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Delito de Opinião

Maramures, guardada nos Cárpatos

Ana CB, 02.06.22

 

Foi um cemitério que me levou a Maramureș. Chamam-lhe Cemitério Feliz de Săpânța e só o nome já é uma incongruência, mas por mais estranho que pareça este cemitério fez-me atravessar metade da Roménia de propósito para o ir visitar – e descobrir, em jeito de presente inesperado, uma das regiões mais originais da Europa.

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Como país, a Roménia é muito jovem: ainda nem tem 150 anos, e as suas fronteiras só estabilizaram depois da Segunda Guerra Mundial. Uma história secular atribulada, recheada de invasões, lutas, e dependência de múltiplos impérios diferentes, fez da Roménia uma manta de retalhos com várias regiões culturalmente bem diferentes umas das outras. Entre elas, Maramureș é aquele brilhante menos polido, a região em que a ruralidade mais se nota e onde ainda perdura um estilo de vida tradicional. Situada no extremo nordeste do país, paredes-meias com a Ucrânia e resguardada pelos Cárpatos Orientais Interiores, não fica a caminho de nada nem é um curto desvio a partir de algures: visitar Maramureș tem de ser um acto intencional, e este é provavelmente o motivo pelo qual a região é tão pouco apelativa para a maioria dos turistas.

 

 

Uma casa no parque natural

 

Intencional ou não, esta vontade de estar à margem dos circuitos turísticos traz alguns problemas aos visitantes, sobretudo se forem estrangeiros e não falarem romeno. Ou ruteno, uma variante linguística do ucraniano. Saber alemão ou italiano talvez ajude um pouco em certas circunstâncias, mas o inglês não é aqui de grande préstimo. O resultado pode ser quase uma hora à procura de um alojamento mal sinalizado, e que num raio de meros seis quilómetros ninguém parece conhecer. Outro problema é o acesso ao alojamento implicar meter o carro por caminhos de lama e gravilha, que se ramificam de vez em quando e obrigam a andar para a frente e para trás até se encontrar finalmente o atalho certo, enquanto dizemos mal da vida e juramos que só vamos ali ficar uma noite.

 

Mas Maramureș tem sortilégios que a razão desconhece, e de um momento para o outro tudo muda. Na estrada surge uma estrutura de madeira com pilares esculpidos e três pequenos telhados – são assim os portões tradicionais da região – e mais atrás um edifício que parece saído do cenário de um filme. É a Conacul Drahneilor, uma mansão de madeira com vários volumes e pisos, construída segundo a traça e os métodos da arquitectura rural romena: esteios de pedra na base, telhados piramidais revestidos com fasquias de madeira, interrompidos por varandas com sardinheiras e janelas que evocam os famosos “olhos” de Sibiu, reminiscência dos orifícios criados para escoar o fumo nas antigas habitações rurais. E à volta, nada mais do que quilómetros de floresta alpina ondulante, onde predominam carvalhos e abetos. É paixão à primeira vista.

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Nem os desencontros linguísticos matam esta paixão, pois aqui não faltam simpatia e vontade de receber bem. Ser portuguesa também ajuda, porque é a primeira vez que acolhem alguém do nosso país, e não estranho a curiosidade que sempre despertamos – já estou habituada a ser olhada como marciana. Pavel Pop, o proprietário do alojamento, homem enérgico com um farto bigode e uma alegria contagiante, não poupa esforços para mimar os clientes e para se fazer entender. Instala-nos na varanda, com vista para o sol que se afunda atrás das serras, oferece-nos horincă, a típica aguardente caseira feita à base de ameixa que é uma espécie de bebida nacional, e arranja um tradutor, um adolescente de Cluj-Napoca que está ali a passar férias com os pais e fala um inglês impecável. Contente por ter com quem praticar o que aprende em aulas particulares, é ele que vai explicando o funcionamento da casa e o menu do jantar, e ainda sugere alguns pontos de interesse a conhecer na região. No dia seguinte, como o seu ajudante linguístico já viajou para outras paragens, Pavel vai dar-se ao trabalho de conseguir quem lhe traduza uma parte do menu para português, e até o convida para nos vir conhecer: é um amigo de longa data que trabalhou durante vários anos em Portugal e em Espanha, e que mata saudades do nosso país ao conversar connosco. Aquela é a sua terra, mas tem boas memórias dos tempos que passou entre nós.

 

A localização remota de Maramureș fez com que a região tivesse sido pouco afectada pela padronização e colectivização agrícola quase gerais de que a Roménia foi alvo durante o período ditatorial, e por esse motivo conseguiu preservar a maior parte dos seus hábitos e cultura. Nas estradas não é invulgar ver carroças puxadas por cavalos, as rodas de madeira substituídas por pneus em prol da rapidez da deslocação. Algumas casas têm frisos pintados com padrões geométricos, e nos terrenos que as rodeiam há pelo menos uma pilha de feno, amontoada na forma cónica tradicional destas paragens, por vezes com vários metros de altura. Passam mulheres de lenço colorido na cabeça, galochas nos pés, telemóvel no ouvido e ao ombro um ancinho invulgarmente comprido e tosco. Por estes lados as tradições centenárias e a modernidade parecem conviver sem sobressaltos.

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Um comboio na floresta

 

Prova desta modernidade é o facto de a actividade económica que gera mais rendimentos na região ser a extracção mineira – que se desenvolve sobretudo em torno de Baia Mare, a capital administrativa do distrito. Mas Maramureș é terra de florestas, que ocupam quatro quintos do seu total, e é aqui que encontramos a maior zona protegida dos Cárpatos romenos, o Parque Natural das Montanhas de Maramureș, abrangendo uma área de 1500 km2. Não é por isso de estranhar que a madeira seja o material que melhor define culturalmente este território e esteja omnipresente na arquitectura tradicional, nos monumentos religiosos, na expressão artística e nos objectos artesanais. A exploração madeireira faz-se sobretudo junto à fronteira com a Ucrânia, na zona que se alonga entre Sighetu Marmației e Borșa, com um dos seus centros mais importantes em Vișeu de Sus e no adjacente vale do rio Vaser.

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É neste vale que está em funcionamento, desde 1933, uma linha férrea de bitola de via estreita, usada sobretudo para transportar os troncos das árvores cortadas pelos lenhadores até à serração de Vișeu de Sus, onde a economia gira à volta da madeira desde meados do século XVIII. Nas linhas férreas, uma bitola de via mais estreita do que a bitola padrão é geralmente utilizada em terrenos com relevo acidentado, zonas esparsamente povoadas, ou para fins exclusivamente industriais. Com comboios mais pequenos e leves os carris não precisam de ser tão robustos, pelo que levam menos material e tornam-se mais económicos e mais fáceis de instalar e operar. Em 1970 a Roménia tinha uma rede com cerca de 3000 km de mocăniță, vias férreas florestais percorridas por estes pequenos comboios, movidos por locomotivas a vapor, que transportavam carga e pessoas pelas zonas montanhosas de difícil acesso. Actualmente, apenas a linha do Vale do Vaser continua a ser regularmente utilizada, numa extensão de cerca de 60 km floresta adentro, entre Vișeu de Sus e Coman. Apesar das preocupações ambientais, que reduziram o volume de árvores que podem ser abatidas (70% do Parque Natural está abrangido pela rede Natura 2000), a madeira continua a ser o maior negócio desta sub-região, e uma fonte de emprego alternativa à agricultura e à migração. Pelos carris circulam hoje em dia também outros veículos, carrinhas adaptadas com rodas metálicas em vez de pneus, que transportam materiais e pessoas, entre eles os guardas-florestais que patrulham a fronteira do país e vigiam a actividade dos madeireiros, tentando controlar o abate ilegal de árvores. Um artigo publicado no website Recorder.ro em Outubro de 2019 refere que o relatório de uma equipa de investigação, nomeada pelo Estado romeno após pressão da União Europeia, concluiu que entre 2008 e 2018 foram cortados em média 38 milhões de metros cúbicos de madeira por ano no país, dos quais 20 milhões de forma ilegal. Embora a metodologia científica usada para o estudo tenha sido desenvolvida e verificada por especialistas internacionais, este resultado não foi validado pelo Instituto Nacional de Investigação e Desenvolvimento Florestal (INCDS), que optou por o ignorar alegando falta de validade estatística, e foi fortemente contestado pela Romsilva (a empresa estatal que gere as florestas e as áreas de caça e pesca), que invocou o mesmo argumento. As suspeitas de corrupção no sistema governamental avolumam-se, e o problema do abate ilegal de árvores não parece ter solução à vista.

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Desde 2000, a mocăniță que acompanha o Vaser é também usada, com grande sucesso, para passeios turísticos em composições puxadas por locomotivas alimentadas a lenha. Embora a maior parte dos visitantes de Maramureș sejam romenos, estes passeios tornaram-se muito procurados, e na época alta a procura chega a ser suficiente para encher diariamente três comboios, cada um com várias carruagens, que partem a intervalos de meia hora. Por entre apitos e grandes rolos de vapor, o comboio sai da estação principal e vai seguindo lentamente junto ao rio, trocando de margem de vez em quando. Os primeiros quilómetros fazem-se entre habitações e terrenos cultivados, que depois começam a rarear até desaparecerem por completo e a paisagem se dividir apenas entre a água de um lado e a vegetação abundante do outro – tão abundante que conseguimos tocar nela se estendermos o braço através das janelas sem vidros. Às vezes passamos por pilhas de troncos já cortados, deixados nas margens lamacentas à espera de transporte, outras vezes por uma ponte que mais não é do que um tronco grosso com um corrimão rudimentar, ou ainda por três ou quatro vacas, e só muito raramente por alguma pessoa.

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O percurso para turistas termina a cerca de 20 km do ponto inicial, no apeadeiro de Paltin, onde criaram um parque de merendas junto ao rio. Numa espécie de restaurante aberto, um grupo de rapazes e raparigas vestidos com trajes típicos cozinham e servem meia dúzia de tipos diferentes de grelhados e comidas rápidas, enquanto outros tentam animar os visitantes com uma (não muito imaginativa) exibição de danças tradicionais. O passeio acaba por ocupar quase um dia inteiro, com duas horas de viagem para cada lado em carruagens tremelicantes, que nos chocalham os ossos mal acomodados em bancos estreitos de ripas de madeira, atravessadas pelo ar frio e húmido da floresta, nos ouvidos o barulho constante de metal a ranger contra metal e do arfar ruidoso da locomotiva. Se uma viagem tão curta já provoca desconforto a quem apenas está a passear, nem imagino como será duro o dia-a-dia daqueles que por aqui vivem e trabalham.

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Uma herança religiosa protegida

 

Nas comunidades tradicionais de Maramureș a religião continua a ter grande importância. Tal como no resto do país, a maioria das pessoas é fiel à Igreja Ortodoxa Romena, e as construções religiosas são abundantes. A face mais visível e notável desta herança espiritual secular são as peculiares igrejas de madeira. Numa região onde a construção em altura é despicienda, os campanários descomunais destas igrejas destacam-se acima dos telhados vizinhos como setas apontadas ao infinito – pois quanto mais altas, mais facilmente as preces dos fiéis chegarão aos céus. O seu carácter original é tão forte que oito delas estão inscritas na lista do Património Mundial protegido pela UNESCO. Com um número total que se aproxima da centena, têm várias características em comum: um corpo principal atarracado, que quase desaparece sob um telhado volumoso e por vezes duplo; uma torre sineira esguia, pontiaguda e muito alta, projectando-se a partir da extremidade oeste da construção, por cima da entrada; e pinturas naif nas paredes e tectos interiores, representando cenas bíblicas.

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A maioria destas construções religiosas data dos séculos XVII e XVIII, mas o seu simbolismo é tão forte que desde a democratização do país, várias igrejas têm sido construídas de acordo com os mesmos princípios arquitectónicos. A mais famosa de todas está no complexo do Mosteiro de Săpânţa-Peri e foi terminada em 2013. Os 75 metros entre o solo e o topo do campanário fazem dela a igreja de madeira mais alta do mundo.

 

Este mesmo título pertenceu durante mais de dois séculos à Igreja dos Arcanjos Miguel e Gabriel em Şurdeşti, construída em 1721 e uma obra-prima da engenharia dos mestres-carpinteiros da região: além de totalmente feita de madeira de abeto e carvalho, não tem um único prego de metal. Isolada no topo de uma colina suave e com pouca vegetação à volta, ao vê-la de longe, silhueta escura contra o céu azul brilhante, pareceu-me comoventemente vulnerável – resistindo, sozinha, ao silêncio que a envolve, e ostentando com orgulho os seus 72 metros de altura. Outros pormenores que a distinguem são o alpendre em frente à entrada, com arcos trabalhados e orifícios em forma de coração invertido, e os dois beirais do telhado, com uma outra fileira de arcos ornamentados entre eles. Tanto nas torres como nas paredes exteriores há uma abundância de cruzes, em madeira ou metal, e crê-se que o motivo decorativo da “corda torcida” esculpido em volta do corpo do edifício terá origens muito antigas, na época em que a região era habitada pelos Dácios. Símbolo do infinito, a “corda torcida” faz a ligação entre o céu e a terra, e é um motivo frequentemente usado para invocar a protecção divina, tanto nas construções religiosas como nas casas tradicionais.

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No complexo do Mosteiro de Bârsana, o ambiente é outro. O local é muito popular entre os turistas, tanto nacionais como estrangeiros, e nunca faltam visitantes. O recinto parece mais um jardim do que um mosteiro e inclui uma dezena de edifícios de traça tradicional. É mais um exemplo de como a fé religiosa ortodoxa na região de Maramureș resistiu aos séculos e às perseguições. Na localidade de Bârsana existiu, pelo menos a partir do século XIV, um importante mosteiro, extinto em 1791 quando o território estava sob o domínio do Império Austro-Húngaro, que pugnava pelo catolicismo. Desse mosteiro resta apenas uma igreja – uma das oito classificadas pela UNESCO – que os locais protegeram transportando-a para o coração da aldeia, onde se encontra até hoje.

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A memória do antigo mosteiro permaneceu viva na comunidade, assim como o desejo de o reerguer. O Episcopado Ortodoxo Romeno de Maramureș foi restabelecido em 1937, mas foi preciso esperar até 1993 para que fosse colocada a primeira pedra do actual Mosteiro de Bârsana, consagrado ao Concílio dos Santos Doze Apóstolos. Concebido pelo arquitecto Dorel Cordoș e executado por artesãos locais com os materiais típicos da região – madeira de carvalho e pedras de rio – o conjunto monástico tem florescido em edifícios e popularidade sob a direcção empreendedora da abadessa, Madre Filofteia, secundada por outras nove monjas e um clérigo. O complexo inclui uma igreja, um altar para celebrações ao ar livre, um museu que possui uma notável colecção de livros antigos e ícones, uma torre sineira que acumula as funções de portal de entrada, e várias habitações, tudo inserido num enorme jardim profusamente verde e florido. Um lugar de paz e de comunhão com a natureza, onde a criação humana tem raízes fundas em tradições centenárias perpetuadas por uma comunidade que não dissocia o céu a que aspira da terra que habita.

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Um cemitério singular

 

Numa região tão peculiar como Maramureș, o cemitério que me trouxe aqui não podia ser um cemitério como os outros. Neste lugar não há lápides de pedra tristonha ou cruzes ferrugentas a marcar as sepulturas, nem fotografias sépia dos defuntos ao lado de epitáfios taciturnos. Os sinais que marcam cada campa parecem soldadinhos bem alinhados, cada um deles vestido de cores chamativas para eternizar a memória do finado que homenageia. São cruzes de madeira de carvalho, com os formatos tradicionais das cruzes ortodoxas mas com uma espécie de “telhado” bicudo no topo e uma base alta e larga, pintadas num tom vivo de azul e decoradas com flores e cenas naif relativas ao defunto, tendo por baixo um poema. Estas cenas, reproduzidas com cores primárias simbólicas, ilustram uma característica ou profissão da pessoa, ou a forma como morreu, e as frases que as acompanham são normalmente jocosas, ou até mesmo satíricas. É por isto que lhe chamam o Cemitério Feliz de Săpânța.

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Na pequena comuna de Săpânța (pronuncia-se “sapuntsa”, o som do “u” sendo fechado) nasceu em 1908 Stan Ioan Pătraş, no seio de uma família de artesãos da madeira. Órfão de pai aos 14 anos, foi como marceneiro que passou a sustentar a família. Um dos trabalhos que tinha de executar recorrentemente eram as cruzes funerárias para colocar no cemitério, cuja técnica foi modificando ao longo dos anos: começou por pintá-las de azul – a cor do céu almejado pelos crentes – depois passou a decorá-las com motivos florais e pequenos poemas irónicos, e mais tarde a esculpir na madeira figuras em relevo alusivas à vida da pessoa a quem cada cruz se destinava. A origem desta inspiração permanece ainda hoje um mistério.

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Na Dácia, que na geografia da Antiguidade abrangia territórios a norte do Danúbio e leste do Mar Negro, incluindo os Cárpatos, os cultos pagãos perduraram até tarde, e o cristianismo só fez a sua entrada na região por volta do século V. Os Dácios prestavam culto ao deus Zalmoxis, que prometia a imortalidade da alma, e por isso a morte era para eles não o final da vida, mas apenas a transição para um mundo melhor. Este espírito descontraído em relação à morte ainda permanece de alguma maneira imbuído nas gentes de Maramureș, para quem a ideia de celebrar a vida dos defuntos não é uma noção estranha ou mórbida. As pessoas são recordadas com saudade, mas também com alegria, e o cemitério de Săpânța é disso o maior testemunho.

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Algures nos anos 50, o carácter peculiar deste cemitério chamou a atenção de um grupo de franceses que passou por Săpânța. Foi a partir dessa altura que o local começou a ser referido como Cemitério Feliz, e que a sua fama ultrapassou as fronteiras. Quando Stan Pătraş morreu, em 1977, o fluxo de visitantes estrangeiros já era regular e foi aumentando com os passar dos anos. Actualmente, é sem qualquer dúvida o lugar mais turístico da região. Na estrada de acesso há barraquinhas que vendem as habituais recordações de viagem, à mistura com artigos produzidos artesanalmente. A entrada no cemitério é paga, embora o valor do bilhete seja quase simbólico. Os proventos do turismo e as doações contribuíram para a renovação da Igreja da Natividade da Mãe de Deus (ou Igreja da Assunção), uma igreja insípida erigida em 1886 que agora é uma ode à cor e à arte local, com os seus telhados de cerâmica vidrada com grafismos coloridos e as paredes exteriores preciosamente decoradas com pinturas e mosaicos em que o dourado predomina, cintilante sob o sol.

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Das cerca de mil cruzes que hoje existem no cemitério, à volta de 700 terão sido esculpidas por Pătraş – incluindo a que assinala a sua sepultura, em frente à entrada da igreja. Este é o epitáfio que escreveu para si próprio:

 

Desde muito pequenino

Stan Ion Patrash foi meu nome

Ouçam-me enquanto passam

Pois o que digo é verdade

Todos os dias da vida

Nunca mal eu desejei

Pois apenas fiz o bem

A todos quantos eu pude

Ai que mundo tão ruim

Em que viver foi tão duro

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A casa em que Stan Ioan Pătraş trabalhava, dentro do cemitério, é hoje um museu-oficina. Antes de morrer, o artesão designou como seu sucessor Dumitru Pop Tincu, um dos seus aprendizes. É ele que continua a manter viva a tradição do seu mestre, apoiado por alguns ajudantes, sendo ao mesmo tempo escultor, pintor e poeta. Cada cruz continua a ser feita exclusivamente à mão e demora entre dois a três meses para ficar pronta. Dumitru faz 30 ou 40 por ano, algumas delas para forasteiros nacionais ou estrangeiros, ou até mesmo para museus. Além disso, dá aulas na Escola Popular de Arte, e cria as suas próprias pinturas e esculturas para as exposições em que o convidam recorrentemente a participar em todo o mundo. Defensor da originalidade do trabalho que herdou e perpetua, orgulha-se da identidade singular da região em que vive, dos seus usos e costumes e da sua arte popular, que quer manter a salvo da globalização. E diz que a Roménia é o único país onde as pessoas se riem da morte.

 

Mesmo para quem não perceba nada de romeno e por isso não consiga ler os epitáfios divertidos sobre os defuntos, muitas das cenas ilustradas nas cruzes do cemitério apelam só por si ao sorriso – as imagens são uma linguagem universal. Nas campas, simples rectângulos debruados com pedra, estão plantadas flores e pequenos arbustos, e algumas cruzes têm penduradas coroas de flores artificiais. Todo o cemitério é uma explosão de cor e alegria, duas características que habitualmente estão ausentes dos lugares onde depositamos os nossos mortos. Mas não aqui. No Cemitério Feliz de Săpânța celebra-se a vida em vez da morte, e os sorrisos são mais do que as lágrimas.

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Este local controverso é, afinal, talvez o que melhor ilustra a essência de Maramureș e das suas gentes: a maneira como equilibram a espiritualidade, traduzida nas fortes convicções religiosas e na continuidade de tradições ancestrais, com a matéria, subsistindo na dependência da terra e adoptando a simplicidade de um modo de vida em simbiose com a natureza. Num mundo cada vez mais uniformizado, manter este equilíbrio não será tarefa fácil.

 

(Também publicado no blogue Viajar Porque Sim)

Estradas

Ana CB, 31.03.22

 

É unânime que a invenção da roda foi um dos acontecimentos mais importantes para a evolução da humanidade, sobretudo quando mentes brilhantes se lembraram de aplicar o conceito na criação de meios para o transporte de cargas pesadas. Mas pouca importância é dada ao facto de que essa invenção acabou por arrastar com ela uma outra: a da estrada.

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As estradas são um paradoxo: entidades estáticas, a sua função principal (quiçá única) é facilitar a movimentação – das pessoas e das “coisas”. Imóveis, levam-nos a quase todo o lado. Podemos percorrê-las a pé ou numa variedade de meios de transporte diferentes, mas impelem-nos sempre a avançar. Ninguém fica simplesmente parado no meio de uma estrada. Se queremos parar, saímos dela. Podemos ficar na berma, a olhar para quem passa, ou sentar-nos a descansar, ou fazer qualquer outra coisa, mas sempre à margem. Uma estrada pede progressão, não imobilidade.

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A estrada pavimentada mais antiga que sobreviveu parcialmente até aos nossos dias ligava um cais nas margens do Lago Moeris à pedreira de Widan el-Faras, de onde era extraída a pedra basáltica para as câmaras mortuárias das Pirâmides de Gizé. Com cerca de dois metros de largura e composta por lajes de arenito e rocha calcária à mistura com madeira petrificada, calcula-se que date de pelo menos 2500 a.C., mais século menos século. Mas sabe-se, por exemplo, que na Mesopotâmia já se pavimentavam ruas desde 4000 a.C.

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Gizé

 

No entanto, é aos Romanos que o nosso imaginário associa a construção em massa de estradas. A calçada romana tinha quatro estratos diferentes de materiais e era feita para durar e facilitar a expansão do império, reduzindo o tempo de deslocação das colunas militares e melhorando a comunicação entre as grandes cidades que se iam criando por todo o território ocupado. Desde cerca do ano 300 a.C. e até ao declínio do império, dizem os livros que foram construídos por todo o território cerca de 80 mil quilómetros de estradas pavimentadas. Muitas delas foram continuadamente usadas e reestruturadas até aos dias de hoje; de outras, há troços que subsistem na sua forma praticamente original. Indiferentes aos recuos e avanços civilizacionais ao longo dos séculos e aos desfasamentos técnicos entre as várias regiões e culturas do nosso mundo, as estradas persistiram e foram ganhando cada vez mais importância e presença no planeta Terra, e hoje já não saberíamos viver sem elas.

Ponte romana de Vila Formosa (Alentejo)

 

As estradas são como as pessoas (ou não fossem elas uma invenção nossa!). Umas adaptam-se a cada sobressalto no relevo do terreno: curva para a esquerda aqui, cotovelo para a direita ali, contornam milimetricamente precipícios, lançam-se às alturas das montanhas, esgueiram-se por desfiladeiros que mais parecem buracos de agulha. Outras são impetuosas e cortam a direito por onde passam, rasgam túneis, esventram colinas, abatem árvores, compactam dunas. Outras ainda comportam-se com moderação, ora limando uma ruga orográfica, ora fazendo a ponte sobre um vale apertado ou sobre um rio que não convém incomodar.

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Para lá da sua utilidade facilitadora de movimentos militares e comerciais, as estradas tornaram-se também um “objecto de culto” para quem viaja em lazer. A literatura está cheia de obras épicas (ou nem tanto!) que contam histórias de viagens sobre rodas em estradas intermináveis e têm tanto de jornada de descoberta exterior como interior. O famosíssimo “Pela Estrada Fora”, de Jack Kerouac, trouxe para a ribalta a não menos famosa (e entretanto parcialmente alterada) Route 66 americana, que tinha sido criada em 1926. Os “Diários de Motocicleta” de Che Guevara descrevem uma viagem de 12 mil quilómetros da Argentina ao Peru. O “Na Patagónia”, independentemente da polémica gerada à volta do facto de Bruce Chatwin ter (segundo parece) inventado algumas das suas personagens, permanece uma belíssima narrativa de aventuras nos confins da geografia sul-americana, desde Rio Negro até Ushuaia. O mais recente “Clanlands”, dos outlanders Sam Heughan e Graham McTavish, passeia-nos pelas Terras Altas escocesas e pela sua cultura, entre histórias e diálogos cheios de humor. E o também relativamente recente “Na Planície das Serpentes”, desse “monstro” da escrita de viagens que se chama Paul Theroux, é um relato sem filtros sobre um México multifacetado, dilacerado entre a realidade dura da violência e a sua fantástica e antiquíssima cultura.

 

As minhas primeiras memórias de viagens são, precisamente, as de viajar de carro com os meus pais e a minha irmã. Naquela altura, mesmo em distâncias que hoje consideramos curtas, viajar em Portugal implicava sempre várias horas para chegar ao destino e uma preparação complicada, que envolvia farnel, almofadas para dormir no banco de trás, e sacos com material para todas as eventualidades – mesmo que fôssemos apenas às Caldas da Rainha para comprar fruta e visitar a família e regressássemos no mesmo dia. Desde então, perdi a conta às viagens que fiz por estrada, e viajar de carro permanece uma das minhas formas favoritas de conhecer mundo.

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Independentemente de nos levarem a lugares mais ou menos desejáveis, há estradas que por si só valem uma deslocação propositada para viver a experiência de as percorrer. Porque têm características únicas, porque são belas, porque nos transmitem uma sensação de encantamento, ou porque estão carregadas de História e de significado. Em Portugal, a mais famosa é certamente a N222, não só pelo seu célebre troço entre Peso da Régua e Pinhão – que lhe valeu o título de “World Best Driving Road” atribuído segundo o estudo de uma famosa empresa de aluguer de carros – mas por unir o país na quase totalidade da sua largura, entre Vila Nova de Gaia e Almendra, e acompanhar o Douro em partes do seu itinerário.

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A N222 em Foz Côa

 

Mas há várias outras estradas que me levam a querer voltar a elas uma e outra vez, e me deixam com saudades assim que as abandono. Na N304, percorrer as curvas e contracurvas do troço entre Mondim de Basto e a Campeã é ver no pára-brisas um filme sobre a grandiosidade do Parque Natural do Alvão. No Maciço da Gralheira, ziguezagueando no gume da montanha pela Estrada do Portal do Inferno, sinto-me uma funambulista em equilíbrio no arame. A M518 dá-me acesso à frescura da Fraga da Pena e depois à Mata da Margaraça, que é “só” uma das matas portuguesas mais antigas e notáveis, onde o ambiente é quase irreal. No Alentejo das estradas sem fim, na N246-1 perto de São Salvador da Aramenha há uma recta de um quilómetro em que freixos com 200 anos formam um túnel que parece dar acesso a uma outra dimensão.

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Portal  do Inferno

 

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Mata da Margaraça

10 N246-1 Alameda dos Freixos.JPGN246-1 Alameda dos Freixos

 

Além-fronteiras, entre uma longa lista de estradas que ainda sonho percorrer, há algumas que guardo na memória em lugar especial. Na Costa Rica, um autocarro levou-me (durante quase duas horas para cobrir apenas 90 km) de La Pita a Libéria, sobre um pequeno fragmento desse colosso de muitos milhares de quilómetros que é a Estrada Pan-Americana. Na Roménia, naquele que foi provavelmente o dia de condução mais cansativo de toda a minha vida até agora, desafiei-me a percorrer a icónica Transfăgărășan, cujo ponto mais alto fica acima dos dois mil metros: 151 km através das montanhas, dos quais 90 são de curvas e contracurvas constantes. Um desafio, sim, mas também uma satisfação, porque esta é realmente uma das estradas mais espectaculares do mundo, a todos os níveis. Mais perto, em terras dos nossos vizinhos, a parte cantábrica da N-621 inclui o desfiladeiro de La Hermida, 21 km acompanhando o rio Deva entre paredes de rocha que parecem tocar o céu, e mais para sul cruza a imensidão azul da barragem de Riaño. Na Camarga francesa, entre Aigues-Mortes e Le-Grau-du-Roi a estrada é apenas uma fita de asfalto, completamente recta e plana, rodeada de pântanos e salinas a perder de vista. Quando estive na Croácia, aconselharam-me a esquecer a auto-estrada no trajecto de Split para Dubrovnik e optar pela número 8, que segue o recorte da costa adriática e é de uma beleza fora de série – e eu segui o conselho. Ao lado, no Montenegro, não me arrependi de ignorar o ferry e continuar pela estrada que contorna a Baía de Kotor: o que se perde em tempo, ganha-se em paisagem que enche a alma. E em Itália, a SR2 entre Torrenieri e Bagno Vignoni, na região do Val d'Orcia, superou em muito tudo o que já tinha visto das paisagens toscanas em fotografia ou filme.

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A Pan-Americana na Costa Rica

A Transfăgărășan na Roménia

 

A N-621 na Cantábria

 

Camarga, sul de França

 

A Baía de Kotor, no Montenegro

 

Val d'Orcia, na Toscana

 

Para quem gosta de viajar, as estradas são dádivas dos deuses. Mais do que uma viagem de comboio ou de barco, e certamente muito mais do que uma viagem de avião, viajar por estrada dá-nos toda uma outra liberdade de movimentos e de tempo, e um contacto muito mais próximo com os lugares por onde passamos, com os seus pormenores, as suas características particulares e as suas pessoas. Permitem-nos o acesso a um mundo feito de tantas gentes e culturas diferentes, tantas obras de arte naturais ou construídas, e tantas idiossincrasias, que vai muito para lá do que julgamos ser possível existir – este mundo cheio de maravilhas, e também de desgraças, que é o nosso.

 

O sol da meia-noite

Ana CB, 18.02.22

 

Saímos do aeroporto para uma via rápida, asfalto cinza antracite delimitado por barreiras metálicas e o habitual tracejado branco entre faixas. Tínhamos pela frente quase 40 quilómetros de estrada praticamente recta e deserta, o brilho de uns faróis traseiros algumas centenas de metros à nossa frente, e o dos faróis dianteiros de um ou outro carro que se cruzava connosco muito de vez em quando. De ambos os lados da estrada, terra plana e nua, e ao fundo, longe como uma miragem, a fiada de luzes que indiciava os arredores da cidade grande, o nosso destino.

 

Por cima de nós, muito baixas, nuvens cinzentas em rebanhos ou emprateleiradas, diáfanas umas, outras mais escuras, com formas achatadas, estranhas, nitidamente estrangeiras. Acima dos estratocúmulos, o céu desdobrava-se em gradientes de azul até ao rosa-quase-branco, um brilho a prometer raios de sol aberto para breve – assim as nuvens o deixassem. O carro ia comendo quilómetros, o motor a ronronar suavemente, e eu estava como que hipnotizada por aquele céu surreal. Eram duas horas da manhã, íamos a caminho de Reiquiavique e eu via, pela primeira vez na minha vida, o sol da meia-noite.

6 Diário Islândia - estrada para Reiquiavique

Num Verão da minha infância, os meus pais ausentaram-se durante algum tempo para irem num cruzeiro à Escandinávia. Regressaram satisfeitos, cheios de histórias com palavras novas e conceitos estranhos, como “fiorde”, “tivoli”, ou “sol da meia-noite”. Para uma criança de poucos anos, associar sol e noite é uma ideia inconcebível, e devo ter feito o que fazia com tudo aquilo que ultrapassava a minha compreensão: registei e arrumei na memória, sem pensar mais no assunto. Depois cresci, nas aulas de Geografia aprendi que o eixo da Terra é inclinado e que é essa a razão da existência das estações do ano, e o que são equinócios e solstícios, meridianos e círculos polares. Percebi finalmente o que é que significava, na teoria, “sol da meia-noite”. A hora de Verão, que só apareceu para mim quando já era adolescente, mostrou-me o que era ter claridade no céu até quase à hora de ir dormir; e numa viagem de comboio entre São Petersburgo e Moscovo assisti, às quatro da manhã, a um fascinante nascer-do-sol filtrado pela neblina que se desprendia de uma floresta interminável. Mas nada nem ninguém me preparou para a tremenda emoção causada pela beleza daquele meu primeiro verdadeiro sol da meia-noite.

 

É essencialmente pela visão que me apercebo do mundo. Nenhum estímulo é para mim tão forte como o visual. Os sons, cheiros e sabores complementam o que vejo, e o toque é o motor de certas reacções físicas – mas o deslumbramento, a fascinação, esses chegam-me pelo nervo óptico. E esta viagem que fiz na Islândia foi um festim para os meus olhos. Nuvens criativas, com formas bizarras, em colunas, em camadas, umas quase transparentes, outras de um cinzento carregado, às vezes tão baixas que parecia que bastava esticar o braço para lhes tocar, envolvendo os picos das montanhas como chantilly num bolo, ou confundindo-se com a água do oceano. Mar chão a fingir-se de espelho, reflectindo casas e barcos de cores berrantes, tornadas baças pela neblina parada. Ou em serpentinas brilhantes ondulando sobre a areia da praia na maré baixa. Cascatas magníficas de águas revoltas, despenhando-se em quantidades inimagináveis, espumando de ferocidade, mesmerizantes. Gelo de um azul inacreditável, ou muito branco mas raiado de negro, como se alguém tivesse deixado escorrer tinta-da-china, ou transparente como cristal. Montanhas nuas, pintalgadas de cores tão inesperadas que mais parecem uma tela saída das mãos de Cézanne, ocres e laranjas misturados com branco, cinzento-azulado ou antracite, verde-musgo, amarelo-desbotado e negro-lava. Nuvens de vapor a brotarem da terra fervente com aspecto de paisagem marciana. Se há lugares onde a expressão “excesso de beleza” é bem aplicada, a Islândia é um deles.

233 Diário Islândia - Hverir

271 Diário Islândia - Godafoss

Viajar pela “terra de fogo e gelo” foi um carrocel – de trilhos e de emoções. Na maior parte do tempo éramos só nós, a estrada e a paisagem, ora contornando fiordes compridos, entrando pela terra adentro como garras de um qualquer dragão imaginário (ou não, quem sabe… no país das sagas, tudo é possível), ora subindo e descendo entre montanhas, percorrendo desfiladeiros que nos levavam, em menos de um ai, do verde dos pastos ao branco da neve, da atmosfera límpida à neblina fantasmagórica, do asfalto em espaço aberto ao caminho de cabras trepidante à beira de uma ravina. De vez em quando lá surgia um carro, uma caravana, um ciclista solitário, um trio de ovelhas, uma quinta rodeada de fardos de feno embrulhados em plástico verde-menta ou rosa-bombom. Depois chegávamos a uma cidade com ar de aldeia, casas baixas forradas a chapa perfilada, mais raramente de madeira, dispostas a espaços ao longo de ruas desenhadas a régua e esquadro, um pequeno supermercado, uma bomba de gasolina, uma igreja minimalista, uma quase ausência de pessoas. Nada que nos fizesse apetecer parar, por isso seguíamos rapidamente de volta à magnífica solidão das paisagens sem vivalma. Ou então encontrávamos uma localidade daquelas saídas directamente de um cartão-postal: à beira de um fiorde, com casinhas coloridas, um jardim, uma igreja original, arte urbana a animar as ruas – aqueles sítios onde apetece ficar.

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Houve um sem-fim de momentos inesquecíveis nesta viagem. Houve dias luminosos, em que o sol nos aqueceu o suficiente para ignorarmos os casacos durante algum tempo. Houve dias gélidos, em que o frio ou o vento nos impeliam a voltar para o abrigo morno do carro, apesar de nos apetecer ficar mais uns minutos (ou horas!) a passear. Houve um final de dia de viagem dentro de uma piscina de água quente, com vistas para o mar e para a ilha de Drangey. Houve dias em que o sol nunca se mostrou, e menos ainda nas supostas horas nocturnas: o céu mantinha-se cinzento, só percebíamos que estava na hora de recolher apenas pela ligeira diminuição da luminosidade e pelos números digitais no relógio do carro.

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E houve outros sóis da meia-noite, com o céu pintado de rosa e roxo, ou tingido com cores de fogo sobre o branco-fosco do glaciar Vatnajökull. Mas nenhum deles foi para mim tão emocionante como aquele meu primeiro sol da meia-noite.

Amigos de aluguer

Ana CB, 21.01.22

Li num artigo que em Tóquio é possível alugar amigos. Ou seja, pagar a alguém para ser nosso amigo durante umas horas. Os “amigos de aluguer” entrevistados contam as histórias mais variadas, desde serem contratados para passarem por familiares de uma noiva, posarem para selfies no Instagram, fingirem ser um namorado ou namorada, ou serem apenas correspondentes por email. No entanto, a grande maioria das pessoas que os contratam apenas querem companhia: para ver TV, ir às compras, ou simplesmente conversar.

Para quem trabalha nesta área, a motivação não parece ser o dinheiro – o valor que recebem por hora não é assim tão alto quanto isso (sobretudo num país caro como é o Japão), e a procura destes serviços é sempre incerta. Há quem diga que é o desejo de ajudar quem precisa de algumas horas de conforto emocional, ou quem o faça para quebrar a rotina de um emprego estável mas algo monótono. Alugar a nossa amizade a estranhos em troca de dinheiro parece estar algures entre um passatempo e a prestação de cuidados paliativos.

O que é que isso diz de uma cidade como Tóquio, tida como superdesenvolvida e onde há lugar para todas as excentricidades? E o que é que diz sobre a sociedade japonesa, que é supostamente tão correcta e amigável? A explicação dada no artigo é que no Japão, o importante é a fachada, o exterior impecável, a aparência de que está tudo bem. As pessoas não estão habituadas a mostrar o seu lado mais vulnerável, têm dificuldade em abrir-se com os outros. Não se tocam. Não exprimem as suas emoções. Psicologicamente, não estão bem, mas não partilham o que sentem, e não procuram ajuda – porque há um estoicismo, transversal a toda a cultura japonesa, que faz com que se vejam obrigados a aguentar tudo sem darem parte de fracos. Nas redes sociais podem até mostrar uma vida feliz, alegre e preenchida, mas muitas vezes tudo não passa de uma mentira.

Num país onde é normal ter um horário laboral diário de 10 horas e frequentemente o convívio se resume à família e aos colegas de trabalho – com o habitual distanciamento físico e emocional já firmemente incorporado nos hábitos sociais – sobra pouco espaço e tempo para construir amizades verdadeiras, e menos ainda duradouras. Num país que é tecnologicamente muito desenvolvido, culturalmente avançado (e esta é a explicação mais invocada para as reduzidas taxas de infecção e morte por covid-19 que o Japão tem mostrado), hiperprodutivo, politicamente estável e etnicamente homogéneo, esta incapacidade de ter e manter amigos parece coisa de ficção científica – e daquela mais pessimista.

Como latinos que somos (e optimista que sou), estou em crer que por cá a “moda” não irá pegar. Mas… este retraimento a que somos forçados há quase dois anos, somado à apetência cada vez maior pelos smartphones e à substituição de formas de entretenimento interactivas por quilómetros de scroll e horas passadas a jogar ou nas redes sociais, não são um bom indicador do que poderá ser o futuro próximo, sobretudo para as gerações mais jovens – que desconhecem o poder reconfortante das tardes à conversa com os amigos num qualquer café de bairro.