais que metáforas para dizer que eram anos de fome.
Quando se plantava uma saca de batata e no dia da colheita se colhiam apenas três ou quatro, em vez das trinta ou quarenta potenciais, o regresso a casa era triste e cinzento.
As famílias eram numerosas e as mais de setecentas refeições previstas num ano exigiam colheitas generosas. Ratear poucos ingredientes para muitas refeições a servir a muitas bocas de crianças e jovens em crescimento, que não passavam o dia imóveis agarrados a écrans, era um exercício difícil e ingrato.
Olhando a partir de hoje, com as prateleiras dos supermercados cheias, pode parecer estranho mas a introdução da cultura do milho, cereal muito mais produtivo que o centeio, teve como consequência um aumento da população. A história do vinho verde também está ligada a esta revolução agrícola, mas isso são contas de outro rosário.
Os pesticidas, agora designados tecnicamente como produtos fitofármacos, foram e são os medicamentos que se administram às plantas e que previnem este exercício ingrato de ouvir os filhos a pedir comida e não a ter para lhe dar.
A nossa geografia, exposta à humidade atlântica, é excepcionalmente propícia ao aparecimento de míldio e de outros fungos que apreciam humidade e temperaturas amenas. Os fungicidas, introduzidos há muitas décadas, foram a solução para travar fomes como a Grande Fome na Irlanda, que deixou atrás de si um país arrasado.
Numa economia aberta como a nossa, os anos de míldio deixaram há muito de serem anos de fome. Nos anos de fraca produção nacional as batatas aparecem igualmente cruas, empacotadas já fritas ou processadas em puré instantâneo no supermercado, ou cozidas sob um fio de azeite no restaurante da esquina. A globalização anulou o binómio míldio/carência alimentar.
Para quem nunca soube, ou já esqueceu, da realidade que aqui descrevo é fácil concordar com o mantra de que os pesticidas são a origem de todos os males. As doenças que não conseguimos controlar (que são apenas um ínfimo número das com que já lidamos na história) são o resultado dos pesticidas com que envenenamos os alimentos e o ambiente.
Como referi acima, a poluição óptima não é nula, assim como o uso de medicamentos óptimo não é nulo e também o uso de pesticidas óptimo não é nulo.
É natural que o crescimento exponencial da população humana em curso leve a uma maior procura de alimentos. A forma de travar a conquista de mais áreas, agora selvagens e não cultivadas, passa por aumentar a produtividade dos solos actualmente dedicados à agricultura. Só maximizando a produção de cada parcela permitirá que o natural aumento da procura global de alimentos não tenha como consequência um aumento das áreas dedicadas à agricultura.
Podemos por isso dizer que a conservação dos espaços naturais depende da produtividade agrícola com base cientifica, e por isso do uso dos pesticidas.
As vindimas acabaram há poucos dias. Os cestos já foram lavados e o vinho já está na curtimenta. Basta agora esperar pelo dia de São Martinho para as provas oficiais.
A quantidade foi mediana e as medições do álcool estimado foram generosas, ultrapassando em diversos lotes, nomeadamente de Touriga Nacional, os 14 graus. Estes valores fazem repetir a frase que descreve as uvas de bom grau e que só se ouve em alguns anos: Até se colam aos dedos!
Além da solenidade que é colher o resultado de mais um ciclo das plantas, a vindima tem também uma importância cultural, social e familiar.
Nos tempos em que beber vinho era dar o pão a mais de um milhão de portugueses, a vindima era um acontecimento vivido com muita intensidade no mundo rural.
Havia trabalho para todos até para as crianças. Cortar os cachos para dentro de um balde era tarefa para as mulheres e para os mais novos. Os adolescentes e jovens adultos recolhiam o conteúdo de vários baldes para os poceiros que acartavam ao ombro para as tinas de madeira colocadas em cima dos carros de bois. Os poceiros eram feitos em madeira e com aduelas metálicas, o que fazia deles tão pesados como o conteúdo, especialmente quando ficavam molhados. A aduela do fundo deixava profundas marcas nos ombros mal protegidos por um saco de serapilheira colocado a tiracolo.
O meu avô materno era tanoeiro e isso duplicava a importância da vindima. Além da produção do vinho recebia as encomendas de pipos, tinas, celhas, poceiros e baldes. O trabalho começava vários meses antes da vindima.
Quando chovia no inicio de Outono os caminhos ficavam muito difíceis. Segundo alguns relatos o clima no tempo do Estado Novo era incrivelmente pontual. As parelhas de bois lutavam com o peso das tinas em cima dos rodados de madeira, que rodavam num eixo do mesmo material. Para reduzir a fricção entre a roda e eixo usavam-se borras de azeite que eram transportadas dentro do corno oco de um bovino morto há muito. A lama espessa parecia não querer deixar que as uvas chegassem ao lagar e ninguém sabia se eram mais difíceis as subidas ou as descidas. Guiar uma parelha de bois era uma tarefa exigente. Uma lesão numa pata de um animal equivalia ao seu abate com o respectivo prejuízo patrimonial. Em compensação pelo esforço, os bichos recebiam um pequeno alento. Nestes dias exigentes eram alimentados com a melhor ração disponível e que consistia nos crutos de milho. As extremidades desta planta eram consideradas as mais nutritivas e por isso eram separadas, secas nas eiras e guardadas para a vindima. Quando a repetida passagem das rodas afundava os buracos ao ponto de poder assentar o eixo do carro ou partir um rodado, enchiam-se as covas com molhos de vides, que mais não eram que sobras das podas.
Chegar ao lagar era um alívio para os bois, mas não para os agricultores. Estava na hora despejar as tinas à forquilhada para as rampas que desciam até ao lagar. A nossa arquitetura rural era determinada por este processo. No piso térreo, ao lado da porta onde deve caber um carro de bois, existe sempre uma janela em frente ao lagar. Era construída na altura certa para permitir descarregar as uvas da grande tina de madeira, rampa abaixo, até ao esmagador que se encontra já dentro do lagar.
Tina após tina o lagar vai enchendo até chegar o momento em que as uvas, já esmagadas, vão ser pisadas.
Tenho uma memória muito antiga de participar neste processo com o meu avô paterno e outros senhores já velhotes como ele. Lembro-me da solenidade com que as coisas eram feitas. Nos dias anteriores tudo era cuidadosamente lavado. As ferramentas, as tinas, o lagar, os depósitos e os restantes recipientes. Tudo tinha de estar imaculado para o grande dia.
Já com o lagar cheio de uvas esmagadas, arregaçavam as calças, lavavam os pés e benziam-se. Um ano de trabalho e esforço seria agora materializado, o que não era coisa pouca. Se alguma coisa corresse mal tudo poderia ser perdido e isso justificava fazer o sinal da cruz. Se durante a Eucaristia, na consagração, o sacerdote levanta o cálice com vinho e apresenta a oferenda dizendo “Fruto da terra e do trabalho do homem”, e se depois disso o transforma no sangue de Cristo, então Cristo pode ser invocado quando o vinho está a ser feito. Se fazer vinho não é uma coisa solene, então o que é que é solene?
Lembro-me também do doce cheiro das uvas esmagadas que invadia todos os recantos da adega e da cor tinta que corava as pernas dos agricultores, pálidas de nunca verem o sol. Lembro-me também de provar o doce sumo de uva ainda não fermentado e por isso ainda não alcoólico. Algum era logo retirado na bica do lagar para mais tarde se misturar com aguardente vínica e fazer vinho abafado, a panaceia das constipações.
Quando o vinho era abundante tinha pouco valor comercial. A oferta e procura assim o determinava, e nem a socialista Constituição de 76 se atreveu a revogar essa lei.
Muito vinho barato equivalia a mais consumo e mais consumo equivalia a mais bebedeiras. Todas as terras tinham meia dúzia de bêbados crónicos e mais uns quantos mal disfarçados. O alcoolismo nestes meios sempre andou de mão dada com a pobreza e com a miséria. Tal como o ovo e a galinha não se sabe qual deles iniciou o ciclo.
O ónus social existia mas desde que o bêbado não fosse mal educado nunca seria proscrito. Eram dignos de dó, lamentava-se a falta de sorte dos desvalidos filhos que por caridade eram alimentados pelos vizinhos e às vezes vestidos com os raros restos das outras crianças.
Nesses anos de especial abundância, os consumidores mais compulsivos desculpavam-se com o pecado que seria desperdiçar a dádiva divina que é o vinho. E quem é que se atrevia a argumentar contra tal elaboração teológica?
Algumas destas figuras, assim como as suas frases características, são ainda hoje recordadas. É curioso como tem uma presença muito mais efectiva na memória colectiva do que a dos homens sóbrios, que são apenas lembrados pelos seus familiares directos. Será que isso acontece porque os bêbados quando etilizados exerciam a liberdade de mostrar na rua o que lhes ia na alma? Será que os outros, os que bebiam com moderação, quando morreram, a memória pública do que eram diluíu-se com a de todos os outros que bebiam responsavelmente?
Apesar de a tradição vitivinícola remontar por aqui aos tempos romanos a região nunca teve identidade que lhe permitisse ser uma região demarcada. Nos primeiros anos da PAC, após a adesão à CEE, esta estreita faixa de terreno entre a costa e a Serra dos Candeeiros foi destinada à fruticultura. A Maçã de Alcobaça é a marca de referência e reúne a produção de pequenos e médios produtores dos concelhos a sul de Alcobaça até aqui ao de Porto de Mós. Em resultado desta especialização na maçã e na pêra rocha, a vinha perdeu importância comercial. Apesar disso, as pequenas vinhas continuam a existir. Alguma produção é ainda entregue às adegas cooperativas da Batalha e de Alcobaça. O valor comercial deste vinho, classificado como corrente, é reduzido e insuficiente para remunerar condignamente o esforço e empenho necessário à sua produção. As cooperativas apelam à substituição de castas como forma de valorizar o produto final mas o investimento não é aliciante até pela elevada idade dos produtores.
Além desta trajectória descendente junta-se o cerco fiscal. A Autoridade Tributária exige que cada sócio da cooperativa declare esta actividade junto da Repartição de Finanças.
Num universo maioritariamente constituído por reformados com pensões de baixo valor, o receio de ter de começar a pagar IRS leva a que se abandone este magro complemento de rendimento. As cooperativas terão dados rigorosos sobre os valores desta realidade mas baseado-me em algumas conversas posso avançar que estamos a falar de rendimentos máximos de 600€ por ano, entregues mais de um ano após a colheita. É em casos destes que percebemos quão forte um governo consegue ser perante os fracos. Noutros palcos encolhe-se respeitosamente.
Apesar disso existem algumas vinhas novas com castas de renome e algumas até importadas. A produção continua destinada a consumo próprio e pontualmente é vendido a conhecidos. Há dias comprei um garrafão de tinto daqueles que mesmo com o rótulo rasgado deu para reconhecer que era de água do supermercado. Cinco litros por 5,50€. Nunca poderia passar por vinho de enólogo mas sabe àquilo que é, a vinho corrente, razoavelmente honesto, feito com teimosia, com um forte aroma a homenagem aos tempos em que as uvas viajavam nos carros de bois e com ligeiras notas de desafio ao Ministro das Finanças. Uma combinação perfeita.
As quatro últimas fotos apresentadas foram tiradas por mim na vindima de 2008. Todos os intervenientes directos dessa vindima já faleceram.
Hoje vou falar-vos de oliveiras. As galinhas podem esperar.
As oliveiras aqui do sopé da Serra dos Candeeiros são maioritariamente da variedade galega. Tradicionalmente estas árvores eram de grande porte, com cinco ou seis metros de altura e oito ou dez de diâmetro. Noutros tempos, em que a mão de obra era jovem e abundante, subir a essas alturas não era um problema, mas com o passar dos anos, e com a mudança etária que o mundo rural sofreu, os acidentes na apanha da azeitona começaram a ser um tema incontornável. Todos os anos pelo menos uma pessoa conhecida sofria um acidente grave ao cair de uma oliveira e, pouco a pouco, as árvores foram sendo 'derrotadas' com podas mais curtas tornando-se mais baixas e, por vezes, até desproporcionalmente largas.
Além da questão da segurança, a oliveira tem de ser podada para não ficar com o seu interior muito cerrado. A planta esforça-se muito mais para manter toda aquela vegetação e isso reduz a sua produção. Além disso, uma oliveira muito fechada complica muito a apanha da azeitona. O ano que se segue a uma destas podas é sempre menos produtivo, mas a prazo é uma boa opção.
As ovelhas entregam-se com afinco às sobras destas podas e rapidamente fazem desaparecer todas as folhas. É um ciclo perfeito. O excesso aparentemente inútil das oliveiras transforma-se em alimento. Sobram ainda os ramos que, agora despidos de folhas, servem para atear o forno, e até que esse dia chegue são um poiso muito apreciado pelas galinhas para pernoita.
A apanha da azeitona é naturalmente um momento especial para os olivicultores. É o inicio da última fase de vários meses de trabalho, e que só termina quando se vai buscar o azeite ao lagar.
O minifúndio, que aqui é maioritário, permite que em poucos dias se resolva o assunto e, mesmo para os menos idosos que ainda trabalham, é vulgar guardarem-se uns dias de férias para esta altura do ano.
Não conheço por aqui quem subsista exclusivamente da produção de azeite. Esporadicamente poderá ser um complemento de rendimento, mas na maioria das vezes é apenas uma forma de ter azeite caseiro suficiente para gastar todo o ano e para dar à família e amigos. É também uma forma de pagamento a quem, que não sendo da família, tenha ajudado na apanha.
Normalmente a colheita é também o motivo, não menos importante, para reunir a família. Existe uma forte vertente pessoal e familiar em tudo isto. A relação com o olival é alimentada por uma mistura de posse do território com homenagem a quem o planeou e concretizou. Manter um olival é manter um espaço, as suas plantas e o propósito que foi concretizado há muitas décadas atrás pelos pais ou avós.
Mesmo que não conscientemente, quando se planta um olival, se cuida dele com a ajuda dos filhos, irmãos e outros familiares está-se também a passar uma mensagem e a consubstanciar uma intenção.
O azeite produzido desta forma tradicional e tão pessoal fica muito mais dispendioso do que o que se consegue com métodos intensivos e muito mais profissionais. Tem havido diversas mudanças no enquadramento legal de toda esta actividade e no geral todas têm reforçado as vantagens do efeito de escala conseguido pelas explorações intensivas.
Em abstracto os subsídios agrícolas irritam-me, mas o maior subsídio que se poderia dar a este tipo de agricultura era não lhe complicar mais a vida. Um olival tradicional pode durar muitos mais anos que a idade do actual regime político somada à do anterior. Mas mesmo assim há sempre mais uma norma emanada pelo ministro de turno, porque agora é que se vão resolver os problemas e enriquecer os agricultores. Nisto sinto-me especialmente liberal. Não mudem mais regras porque isso é, demasiadas vezes, o melhor que um governo pode dar ao seu país.
Apesar de tudo isto ainda vai havendo quem insista em manter esta tradição, e este ano adivinha-se mais produção que no ano passado.