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Delito de Opinião

Pintores sem prazo de validade

Pedro Correia, 02.07.24

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Os Mosaicos de Cluny, serigrafia de Manuel Cargaleiro (1992) 

 

«Leva muito tempo tornarmo-nos jovens.»

Picasso

 

Sempre me questionei sobre o motivo da longevidade dos pintores, muito superior à de escritores e músicos, e apenas equiparável à dos arquitectos. A chave dessa incógnita pode estar na frase de Picasso que cito em epígrafe: o pintor tem uma relação única não só com o espaço mas também com o tempo.

Aí estão, para demonstrar esta tese, Judith Lauand (que morreu aos 100 anos), Cruzeiro Seixas (99 anos), Georgia O'Keeffe (98 anos), Albert Bertelsen (98 anos), Marc Chagall (97 anos), Maria Keil (97 anos), Oskar Kokoschka (94 anos), Abel Manta (93 anos), Júlio Resende (93 anos), Nadir Afonso (93 anos), Alfredo Volpi (92 anos), Willem de Kooning (92 anos), Leon Kossoff (92 anos), Júlio Pomar (92 anos), Ticiano (91 anos), Kees van Dongen (91 anos), Pablo Picasso (91 anos), Andrew Wyeth (91 anos), Fernando Botero (91 anos), Joan Miró (90 anos), Victor Vasarely (90 anos), Giorgio de Chirico (90 anos), Querubim Lapa (90 anos), Victor Pasmore (89 anos), Robert Indiana (89 anos), Nikias Skapinakis (89 anos), Miguel Ângelo (88 anos), Emil Nolde (88 anos), Dórdio Gomes (88 anos), Lucian Freud (88 anos), Fernando Lanhas (88 anos), Antoni Tàpies (88 anos), Árpád Szenes (87 anos), Henrique Medina (87 anos), Emilio Vedova (87 anos), Frans Hals (86 anos), Jean-Auguste Ingres (86 anos), Claude Monet (86 anos), Tarsila do Amaral (86 anos), Carybé (86 anos), Carlos Calvet (86 anos), Max Ernst (85 anos), Eduardo Viana (85 anos), Henri Matisse (84 anos), Edward Hopper (84 anos), Norman Rockwell (84 anos), Sarah Afonso (84 anos), Salvador Dalí (84 anos), Thomaz de Mello (84 anos), Edgar Degas (83 anos), Jean Dubuffet (83 anos), Jean Hélion (83 anos), Maria Helena Vieira da Silva (83 anos), Francesco Albani (82 anos), Francisco de Goya (82 anos), Carlos Botelho (82 anos), Francis Bacon (82 anos), George Stubbs (81 anos), Benjamin West (81 anos), Veloso Salgado (81 anos), Georges Braque (81 anos), Marcel Duchamp (81 anos), Júlio Reis Pereira (81 anos), Rolando Sá Nogueira (81 anos), Donatello (80 anos), Francesco Guardi (80 anos), Jean-Baptiste Chardin (80 anos), Edvard Munch (80 anos), Roman Opalka (80 anos), Pierre Bonnard (79 anos), Jean-Baptiste Corot (78 anos), Pierre-Auguste Renoir (78 anos), Wassily Kadinsky (78 anos), José Malhoa (78 anos), Jacques-Louis David (77 anos) e Almada Negreiros (77 anos).

Ou, entre os vivos, João Abel Manta (96 anos), Arnulf Rainer (94 anos), Jasper Johns (94 anos) e Frank Auerbach (93 anos).

 

Lembrei-me disto ao saber que Manuel Cargaleiro morreu a 30 de Junho, em total serenidade, «como se tivesse adormecido» para cruzar a noite rumo à eternidade. Também ele demorou a tornar-se jovem.

Ei-lo imune enfim à erosão do tempo. Com a idade exacta da sua arte.

Sempre igual, sempre por achar

Pedro Correia, 20.06.24

Ouço repetir que não se deve regressar a um sítio onde se foi feliz. Nada mais errado. Pelo contrário, devemos voltar aos locais onde vivemos instantes de felicidade. Necessitamos como de pão para a boca deste ritual - as mesmas caras, as mesmas vozes, os mesmos odores, as mesmas paisagens. Um banho lustral que nos devolve à essência da vida, feita de contínuos recomeços.

Devemos voltar sempre, reeditando o exemplo de Ulisses no ansiado regresso a Ítaca: sempre igual, sempre por achar.

Lição de vida

Pedro Correia, 03.03.24

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No Monólogo do Vaqueiro, primeira peça exibida na RTP (1957)

 

«A morte é certa, não vale a pena estar a pensar nela. Vivam a vida, vivam, vivam, vivam, vivam e saibam o que fazer com a liberdade. A liberdade é uma coisa muito bonita -- e a democracia também.»

Ruy de Carvalho, anteontem, no dia em que festejou 97 anos. Em palco, como ele mais gosta. Parabéns!

Trocar o real pelo digital

Não há democracia verdadeira sem comércio de bairro

Pedro Correia, 03.04.23

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A relação cada vez mais desumanizada das pessoas com o espaço onde moram, sobretudo nas grandes cidades, acentua-se à medida que nelas proliferam os estafetas para todo-o-serviço. Gente que vem de fora, muitas vezes oriunda das periferias mais precárias de Bombaim, Calcutá, Daca, Catmandu ou Carachi, assegura a relação entre o comércio e os domicílios burgueses que por cá vão restando. A pandemia afugentou muitos de nós das ruas - alguns, mais velhos ou mais propensos à solidão, encerram-se quase como reclusos nos domicílios. Enquanto o pequeno comércio de bairro, tantas vezes pedra angular das relações de proximidade, encerra a um ritmo galopante neste país em que todos os dias há 14 restaurantes a fechar de vez

Dominam as "grandes plataformas" impessoais, sem rosto nem nome, manobradas do estrangeiro. Instauram um mandamento dos novos tempos: tudo deve processar-se por via digital. O que era outrora cenário distópico torna-se realidade. E muitos de nós somos coniventes, talvez convictos de que embarcamos na última carruagem de um admirável mundo novo. O mundo em que um paquistanês sem identidade, igual a qualquer outro, acaba por ser um dos nossos raros pontos de contacto com a rua.

 

Não vejo "progresso" algum nisto: só vislumbro retrocesso. Proletarização da sociedade, precarização dos laços humanos, troca do real que agrega pelo digital que segrega.

Daí aplaudir quem rema contra a corrente. Pessoas como o Henrique Raposo, que escreve estas admiráveis linhas na mais recente edição do Expresso:

«O declínio do comércio local não é apenas um problema do Excel da economia e do Estado, é um problema social no sentido mais profundo da palavra "social": o que está em causa é a própria ideia de sociedade que é feita no dia-a-dia na rua. Se compram tudo online, as pessoas estão a matar-se enquanto "vizinhos" da rua, estão a definir-se apenas como "consumidores" do mercado e como "contribuintes" do Estado. Eu não vivo nem do mercado nem no Estado, dois meros instrumentos; eu vivo na minha rua. Quando valorizam apenas o comércio online ou as grandes superfícies comerciais, essas naves espaciais que sugam a energia das cidades, a cultura e a política do nosso tempo estão mesmo a matar o velho conceito de bairro. E sem o bairro tocquevilliano não há democracia nem na América nem na Europa. Ou seja, a desmaterialização do comércio também é a desmaterialização da democracia. Ruas sem lojas e cafés de pequenos proprietários são ruas inseguras, para começar, e tristes, para acabar. Ou não se pode falar com os vizinhos porque há medo ou porque há uma enorme aridez e solidão.»

Assino por baixo.

Seis amigos bastam

Pedro Correia, 15.03.23

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Faz hoje oito dias, jantei com dois amigos. Um deles, não o via há anos. Enquanto partilhávamos petiscos nepaleses e um bom tinto do Douro desfiando risonhas reminiscências do século passado, aquele que agora reencontrei ia narrando episódios rocambolescos da sua vida fragmentada em quatro continentes. Cada qual daria um filme, cada qual rematado por uma frase sábia. Anoto aqui uma delas: «Cada homem só precisa de ter seis amigos a sério na vida, é quanto basta para saber que haverá quem lhe transporte o caixão.»

Metáfora, claro. Mas que toca num ponto essencial. Contrariando o que se proclama agora por aí, em patéticos concursos de popularidade nas redes, medição de pilinhas a pretexto de contabilizar amizades que logo se "desamigam" como quem troca de camisa. Tudo espuma ilusória, falso brilho de pechisbeque social.

Não precisamos de muitos amigos. Ninguém tem mil amigos. Nem cem. Muitos indivíduos nem dez amigos genuínos vão reunindo na vida. Enquanto há cada vez mais gente rodeada de "amizades" virtuais que servem apenas para a partilha de frases ocas. Inúteis para aliviar o peso opressivo da solidão, cancro do mundo contemporâneo.

Seis amigos bastam. Dos verdadeiros, dos que não falham, dos que marcam presença no momento próprio - com uma palavra, um gesto, um conselho, uma memória partilhada. Se os tivermos, é sinal de que a vida já valeu a pena.

A vida real, não a existência postiça que nasce e morre num teclado.

Como se quiséssemos o sol só para nós

Pedro Correia, 01.02.23

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Queremos mudar o mundo, queremos mudar o sistema, queremos mudar a sociedade. Tudo seria mais fácil se começássemos por mudar a nossa relação com os outros. Se adquiríssemos o talento de unir o que vemos fragmentado, de congregar o que está disperso. Se soubéssemos ir ao encontro de quem nos rodeia.

Às vezes basta um gesto apaziguador, uma palavra amável, um sorriso que se rasga na face sempre sisuda. «Na superfície das coisas vê-se a essência das coisas», escreveu Saul Bellow em Ravelstein.

A sociedade, o sistema, o mundo não mudam se não começarmos por mudar também algo de essencial na nossa relação com os outros. Nos actos mais singelos do quotidiano.

Escrevo estas linhas enquanto o sol vem espreitar-me da janela: é quanto basta para sentir-me grato por este dia. Penso nos que sofrem sob o mesmo sol que me aquece e me inspira e me ilumina. E questiono-me o que poderei fazer para atenuar a angústia ou aliviar a dor de alguém. Não da Humanidade em abstracto, como me sugerem os demagogos de plantão, mas de uma pessoa em concreto.

Uma palavra, um sorriso, um gesto, um abraço, um olhar. Às vezes só isto é necessário. E somos incapazes de dar esse passo. Como se quiséssemos o sol todo só para nós.

Realidade virtualizada.

Maria Dulce Fernandes, 07.08.22

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Segundo reza a ciência,  a realidade virtual permite ver o cérebro de ratinhos a tomar decisões.
 
 I wonder…
 
Será que também funciona com bichos preguiça, ornitorrincos, avestruzes, em suma, com outros animais que não ratos? Funcionará com o animal humano ?
 
Numa altura em que tudo e todos servem para uma peça documental em qualquer TV, rádio,  jornal ou revista, em que qualquer anónimo bicho careto é assunto de entrevista ou especulação, sempre em grandes parangonas, exploradas ad nauseam, com base nas quais se fazem reportagens enredadas e rebuscadas, seria no mínimo curioso e esclarecedor ver como funciona o cérebro,  quando quem decide toma decisões.
 
Será que o hemisfério esquerdo se ilumina com as acções da direita?
 
Temos a percepção que o Lobo Temporal e o Lobo  Occipital, que coordenam a audição e a visão, devem estar com  algumas limitações. Durante bastante tempo quem decide tem estado cego e surdo às consequências das suas decisões. Talvez a terapia de choque de movimentos de massas populares possa  ajudadar e haja alguma recuperação? Aguardemos.
 
Constatamos que o Lobo Frontal, que regula a locomoção também não está em pleno funcionamento, porque quem decide, ou não se move per se, ou move-se pouco e de forma entediante e circunspecta; o mesmo pode dizer-se do Lobo Parietal e do seu papel somato-sensorial: quem não tem sentimentos nem se sente (nem sequer sei se é ou não  filho de boa gente…), pouco ou nenhum uso lhe poderá dar.
 
Se a área de Wernicke está operacional dentro do razoável e quem decide até entende o que se lhe diz, o mesmo não acontece com a área de Broca (o que, por associação de ideias com o jargão, me leva a crer que andam um bocado under  the influence), porque a produção do discurso falado é no mínimo babélica e enfadonha.
 
Uma coisa é garantida: O Lobo Pré-frontal está seriamente danificado. Senão vejamos:
 
“O lobo pré-frontal tem como funções decidir que sequências de movimento activar e em que ordem, e avaliar o seu resultado. As suas funções parecem ainda incluir o pensamento abstracto e criativo, a fluência do pensamento e da linguagem, respostas afectivas e capacidade para ligações emocionais, julgamento social, vontade e determinação para acção e atenção selectiva” in Funcionamento global do cérebro 
E está tudo dito.
 
Em dia de conhecer novas decisões, se vivêssemos numa realidade virtual e pudéssemos ver o cérebro de quem decide a tomar decisões, veríamos seguramente grande luminosidade nos lobos temporais: 
 
"Os lobos temporais são ainda determinantes para a aprendizagem e para a memória. De resto, as sensações de estarmos a passar por algo que já vivemos - o chamado déjà-vu - podem ser provocadas através de estímulos eléctricos aplicados aos lobos temporaisin Funcionamento global do cérebro.
 
Não acredito que  aqui a realidade se afigure virtual. 
Penso que seja o que for que iluminou o cérebro de quem decidiu, vai ser real e doloroso e vai criar mais descontentamento e instabilidade.
 
 
Até que ponto, não sei, temos mais uma vez de ir esperando para ver, porque o povo é sereno, mas está a ficar impaciente porque na vida todos os segundos contam e isto é um país real e não um anúncio da NOS.
 
 
(Imagem Google)

Escadas

Maria Dulce Fernandes, 31.07.22

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O meu pai costumava dizer que a vida era como uma escadaria que tínhamos de subir, degrau a degrau. Quantos revezes não nos fizeram descer um lance por cada degrau que subimos… A verdadeira sabedoria, aquela que só se adquire com o tempo e alguns trambolhões, ensina-nos duas coisas importantíssimas: para cair, basta estar de pé e cabe a cada um de nós o saber reerguer-se. Já subi e desci incontáveis escadarias, escadas e degraus. As primeiras de que tenho recordação são as da casa da minha Avó em Belém, escuras, de madeira e que rangiam debaixo dos pés de quem me transportava ao colo na subida. Depois havia as escadas que levavam ao sótão, onde a luz do sol que entrava por entre as telhas brincava alegremente nos degraus, tornando aquele lugar um reino encantado cheio de brilhos e cor. A “casa velha" da minha mãe tinha uma escadinha de pedra que desembocava num quintal ridiculamente pequeno, mas sempre florido, onde existia um tanque de pedra. Aí já subia pelo meu pé, amparada pela mão de alguém. A “casa nova” da mãe, na mesma rua, novinha a estrear, era um 3.º andar com a vista para o Tejo mais bonita que eu já vi em toda Belém. Nessas escadas, de ascensão desgastante, na subida já estava entregue a mim própria.

Os meus castelos tinham obviamente escadas, mas felizmente não tive o prazer de travar grande conhecimento com elas, tampouco fazer amizade porque ao melhor estilo “beam me up, Scotty”, subimos sem mexer os pés, naquela maravilhosa invenção da tecnologia chamada elevador, versão urbana/familiar e melhorada do fantástico Elevador de Santa Justa, obra de Mesnier de Ponsard, que nos ascende para uma vista espectacular da Baixa de Lisboa. Outras escadas houve que marcaram a minha vida, como a maravilha de “Stairway to Heaven”, dos Led Zeppelin (paixoneta habitual pelo Robert Plant), que ouvia, e ouvia, e ouvia… gratas as despreocupações de uma adolescência feliz, ou todas as escadas que povoam o expectante e inquietante imaginário dos filmes de Hitchcock. As Escadas da Bica, as Escadinhas de Alfama, o Bom Jesus, a Penha, Montmartre, a escada em caracol com quase duzentos degraus do Arco do Triunfo, e a outra espiral no Vaticano, os quase quatrocentos degraus de Notre Dame, a Piazza di Spagna…. Foi sempre a subir, degrau a degrau, e tantas vezes à beira de desistir a meio.

Subo a escada no trabalho todos os dias, tanto em termos de hierarquia, como para chegar ao andar de cima (como na anedota da galinha) – o que eu costumo dizer que vale por uma ida diária ao ginásio, por tantas serem as vezes que me obrigo degraus arriba. Subo o pequeno escadote que tenho na cozinha, para poder alcançar os apetrechos que não utilizo todos os dias, tabuleiros, formas para bolos e pudins.

Espero que, quando chegar a minha vez de enfrentar a última grande escadaria, me seja concedido o direito de a poder subir, e eu, que nessa altura não devo estar mesmo com pressa nenhuma, vou pé ante pé, devagarinho, degrau a degrau.

Festa da vida

Maria Dulce Fernandes, 27.07.22

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Não me chamem Ishmael, tampouco obcecado ou pessimista. 
Porque sempre que me ausento por breve ou prolongado período de tempo, trato de providenciar para que o meu parco património fique seguro de abutres fiscais e outros predadores que tais, em caso de acontecer um não retorno.
Porque trato de explicar os meus desejos finais, a minha última vontade sobre aquilo a que me votou o ânimo desertor. Sou eu quem determina. Sou eu quem quer assim. 
Será muito pedir respeito?
Isto não é maluquice, paranóia ou pessimismo, mas sim puro pragmatismo.
E afinal, quem manda em mim ainda sou eu, mesmo depois de deixar de o ser.
Não quero vigílias claustrofóbicas em espaços deprimentes com aquele aroma anojoso a círios e flores sem alma; não quero flores. Que desperdício de beleza sacrificar uma rosa a quem já se finou.
Não quero choros. Carpir aleivosias tornou-me intolerante a mágoas lacónicas de circunstância. O pesar, que seguramente o terá quem muito me quis, não o lavará ali com lágrimas ou escorraçará com gritos, porque é marcado na alma a ferro e fogo. Pode o tempo esbatê-lo sim, mas a memória nunca o apagará.
 
Não quero cetins ou pérolas numa caixa fechada. Não quero um buraco negro, num triste canteiro com um número sem significado, nem uma pedra de epitáfio com palavras abrigadas num acordo que não acordei, dizeres que eu não disse e que de mim só dizem aquilo que se convencionou dizer.
 
Não quero ser grande na memória dos homens; não quero ter uma estrela na terra e tornar ao pó numa colina de torrões tristes e desesperados, sem mérito nem obra.
 
 
Deixem-me voar nas asas da fénix que me levou a alma e que me espalhará junto ao braço de água que me viu nascer, o mesmo de onde partiram as naus da cruz de Cristo.
 
Cumpri.

Nasci, cresci, flori, frutifiquei. Os meus frutos deram frutos lindos e eu fui feliz. Sou feliz.

Vivi intensamente. Vivo ainda.
Jubilei com as alegrias, solucei as tristezas, sorri sempre e continuo a sorrir, grata que estou, porque estou e porque sou.
 
Não quero angústias, nem amarguras. Quero alegria, quero festa. Quero que a memória que deixo, a indelével pegada da minha breve passagem, seja a festa da vida que eu vivi. 

Três-Cinco-Cinco-Zulu-Tango-Foxtrot

Maria Dulce Fernandes, 25.07.22

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Três-Cinco-Cinco-Zulu-Tango-Foxtrot, repito, Três-Cinco-Cinco-Zulu-Tango-Foxtrot, ... zzzzzzt zzzzzt... nada, só estática, white noise, nada se propaga pelo éter nas frequências que tentei. E ainda tentei algumas com as quais me lembro  ter conseguido excelentes DX nos meus tempos áureos da Banda do Cidadão.
 
Nunca ninguém deu muito crédito às previsões apocalípticas que se vêm tornando cada vez mais frequentes à medida que o tempo passa, mas acredito que a NASA, a ESA e os chineses sabiam que a tempestade solar geomagnética iria dar cabo dos satélites, anulando todo e qualquer tipo de comunicação sem fios e atirando-nos de novo para a pré-história da globalização. Era previsível que acontecesse mais tarde ou mais cedo e os altos dignitários da informação espacial optaram por não informar do "bloqueio temporário" para não criar o caos e levar ao pânico das massas e a tragédias de proporções inimagináveis.
 
Já passaram sete meses e não acredito como não enlouqueci.
 
Felizmente há luz eléctrica à noite, mas tive de comprar um pequeno fogão a gás para cozinhar uma refeição quente diária. Só uma por dia, porque o gás está a ser racionado e eu quero que dure enquanto durar o "bloqueio temporário". Olho com tristeza para o meu tablet, companheiro de tantas horas de chats em todas as redes sociais onde estava registada... eram tantas, tantos amigos, tantos LOLs, tantos likes, tantas apps que ligavam os gadgets entre si para me manter sempre actualizada, sempre online.
Carrego-os todos à noite quando chega a luz e a primeira coisa que faço quando chego a casa é verificar se já funcionam para que eu também possa voltar a funcionar.
 
Escrevinho e guardo os meus escritos sempre na esperança que possa fazer um post ou dois no dia seguinte, ou ligar-me à rede por breves minutos, até segundos... preciso, preciso tanto de falar pelos dedos,  só eu e o meu teclado virtual e toda a world wide web onde passei metade da minha vida de adulta.
 
Pego num livro todas as noites e leio meia dúzia de páginas... ajuda à privação mas não é o bastante. Diz que o tempo também remedeia, mas não me parece para aí virado. Passa lenta e penosamente. As horas transformam-se em dias, os dias em meses e continuo à espera que acabe a provação, porque quero sentir-me viva de novo, preciso respirar a normalidade da vida que interrompi abruptamente há sete meses.
 
Sinto-me regredir, embruteci. Estou mais magra mas com algum tónus musculada e agradável de tanto subir e descer escadas com um elevador parado no rés do chão. Todos os dias trago a fruta, os legumes e a proteína que consegui arranjar na fila para a comida fresca e dou graças pela minha psicose - assim diziam - de ter uma dispensa farta. Faço dois ou três pães à noite para não estar mais outra hora na fila; leite, guardo-o em pó. Olho tristemente os meus pacotes de café em grão; são uma relíquia e tenho quatro. Tinha seis, quando começou o "bloqueio temporário". Noite sim, noite não tomo um, acabado de moer, escuro, aromático, sem açúcar. Sabe-me pela vida... 
 
Não consigo impedir as lágrimas de correr. Ainda ninguém recuperou do choque, mas a vida continua e temos de nos habituar. Temo que a situação seja para durar e que dias mais difíceis virão. O desalento deu lugar àquela força instintiva que nos impele à sobrevivência. As notícias que nos chegam com a luz à noite, são sempre animadoras... como quase sempre o foram nos últimos 15 anos, mas pelo menos ainda estamos vivos e o céu que nos cobre é a fantasia de qualquer poeta e sonho de qualquer pintor.
 
Três-Cinco-Cinco-Zulu- Tango- Foxtrot, repito, Três-Cinco-Cinco-Zulu- Tango- Foxtrot, ... zzzzzzt zzzzzt...
 
(Imagem Google)

... Difícil é saber viver

Maria Dulce Fernandes, 21.07.22

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Convido-vos a celebrar a vida, a dádiva da vida e de estar vivo, a centelha que tocou uma nano partícula de matéria, ínfima massa gasosa e criou esta base de oxigénio e carbono que somos nós, os respirantes.
 
Convido-vos a viver a vida em pleno, apesar das suas tristezas, das suas agruras, preconceitos e diferenças. A vida deve ser vivida intensamente, de cabeça erguida e sem medo, porque o medo não é apanágio dos fracos. Quem não tem medo é mofino ou pobre de espírito. É preciso saber o que é o medo, reconhecê-lho, afrontá-lo e vencê-lo. Quem diz que não tem medo de nada, não tem a noção do que diz, fala só por falar, porque não se conhece quem não tema o big grey yonder, as duas moedas que todos temos de pagar.
E se a vida não tem preço, não há nada mais precioso do que tentar vivê-la bem. Diz o povo que "não há bem que sempre dure nem mal que nunca acabe" e quantas vezes depende só de ti e da intensidade do fogo que arde na fogueira dos teus humores escrever definitivamente as três letras que terminam contendas e sofrimentos.
 
Convido-vos a aceitar a vida sem contudo nos vergarmos a ela e ao seu peso. A vida é selvagem, terá de ser enfrentada, ensinada, domada, domesticada. Tu e a tua vida têm uma relação simbiótica de dependência e entendimento.
Agarra-te a ela, monta-a em pelo, segura-a pelas crinas, deixa-a escoicear e pular e tentar arrancar-te dela. Sê forte e paciente, porque chegará uma altura em que a vida entenderá que é tua e que sem ti é só um enorme vazio.

O Superpoder

Maria Dulce Fernandes, 26.03.22

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Será ingenuidade acreditar em magia? Como seria acordar numa manhã cinzenta e fria, igual a tantas outras e descobrir que se tem superpoderes? Olhar a minha mão, a mesma que me acompanhou a vida inteira, e descobrir que com um simples  mover do pulso  conseguiria  corrupiar objectos, fazer música no ar com o sopro que atravessa a fresta da janela, que, semicerrada me sorriria, como se nos víssemos pela primeira vez em vinte anos?

Como seria sentir aquela excitação pueril e travessa de rodopiar pela sala sem tocar no chão, com uma leveza tão imprópria do peso que me sustenta e sentar-me num sofá que voaria veloz e travaria  bruscamente como se me quisesse dizer que o acordar seria sublime?

Mas eu estaria tão desperta, tão ágil como nunca estivera até então. Os sentidos enredar-se-iam em teias de sons, aromas e toques de veludo gasoso e sensual. Ouviria o som azul, aspiraria a cor verde, tocaria em carmesim e docemente nas partículas vácuas do espaço vazio tão cheio de mim.

Faria o caminho que há décadas ensinei aos meus pés num suave deslizar de relva sinfónica, líquida e imparável, passando por tantas caras estranhas que me olhavam mas não me viam .

Olhem para mim, que faço esta sublime magia! Vejam! Diria. Mas do vazio apenas teria mais vazio como retorno.

No fundo saberia. Teria que saber. Viver é um superpoder. Não há outra magia, magia maior do que viver e deixar viver.

Como seria segurar a vida nas mãos e ensiná-la a viver? 

Como seria acordar numa manhã cinzenta e fria, igual a tantas outras e descobrir que se morreu sem sequer se ter vivido?

Um dia mortos

Pedro Correia, 31.12.21

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Um dia mortos, gastos voltaremos
A viver livres como os animais
E mesmo tão cansados floriremos
Irmãos vivos do mar e dos pinhais.

O vento levará os mil cansaços
Dos gestos agitados, irreais
E há-de voltar aos nossos membros lassos
A leve rapidez dos animais.

Só então poderemos caminhar
Através do mistério que se embala
No verde dos pinhais, na voz do mar
E em nós germinará a sua fala.

 

Sophia de Mello Breyner Andresen, Dia do Mar (1947)

Ponteiros trocados

Pedro Correia, 12.11.21

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Mudou a hora. Passamos a reger-nos pela chamada "hora de Inverno". Mas Inverno porquê se ainda estamos em pleno Outono? E mudar a hora porquê se agora começa a anoitecer às 17.30, o que contribui para acentuar um clima depressivo que a própria época do ano já propicia?

Segundo os especialistas que estiveram na origem desta directiva da Comissão Europeia - que Portugal vem seguindo após um período de incerteza - a medida permite às famílias poupar cerca de 5% em energia eléctrica, havendo um benefício para as empresas em cerca de 3%. São as habituais contas dos teóricos que se regem apenas pelos princípios gerais da contabilidade sem saber aplicá-la a situações concretas: o que eventualmente se poupa em consumo energético logo se gasta em consumo de ansiolíticos e antidepressivos, consultas psiquiátricas e absentismo laboral.

Um estudo realizado em Espanha - país que alinha o seu "horário de Inverno" pelo da Alemanha, como se não houvesse quase dois mil quilómetros de distância entre Madrid e Berlim - permite concluir que 56% dos trabalhadores sofre «algum transtorno» com este atraso dos ponteiros do relógio. Uns queixam-se de insónias, outros de falta de concentração. Uma clara maioria acusa sintomas de acrescido cansaço, com bruscas alterações de humor.

Há aqui um problema de fundo: a progressiva falta de correspondência entre o período de trabalho regular e a hora solar. Cada vez se trabalha mais tempo em horário nocturno real. Entretanto, nada mais absurdo do que esta permanente obsessão dos burocratas europeus em gerir ínfimas parcelas do nosso quotidiano com directizes traçadas a régua e esquadro no sossego dos seus gabinetes alcatifados, indiferentes ao pulsar da rua. O mesmo é dizer: indiferentes ao pulsar da vida.

O futuro já não é o que era

Pedro Correia, 20.05.21

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O futuro já não é o que era. Houve tempos em que vender ilusões sobre o dia de amanhã era receita garantida de sucesso e a futurologia quase chegou a atingir o patamar reservado às mais respeitáveis ciências. Houve tempos em que se acreditava que o futuro só podia ser melhor. E não é preciso recuar muito no calendário. Em 1970, Alvin Toffler – ex-editor da revista Fortune – alcançou fama planetária com um best seller intitulado O Choque do Futuro em que antevia dias radiosos, marcados por uma intensa mobilidade social e laboral, produção de bens em larga escala e muitas horas de lazer, centradas nas delícias da sociedade de consumo.

Esses dias parecem-nos hoje estranhamente remotos e estas profecias optimistas parecem-nos hoje totalmente deslocadas. A fé inabalável no progresso humano que caracterizou as décadas imediatas do pós-guerra justificaram milhares de textos recheados de optimismo que agora só nos parecem péssima literatura.

 

Em 1950, havia a crença generalizada de que por volta do ano 2000 os robots substituiriam o homem na maior parte das tarefas mecanizadas. Em 1960, o físico norte-americano Gerald Feinberg, da Universidade de Columbia, previu que na passagem do milénio nasceria o primeiro bebé num planeta artificial.

A crença cega em ilimitados recursos financeiros ao serviço da inovação tecnológica levou várias mentes brilhantes a acertar totalmente ao lado. Na década de 60, Wernher von Braun, um dos pioneiros do espaço, admitiu que por volta de 1984 se fundaria a primeira colónia na Lua, provavelmente por iniciativa da União Soviética, e o biólogo marinho Alister Hardy, professor em Oxford, antevia na mesma época que antes do final do século haveria tractores a lavrar o fundo dos oceanos.


“Ninguém conhece a história da próxima aurora”, ensina um milenar provérbio africano. Mas o optimismo histórico da civilização ocidental levou-nos a acreditar durante demasiado tempo que era possível antever os alicerces do futuro, com a certeza antecipada de que ele seria risonho.

World Future Society [Sociedade Mundial do Futuro] chegou a congregar 60 mil membros. Em 1973 teve como orador convidado o vice-presidente Gerald Ford. Treze anos depois, uma delegação era recebida na Casa Branca pelo presidente Ronald Reagan, que lhe emprestou dignidade institucional.
Era o tempo em que o futuro estava na moda. Figuras respeitáveis anteviam um novo século com veículos “inteligentes” de transporte sem necessidade de condução, a proliferação de hotéis nas profundezas submarinas e migrações em massa de terráqueos para satélites artificiais da Terra.

 

Esse tempo terminou.

A World Future Society está hoje reduzida a 25 mil membros. Quase ninguém quer saber o que nos reservará o futuro. Pelo simples motivo de que só pode ser mau. A crença mudou de campo.

Um dia na vida

Paulo Sousa, 04.03.21

Quando estamos sob pressão, quando as coisas não correm bem e mais uma vez tomamos consciência de quão ilusório é o nosso domínio sobre as variáveis que determinam o nosso dia-a-dia, importa conseguir continuar a maravilhar-se com a magia do mundo.

Talvez devido ao momento que atravesso, foi-me especialmente agradável ver o filme editado pelo YouTube Life in a day 2020, totalmente gravado no dia 20 de Junho pelos seus utilizadores por todo o mundo, partilhando assim connosco um pouco da sua vida.

Recomendo a sua visualização.

Vivemos num mundo meio assim

Paulo Sousa, 11.01.21

Uma vez explicaram-me o ponto óptimo como sendo um valor matemático. Trata-se de um valor em que se conseguem equilibrar duas realidades com comportamentos distintos. Quantas horas demora um operário a abrir um buraco no chão? Se em vez de um, recorrermos a dois operários o buraco será feito mais rapidamente. É óbvio. Mas se aumentarmos repetidamente o número de operários chegará um momento em que nenhum se conseguirá movimentar. Então definir o ponto óptimo deste problema passa por saber até que ponto vale a pena enviar mais operários para que o buraco seja feito mais rapidamente.

Neste conceito existe uma racionalidade que podemos transportar para a nossa vida pessoal, e não só. Faz sentido procurar estes equilíbrios, embora que, em questões pessoais, cada um terá a sua própria equação de valores, estímulos e tolerâncias.

Mas não será esta procura de pontos de equilíbrio, também uma fuga aos factos e às consequências de cada escolha?

Queremos uvas sem grainha, batatas-fritas sem gordura, café sem cafeína, partos sem dor, coca-cola sem açúcar e de caminho acabamos por aceitar que os políticos digam meias-verdades e a acreditar que conseguem equilibrar as contas sem fazer cortes. Uma “leslatura” é um mandato de quatro anos, e em caso de abusos podemos recorrer à “Constuição”. Agora é assim.

No final do ano passado, juntamente com dois amigos, pude regressar à Serra da Estrela. Em meia dúzia de horas subimos pela vertente norte do vale glaciar de Alvoco da Serra até à Torre, e regressamos pela vertente sul. Chegamos ao carro ao anoitecer, o que confirmou que foi um bom plano.

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No primeiro quilómetro o gelo quase não existia, mas em poucas centenas de metros tudo mudou. Longe de se tratar de uma escalada, ganham-se mil metros de altitude em menos de três quilómetros de deslocação. Não podemos dizer que o declive seja uma meia inclinação, e o ponto de equilíbrio passa por ficar em casa. Ali a realidade é tão inteira como a manhã do dia 25 no poema de Sophia. Ali não há meias medidas, nem meias verdades, nem perguntas a que se responda: “Sei lá”!

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O frio, o vento, o ruído do vento, a luz que consegue trespassar a neblina, o gelo acumulado nos vincos da roupa, as mariolas de pedras, o peso do gelo que verga as giestas, tudo é efectivo e real.

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Vivemos num mundo onde se cortam as curvas, onde se limam as arestas e onde se sofre por antecipação da dor. Por isso é bom sair umas horas das rotinas desta vida, desta coisa em forma de assim.

Dias inteiros sempre a chover

Paulo Sousa, 17.12.20

Lembro-me de ser pequeno e ouvir com frequência queixas atormentadas com medo do fim do mundo. Os mais antigos, mais devotos e mais “tementes a Deus”, garantiam com quantos dentes tinham (e que só eram abundantes quando postiços) que se durante o dilúvio bíblico Deus tinha recorrido à água para nos castigar, da próxima vez recorreria ao fogo. Daí até à terceira guerra mundial e ao holocausto nuclear era apenas um saltinho do tamanho de um copo de abafado. Por não conseguir argumentar que a confirmar-se esse caso, talvez os comunistas cumprissem algum desígnio divino, ficava apenas com medo. O sentimento generalizado era de que antigamente é que era bom. Mesmo com a guerra e a fome nada era comparável ao Apocalipse em forma de cogumelo.

Os anos foram passando, foram assinados tratados de não proliferação nuclear, reduziu-se o arsenal do Juízo Final e finalmente pudemos respirar de alívio.

Ainda estávamos a inspirar livre e profundamente pela primeira vez, e logo começámos a ser flagelados pelas notícias do buraco no ozono. A culpa era dos aerossóis e dos gases CFC que existiam também dentro dos frigoríficos e dos ares condicionados. Sem a protecção do ozono seríamos cozinhados pelos raios ultravioleta. No melhor cenário os cientistas garantiam cancros na pele para todos, sem apelo nem perdão. O sentimento generalizado era de que antigamente é que era bom. Mesmo com a ameaça da guerra nuclear, nada era comparável a ser transformado em torresmos.

Os CFCs foram banidos e retirados do mercado e, para gáudio de toda a vida na terra, em poucos anos as medições feitas pelos satélites garantiam que o buraco do ozono estava bem menor.

Quando nos aliviámos pelo fim de mais esta ameaça, o novo fim do mundo passou a ser o efeito de estufa e o aquecimento global. Depois de uns invernos com frio de rachar, a ameaça terá ido ao registo civil e passou a chamar-se Mudanças Climatéricas e Fenómenos Extremos. Quase como que uma revelação do fim dos tempos, chegou a nevar em Évora. Era um fenómeno nunca visto em mais de cem anos. Ninguém perguntou como é que poderia ter nevado em Évora no século XIX, mas o sentimento generalizado era de que antigamente é que era bom. Pelo menos podíamos andar de carro à vontade, sem nos sentirmos culpados de cada redução de caixa para fazer uma ultrapassagem. Pior que saber que a carga fiscal de cada litro de gasolina ascendia aos 70%, era saber que íamos morrer asfixiados e cozidos a vapor.

Mais ou menos na mesma altura ainda houve tempo para aterrar o mundo com o bug do ano 2000, também conhecido pelo Y2K bug. As datas em informática tinham sido criadas numa base de seis dígitos, DDMMAA, e o ano 2000 iria ser confundido com o 1900. O cálculo de juros de um dia poderia ser transformado num século, e mesmo quem não estava endividado temia o caos que seria desencadeado pela queda dos satélites, que começariam a chover em cima das nossas cabeças, e aquilo era coisa para aleijar. Antes ser cozido a vapor do que levar com um satélite no cachaço. Fonix! 

Durante cada um destes tormentos o sentimento foi sempre de que vivíamos tempos mais ameaçadores do que os vividos no passado.

Eu acho que isto se deve a que a nossa memória de ameaças passadas seja minimizada pela ameaça presente. A ameaça actual é que é efectiva, as outras já lá vão. Tudo aponta para que, neste jogo de sobre-avaliação das dores potenciais, acabamos por não saborear devidamente as garantias do presente.

A pandemia em curso mete no bolso qualquer dos terrores de outros tempos. Nós é que estamos a sentir os efeitos e isto ainda vai piorar. O futuro nunca foi tão incerto, até porque o futuro no passado nunca se comparou ao futuro da actualidade. Além disso, a pandemia é só mais uma camada em cima das Mudanças Climatéricas. Os octogenários da minha terra garantem com quantos dentes têm (e que só continuam a ser abundantes se forem postiços) que nos invernos de antigamente chovia durante dias e dias seguidos, sem parar. Olhando para as medições pluviométricas deste início de Dezembro, as crianças que hoje frequentam a primária poderão garantir o mesmo quando também forem octogenárias. Só não sabemos se nessa altura terão ou não próteses dentárias.

A ansiedade e a incerteza matam mais que o Covid. Usufruamos pois dos pequenos prazeres, dos momentos em que não temos dores físicas, de quando nos aquecemos com um café, de quando saboreamos o sol na testa, de quando somos prendados pelos sons da natureza ou apenas pela ausência de ruído. Saboreemos a vida, em vez de sofrer por antecipação.

E não tenhamos dúvidas que, passada esta, a próxima ameaça será a mais assustadora de sempre.

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Foto de Irene Pereira tirada no Parque Natural Serra de Aire e Candeeiros a 15 de Dezembro de 2020

No silêncio, entre cadáveres

Pedro Correia, 08.12.20

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Albert Camus escreveu um dos melhores textos que conheço para uma alocução proferida em Novembro de 1948, num encontro internacional de escritores. Intitulado "O Testemunho da Liberdade", tem uma actualidade espantosa.

Esta reflexão devia constituir uma espécie de código de conduta para todos os intelectuais contemporâneos.

 

Passo a transcrever alguns trechos*:

«Os verdadeiros artistas não dão bons vencedores políticos, pois são incapazes de aceitar levianamente, ah, isso sei eu bem, a morte do adversário! Estão do lado da vida, não da morte. São os testemunhos da carne, não da lei. (...) No mundo da condenação à morte, que é o nosso, os artistas testemunham o que no homem é recusa de morrer. Inimigos de ninguém, a não ser dos carrascos! (...) Um dia virá em que todos o hão-de reconhecer e, respeitadores das nossas diferenças, os mais válidos de nós deixarão então de se dilacerar, como hoje o fazem. Hão-de reconhecer que a sua profunda vocação é a de defender até ao fim o direito dos seus adversários a não terem a mesma opinião que eles. Hão-de proclamar, consoante o seu estado, que mais vale uma pessoa enganar-se, sem assassinar ninguém e permitindo que os outros falem, do que ter razão no meio do silêncio e pilhas de cadáveres.»

Hoje, mais que nunca, estas palavras devem merecer-nos profunda meditação.



* Tradução (excelente) de Luiza Neto Jorge e Manuel João Gomes para a editora Contexto (2001)

Pintores sem prazo de validade

Pedro Correia, 24.11.20

cruzeiro-seixas-arte-pintura-obras-moty-gq-portugaO Rapto ou o Tão Amável Intruso, óleo de Cruzeiro Seixas (1972) no Museu Gulbenkian

 

«Leva muito tempo tornarmo-nos jovens.»

Picasso

 

Sempre me questionei sobre o motivo da longevidade dos pintores, muito superior à de escritores e músicos, e apenas equiparável à dos arquitectos. A chave dessa incógnita pode estar na frase de Picasso que cito em epígrafe: o pintor tem uma relação única não só com o espaço mas também com o tempo.

Aí estão, para demonstrar esta tese, Georgia O'Keeffe (que morreu aos 98 anos), Albert Bertelsen (98 anos), Marc Chagall (97 anos), Maria Keil (97 anos), Oskar Kokoschka (94 anos), Abel Manta (93 anos), Júlio Resende (93 anos), Nadir Afonso (93 anos), Alfredo Volpi (92 anos), Willem de Kooning (92 anos), Leon Kossoff (92 anos), Júlio Pomar (92 anos), Ticiano (91 anos), Kees van Dongen (91 anos), Pablo Picasso (91 anos), Andrew Wyeth (91 anos), Joan Miró (90 anos), Victor Vasarely (90 anos), Giorgio de Chirico (90 anos), Querubim Lapa (90 anos), Victor Pasmore (89 anos), Robert Indiana (89 anos), Nikias Skapinakis (89 anos), Miguel Ângelo (88 anos), Emil Nolde (88 anos), Dórdio Gomes (88 anos), Lucian Freud (88 anos), Fernando Lanhas (88 anos), Antoni Tàpies (88 anos), Júlio Pomar (88 anos), Árpád Szenes (87 anos), Henrique Medina (87 anos), Emilio Vedova (87 anos), Frans Hals (86 anos), Jean-Auguste Ingres (86 anos), Claude Monet (86 anos), Tarsila do Amaral (86 anos), Carybé (86 anos), Carlos Calvet (86 anos), Max Ernst (85 anos), Eduardo Viana (85 anos), Henri Matisse (84 anos), Edward Hopper (84 anos), Norman Rockwell (84 anos), Sarah Afonso (84 anos), Salvador Dalí (84 anos), Thomaz de Mello (84 anos), Edgar Degas (83 anos), Jean Dubuffet (83 anos), Jean Hélion (83 anos), Maria Helena Vieira da Silva (83 anos), Francesco Albani (82 anos), Francisco de Goya (82 anos), Carlos Botelho (82 anos), Francis Bacon (82 anos), George Stubbs (81 anos), Benjamin West (81 anos), Veloso Salgado (81 anos), Georges Braque (81 anos), Marcel Duchamp (81 anos), Júlio Reis Pereira (81 anos), Rolando Sá Nogueira (81 anos), Donatello (80 anos), Francesco Guardi (80 anos), Jean-Baptiste Chardin (80 anos), Edvard Munch (80 anos), Roman Opalka (80 anos), Pierre Bonnard (79 anos), Jean-Baptiste Corot (78 anos), Pierre-Auguste Renoir (78 anos), Wassily Kadinsky (78 anos), José Malhoa (78 anos), Jacques-Louis David (77 anos) e Almada Negreiros (77 anos).
Ou, entre os vivos, Manuel Cargaleiro (93 anos), João Abel Manta (92 anos), Arnulf Rainer (91 anos), Jasper Johns (90 anos) e Frank Auerbach (89 anos).

 

Lembrei-me disto ao saber que o grande Cruzeiro Seixas se despediu de nós a 8 de Novembro, a menos de um mês de completar 100 anos, para cruzar a noite rumo à eternidade. Também ele demorou a tornar-se jovem.

Ei-lo imune enfim à erosão do tempo. Com a idade exacta da sua arte.