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Delito de Opinião

Patagónia, terra de contrastes - parte 2

Ana CB, 08.07.24

Em linha recta, o hiperfamoso glaciar Perito Moreno dista apenas cerca de 60 km do Parque Torres del Paine, mas na prática há todo um mundo de montanhas e uma fronteira terrestre a separá-los. Situado no lado argentino dos Andes e inserido no Parque Nacional Los Glaciares, o Perito Moreno tem como cidade mais próxima El Calafate, 80 km a leste.

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Chegar a esta cidade desde Puerto Natales implica, de autocarro, mais uma viagem de quase seis horas para cobrir 350 km de estrada, com a obrigatória demora no posto de fronteira de Dorotea e mais tarde o desvio para uma curta paragem em Esperanza.

 

Uma cidade virada para o turismo

 

Entrando em El Calafate, senti mais uma vez o choque da diferença em relação ao ambiente em que tinha passado os dias anteriores. Muito colorida e europeizada, a sua rusticidade é apenas aparente e disfarça uma sofisticação de lugar claramente devotado ao turismo. E no entanto, gostei da cidade. El Calafate é extensa e substancialmente plana, com o movimento a concentrar-se ao longo e em torno da Avenida del Libertador – um trecho da Ruta 11, que atravessa a cidade de leste para oeste. É aqui que estão os melhores restaurantes, as grandes lojas de artesanato sofisticado, os operadores turísticos, o casino, o Mirador de la Ciudad – estrutura metálica de onde temos uma vista abrangente sobre El Calafate – e a Intendencia do Parque Nacional Los Glaciares: um centro interpretativo num edifício histórico, rodeado por um belo jardim com percursos explicativos sobre a fauna e flora do Parque, máquinas e equipamentos antigos utilizados pelos trabalhadores, e cenas esculpidas em homenagem a exploradores da região, como Charles Darwin e Francisco Moreno.

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A Avenida del Libertador tem um ambiente algo hippie chic, e reflecte bem os dois tipos de visitantes que parecem ser mais habituais na Patagónia: jovens mochileiros, que vêm à procura de aventura antes de serem engolidos pelo mundo do trabalho e das responsabilidades familiares; e viajantes de meia-idade, ou já para lá dela, cujo desafogo económico lhes permite atravessar uma parte do planeta para irem conhecer uma das regiões mais inóspitas do planeta. Embora fazendo parte deste segundo grupo, apreciei muito mais a atmosfera cool do Bar Borges & Alvarez (o meu apelido é só coincidência, mas confesso que o facto de se intitular “Librobar” me agradou sobremaneira) e do La Oveja Negra, do que do classicismo de restaurantes como o La Tablita. No capítulo das compras, e como localidade focada no turismo, o artesanato é de perder a cabeça, seja ele o mais genuíno, vendido em barraquinhas, ou o mais requintado, exibido em enormes estabelecimentos onde apetece comprar tudo. Fui salva pela falta de espaço na bagagem: uma mala de cabine e uma mochila para três semanas não deixam lugar para compras volumosas. Mas não consegui resistir a comprar um livro com um título sugestivo: “Patagonia a Sangre Fría”, de Gerardo Bartolomé, um livrinho de contos à la Edgar Allan Poe, entre o mistério e o terror. Uma boa escolha.

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O nosso alojamento também ficava nesta avenida, mas numa zona mais tranquila, rodeado de árvores e casas com jardins. O Hotel Glaciar é um chalé de madeira que parece saído dos Alpes, despretensioso mas confortável, com quartos virados para um corredor interior ao ar livre e uma sala de pequenos-almoços com tecto e mesas de madeira clara, toalhas aos quadrados vermelhos e brancos, e muitas janelas com vista para o exterior. Um dos meus maiores prazeres em viagem é ter a possibilidade de tomar o pequeno-almoço, com calma, num local agradável – parece-me sempre um bom prenúncio para o resto do dia.

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Colada à margem do Lago Argentino, a Reserva Natural Laguna Nimez é outra das boas surpresas de El Calafate. Criada em 1986 por determinação municipal, é uma zona pantanosa muito rica em biodiversidade, onde estão representados vários ambientes naturais da Patagónia. O trilho interpretativo de 3 km que percorre a Reserva levou-nos à volta das lagoas Nimez e Escondida onde, entre as 137 (!) espécies de aves já ali observadas (acima de 10% da avifauna argentina), os flamingos são incontestáveis vedetas, com os seus tons de rosa-salmão a destacarem-se no prateado imóvel da água. No percurso há observatórios de aves e miradouros sobre o Lago Argentino, sobrevoado pelos omnipresentes gansos-de-magalhães e por cisnes-de-pescoço-preto. Na tarde tépida do nosso passeio, o vento aplainava as ervas típicas da estepe e fazia dançar os arbustos floridos e os canaviais. Ao longe, para oeste, as montanhas andinas mostravam os seus chapéus de neve, em jeito de provocação, atazanando-nos o espírito pela antecipação do que iríamos ver no dia seguinte.

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O deslumbramento dos glaciares

 

O autocarro da Cal-Tur foi buscar-nos ao hotel por volta das 9 da manhã, mas demorámos mais de duas horas até finalmente termos um vislumbre do Perito Moreno: houve paragens para ir buscar outros turistas, e em miradouros estratégicos sobre o Lago Argentino e as montanhas que o rodeiam. A paisagem e as explicações da guia fizeram com que a viagem fosse menos monótona e parecesse mais curta.

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Os glaciares ocupam 10% da superfície do nosso planeta e contêm 90% da água potável disponível em todo o mundo. Os maiores estão na Antártida e na Gronelândia, mas o Campo de Gelo do Sul da Patagónia, com quase 17.000 km2, é a terceira maior extensão de gelo continental da Terra, e é nele que se insere o Perito Moreno. Com cerca de 250 quilómetros quadrados (uma área superior à da cidade de Buenos Aires), é um glaciar notável tanto pela vastidão como pela sua dinâmica única. A maior parte dos glaciares que existem no nosso planeta estão a regredir, mas o Perito Moreno é um dos poucos que mantém um equilíbrio notável: avança cerca de dois metros por dia, mas perde também diariamente uma quantidade de massa proporcional, o que mantém a sua estabilidade.

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Na encosta do Parque Nacional Los Glaciares com vista para o Perito Moreno foi criado um conjunto de passarelas com cinco percursos distintos (um deles acessível a pessoas com mobilidade reduzida) e vários miradouros, de onde podemos observar o glaciar de diferentes ângulos. Qualquer que seja a perspectiva de que o vemos, é um fenómeno geológico magnífico. Tem mais de quatro quilómetros de largura e ergue-se até 78 metros acima do nível das águas do Lago Argentino. Mais impressionante ainda, a massa invisível que fica debaixo de água pode chegar aos 700 metros de profundidade.

O que todos estes números não traduzem é o deslumbramento que senti perante este gigante gelado. Vê-lo em fotografia é fascinante, mas ao vivo é toda uma outra emoção. Sente-se o frio que trepa pela encosta, mesmo não havendo vento, e que faz arder o nariz e as faces. Ouvem-se os gemidos do gelo, que se dilata e contrai, e de vez em quando se despenha ruidosamente no lago, formando círculos leitosos na água parada, opaca, pintada em tons de jade e brilhante mesmo quando o céu ameaça chuva. O vermelho-vivo das flores da árvore de fogo chilena (Embothrium coccineum; “notro”, na linguagem local) destaca-se no fundo verde-escuro e azul da paisagem. Um caracará (Carcara plancus) posa para as fotografias, e depois decide abrir asas e partir para longe das atenções. O Perito Moreno faz parte de um ecossistema vivo, um habitat vital para diversas espécies de fauna e flora adaptadas às condições únicas do ambiente glacial; estar ali, sentir a magnitude daquela maravilha da natureza, foi uma experiência que transcendeu a mera contemplação visual e fez crescer ainda mais o meu respeito pelo planeta em que vivemos.

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Descemos ao lago para um passeio de barco nas águas onde flutuam pequenos blocos de gelo, alguns deles já translúcidos, prestes a derreter. A embarcação não se aproxima a menos de três ou quatro centenas de metros do glaciar, mas mesmo assim o efeito é avassalador. À nossa frente ergue-se uma muralha de gelo irregular e agreste, mais alta do que um edifício de 20 andares, larga a perder de vista, de um azul entre o turquesa profundo e o quase branco, cruzado por veios escuros. De repente, um grande estrondo e um murmúrio de admiração que se alastra pelos ocupantes do barco: uma torre de gelo desprendeu-se do glaciar mesmo à nossa frente – gelo que se formou há cerca de 400 ou 500 anos, um tempo muito superior ao de qualquer vida humana.

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Paraíso do trekking

 

Como cada vez gosto mais de caminhar, a minha viagem à Patagónia tinha obrigatoriamente de incluir El Chaltén – que se autodenomina “capital argentina do trekking”. É com base nesta vocação que a localidade tem crescido, pese embora a sua finalidade inicial tenha sido política. Na verdade, El Chaltén foi fundada em 1985 como parte de um esforço para estabelecer presença humana e reforçar a soberania argentina sobre a região da Patagónia. Mas a sua localização, na base das montanhas andinas Fitz Roy e Cerro Torre e muito perto do Lago Viedma, atraiu aventureiros de todos os pontos do globo, e tornou-se um destino popular para os amantes do montanhismo e do alpinismo. Integrada no Parque Nacional Los Glaciares, nota-se um foco significativo na preservação ambiental e na promoção do turismo sustentável. A localidade mantém uma atmosfera simples e acolhedora, embora ofereça uma variedade de serviços virados para o turismo, e é um ponto de partida estratégico para quem gosta de aventura e de actividades ao ar livre.

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Os 220 km de estrada que separam El Calafate de El Chaltén foram mais uma vez transpostos em autocarro. Três horas de viagem bem instalada no piso superior do veículo, à frente de uma janela panorâmica. Não que houvesse muito para ver: a paisagem entre as duas localidades resume-se a terra deserta, com uma ocasional sugestão de montanhas muito ao longe, e às extensões de água azul dos lagos. Quase no final da viagem, a atmosfera passou de soalheira a enevoada, e quando finalmente parámos no terminal rodoviário de El Chaltén o mau tempo tinha-se instalado, com chuva e vento forte. No quilómetro que tivemos de andar até ao alojamento, a impressão com que fiquei foi a de uma “cidade” com um desolador ar de acampamento pouco mais que provisório, semi-deserta, desenxabida e pouco acolhedora.

 

Com a minha sorte habitual, o tempo mudou passadas umas horas, e os dias seguintes encarregaram-se de também mudar a minha opinião. Por trás do aspecto incipiente das suas casas e ruas, El Chaltén revelou ter um ambiente jovem, simpático e hospitaleiro, onde fomos recebidas com sorrisos e respostas a todas as nossas perguntas. Cafés e restaurantes com ambiente intimista e comida excelente, conversas animadas – o empregado de mesa do “La Esquina”, onde tomámos várias refeições, até falava connosco em português do Brasil – e um interesse genuíno no nosso bem-estar, a par de alguma curiosidade sobre nós e o nosso país. Deu para perceber que não passam por ali muitos portugueses.

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Depois foram dois dias intensos de caminhadas, que tiveram tanto de cansativas quanto de memoráveis. Mesmo os trilhos mais curtos envolvem subidas contínuas durante vários quilómetros, e implicam algum esforço e várias paragens para descansar. Por vezes até tive vontade de desistir. Mas valeu bem a pena todo o “sacrifício”. Há qualquer coisa de mágico naquelas montanhas. De cada vez que olhava para o Fitz Roy – que em El Chaltén é bem visível de qualquer parte – dava por mim a sorrir. Percorrer aqueles trilhos que me mostravam várias perspectivas destes picos foi um privilégio que nunca vou esquecer.

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Dos quatro percursos que fizemos, o mais desafiante foi também o meu preferido, não por ser difícil (que o é bastante, uma ascensão de 350 metros ao longo de 3 km) mas pelo entorno. O trilho que sobe até à Laguna Capri passa pelo miradouro do rio de las Vueltas (aqui quase ia ficando sem gorro, tal era a violência do vento), de onde se avistam muitos quilómetros da Cordilheira Andina e do vale em que o rio vai serpenteando. Depois entramos numa maravilhosa zona de bosque onde predomina a faia-antárctica (Nothofagus antarctica; “ñirre”, em espanhol), e mais ou menos a meio entre o terceiro e o quarto quilómetro começamos a ver o contorno das montanhas por entre as árvores. Até que chegamos finalmente à Laguna Capri, um extenso tapete de água transparente que reflecte as cores do céu e da vegetação que o rodeia, com o Cerro Torre, o Fitz Roy e o glaciar Piedras Blancas lá ao fundo. É a recompensa pelo esforço da subida.

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Para aproveitar ainda mais aquele maravilhoso ambiente, prolongámos o passeio pela vereda que acompanha a margem do lago e depois inflecte até ao ponto a que dão o nome de Miradouro do Fitz Roy, num percurso circular que desemboca no trilho da Laguna de Los Tres e se une mais abaixo ao caminho que nos levou à lagoa.

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No extremo sul de El Chaltén, depois de passarmos uma ponte, fica o Centro de Visitantes do Parque Nacional, que marca também o início de outros trilhos. Os mais curtos levam-nos a dois miradouros com nomes de aves habituais nesta região: o Mirador de los Cóndores e o Mirador de las Águilas. O primeiro é curto mas tirou-me o fôlego, e de duas maneiras: pela subida acentuada, que me deixou os músculos das pernas a reclamar descanso (nesse dia já tinha caminhado 16 km), e por oferecer a melhor vista sobre El Chaltén – que, deste sítio, parece feita de casinhas do Monopólio. O segundo partilha um troço da subida do primeiro, mas depois torna-se misericordiosamente quase plano até chegarmos ao miradouro, um promontório rochoso com um panorama excepcional, que inclui o Lago Viedma e a extensa planície que o acompanha. O regresso, nesta área de vegetação rasteira que exibia os verdes e vermelhos de uma Primavera avançada e com o sol já a descer na direcção das montanhas, foi a parte que mais apreciei e fiz com asas nos pés, por ter sempre no horizonte o perfil do Fitz Roy e outros picos nevados dos Andes. El Chaltén tem uma atmosfera verdadeiramente especial.

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O apelo da natureza

 

No imaginário das minhas viagens sonhadas, a Patagónia era um misto de lugar desértico com paisagens arrebatadoras e pequenos povoados tranquilos varridos pelo vento. A realidade encarregou-se de me mostrar que, em grande parte do território que visitei (sobretudo no lado argentino), há mais aridez e monotonia do que eu imaginava, e os locais habitados são bastante mais movimentados e menos românticos do que estava à espera.

 

Ainda assim, as vastas extensões semi-selvagens, a sua biodiversidade e a imponência das montanhas e dos glaciares fazem da Patagónia uma região particularmente apelativa para quem procura conhecer lugares menos adulterados pelo Homem. Ao longo dos tempos, vários filósofos tentaram explicar esta atracção que a natureza exerce sobre nós, seja como fonte de autenticidade, utilidade ou inspiração espiritual. Para mim, no entanto, a única perspectiva com a qual consigo identificar-me é a do valor intrínseco da natureza, exterior e independente a qualquer potencial utilidade para o ser humano. Nós existimos porque fazemos parte dela, e arrogarmo-nos o direito de usar e abusar dela é pura estupidez.

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A parte final desta viagem implicou o regresso de autocarro a El Calafate, de onde apanhámos depois o avião para Buenos Aires. Para esta estadia de uma única noite escolhemos um alojamento mais modesto, numa rua tranquila perto do centro da cidade. À frente da casa estavam plantados alguns calafates que, a um mês de distância do Verão austral, já tinham substituído as suas típicas flores amarelo-vivo por bagas arroxeadas. O calafate (Berberis microphylla) é um arbusto espinhoso endémico da Patagónia, cujo fruto comestível é aproveitado desde a pré-história como alimento, pelo seu grande valor nutritivo, e também usado para fins medicinais. Sabe-se actualmente que tem uma das mais altas actividades químicas antioxidantes presentes em frutos comestíveis do planeta, sendo considerado um superalimento. As flores são amarelas, mas as bagas são de um azul quase negro, parecidas com os mirtilos. Esta foi a única oportunidade que tive de as ver, ainda verdes, mas já as tinha provado em forma de doce, por sinal delicioso.

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De tão popular que é, existem muitas lendas associadas ao calafate. Mas a mais promissora é a que diz que quem come este fruto, garante o seu regresso à Patagónia. Parece-me um bom presságio.

 

(Também publicado no blogue Viajar Porque Sim)

Patagónia, terra de contrastes - parte 1

Ana CB, 04.07.24

É longa a viagem até ao fim do mundo. Em linha recta seriam menos de 12 mil quilómetros, mas na vida real o percurso entre o nosso pequeno rectângulo europeu e o extremo sul do continente americano implica três voos e muitas, muitas horas. Quando – finalmente! – o avião que nos trazia de Buenos Aires reduziu a altitude para aterrar em Ushuaia, sobrevoando montanhas coroadas de neve e ilhas que mais pareciam borrões de tinta sobre água azul-chumbo, sentia-me ao mesmo tempo aliviada por chegar, expectante pelo que antevia, e assombrada com o que já estava a ver. Era o início de uma viagem pelo sul da Patagónia, e tinha decidido começá-la na cidade que se autodenomina “fim do mundo”.

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Onde a terra acaba

 

Ushuaia é cidade argentina e fica na Ilha Grande da Terra do Fogo, à beira do Canal Beagle, onde a fronteira com o Chile faz um ângulo abrupto de 90 graus para norte, prolongando-se em linha absolutamente recta até à costa setentrional da ilha. Este limite artificial, estabelecido pelo Tratado de 1881 entre os dois países vizinhos, isolou a Terra do Fogo argentina do resto do país: é impossível lá chegar por via rodoviária sem passar pelo Chile, e é por isso que grande parte dos visitantes da cidade chega e parte de avião. No nosso caso, aplicava-se apenas a primeira parte. A saída ia ser de autocarro, e este iria continuar a ser o nosso modo de locomoção durante o resto da viagem até à hora de regressar a Buenos Aires para depois voltar a casa.

 

Começar em Ushuaia um périplo de quase três semanas pelo sul da Patagónia revelou-se uma boa decisão. Cidade mestiça, cruzamento de aldeia alpina com localidade nórdica, temperada com pitadas de tropicalidade sul-americana, a sua atmosfera meio sonolenta foi ideal para me acostumar à temperatura (baixa, mesmo na Primavera), ao castelhano em que o “ll” soa a “g” ou “ch”, mas nunca a “lh”, ao câmbio de milhares de pesos traduzidos em poucos euros. Percebi que sermos cumprimentadas com um “Hola chicas!” é sinal seguro de simpatia, e que por aqueles lados as tradicionais empanadas foram elevadas à categoria de delícia de comer e chorar por mais. Passeámos com vagar pela avenida marginal e pelas ruas geometricamente desenhadas, onde o kitsch comercial predomina e harmonia arquitectónica é conceito desconhecido: cada edifício tem o seu estilo, muitos a penderem para o vanguardista desinspirado, cada casa parece ter sido propositadamente construída para contrastar com as vizinhas, e grande parte delas têm ar de pré-fabricadas. Visitámos o antigo Presídio, agora transformado em complexo museológico com entradas pagas a preço inflacionado para turistas, e subimos a escadaria-passadiço do Paseo del Centenario, o melhor miradouro sobre a cidade e a baía. Ambientei-me.

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Ushuaia significa também a oportunidade de ver pinguins no seu habitat natural, mas para isso há que fazer um passeio de barco no Canal Beagle até à Isla Martillo, a que informalmente chamam Pingüinera. É aqui que, nos meses do Verão austral, se instalam três espécies diferentes de pinguins com um único propósito: nidificar. Os mais abundantes são os pinguins-gentoo e os pinguins-de-magalhães, mas em anos recentes têm também aparecido pinguins-rei. A ilha está classificada como reserva natural, por isso nos passeios mais comuns, como o que fizemos, a embarcação apenas se aproxima da praia e vemos os pinguins à distância – suficiente para os observarmos em idas e vindas no seu habitual passo oscilante, mais engraçados ainda quando se enchem de pressa e aceleram, com as asas meio abertas em jeito de corcunda. Independentemente disso, qualquer passeio no Canal Beagle é um festim para os olhos, sobretudo se tiverem a sorte que tivemos: depois de um amanhecer cinzento, um dia de sol aberto que fazia brilhar a água e a neve espalhada nos cumes das montanhas.

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Guardámos para o final o Parque Nacional Tierra del Fuego, cuja entrada fica a cerca de 20 km de Ushuaia, com várias ligações diárias em minibus. Nos seus quase 700 km2, este parque conjuga ambientes de montanha, de floresta andino-patagónica e aquáticos, numa variedade de cenários cruzados por trilhos pedestres na sua maioria fáceis de percorrer. Foi aqui que passámos o nosso último dia na Terra do Fogo argentina, caminhando em volta da Baía Lapataia e depois bosque adentro, tendo como banda sonora o rugido suave das árvores e o toc-toc ocasional de algum pica-pau. Frequentemente, uma mancha branca ou castanha com riscas negras mexia-se entre a vegetação ou atravessava-se no nosso caminho: o ganso-de-magalhães é a ave mais abundante por estes lados, tão comum que a sua imagem está no logótipo do parque. Piquenicámos com vista para a Laguna Verde na companhia de um falconídeo guloso, ao longe o fumo dos grelhadores do parque de campismo subia até se juntar à neblina ligeira que teimava em soltar-se das encostas. E foi a descansar à beira do Lago Acigami, água-espelho entre um corredor de montanhas, com o Cerro Cóndor ali ao lado, indiferente ao facto de ter uma fronteira a dividi-lo, que nos despedimos das terras argentinas do fim do mundo.

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Terra de contrastes

 

A Patagónia, região que povoa abstractamente os sonhos de tanta gente, é uma área na América do Sul com cerca de 11 vezes o tamanho de Portugal, convencionalmente limitada a norte por Puerto Montt e o lago Todos Los Santos, no Chile, e pelos rios Colorado e Barrancas, na Argentina, estendendo-se até ao arquipélago da Terra do Fogo, no extremo sul do continente americano. Parte da Cordilheira dos Andes rasga-a de norte a sul, fazendo simultaneamente a divisão entre os dois países, com a Argentina a ocupar a maior fatia do território e só perdendo para o Chile mesmo quase na extremidade meridional, onde apenas conseguiu reclamar para si a ponta leste da Terra do Fogo. Esta separação geográfica resulta num contraste muito nítido no relevo da região patagónica em cada um dos países: o lado chileno é quase completamente composto por ilhas, muito recortadas e com relevo acidentado, tem vegetação abundante e alberga a maior parte do Campo de Gelo do Sul da Patagónia, a terceira maior área de gelo continental no nosso planeta; na sua parte argentina, o território é árido e plano, só variando na faixa junto aos Andes, onde as montanhas e os lagos glaciais modificam a paisagem.

Às seis horas de uma manhã fria, um minibus levou-nos até Rio Grande, 200 quilómetros feitos em quase três horas e meia através de nenhures, com apenas uma breve paragem em Tolhuin, a única localidade que atravessámos durante o percurso. No terminal rodoviário de Rio Grande houve que tratar das formalidades para mais tarde cruzar a fronteira sem sobressaltos: no Chile não é permitido entrar por via terrestre com nenhum tipo de comida que seja perecível a curto prazo. As sete horas e meia seguintes foram passadas num autocarro em nada diferente dos que nos levam pelas estradas portuguesas em trajectos bem menos longos. Não há ligação terrestre contínua, por isso a passagem do Estreito de Magalhães é feita num ferry, e a espera de vez para entrar na embarcação consumiu mais de duas horas. O destino? Punta Arenas, a capital da região mais meridional do Chile.

 

O contraste entre Ushuaia e Punta Arenas é flagrante, e têm apenas um pormenor em comum: ambas ficam junto ao mar. Mas enquanto o Canal Beagle é sereno e rodeado de montanhas, o Estreito de Magalhães é um mar amplo e sem margem oposta à vista, como os oceanos que une. Fundada em meados do século XIX para consolidar a presença chilena no Estreito – que na altura era a única ligação marítima entre os oceanos Atlântico e Pacífico e, portanto, uma via de grande importância para o comércio – Punta Arenas mostra, no seu centro histórico, a monumentalidade clássica da época. Passeando entre os edifícios de pedra decorados com arcos, volutas, motivos florais e ferros forjados, nas avenidas largas e arborizadas, ou no cemitério, onde o kitsch e os jazigos de mármore ornamentado coexistem pacificamente, senti-me como se estivesse numa qualquer localidade europeia, em vez de numa cidade isolada nos confins do continente americano, mais perto da Antártida do que de Santiago do Chile. Bons restaurantes e o melhor alojamento de toda a viagem – gerido com grande simpatia pelo Arturo, um professor apaixonado por Portugal que escolhia Mariza e Cesária Évora como música de fundo ao pequeno-almoço – também influenciaram a decisão de ficar em Punta Arenas mais um dia do que o previsto.

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O arco-íris que nos saudou na tarde da chegada à cidade foi anúncio de bom tempo. Ainda assim, o vento não deu tréguas na viagem de barco que nos levou no dia seguinte à Isla Magdalena que, com a sua irmã menor de nome Marta, forma o Monumento Nacional Los Pinguinos. A ilha é protegida por ser o local no Chile mais importante para a nidificação dos pinguins-de-magalhães, e nela chegam a congregar-se mais de 200 mil indivíduos desta espécie. O desembarque é permitido nesta ilha, onde fizemos uma caminhada de cerca de uma hora com passagem pelo farol construído em inícios do século XX. O percurso está marcado por estacas e cordões, por isso conseguimos ver de perto os pinguins e as tocas em que fazem os ninhos. Como é óbvio, qualquer interacção com os animais é estritamente proibida.

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Punta Arenas não foi o primeiro assentamento nesta região inóspita. Instruídos pelo presidente Manuel Bulnes para tomarem posse do Estreito de Magalhães, os primeiros colonos chilenos instalaram-se 52 km mais a sul e ergueram o Fuerte Bulnes em 1843. No entanto, as terríveis condições climatéricas do lugar levaram a que os seus habitantes resistissem apenas durante seis anos, após os quais decidiram abandonar o povoado e mudar para o local onde hoje se encontra a cidade. Para celebrar o centenário da criação dessa colónia, o forte foi reconstruído e classificado como sítio histórico-museológico, estando actualmente incluído no Parque del Estrecho. Além do Fuerte Bulnes, onde estão recriadas algumas construções que faziam parte do assentamento, a excursão guiada que nos levou nesta visita incluiu uma caminhada pelos dois percursos pedestres do parque, que são de baixa dificuldade e cheios de beleza. Um atravessa o Bosque del Viento, rico em flora endémica e árvores fascinantes. O outro percorre parte da península junto à costa, com vistas encantadoras sobre o Estreito de Magalhães e as ilhas e montanhas em volta.

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Lagos e montanhas

 

A Ruta 9 liga Punta Arenas a Puerto Natales, as duas principais cidades do sul da Patagónia chilena. Nesta extensa fita de asfalto, rodeada de estepe acastanhada, deserta e só ocasionalmente interrompida por algum lago desinteressante, as curvas são tão largas que se tornam imperceptíveis, e a estrada assemelha-se a uma recta sem fim. Nestes percursos de autocarro pelo sul da Patagónia senti-me como se estivesse no faroeste norte-americano. Horas e mais horas de paisagem monótona, onde até os guanacos são raros e mal se adivinham ao longe, silhuetas escuras sob o brilho inclemente do sol. Felizmente, a viagem até Puerto Natales foi bem mais curta e menos cansativa do que a anterior: apenas três horas e meia.

 

A primeira impressão que tive da cidade não foi das melhores, e não se modificou grandemente nos dias seguintes. Aliás, e pese embora tenha mais de 20 mil habitantes, chamar-lhe cidade é quase um eufemismo. Puerto Natales tem ar de aldeia – uma aldeia grande, feita à pressa e largada antes de estar pronta. As ruas são linhas rectas, sobrevoadas por centenas de fios emaranhados entre postes e limitadas por casas baixas, com telhados achatados e na sua maioria de aspecto meio provisório. Vêem-se poucas pessoas, árvores ainda menos, e os carros são inúmeros mas estão, misteriosamente, quase todos parados. À beira do golfo Almirante Montt e com os Andes como cenário, a zona da marginal poderia ter um ambiente menos mortiço, mas não é o caso. Há mais pedra e cimento do que areia, os edifícios novos parecem algo deslocados do entorno, as esculturas espalhadas pela avenida não são particularmente atractivas (com excepção da “Amores de Viento”, que se tornou num dos ex libris da cidade) e nem a água se mexe. Mesmo com sol, tudo parece congelado no tempo. Deste marasmo salvam-se algumas excepções, como o edifício do Espaço Cultural Nataris, na praça principal da cidade, que já foi Câmara Municipal e está desde há alguns anos convertido em centro de exposições e cultura.

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Puerto Natales vive actualmente muito do facto de ser a porta de entrada para o Parque Nacional Torres del Paine – que, ainda assim, fica a mais de 100 km de distância. Os autocarros diários que fazem a ligação com o Parque vão cheios de mochileiros carregados com tendas, sacos-cama e outros apetrechos necessários para passarem vários dias nas montanhas a percorrerem os circuitos W (71 km em 5 dias) ou O (120 km, 8 dias). A nossa ideia inicial tinha sido visitar o Parque durante dois dias, mas os constrangimentos provocados por uma greve de trabalhadores (alguns trilhos e estradas estavam encerrados) e o preço exorbitante do catamarã que liga as margens leste e oeste do Lago Pehoé fizeram-nos mudar de ideias. Decidimos reduzir as nossas ambições a um único dia e ficarmos pela área da Estância Pudeto, para percorrer o trilho que passa pela cascata do Salto Grande e segue até ao Mirador Cuernos. Meio dia é suficiente para esta curta visita, mas vale a pena fazer o percurso com calma e piquenicar à beira do Lago Nordenskjold, que tem o nome do geólogo e explorador sueco que o descobriu em inícios do séc. XX. O local é de uma beleza natural mesmerizante, sobretudo pela cor turquesa das águas do lago, mais brilhante ainda em dia de muito sol. Do Mirador Cuernos avistam-se o Cerro Paine Grande e os Cuernos del Paine, duas montanhas icónicas do Parque – e este ficou, para mim, como um dos lugares mais memoráveis de toda a viagem.

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(Também publicado no blogue Viajar Porque Sim)

Pensamento da semana

Ana CB, 02.04.23

Viajar é, à partida, um bom antídoto contra a intolerância. Falo, é claro, das viagens mais imersivas, onde se contacta com a cultura e o modo de vida de cada local (e não de uma mera estadia num qualquer resort blindado contra a realidade que o rodeia). Mas viajar também cria por vezes em mim – como mulher, portuguesa, europeia, e produto do século XX – sensações de incompreensão, frequentemente associadas às de impotência.

Incompreensão ao constatar como o mundo parece girar a velocidades diferentes consoante a cultura em que estamos, como a pobreza corta (ou serve de desculpa para cortar) o acesso à educação mas não aos modelos de smartphone mais recentes, como a vaidade exterior consegue coabitar com o desleixo, o lixo, e até mesmo a falta de compaixão. Impotência por perceber que mesmo quando nos exprimimos numa língua comum, o fosso que me separa desses outros é tão grande que sou olhada como se falasse uma língua diferente, talvez alienígena, e não há entendimento possível.

 

Este pensamento acompanhou o DELITO durante toda a semana

Blogue da semana

Ana CB, 12.06.22

 

Andam sempre na vadiagem e têm um fraquinho por gatos, por isso o blogue que criaram só podia mesmo ter este nome: Gato Vadio · Travel Blog.

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A Ana e o Ricardo gostam sobretudo de nos dar a conhecer Portugal – são apaixonados pelos Açores! – mas no blogue também falam das suas viagens por outros países. Têm imensas sugestões de roteiros e fotografias lindas. Só não esperem ver os seus rostos sorridentes, porque eles fazem questão de se manterem (quase) no anonimato.

Os posts que escrevem são muito completos e cheios de boas ideias – para visitar, comer e dormir – porque eles fazem questão de esmiuçar ao pormenor cada um dos lugares que visitam. É o blogue ideal para quem precisa de sugestões para uma escapadinha, cá dentro ou lá fora.

Maramures, guardada nos Cárpatos

Ana CB, 02.06.22

 

Foi um cemitério que me levou a Maramureș. Chamam-lhe Cemitério Feliz de Săpânța e só o nome já é uma incongruência, mas por mais estranho que pareça este cemitério fez-me atravessar metade da Roménia de propósito para o ir visitar – e descobrir, em jeito de presente inesperado, uma das regiões mais originais da Europa.

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Como país, a Roménia é muito jovem: ainda nem tem 150 anos, e as suas fronteiras só estabilizaram depois da Segunda Guerra Mundial. Uma história secular atribulada, recheada de invasões, lutas, e dependência de múltiplos impérios diferentes, fez da Roménia uma manta de retalhos com várias regiões culturalmente bem diferentes umas das outras. Entre elas, Maramureș é aquele brilhante menos polido, a região em que a ruralidade mais se nota e onde ainda perdura um estilo de vida tradicional. Situada no extremo nordeste do país, paredes-meias com a Ucrânia e resguardada pelos Cárpatos Orientais Interiores, não fica a caminho de nada nem é um curto desvio a partir de algures: visitar Maramureș tem de ser um acto intencional, e este é provavelmente o motivo pelo qual a região é tão pouco apelativa para a maioria dos turistas.

 

 

Uma casa no parque natural

 

Intencional ou não, esta vontade de estar à margem dos circuitos turísticos traz alguns problemas aos visitantes, sobretudo se forem estrangeiros e não falarem romeno. Ou ruteno, uma variante linguística do ucraniano. Saber alemão ou italiano talvez ajude um pouco em certas circunstâncias, mas o inglês não é aqui de grande préstimo. O resultado pode ser quase uma hora à procura de um alojamento mal sinalizado, e que num raio de meros seis quilómetros ninguém parece conhecer. Outro problema é o acesso ao alojamento implicar meter o carro por caminhos de lama e gravilha, que se ramificam de vez em quando e obrigam a andar para a frente e para trás até se encontrar finalmente o atalho certo, enquanto dizemos mal da vida e juramos que só vamos ali ficar uma noite.

 

Mas Maramureș tem sortilégios que a razão desconhece, e de um momento para o outro tudo muda. Na estrada surge uma estrutura de madeira com pilares esculpidos e três pequenos telhados – são assim os portões tradicionais da região – e mais atrás um edifício que parece saído do cenário de um filme. É a Conacul Drahneilor, uma mansão de madeira com vários volumes e pisos, construída segundo a traça e os métodos da arquitectura rural romena: esteios de pedra na base, telhados piramidais revestidos com fasquias de madeira, interrompidos por varandas com sardinheiras e janelas que evocam os famosos “olhos” de Sibiu, reminiscência dos orifícios criados para escoar o fumo nas antigas habitações rurais. E à volta, nada mais do que quilómetros de floresta alpina ondulante, onde predominam carvalhos e abetos. É paixão à primeira vista.

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Nem os desencontros linguísticos matam esta paixão, pois aqui não faltam simpatia e vontade de receber bem. Ser portuguesa também ajuda, porque é a primeira vez que acolhem alguém do nosso país, e não estranho a curiosidade que sempre despertamos – já estou habituada a ser olhada como marciana. Pavel Pop, o proprietário do alojamento, homem enérgico com um farto bigode e uma alegria contagiante, não poupa esforços para mimar os clientes e para se fazer entender. Instala-nos na varanda, com vista para o sol que se afunda atrás das serras, oferece-nos horincă, a típica aguardente caseira feita à base de ameixa que é uma espécie de bebida nacional, e arranja um tradutor, um adolescente de Cluj-Napoca que está ali a passar férias com os pais e fala um inglês impecável. Contente por ter com quem praticar o que aprende em aulas particulares, é ele que vai explicando o funcionamento da casa e o menu do jantar, e ainda sugere alguns pontos de interesse a conhecer na região. No dia seguinte, como o seu ajudante linguístico já viajou para outras paragens, Pavel vai dar-se ao trabalho de conseguir quem lhe traduza uma parte do menu para português, e até o convida para nos vir conhecer: é um amigo de longa data que trabalhou durante vários anos em Portugal e em Espanha, e que mata saudades do nosso país ao conversar connosco. Aquela é a sua terra, mas tem boas memórias dos tempos que passou entre nós.

 

A localização remota de Maramureș fez com que a região tivesse sido pouco afectada pela padronização e colectivização agrícola quase gerais de que a Roménia foi alvo durante o período ditatorial, e por esse motivo conseguiu preservar a maior parte dos seus hábitos e cultura. Nas estradas não é invulgar ver carroças puxadas por cavalos, as rodas de madeira substituídas por pneus em prol da rapidez da deslocação. Algumas casas têm frisos pintados com padrões geométricos, e nos terrenos que as rodeiam há pelo menos uma pilha de feno, amontoada na forma cónica tradicional destas paragens, por vezes com vários metros de altura. Passam mulheres de lenço colorido na cabeça, galochas nos pés, telemóvel no ouvido e ao ombro um ancinho invulgarmente comprido e tosco. Por estes lados as tradições centenárias e a modernidade parecem conviver sem sobressaltos.

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Um comboio na floresta

 

Prova desta modernidade é o facto de a actividade económica que gera mais rendimentos na região ser a extracção mineira – que se desenvolve sobretudo em torno de Baia Mare, a capital administrativa do distrito. Mas Maramureș é terra de florestas, que ocupam quatro quintos do seu total, e é aqui que encontramos a maior zona protegida dos Cárpatos romenos, o Parque Natural das Montanhas de Maramureș, abrangendo uma área de 1500 km2. Não é por isso de estranhar que a madeira seja o material que melhor define culturalmente este território e esteja omnipresente na arquitectura tradicional, nos monumentos religiosos, na expressão artística e nos objectos artesanais. A exploração madeireira faz-se sobretudo junto à fronteira com a Ucrânia, na zona que se alonga entre Sighetu Marmației e Borșa, com um dos seus centros mais importantes em Vișeu de Sus e no adjacente vale do rio Vaser.

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É neste vale que está em funcionamento, desde 1933, uma linha férrea de bitola de via estreita, usada sobretudo para transportar os troncos das árvores cortadas pelos lenhadores até à serração de Vișeu de Sus, onde a economia gira à volta da madeira desde meados do século XVIII. Nas linhas férreas, uma bitola de via mais estreita do que a bitola padrão é geralmente utilizada em terrenos com relevo acidentado, zonas esparsamente povoadas, ou para fins exclusivamente industriais. Com comboios mais pequenos e leves os carris não precisam de ser tão robustos, pelo que levam menos material e tornam-se mais económicos e mais fáceis de instalar e operar. Em 1970 a Roménia tinha uma rede com cerca de 3000 km de mocăniță, vias férreas florestais percorridas por estes pequenos comboios, movidos por locomotivas a vapor, que transportavam carga e pessoas pelas zonas montanhosas de difícil acesso. Actualmente, apenas a linha do Vale do Vaser continua a ser regularmente utilizada, numa extensão de cerca de 60 km floresta adentro, entre Vișeu de Sus e Coman. Apesar das preocupações ambientais, que reduziram o volume de árvores que podem ser abatidas (70% do Parque Natural está abrangido pela rede Natura 2000), a madeira continua a ser o maior negócio desta sub-região, e uma fonte de emprego alternativa à agricultura e à migração. Pelos carris circulam hoje em dia também outros veículos, carrinhas adaptadas com rodas metálicas em vez de pneus, que transportam materiais e pessoas, entre eles os guardas-florestais que patrulham a fronteira do país e vigiam a actividade dos madeireiros, tentando controlar o abate ilegal de árvores. Um artigo publicado no website Recorder.ro em Outubro de 2019 refere que o relatório de uma equipa de investigação, nomeada pelo Estado romeno após pressão da União Europeia, concluiu que entre 2008 e 2018 foram cortados em média 38 milhões de metros cúbicos de madeira por ano no país, dos quais 20 milhões de forma ilegal. Embora a metodologia científica usada para o estudo tenha sido desenvolvida e verificada por especialistas internacionais, este resultado não foi validado pelo Instituto Nacional de Investigação e Desenvolvimento Florestal (INCDS), que optou por o ignorar alegando falta de validade estatística, e foi fortemente contestado pela Romsilva (a empresa estatal que gere as florestas e as áreas de caça e pesca), que invocou o mesmo argumento. As suspeitas de corrupção no sistema governamental avolumam-se, e o problema do abate ilegal de árvores não parece ter solução à vista.

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Desde 2000, a mocăniță que acompanha o Vaser é também usada, com grande sucesso, para passeios turísticos em composições puxadas por locomotivas alimentadas a lenha. Embora a maior parte dos visitantes de Maramureș sejam romenos, estes passeios tornaram-se muito procurados, e na época alta a procura chega a ser suficiente para encher diariamente três comboios, cada um com várias carruagens, que partem a intervalos de meia hora. Por entre apitos e grandes rolos de vapor, o comboio sai da estação principal e vai seguindo lentamente junto ao rio, trocando de margem de vez em quando. Os primeiros quilómetros fazem-se entre habitações e terrenos cultivados, que depois começam a rarear até desaparecerem por completo e a paisagem se dividir apenas entre a água de um lado e a vegetação abundante do outro – tão abundante que conseguimos tocar nela se estendermos o braço através das janelas sem vidros. Às vezes passamos por pilhas de troncos já cortados, deixados nas margens lamacentas à espera de transporte, outras vezes por uma ponte que mais não é do que um tronco grosso com um corrimão rudimentar, ou ainda por três ou quatro vacas, e só muito raramente por alguma pessoa.

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O percurso para turistas termina a cerca de 20 km do ponto inicial, no apeadeiro de Paltin, onde criaram um parque de merendas junto ao rio. Numa espécie de restaurante aberto, um grupo de rapazes e raparigas vestidos com trajes típicos cozinham e servem meia dúzia de tipos diferentes de grelhados e comidas rápidas, enquanto outros tentam animar os visitantes com uma (não muito imaginativa) exibição de danças tradicionais. O passeio acaba por ocupar quase um dia inteiro, com duas horas de viagem para cada lado em carruagens tremelicantes, que nos chocalham os ossos mal acomodados em bancos estreitos de ripas de madeira, atravessadas pelo ar frio e húmido da floresta, nos ouvidos o barulho constante de metal a ranger contra metal e do arfar ruidoso da locomotiva. Se uma viagem tão curta já provoca desconforto a quem apenas está a passear, nem imagino como será duro o dia-a-dia daqueles que por aqui vivem e trabalham.

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Uma herança religiosa protegida

 

Nas comunidades tradicionais de Maramureș a religião continua a ter grande importância. Tal como no resto do país, a maioria das pessoas é fiel à Igreja Ortodoxa Romena, e as construções religiosas são abundantes. A face mais visível e notável desta herança espiritual secular são as peculiares igrejas de madeira. Numa região onde a construção em altura é despicienda, os campanários descomunais destas igrejas destacam-se acima dos telhados vizinhos como setas apontadas ao infinito – pois quanto mais altas, mais facilmente as preces dos fiéis chegarão aos céus. O seu carácter original é tão forte que oito delas estão inscritas na lista do Património Mundial protegido pela UNESCO. Com um número total que se aproxima da centena, têm várias características em comum: um corpo principal atarracado, que quase desaparece sob um telhado volumoso e por vezes duplo; uma torre sineira esguia, pontiaguda e muito alta, projectando-se a partir da extremidade oeste da construção, por cima da entrada; e pinturas naif nas paredes e tectos interiores, representando cenas bíblicas.

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A maioria destas construções religiosas data dos séculos XVII e XVIII, mas o seu simbolismo é tão forte que desde a democratização do país, várias igrejas têm sido construídas de acordo com os mesmos princípios arquitectónicos. A mais famosa de todas está no complexo do Mosteiro de Săpânţa-Peri e foi terminada em 2013. Os 75 metros entre o solo e o topo do campanário fazem dela a igreja de madeira mais alta do mundo.

 

Este mesmo título pertenceu durante mais de dois séculos à Igreja dos Arcanjos Miguel e Gabriel em Şurdeşti, construída em 1721 e uma obra-prima da engenharia dos mestres-carpinteiros da região: além de totalmente feita de madeira de abeto e carvalho, não tem um único prego de metal. Isolada no topo de uma colina suave e com pouca vegetação à volta, ao vê-la de longe, silhueta escura contra o céu azul brilhante, pareceu-me comoventemente vulnerável – resistindo, sozinha, ao silêncio que a envolve, e ostentando com orgulho os seus 72 metros de altura. Outros pormenores que a distinguem são o alpendre em frente à entrada, com arcos trabalhados e orifícios em forma de coração invertido, e os dois beirais do telhado, com uma outra fileira de arcos ornamentados entre eles. Tanto nas torres como nas paredes exteriores há uma abundância de cruzes, em madeira ou metal, e crê-se que o motivo decorativo da “corda torcida” esculpido em volta do corpo do edifício terá origens muito antigas, na época em que a região era habitada pelos Dácios. Símbolo do infinito, a “corda torcida” faz a ligação entre o céu e a terra, e é um motivo frequentemente usado para invocar a protecção divina, tanto nas construções religiosas como nas casas tradicionais.

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No complexo do Mosteiro de Bârsana, o ambiente é outro. O local é muito popular entre os turistas, tanto nacionais como estrangeiros, e nunca faltam visitantes. O recinto parece mais um jardim do que um mosteiro e inclui uma dezena de edifícios de traça tradicional. É mais um exemplo de como a fé religiosa ortodoxa na região de Maramureș resistiu aos séculos e às perseguições. Na localidade de Bârsana existiu, pelo menos a partir do século XIV, um importante mosteiro, extinto em 1791 quando o território estava sob o domínio do Império Austro-Húngaro, que pugnava pelo catolicismo. Desse mosteiro resta apenas uma igreja – uma das oito classificadas pela UNESCO – que os locais protegeram transportando-a para o coração da aldeia, onde se encontra até hoje.

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A memória do antigo mosteiro permaneceu viva na comunidade, assim como o desejo de o reerguer. O Episcopado Ortodoxo Romeno de Maramureș foi restabelecido em 1937, mas foi preciso esperar até 1993 para que fosse colocada a primeira pedra do actual Mosteiro de Bârsana, consagrado ao Concílio dos Santos Doze Apóstolos. Concebido pelo arquitecto Dorel Cordoș e executado por artesãos locais com os materiais típicos da região – madeira de carvalho e pedras de rio – o conjunto monástico tem florescido em edifícios e popularidade sob a direcção empreendedora da abadessa, Madre Filofteia, secundada por outras nove monjas e um clérigo. O complexo inclui uma igreja, um altar para celebrações ao ar livre, um museu que possui uma notável colecção de livros antigos e ícones, uma torre sineira que acumula as funções de portal de entrada, e várias habitações, tudo inserido num enorme jardim profusamente verde e florido. Um lugar de paz e de comunhão com a natureza, onde a criação humana tem raízes fundas em tradições centenárias perpetuadas por uma comunidade que não dissocia o céu a que aspira da terra que habita.

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Um cemitério singular

 

Numa região tão peculiar como Maramureș, o cemitério que me trouxe aqui não podia ser um cemitério como os outros. Neste lugar não há lápides de pedra tristonha ou cruzes ferrugentas a marcar as sepulturas, nem fotografias sépia dos defuntos ao lado de epitáfios taciturnos. Os sinais que marcam cada campa parecem soldadinhos bem alinhados, cada um deles vestido de cores chamativas para eternizar a memória do finado que homenageia. São cruzes de madeira de carvalho, com os formatos tradicionais das cruzes ortodoxas mas com uma espécie de “telhado” bicudo no topo e uma base alta e larga, pintadas num tom vivo de azul e decoradas com flores e cenas naif relativas ao defunto, tendo por baixo um poema. Estas cenas, reproduzidas com cores primárias simbólicas, ilustram uma característica ou profissão da pessoa, ou a forma como morreu, e as frases que as acompanham são normalmente jocosas, ou até mesmo satíricas. É por isto que lhe chamam o Cemitério Feliz de Săpânța.

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Na pequena comuna de Săpânța (pronuncia-se “sapuntsa”, o som do “u” sendo fechado) nasceu em 1908 Stan Ioan Pătraş, no seio de uma família de artesãos da madeira. Órfão de pai aos 14 anos, foi como marceneiro que passou a sustentar a família. Um dos trabalhos que tinha de executar recorrentemente eram as cruzes funerárias para colocar no cemitério, cuja técnica foi modificando ao longo dos anos: começou por pintá-las de azul – a cor do céu almejado pelos crentes – depois passou a decorá-las com motivos florais e pequenos poemas irónicos, e mais tarde a esculpir na madeira figuras em relevo alusivas à vida da pessoa a quem cada cruz se destinava. A origem desta inspiração permanece ainda hoje um mistério.

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Na Dácia, que na geografia da Antiguidade abrangia territórios a norte do Danúbio e leste do Mar Negro, incluindo os Cárpatos, os cultos pagãos perduraram até tarde, e o cristianismo só fez a sua entrada na região por volta do século V. Os Dácios prestavam culto ao deus Zalmoxis, que prometia a imortalidade da alma, e por isso a morte era para eles não o final da vida, mas apenas a transição para um mundo melhor. Este espírito descontraído em relação à morte ainda permanece de alguma maneira imbuído nas gentes de Maramureș, para quem a ideia de celebrar a vida dos defuntos não é uma noção estranha ou mórbida. As pessoas são recordadas com saudade, mas também com alegria, e o cemitério de Săpânța é disso o maior testemunho.

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Algures nos anos 50, o carácter peculiar deste cemitério chamou a atenção de um grupo de franceses que passou por Săpânța. Foi a partir dessa altura que o local começou a ser referido como Cemitério Feliz, e que a sua fama ultrapassou as fronteiras. Quando Stan Pătraş morreu, em 1977, o fluxo de visitantes estrangeiros já era regular e foi aumentando com os passar dos anos. Actualmente, é sem qualquer dúvida o lugar mais turístico da região. Na estrada de acesso há barraquinhas que vendem as habituais recordações de viagem, à mistura com artigos produzidos artesanalmente. A entrada no cemitério é paga, embora o valor do bilhete seja quase simbólico. Os proventos do turismo e as doações contribuíram para a renovação da Igreja da Natividade da Mãe de Deus (ou Igreja da Assunção), uma igreja insípida erigida em 1886 que agora é uma ode à cor e à arte local, com os seus telhados de cerâmica vidrada com grafismos coloridos e as paredes exteriores preciosamente decoradas com pinturas e mosaicos em que o dourado predomina, cintilante sob o sol.

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Das cerca de mil cruzes que hoje existem no cemitério, à volta de 700 terão sido esculpidas por Pătraş – incluindo a que assinala a sua sepultura, em frente à entrada da igreja. Este é o epitáfio que escreveu para si próprio:

 

Desde muito pequenino

Stan Ion Patrash foi meu nome

Ouçam-me enquanto passam

Pois o que digo é verdade

Todos os dias da vida

Nunca mal eu desejei

Pois apenas fiz o bem

A todos quantos eu pude

Ai que mundo tão ruim

Em que viver foi tão duro

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A casa em que Stan Ioan Pătraş trabalhava, dentro do cemitério, é hoje um museu-oficina. Antes de morrer, o artesão designou como seu sucessor Dumitru Pop Tincu, um dos seus aprendizes. É ele que continua a manter viva a tradição do seu mestre, apoiado por alguns ajudantes, sendo ao mesmo tempo escultor, pintor e poeta. Cada cruz continua a ser feita exclusivamente à mão e demora entre dois a três meses para ficar pronta. Dumitru faz 30 ou 40 por ano, algumas delas para forasteiros nacionais ou estrangeiros, ou até mesmo para museus. Além disso, dá aulas na Escola Popular de Arte, e cria as suas próprias pinturas e esculturas para as exposições em que o convidam recorrentemente a participar em todo o mundo. Defensor da originalidade do trabalho que herdou e perpetua, orgulha-se da identidade singular da região em que vive, dos seus usos e costumes e da sua arte popular, que quer manter a salvo da globalização. E diz que a Roménia é o único país onde as pessoas se riem da morte.

 

Mesmo para quem não perceba nada de romeno e por isso não consiga ler os epitáfios divertidos sobre os defuntos, muitas das cenas ilustradas nas cruzes do cemitério apelam só por si ao sorriso – as imagens são uma linguagem universal. Nas campas, simples rectângulos debruados com pedra, estão plantadas flores e pequenos arbustos, e algumas cruzes têm penduradas coroas de flores artificiais. Todo o cemitério é uma explosão de cor e alegria, duas características que habitualmente estão ausentes dos lugares onde depositamos os nossos mortos. Mas não aqui. No Cemitério Feliz de Săpânța celebra-se a vida em vez da morte, e os sorrisos são mais do que as lágrimas.

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Este local controverso é, afinal, talvez o que melhor ilustra a essência de Maramureș e das suas gentes: a maneira como equilibram a espiritualidade, traduzida nas fortes convicções religiosas e na continuidade de tradições ancestrais, com a matéria, subsistindo na dependência da terra e adoptando a simplicidade de um modo de vida em simbiose com a natureza. Num mundo cada vez mais uniformizado, manter este equilíbrio não será tarefa fácil.

 

(Também publicado no blogue Viajar Porque Sim)

Estradas

Ana CB, 31.03.22

 

É unânime que a invenção da roda foi um dos acontecimentos mais importantes para a evolução da humanidade, sobretudo quando mentes brilhantes se lembraram de aplicar o conceito na criação de meios para o transporte de cargas pesadas. Mas pouca importância é dada ao facto de que essa invenção acabou por arrastar com ela uma outra: a da estrada.

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As estradas são um paradoxo: entidades estáticas, a sua função principal (quiçá única) é facilitar a movimentação – das pessoas e das “coisas”. Imóveis, levam-nos a quase todo o lado. Podemos percorrê-las a pé ou numa variedade de meios de transporte diferentes, mas impelem-nos sempre a avançar. Ninguém fica simplesmente parado no meio de uma estrada. Se queremos parar, saímos dela. Podemos ficar na berma, a olhar para quem passa, ou sentar-nos a descansar, ou fazer qualquer outra coisa, mas sempre à margem. Uma estrada pede progressão, não imobilidade.

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A estrada pavimentada mais antiga que sobreviveu parcialmente até aos nossos dias ligava um cais nas margens do Lago Moeris à pedreira de Widan el-Faras, de onde era extraída a pedra basáltica para as câmaras mortuárias das Pirâmides de Gizé. Com cerca de dois metros de largura e composta por lajes de arenito e rocha calcária à mistura com madeira petrificada, calcula-se que date de pelo menos 2500 a.C., mais século menos século. Mas sabe-se, por exemplo, que na Mesopotâmia já se pavimentavam ruas desde 4000 a.C.

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Gizé

 

No entanto, é aos Romanos que o nosso imaginário associa a construção em massa de estradas. A calçada romana tinha quatro estratos diferentes de materiais e era feita para durar e facilitar a expansão do império, reduzindo o tempo de deslocação das colunas militares e melhorando a comunicação entre as grandes cidades que se iam criando por todo o território ocupado. Desde cerca do ano 300 a.C. e até ao declínio do império, dizem os livros que foram construídos por todo o território cerca de 80 mil quilómetros de estradas pavimentadas. Muitas delas foram continuadamente usadas e reestruturadas até aos dias de hoje; de outras, há troços que subsistem na sua forma praticamente original. Indiferentes aos recuos e avanços civilizacionais ao longo dos séculos e aos desfasamentos técnicos entre as várias regiões e culturas do nosso mundo, as estradas persistiram e foram ganhando cada vez mais importância e presença no planeta Terra, e hoje já não saberíamos viver sem elas.

Ponte romana de Vila Formosa (Alentejo)

 

As estradas são como as pessoas (ou não fossem elas uma invenção nossa!). Umas adaptam-se a cada sobressalto no relevo do terreno: curva para a esquerda aqui, cotovelo para a direita ali, contornam milimetricamente precipícios, lançam-se às alturas das montanhas, esgueiram-se por desfiladeiros que mais parecem buracos de agulha. Outras são impetuosas e cortam a direito por onde passam, rasgam túneis, esventram colinas, abatem árvores, compactam dunas. Outras ainda comportam-se com moderação, ora limando uma ruga orográfica, ora fazendo a ponte sobre um vale apertado ou sobre um rio que não convém incomodar.

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Para lá da sua utilidade facilitadora de movimentos militares e comerciais, as estradas tornaram-se também um “objecto de culto” para quem viaja em lazer. A literatura está cheia de obras épicas (ou nem tanto!) que contam histórias de viagens sobre rodas em estradas intermináveis e têm tanto de jornada de descoberta exterior como interior. O famosíssimo “Pela Estrada Fora”, de Jack Kerouac, trouxe para a ribalta a não menos famosa (e entretanto parcialmente alterada) Route 66 americana, que tinha sido criada em 1926. Os “Diários de Motocicleta” de Che Guevara descrevem uma viagem de 12 mil quilómetros da Argentina ao Peru. O “Na Patagónia”, independentemente da polémica gerada à volta do facto de Bruce Chatwin ter (segundo parece) inventado algumas das suas personagens, permanece uma belíssima narrativa de aventuras nos confins da geografia sul-americana, desde Rio Negro até Ushuaia. O mais recente “Clanlands”, dos outlanders Sam Heughan e Graham McTavish, passeia-nos pelas Terras Altas escocesas e pela sua cultura, entre histórias e diálogos cheios de humor. E o também relativamente recente “Na Planície das Serpentes”, desse “monstro” da escrita de viagens que se chama Paul Theroux, é um relato sem filtros sobre um México multifacetado, dilacerado entre a realidade dura da violência e a sua fantástica e antiquíssima cultura.

 

As minhas primeiras memórias de viagens são, precisamente, as de viajar de carro com os meus pais e a minha irmã. Naquela altura, mesmo em distâncias que hoje consideramos curtas, viajar em Portugal implicava sempre várias horas para chegar ao destino e uma preparação complicada, que envolvia farnel, almofadas para dormir no banco de trás, e sacos com material para todas as eventualidades – mesmo que fôssemos apenas às Caldas da Rainha para comprar fruta e visitar a família e regressássemos no mesmo dia. Desde então, perdi a conta às viagens que fiz por estrada, e viajar de carro permanece uma das minhas formas favoritas de conhecer mundo.

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Independentemente de nos levarem a lugares mais ou menos desejáveis, há estradas que por si só valem uma deslocação propositada para viver a experiência de as percorrer. Porque têm características únicas, porque são belas, porque nos transmitem uma sensação de encantamento, ou porque estão carregadas de História e de significado. Em Portugal, a mais famosa é certamente a N222, não só pelo seu célebre troço entre Peso da Régua e Pinhão – que lhe valeu o título de “World Best Driving Road” atribuído segundo o estudo de uma famosa empresa de aluguer de carros – mas por unir o país na quase totalidade da sua largura, entre Vila Nova de Gaia e Almendra, e acompanhar o Douro em partes do seu itinerário.

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A N222 em Foz Côa

 

Mas há várias outras estradas que me levam a querer voltar a elas uma e outra vez, e me deixam com saudades assim que as abandono. Na N304, percorrer as curvas e contracurvas do troço entre Mondim de Basto e a Campeã é ver no pára-brisas um filme sobre a grandiosidade do Parque Natural do Alvão. No Maciço da Gralheira, ziguezagueando no gume da montanha pela Estrada do Portal do Inferno, sinto-me uma funambulista em equilíbrio no arame. A M518 dá-me acesso à frescura da Fraga da Pena e depois à Mata da Margaraça, que é “só” uma das matas portuguesas mais antigas e notáveis, onde o ambiente é quase irreal. No Alentejo das estradas sem fim, na N246-1 perto de São Salvador da Aramenha há uma recta de um quilómetro em que freixos com 200 anos formam um túnel que parece dar acesso a uma outra dimensão.

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Portal  do Inferno

 

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Mata da Margaraça

10 N246-1 Alameda dos Freixos.JPGN246-1 Alameda dos Freixos

 

Além-fronteiras, entre uma longa lista de estradas que ainda sonho percorrer, há algumas que guardo na memória em lugar especial. Na Costa Rica, um autocarro levou-me (durante quase duas horas para cobrir apenas 90 km) de La Pita a Libéria, sobre um pequeno fragmento desse colosso de muitos milhares de quilómetros que é a Estrada Pan-Americana. Na Roménia, naquele que foi provavelmente o dia de condução mais cansativo de toda a minha vida até agora, desafiei-me a percorrer a icónica Transfăgărășan, cujo ponto mais alto fica acima dos dois mil metros: 151 km através das montanhas, dos quais 90 são de curvas e contracurvas constantes. Um desafio, sim, mas também uma satisfação, porque esta é realmente uma das estradas mais espectaculares do mundo, a todos os níveis. Mais perto, em terras dos nossos vizinhos, a parte cantábrica da N-621 inclui o desfiladeiro de La Hermida, 21 km acompanhando o rio Deva entre paredes de rocha que parecem tocar o céu, e mais para sul cruza a imensidão azul da barragem de Riaño. Na Camarga francesa, entre Aigues-Mortes e Le-Grau-du-Roi a estrada é apenas uma fita de asfalto, completamente recta e plana, rodeada de pântanos e salinas a perder de vista. Quando estive na Croácia, aconselharam-me a esquecer a auto-estrada no trajecto de Split para Dubrovnik e optar pela número 8, que segue o recorte da costa adriática e é de uma beleza fora de série – e eu segui o conselho. Ao lado, no Montenegro, não me arrependi de ignorar o ferry e continuar pela estrada que contorna a Baía de Kotor: o que se perde em tempo, ganha-se em paisagem que enche a alma. E em Itália, a SR2 entre Torrenieri e Bagno Vignoni, na região do Val d'Orcia, superou em muito tudo o que já tinha visto das paisagens toscanas em fotografia ou filme.

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A Pan-Americana na Costa Rica

A Transfăgărășan na Roménia

 

A N-621 na Cantábria

 

Camarga, sul de França

 

A Baía de Kotor, no Montenegro

 

Val d'Orcia, na Toscana

 

Para quem gosta de viajar, as estradas são dádivas dos deuses. Mais do que uma viagem de comboio ou de barco, e certamente muito mais do que uma viagem de avião, viajar por estrada dá-nos toda uma outra liberdade de movimentos e de tempo, e um contacto muito mais próximo com os lugares por onde passamos, com os seus pormenores, as suas características particulares e as suas pessoas. Permitem-nos o acesso a um mundo feito de tantas gentes e culturas diferentes, tantas obras de arte naturais ou construídas, e tantas idiossincrasias, que vai muito para lá do que julgamos ser possível existir – este mundo cheio de maravilhas, e também de desgraças, que é o nosso.

 

Chinesices

Carlos Barbosa de Oliveira, 17.04.09

Nos anos  80, do século passado, quando um ocidental viajava entre Lisboa e Roma, era-lhe servida uma refeição com entrada, prato, sobremesa e mais alguns apêndices, que podia acompanhar com vinho. Na mesma época, o mesmo ocidental que viajasse na China Airlines entre Cantão e Pequim (viagem aproximadamente com a mesma duração)  escarnecia dos chineses, por servirem uma refeição composta por uma sandocha e um sumo.

Actualmente, numa viagem entre Cantão e Pequim os passageiros têm uma refeição completa que pode ser acompanhada com vinho. No entanto, se o mesmo passageiro fizer a viagem entre Lisboa e Roma, ao final da tarde (hora de jantar) recebe apenas uma sandocha e um sumo. Como reage hoje o ocidental? Critica a opulência do serviço da China Airlines!